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Carolina Sieja Bertin

A LITERATURA COMO CHAVE TESTEMUNHAL

A experiência de narrar os traumas sociais e individuais no século XX passou a ter grande repercussão sobretudo a partir do exemplo paradigmático dos testemunhos dos sobreviventes da Shoá durante o julgamento de Eichmann, em Israel, em 1961.

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Carolina Sieja Bertin

Apesar dos inúmeros escritos acerca da memória, a ars memoriae tem seu início com Simônides de Ceos, maior autor de epigramas na Grécia antiga, e criador da Mnemotécnica, ou seja, da prática dos processos de memorização. Nas descrições de Cícero, de Quintiliano e, sobretudo, em Ad Herennium, vemos algumas histórias bastante ilustrativas das realizações de Simônides. Entre elas, uma bastante comum: a do banquete em homenagem ao pugilista Skopas. Durante a recepção, Simônides, também conhecido por sua retórica elogiosa, fez um discurso bastante acalorado em homenagem ao esportista e a outros que lá estavam. Assim que terminou, porém, foi chamado à porta por duas pessoas que queriam lhe falar.

Ao chegar à soleira do salão, Simônides não encontrou ninguém; mas logo compreendeu o que estava acontecendo: o salão havia desabado matando todos. Porém, por conta de seu discurso tão belo, os deuses o recompensaram, salvando-lhe a vida. Além disso, o poeta era necessário por conta de sua habilidade técnica no processo de rememoração: o teto da sala de recepções caíra com tamanha violência sobre os convidados que eles ficaram totalmente desfigurados e irreconhecíveis. Simônides, o único sobrevivente, por conta de sua habilidade em rememorar, pôde nomear cada um dos cadáveres: na medida em que se recordava exatamente do local onde cada conviva ocupara, todos puderam ser identificados e enterrados com honras fúnebres. Simônides, inclusive, foi o poeta grego que se dedicou grandemente à história da entidade Mnemosine. Segundo ele, foi ela quem descobriu o poder da memória e que deu nomes a muitos dos objetos e conceitos usados para fazer os mortais se entenderem enquanto conversavam. Sem as habilidades dadas pela entidade, a comunicação não aconteceria, pois não teríamos como compartilhar o mesmo nome para as coisas.

Desde os primórdios da civilização moderna, o processo de relembrar envolve as duas vias do processo de comunicação: os discursos elogiosos e as benfeitorias; e a necessidade de preservar a memória dos que já pereceram. A base da memória seria, nesse contexto, o equilíbrio entre a vida e a morte.

Com o advento das guerras mundiais, a experiência humana, como então era conhecida, sofre mudanças radicais: em um mundo onde a violência reina, as experiências perdem o viés narrativo. A própria morte adquire um outro espectro: se antes se dava com o moribundo em sua cama, recebendo a atenção de todos ao seu redor, com suas últimas palavras sendo ouvidas e respeitadas, agora, ela perde sua autoridade. Pessoas são dizimadas subitamente, sejam nas trincheiras, ou nos campos de concentração, sem deixar traços. Para além das sombras, agora, são apenas cinzas.

A experiência de narrar os traumas sociais e individuais no século XX passou a ter grande repercussão sobretudo a partir do exemplo paradigmático dos testemunhos dos sobreviventes da Shoá durante o julgamento de um dos líderes nazistas Adolf Eichmann, em Israel, em 1961 – que, aliás, sofreu inúmeras críticas, as quais apontavam para a supervalorização do testemunho como meio de prova, ao invés dos documentos. Em seu livro O Inconsciente Jurídico: Julgamentos e Traumas no Século XX (2014), Felman argumenta que o Direito e a historiografia tradicional tendem a se pautar nos documentos, já que enquanto a testemunha está sujeita à parcialidade, ao perjúrio, portanto à mentira e ao erro pela falha na rememoração, o documento possibilitaria uma leitura objetiva – um veredito definitivo para a história. Durante o depoimento do autor K-Zetnik, a dificuldade de representação de um evento traumático diante das emoções humanas fica ainda mais evidente:

“Isso é uma crônica do planeta Auschwitz. Eu estive lá por aproximadamente dois anos. O tempo lá não é como é aqui na terra. Cada fração de minuto lá passava em uma escala diferente de tempo. E os habitantes desse planeta não tinham nomes, eles não tinham pais ou filhos. Lá, eles não se vestiam

