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Walter A. Mannheimer
A SHECHITÁ NOS TEMPOS DE HOJE: UM ENSAIO
Argumentam alguns que a observação rígida dos mandamentos e rituais tradicionais são fundamentais para a preservação milenar do povo, da cultura e ética judaicas. E invoca-se erigir uma cerca em volta da Torá, para confinar a tentação, e evitar a evasão. E quem melhor poderá garantir o futuro do Judaísmo? Os que aceitam ficar confinados, ou aqueles que se aventuram em busca de maiores horizontes?
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A Shechitá
Walter A. Mannheimer
AShechitá é o abate ritual de mamíferos e aves, de acordo com as leis dietéticas judaicas (1,2). O ato é executado seccionando a traqueia, o esôfago, as carótidas e jugulares, usando uma faca extremamente afiada, e drenando o sangue. O animal deve ser abatido com “respeito e compaixão” por um shochet (magarefe ritual), um judeu religioso devidamente treinado e licenciado.
Ética e compaixão
Os Dez Mandamentos são frequentemente indicados como o grande marco inicial da ética judaica. No entanto, podemos remontar no tempo, e considerarmos as Sete Leis de Noé (3,4). O que há de extraordinário aqui? Seis delas são, mesmo para a época, corriqueiras. Todas as civilizações já reconheciam, de uma maneira ou outra, a necessidade de um código social para seu funcionamento: Não mentirás, não matarás, não adulterarás, estabelecereis autoridades entre vós. Mas uma é singular, e não se refere ao bom funcionamento da sociedade: não comerás a carne de um animal vivo.1
É possivelmente o primeiro resquício de ética entre as leis. A relação com a preocupação de não causar sofrimento a um ser vivo é clara, e leva diretamen-
1 Explico em nota, pois é cruel: vais ao campo e cortas uma perna do cordeiro e a trazes para assar. O cordeiro fica no pasto e, no dia seguinte, sem geladeira, vais buscar outra perna; estará fresquinha...
te à Shechitá: comer é preciso, mas façamo-lo causando o menor sofrimento possível ao animal. Afirmam os sábios que o abate nestas condições é indolor e instantâneo para o animal.
Judaísmo: ortodoxo, conservador, liberal, reconstrutor...
Há muitas formas de Judaísmo, e muitas são as divergências. Não seriamos judeus, se não as tivéssemos...
Mas uma é ubíqua: como agir em função da evolução do homem e do tempo? Os costumes, os conhecimentos e as condições de vida mudam – devem as leis e costumes serem congelados no tempo? Deve o ser humano valer-se do livre arbítrio, que lhe é explicitamente concedido e ordenado, para orientar sua vida? Deve destilar o que é fundamentalmente ético daquilo que é ordenação ritual?
Devemos prosseguir, qual autômatos, com prescrições seculares, ou mesmo milenares, na face de novos conhecimentos e de novas circunstâncias?
Creio estar aqui um dos maiores pontos de conflito entre as correntes.
Como agir em função da A cerca em torno da Torá evolução do homem e
do tempo? Os costumes, Argumentam alguns que a observação rígida dos mandamentos e rituais tradios conhecimentos e cionais são fundamentais para a preseras condições de vida vação milenar do povo, da cultura e étimudam – devem as ca judaicas. Esta preservação é certamenleis e costumes serem congelados no tempo? te singular na história humana. E invoca-se erigir uma cerca em volta da Torá, para confinar a tentação, e evitar a evasão. Mas uma cerca pode ser pulada por aqueles que não aceitam o confinamento. E quem melhor poderá garantir o futuro do Judaísmo? Os que aceitam ficar confinados, ou aqueles que se aventuram em busca de maiores horizontes?
A proposição de uma experiência
Vou propor uma experiência: não me interessa saber se é exequível, nem qual seria seu resultado. Na boa tradição talmúdica, quero filosofar sobre a questão em si, e como as diferentes correntes judaicas reagiriam ao resultado: Proponho que uma universidade em Israel se dedique ao problema de desenvolver um eletroencefalógrafo para

uma vaca. A colocação dos eletrodos, por hipótese, permitiria medir os sentimentos e o sofrimento durante o abate.
Suponhamos que esta experiência indique, de maneira irrefutável, que o abate usando pistola de atordoar (stun gun) causa muito menos sofrimento do que a Shechitá. O ponto principal seria que, na época, este era o método mais misericordioso. Hoje, com a evolução tecnológica, não é mais.
Dois procedimentos são usados atualmente no abate leigo: a percussão craniana (stun gun) e eletrochoque, que para o coração. De acordo com autoridades, são equivalentes quanto aos resultados na prática. Mas me parece haver uma diferença quanto ao ritual judaico.
Eletrochoque mata o animal, a pistola o atordoa. Se fizermos Shechitá em um animal atordoado, nós o estaremos matando. Shechitá em um animal eletrocutado é sangrar uma carcaça. Portanto, ao atordoarmos o animal estaremos apenas adicionando uma etapa ao procedimento tradicional. A diferença, para um ortodoxo, pode ser significativa, aceitando o uso da pistola.
Esta questão tornou-se recentemente muito importante, em vista da crescente legislação na União Europeia sobre as regras kasher e halal (5,6,7), visto ter a Corte de Justiça da União Europeia mantido a proibição da Bélgica ao abate kasher em 17/12/2020.
A aceitação do stun gun, que não fere os preceitos da Shechitá, seria uma solução conciliadora com a sociedade maior, e evitaria um conflito de resultado imprevisível.
Qual o caminho a seguir? Persistir no procedimento ritual, ou evoluir para aquele que melhor cumpre o mandamento de não fazer sofrer?
Gostaria de ouvir os Rabonim das diferentes correntes.
Uma versão inicial deste ensaio foi encaminhada à comunidade de Antwerp em 2018/01/21, mas não obteve resposta.
Referências
Deut. 12:21, Deut. 14:21, Num. 11:22 https://en.wikipedia.org/wiki/Shechita (2021.02.04) https://www.myjewishlearning.com/article/the-noahide-laws/ (2021.02.04) https://en.wikipedia.org/wiki/Seven_Laws_of_Noah (2021.02.04) http://www.jpost.com/Diaspora/Belgian-Jews-files-second-lawsuit-against-ban-on-religious-slaughter-536905 https://www.aa.com.tr/en/europe/eu-upholds-belgian-ban-on-halal kosher-slaughter/2080873 https://hamodia.com/2017/11/29/jewish-groups-challenge-belgian-shechitah-ban-high-court/
Walter A. Mannheimer é engenheiro, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ e associado da ARI.