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Moacir Amâncio
UMA BREVE ANTOLOGIA POÉTICA
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Moacir Amâncio
Como sabemos, antologias são normalmente incompletas. Dependem do gosto, do foco do antologista, da encomenda que lhe fazem, se for o caso, o que significa que qualquer antologia, por mais despretensiosa que seja, tem certa marca autoral, que se acrescenta à época do tradutor e ao seu próprio modo de escrever. Então, qualquer antologia, breve ou extensa, jamais agradará a todos os leitores que conheçam determinada literatura, tenham lido algo que ficou na memória afetiva, daí a pergunta frequente: mas por que este poema e não aquele, por que diz assim e não assado. Porque na verdade todos nós temos a nossa leitura a partir de um texto dado. O que se propõe numa antologia, ainda mais traduzida, é um diálogo, até uma discussão muito interessante ao eventual leitor, que, se devidamente provocado, passará a reagir como um legítimo crítico. Assim como o tradutor é sempre um autor de segunda mão, o leitor também pode ser leitor de primeira mão, tendo lido o original, tem direito à sua própria interpretação.
Traduzi poemas distribuídos entre longos espaços de tempo, começando pelos poetas de Alandalus, Sefarad, na Idade Média: Shmuel haNaguid, Samuel, o Príncipe, ministro de Granada, guerreiro, erudito, sábio etc., com um poema de tom filosófico. Continuamos com Shelomô Ibn Gabirol, filósofo e poeta, apresentando um pequeno poema que, na graciosidade, celebra o Criador sobre a temática do artista limitado à imitação das coisas produzidas, entre as quais o poeta e qualquer outro artesão, todo inventor, intelectual, o ser humano... a partir de versículos proféticos. Yehudá haLevi, um dos mais conhecidos dos grandes poetas daquele tempo, está presente com um texto no qual tematiza o exílio, a nostalgia por Sion e a bênção divina.
Depois de um salto imenso, chegamos a Bialik, que é um marco na história da modernidade da poesia hebraica. O primeiro poema é de temática subjetiva, o segundo fala do pogrom de Kishnev – neste caso, tomei a liberdade de fazer parceria aberta com o escritor –, não é atitude herética, mas tentativa de escrever ecoando os poemas bíblicos, sem métrica e rima, até para fugir ao ris-
SHMUEL HANAGUID (993-1056)
Disse ela: alegra-te por ter chegado Aos cinquenta anos neste mundo teu –Nem sabia ela, não vejo cisão Entre o dia de Noé e este meu. Nada tenho além da hora presente, que, qual nuvem, foi, desapareceu.
SHELOMÔ IBN GABIROL (1021-1055)
O inverno escreveu com tinta de chuva E a pena de raios nas mãos das nuvens A carta no jardim de azul e púrpura, Jamais dessa maneira o poeta escreve. No tempo do amor a terra ao céu Bordou estrelas num canteiro breve.
YEHUDÁ HALEVI (1075-1141) A pomba dos exílios
A pomba nos exílios pelos bosques / voa até o estertor de suas forças, A voar e a esvoaçar ao derredor / do Amado a voltear entre os tormentos. Mas do cálculo antigo se envergonha / por pensar era o termo de mil anos. Punia-lhe o Amado com os longes / fazendo-a a sofrer até mil mortes – Então disse, Teu nome esquecerei, / e então grassou-lhe o fogo nas entranhas. Por que meu inimigo Ele seria? / E a sede a desejar a última chuva. Mas com todo o esperar a alma anseia – / na glória de Seu Nome ou nos exílios. Pois o Senhor virá, jamais se cala – / cercado no estalar da glória em chamas. –
CHAIM NACHMAN BIALIK (1873-1934) Sobre a matança
Céus, implorai piedade por mim! Se há um Deus em vós e se em vós há um caminho até Ele –E eu não O encontrei –Orai por mim! Eu – meu coração morreu e não há mais prece em meus lábios, E já me abandonaram as forças e a esperança se foi –Até quando, por quanto tempo, até quando?
Carrasco! Eis o pescoço – vem e mata! Degola-me como a um cão, teu é o braço e teu é o machado, E para mim toda a terra é um patíbulo –E nós – nós somos a parte fraca! Meu sangue é nada – golpeia o crânio, e o sangue da chacina, Sangue dos que ainda são de peito e dos velhos, estará em tuas vestes –E jamais sairá, jamais.
E se há justiça – que apareça agora! Porém se vier após minha destruição Sob os céus –Por favor, que seu trono seja violado! E que o mal eterno corrompa os céus; E vós, perversos, nesta agressão E no vosso sangue vivei e vos purificai. E maldito seja quem diga: vingança! Vingança como esta, vingança do sangue de uma criança, Ainda não foi criada por Satã. E que o sangue penetre as profundas! Que o sangue penetre até o fundo da treva, E devore na escuridão e seja cárie De todas as fundações desta terra podre.