Todo testemunho é da maneira que se vestiam aqui; eles não único e insubstituível, haviam nascido lá e não davam à luz; eles tanto com relação à sua respiravam de acordo com diferentes leis da natureza. Eles não viviam, e também não estrutura, quanto ao seu morriam – de acordo com as leis deste munconteúdo; ele anuncia do” (minha tradução). algo excepcional. É essa Antes mesmo de finalizar seu depoisingularidade, porém, o que corrói a relação entre mento, incapaz de responder às perguntas do promotor, a testemunha entra em colapso. Frente ao irrepresentável e à ino discurso testemunhal capacidade de testemunhar, ela desmaia. e o simbólico trazido Auschwitz, então, torna-se o elemento inpela literatura, afinal, verossímil daquela realidade por excelênsendo a linguagem cia, mas que, ao mesmo tempo, deve ser testemunhado. Não falar sobre a Shoá seum constructo de ria criar ao redor do evento uma aura imgeneralidades, ela é feita penetrável, seria tirá-la do contexto hude símbolos universais. mano dentro da qual ocorreu e, consequentemente, possibilitar que ocorra novamente (Agamben, 1998). No artigo em questão, apresentarei de que maneira as representações culturais contemporâneas (como as ilustrações do cartunista Art Spiegelman) trazem a imaginação como elemento estimulador da narrativa do trauma. É precisamente o ato de imaginar que proporcionará um auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma, fazendo com que a narração encontre mais elementos que possam lhe dar vazão. Nesse sentido, retomaremos o que Derrida (1998) chamou de aproximação entre o campo testemunhal e o da imaginação, já que, segundo o autor, sendo a literatura fruto das experiências humanas, ela mantém um constante compromisso com a vida, e que, por isso, encontra variados caminhos para o encontro com o real. Tais possibilidades seriam o seu teor testemunhal. Há de se apontar algumas problemáticas importantes no que tange a literatura e o testemunho. A primeira delas chamaremos aqui de paradoxo da singularidade. Todo testemunho é único e insubstituível, tanto com relação à sua estrutura, quanto ao seu conteúdo; ele anuncia algo excepcional. É essa singularidade, porém, o que corrói a relação entre o discurso testemunhal e o simbólico trazido pela literatura, afinal, sendo a linguagem um constructo de generalidades, ela é feita de símbolos universais. Sendo assim, o testemunho como evento singular desafia

Detalhe da ilustração da guarda de The Complete Maus, da Pantheon Book New York, 2011.

a linguagem de quem fala e do ouvinte.

Mesmo que tal singularidade seja transposta, deparamo-nos com a segunda problemática: a tentativa (fracassada) de narrar o mundo moderno emperra sua passagem e tradução para o simbólico, fazendo com que o testemunho aconteça quase que primordialmente no plano da literalidade, como veremos no depoimento de Fred O.:

“Houve uma situação que acho que nunca se repetiu na história. Nunca será (sic). Isso nunca vai acontecer novamente. A situação dos piolhos. As pessoas estavam ... as pessoas usavam duas ou três peças de roupa, uma em cima da outra, porque se tivessem que se mudar para ir para outro lugar, é isso que poderiam carregar. E, especialmente, isso ficou ainda pior mais tarde, quando deixei Varsóvia e fui para Hrubieszow novamente. É por isso que essa fantástica, enorme e incrível epidemia de tifo e febre tifoide. Se você não tivesse imunidade à exposição anterior ao tifo, você tinha que pegá-lo porque os piolhos estavam cobrindo tudo. Mais tarde, em Hrubieszow, vi uma vez algo que ainda vejo depois de 40 ou 50 anos. Este pobre homem veio e começou, eu tinha um tipo de escritório com cerca de um metro por um metro e meio, um pequeno espaço. Este homem veio cuspindo sangue ou algo assim, tuberculose, provavelmente, não me lembro. E eu disse ‘Tire a roupa’. E eu estava sentado em um canto da sala e ele estava entrando pela porta. E ele começou a se despir. Ele tirou um casaco, uma capa externa e depois uma jaqueta, e depois um colete, e depois outra jaqueta e várias peças de roupa e continuou colocando-as no chão. E então eu o vi, disse: ‘O que ele está vestindo?’ Tirei meus óculos, sou um pouco míope, e havia um casaco, completamente, um casaco completo de milhares de... piolhos cobrindo seu corpo. Os piolhos são branco-acinzentados, você sabe. Eles estavam brilhando. Foi algo que depois de quarenta anos ainda me assombra. Esta visão de um homem coberto por centenas, talvez milhares de piolhos rastejando sobre ele e uns sobre os outros” (tradução minha).

O trecho acima faz parte do testemunho de Fred O., médico polonês residente em Varsóvia. O. não é falante nativo da língua inglesa, apesar disso não se mostrou um problema durante seu depoimento: seus fatos são apresentados de maneira coesa, os sujeitos e objetos bem definidos e o tempo verbal claramente estabelecido. Entretanto, não consegue disfarçar as pausas e as tremulações de sua voz quando a lógica parece faltar nos fatos que apresenta: um colete de piolhos? Tantos piolhos que era possível se confundir com uma parte da vestimenta? Uma visão tão grotesca que ainda o impressionava depois de 40 anos, e cuja narração tornava a própria linguagem desconfortável, como se fosse inadequada.

O trecho ilustra a falta de simbolização da linguagem. O desconforto causado pela cena do homem coberto de piolhos é principalmente devido ao fato de que não há espaço para uma metáfora, ou seja, a linguagem descreve aquilo que realmente é, sem lugar para a imaginação1; aqui aparece o que chamamos previamente de ruptura com o simbólico. Acerca de tal temática, James Young (1990) advoga pela necessidade de inserir o genocídio na esfera da simbolização, sob a alegação de que:

“Deixar Auschwitz fora da metáfora seria deixá-la completamente fora da linguagem: ela foi conhecida, entendida e respondida metaforicamente na época por suas vítimas; foi organizada, expressa e interpretada metaforicamente por seus escritores; e agora está sendo lembrada, comentada e tendo significado histórico metaforicamente por estudiosos e poetas da geração seguinte. Se levada ao seu fim literal, uma injunção contra as metáforas de Auschwitz colocaria eventos fora da linguagem e significando completamente, assim mistificando o Holocausto e realizando após o fato precisamente o que os nazistas esperavam realizar através da sua própria – muitas vezes metafórica – mistificação de evento”

(tradução minha)2 (Young, 1990, p. 91). A problemática da narrativa acima de Fred O. ocorre no momento em que o narrador define seu evento como indecifrável, como algo que ainda o assombra. Para o narrador, ele não tem lugar no simbólico, pois quando O. alerta que não há como fugir do tifo ou da febre tifoide, o discurso é tomado em sua forma literal, já que as condições do gueto eram tão abjetas que todos os habitantes eventualmente contrairiam uma das duas doenças. O narrador ainda tenta tornar seu tesA opção pela ilustração temunho “aceitável” para a imaginação permite que Spiegelman humana por meio da contextualização mantenha o seu trabalho dos eventos: explica sua profissão, onde trabalhava, suas condições precárias, o dentro do que Rothberg frio que fazia, a consequente necessidadenomina de realismo de de usar várias camadas de roupa. Tudo traumático, ou seja, isso para que, dois minutos depois, seja algo que se mantém sugado para o momento em que se depaentre o antirrealismo e ra com o homem coberto de piolhos e se dê conta de que, mesmo após todos esses o realismo total, entre anos, o episódio não o possibilita descreo surreal e o banal. vê-lo além da experiência sensório-visual: os piolhos brilhavam, rastejavam uns sobre os outros. A realidade aparece de forma tão crua, de forma tão inesperada em sua vivência, que só pode ser tomada em sua concretude: “a visão de um homem coberto por dezenas, talvez centenas de piolhos, rastejando sobre ele e uns sobre os outros”. Em Maus, os quadrinhos do escritor Art Spiegelman, de 1991, ao se deparar com a mesma situação na história de seu pai, munido também de seu texto visual, o autor tem como desafio imaginar e representar uma vivência que não lhe pertence – curiosamente, similar ao caso de Fred O.: seu pai conta que, em uma das piores fases de sua trajetória, o piolho causava grande problema entre os prisioneiros, já que deles provinha o tifo. Sendo assim, era necessário mostrar a camisa limpa para ganhar o direito de se alimentar, como mostra a imagem da página 253 do livro (reproduzida à esquerda na página 44 da revista).

1 Ao citarmos o termo “metáfora”, estamos retomando os trabalhos de George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors We Live By (2003), bem como a obra Metaphor:

A Practical Introduction (2010) de Zoltan Kovecses, que a concebe como um filtro simbólico através do qual passam nossas visões de mundo. 2 “Metaphor, Language and Culture”. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502010000300017. Acesso em 17 de setembro de 2018.

Maus, de Art Spiegelman, páginas 253 e 255.

Em seus quadrinhos, Spiegelman aproxima-se do relato histórico através da ilustração ampliada e crua do piolho, que aparece quase como ponto central da página para o qual os olhos do leitor são levados automaticamente – ou pelo menos não conseguem evitar a presença do animal. O autor recria a sensação de inevitabilidade através da disposição do piolho em seus quadrinhos, já que não há como desviar o olhar da figura que aparece no centro, praticamente em primeiro plano. A frequência com que a palavra “Piolho” é repetida aumenta a sensação de onipresença do piolho, que culmina com a frase de Vladek: “Tudo era piolho”.