N.T. Inspirado no pogrom de Kishnev ocorrido nos dias 3 e 7 de abril de 1903: 47 ou 49 mortos, 500 feridos, além da destruição provocada pelos agressores. Trata-se a rigor de uma “parceria“, pois evitou-se a métrica e a rima, sendo que, além disso a metáfora da “cárie“ no penúltimo verso é do tradutor.
DAVID VOGEL (1891-1944)
Espadas atravessam o cobertor, embaixo não há ninguém.
Balança o berço por si mesmo, nele uma criança morta.
A cada mil anos vem uma velha da terra condenada, olha uma vez na janela e se vai.
YONA WOLLACH (1944-1985) Deixa que as palavras
Deixe que as palavras façam em você deixa que elas seja livre elas penetrarão bem fundo fazendo formas sobre formas formarão em você aquela vivência deixe que em você façam as palavras elas farão como quiserem fazendo formas novas na sua coisa farão na coisa sua a mesma coisa exatamente que elas são a coisa que farão você entenderá bem que elas vão reviver em você aquela vivência e seu significado como natureza pois elas natureza são e não invenção e nem descoberta que sim são natureza farão a coisa natureza em você como dar sexo é vida para a palavra deixa que em você façam as palavras

co de embelezar um tema que é a própria negação de qualquer conceito de bom e de belo. Bialik rimou, de acordo com o seu tempo, mas essa é uma questão que se impôs de maneira definitiva no correr do século 20. Em seguida, David Vogel, poeta modernista, pioneiro do modernismo hebraico, nascido na Rússia e morto, ao que tudo indica, em Auschwitz. O poema escolhido não é sobre a Shoá, mas sobre a guerra, e se aplica às brutalidades cometidas rotineiramente ao longo da história humana.
Num segundo salto, menor que o anterior, chegamos a um dos mais interessantes poemas de Yona Wollach, que viveu apenas 41 anos e deixou obra marcante, polêmica e que provoca inquietações até hoje. No poema “Deixa que as palavras”, Yona, que se dizia mística – ou pelo menos a mística está presente na sua poesia, como no texto escolhido, em que a autora invoca a Palavra Criadora capaz de sempre renovar nossa existência física e espiritual. Passamos por Ronny Someck, nascido em Bagdá e levado pelos pais a Israel ainda muito pequeno, e que se tornaria poeta traduzidíssimo, sendo considerado grande representante da arte poética hebraica atual. Someck situa-se em Israel, mas sempre aberto ao diálogo com a cultura universal, no caso do poema escolhido, a da língua portuguesa na figura de um dos seus maiores poetas.
Em outra demonstração da universalidade dos poetas hebraicos (que escrevem em hebraico) da atualidade, uma composição de Amir Or, na qual transparece seu conhecimento e diálogo existencial com a poesia japonesa. Cada trecho pode ser visto como um poema em si. Depois, amostra da poesia de Tal Nitzán, outra autora também muito traduzida, cujos poemas falam tanto da realidade israelense quanto da realidade da mulher e do homem de qualquer ponto do planeta – precisa mais? O livro Ata (Editora Record), reúne diversos volumes dos poemas de sua autoria.
Moacir Amâncio possui graduação em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero (1975) e doutorado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (2001). Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Literatura e Cultura Judaica, Literatura Brasileira, jornalismo, atuando principalmente nos seguintes temas: poesia, poemas, cinema, judaísmo, literatura e artes plásticas.
RONNY SOMECK (1951-) Carta a Fernando Pessoa
Tu és tão parecido com um dos guardas do jardim zoológico que havia na Rua Shelomô HaMêlech, perto da casa onde desenhei guepardos na parede. Ele, assim eu acreditava, sabia citar em panterês as leis da floresta aos gatos que nasciam com pelagem dourada, calar-se em elefantês sob as presas de marfim, e até falar à pavoa sobre a beleza dela na língua cujas cores estão sempre em pé.
Numa olhadela ele sabia dobrar a grade de aço e tirar com as próprias mãos a coroa de rei da juba dos leões tão facilmente como tu despias as palavras das vestes de realeza.
Pena que não vos tenhais se conhecido, mas deixa imaginar-te escondendo no paletó dele as linhas de abertura da poesia que talvez escreverias em sua honra.
AMIR OR (1956-) Lições
1 cedo pela manhã a língua do farfalhar dos galhos ao vento eu quero aprender
2 sopra também em mim ensina-me a farfalhar palavras ao vento
3 estende os meus galhos ensina-me a ser a árvore que eu sou
4 do fundo podre ao perfume das flores meu bom peso – minha duração, minha vida
5 folhas se elevam folhas caem e eu
TAL NITZÁN (1960-)
Isso Agora isso tem vida própria, maligna vida própria, o conhecido e o desconhecido não têm domínio sobre ele, e se for contido voltará e irromperá, sempre mais destrutivo, agarrando mais forte com a mão imaginária a garganta não imaginária, e não há nada bastante claro que separa isso do que não é isso. Às vezes não há nada que não seja isso.