É, então, por meio de sua ilustração, que Spiegelman vasculha o under-standing do discurso de seu pai, trazendo à tona a complexidade paradoxal do campo de concentração: os prisioneiros agora se tornam os próprios insetos, por conta das péssimas condições dos campos de concentração. O sistema nazista, que pregava os judeus como uma raça, mas certamente não humana, logrou êxito em transformar o mundo em algo que encaixasse em sua visão deturpada de um mundo no qual uma comunidade poderia ser ressignificada como algo que precisa ser aniquilado. Maus, então, perpassa o literal histórico e é alimentado por ele, mas não se limita a isso – prisioneiros são representados de formas diferentes, dependendo da maneira com que o autor busca dirigir nosso olhar para diferentes detalhes.

Se no primeiro quadrinho a morte é o elemento principal, possível de ser vista na cabeça caída dos ratos que as seguram com as mãos, ou na aparência esquelética do rato à esquerda, o segundo quadrinho é predominado pela anulação do prisioneiro, o qual aparece totalmente em preto, de forma que apenas seu uniforme ganha luz e variação de cores. Isso se alinha ao que narra Vladek quan-

do especifica que a comida seria dada apenas aos que mostrassem o uniforme limpo, bem como ao que Spiegelman sugere: que apenas o uniforme importa na fila da comida.

Por meio de seus quadrinhos, Spiegelman toma por base o relato documental singular do pai e extrai dele a universalidade histórica do evento – no caso, a crise de piolhos que ocorreu na febre tifoide em massa. Ao mesmo tempo, encontra outros caminhos simbólicos para a sua representação própria. Ao final, Maus se torna um relato particular, uma memória construída por duas gerações, através da fusão entre a memória individual do pai e a memória pública do filho. A opção pela ilustração permite que Spiegelman mantenha o seu trabalho dentro do que Rothberg (2000) denomina de realismo traumático, ou seja, algo que se mantém entre o antirrealismo e o realismo total, entre o surreal e o banal. Ao optar por ratos antropomorfizados no lugar das figuras humanas, o autor estabelece uma espécie de “contrato” com o leitor: proporciona uma sensação de coerência, desde que esta seja entendida como ilusória e ficcional – afinal, apesar da similaridade dos traços cartunizados com as imagens documentais, as ilustrações não figuram como real histórico em si.

Não há, por assim dizer, uma busca por uma representação do real em Maus. O que Spiegelman faz é criar indicadores, ou seja, elementos que movem o olhar do leitor para o vazio do real: a transformação do humano em rato; a “onipresença” do piolho, por meio da ilustração no centro da página; a ausência da cena violenta ao final da página 255 do livro (reproduzida à direita na página 44 da revista), as diferentes camadas textuais e imagéticas ao longo de toda a obra, etc.

Na tentativa de cobrir tal ausência da simbolização, devido à literalidade extrema do testemunho, as gerações posteriores se voltam para o trabalho da imaginação. Dessa forma, é possível proporcionar ao testemunho outras formas híbridas de representação, como evento que oscila entre a literalidade traumática e a literatura imaginativa, bem como sua tradução em termos simbólicos.

Bibliografia

Agamben, Giorgio. O que Resta de Auschwitz: O Arquivo e a Testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. Benjamin, Walter (1985). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 8ª edição. São Paulo: Brasiliense, 2012. Felman, Shoshana. O inconsciente jurídico: julgamentos e traumas no século XX – Volume 01. São Paulo, Edipro: 2014. Fred, O. Vídeo de Fortunoff Video Archive for Holocaust Testimonies.

Yale Univeristy Library, 1998. Hirsch, Marianne. “Family Pictures: Maus, Mourning, and Post-Memory”. In: Discourse 15, 1992–93. Lakoff, George; Johnson, Mark. Metaphors We Live By. Chicago: University of Chicago, 2003. Spiegelman, Art. (1991). Maus – A História de um Sobrevivente. São

Paulo: Companhia das Letras, 2005. Rothberg, Michael. Traumatic Realism – The Demands of Holocaust Representation. Minnesota: Univ of Minnesota Press, 2000. Seligmann-Silva, Márcio. “Antimonumentos: trabalho de memória e de resistência”. In: Revista Psicologia USP. Número 01, vol. 27, 2016.

São Paulo. In: https://www.scielo.br/pdf/pusp/v27n1/1678-5177pusp-27-01-00049.pdf. Acesso em 28 de dezembro de 2020. Young, James. The Texture of Memory. Yale: Yale University Press, 1993.

Carolina Sieja Bertin é doutora em Estudos Linguísticos e Literários do Inglês, tendo realizado parte de seus estudos de pós-graduação na Universidade de Harvard. Atualmente é pesquisadora independente pela Universidade Estadual de Campinas, onde realiza seus estudos de pós-doutorado.

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