13 minute read

Rabino Joseph A. Edelheit

Next Article
Paulo Geiger

Paulo Geiger

UMA RELEITURA CRÍTICA DA ESCRAVIDÃO NA TORÁ

A narrativa da Torá sobre a experiência coerciva e implacável dos israelitas no Egito é entendida como escravidão apenas no sentido contextual, porque a raiz para a palavra tem muitos significados diferentes.

Advertisement

Rabino Joseph A. Edelheit

AHagadá permite que os participantes flexibilizem o tempo e personalizem a cerimônia. No início do período medieval, os editores rabínicos adicionaram as duas palavras, “Avadim Hainu”, “nós éramos escravos …”. Em vez do “eles” da histórica terceira pessoa do plural, o “nós” da primeira pessoa inclui imediatamente cada pessoa sentada à mesa em cada Seder.

Neste ano, esse dispositivo retórico também terá o efeito de provocar um grande choque politizado de preconceito ao conectar o Seder a conversas dolorosas sobre racismo sistêmico, supremacia branca, Black Lives Matter ou o best-seller de Laurentino Gomes, Escravidão.

A palavra, “escravidão” não pode ser simplesmente contida no passado histórico, porque este ano “Avadim Hainu” irá desencadear questões políticas divisivas que requerem a atenção de todos. Ainda assim, os conceitos bíblicos e rabínicos de escravidão contados durante nosso Seder nada têm a ver com os séculos de comércio de escravos que produziram as questões contemporâneas que devemos reconhecer. Este ensaio constrói, a partir do texto da Torá, a base da perspectiva crítica necessária para tais conversas.

A “Escravidão” da Torá não é a mesma do comércio de escravos através do Atlântico, que é a base dos conflitos que nos desafiam hoje. A erudição histórica de Paul Lovejoy fornece uma definição com a qual podemos começar a diferenciar os antigos textos bíblicos das realidades históricas. “A escravidão é uma forma de exploração. Suas características específicas incluem a ideia de que os

escravos são propriedade; que são estranhos por origem ou aos quais sua herança foi negada por meio de sanções judiciais ou outras; que a coerção pode ser usada à vontade; que sua força de trabalho está completamente à disposição de um senhor ... [são] bens móveis, o que significa que podem ser comprados e vendidos ”. “… A escravidão era fundamentalmente um meio de negar a estranhos os direitos e privilégios de uma determinada sociedade para que pudessem ser explorados para fins econômicos, políticos e/ou sociais.” (pág. 2) “… os escravos foram deslocados a uma considerável distância de seu local de nascimento, enfatizando assim suas origens estrangeiras. Esse desenraizamento foi tão dramático quanto o transporte de africanos através do Atlântico ou do Deserto do Saara ... definindo o escravo como um estranho.” (pág. 3) “... o sistema americano de escravidão foi único ... em sua manipulação da raça como meio de controlar o escravo ...” (pág. 8)1 .

Quando a escravidão é racializada, estamos impondo um impossível desafio moral ao texto bíblico, porque a escravidão bíblica não tem nada a ver com raça! Uma releitura crítica da Torá requer neutralizar conscientemen-

1 Paul E. Lovejoy, Transformations in Slavery: A History of Slavery in Africa, Cambridge, 2012, 3ª ed. te o preconceito altamente politizado de hoje para superar qualquer mal-entendido sobre escravos e escravidão na Bíblia Hebraica. Contudo, ironicamente, os significados politizados contemporâneos de “escravidão” magnificam a leitura errada criada por traduções do texto bíblico. Portanto, vamos reler criticamente esses textos com uma ênfase renovada no hebraico original.

O texto hebraico em Bereshit / Gênesis, Shemot / Êxodo, Vaikrá / Levítico e Devarim / Deuteronômio usa para o termo a mesma raiz, Ain, Vet, Dalet, mas o contexto de cada uso é vital para uma leitura crítica. Em Brown, Driver, Briggs Biblical Lexicon encontramos as palavras hebraicas “avadim”, “avodá”, “eved” com vários significados diferentes, variando de servir / servo, trabalho / trabalhador, escravizar / escravo e culto / serviço no templo. Portanto, devemos ser precisos em todas as traduções tanto da língua antiga quanto da cultura correspondente.

O texto narrativo de Shemot usa essa raiz em muitas formas variantes. Quando o Faraó motiva os egípcios a ter medo dos israelitas e ordena trabalho coercitivo com a finalidade de marginalizá-los, ele distorce o poder potencial dos israelitas, o que, por sua vez, justifica o uso coercitivo de seu trabalho. Ao referir àquilo que os egípcios impuseram aos israelitas, Shemot 1:13 usa a raiz como um ver-

bo, “vaiavidu”, e o verso termina com o adjetivo “befarech”, “impiedoso”, enfatizando a natureza do trabalho.

Shemot 1:14 usa a mesma raiz como um substantivo, “avodá”, usando adjetivos adicionais para enfatizar o horror. O contexto da narrativa muda de mero serviço e serviçal para escravizado e escravidão: “Impiedosamente, tornavam a vida mais amarga para eles, por conta do trabalho (avodá) pesado com argamassa e tijolos e com todo tipo de tarefas no campo”.

Shemot 2:23 usa novamente “avodá”, que algumas traduções vertem para “escravidão” ou “servidão” como o fio narrativo essencial. Embora a raiz da palavra hebraica seja a mesma, o contexto narrativo requer que o leitor entenda que a escravidão mais severa só pode ser desfeita pelo Divino. “Muito tempo depois disso, o rei do Egito morreu. Os israelitas gemiam sob a servidão (avodá) e clamavam; e seus clamores por socorro chegaram até Deus.”

A extraordinária “história de origem” se desenrola até Shemot 3:13, com os israelitas enfrentando trabalho forçado, sofrimento e expressando sua opressão, até que um líder seja escolhido por Deus com o propósito único de salvá-los / resgatá-los / libertá-los do status de “avadim”,

A Bíblia Hebraica não é com o propósito de “iaavduni” (para que uma história de “Avadim” Me [Deus] sirvam), com o texto hebraisendo libertados, mas co usando a mesma raiz em várias formas diferentes. Abaixo temos exemplos mosde um povo sob aliança trando a palavra derivada da raiz hebraicom Deus que foi ca e sua tradução contemporânea para o trazido de “avodá kashá português. Não há ênfase textual consis/ beit avadim” para o propósito específico de tente para o uso desta palavra como trabalho abusivo, escravidão. O termo “servo” é usado tanto para descrever “israeli-

“avodá” para Deus. tas” pelos próprios israelitas, como também para aqueles que servem na corte do Faraó. A mesma raiz também é usada várias vezes em palavras que significam adoração a Deus, ligando o serviço a Deus / culto à mesma raiz. Finalmente, em Shemot 13: 3, com o evento real do êxodo, o Egito agora é descrito como “Casa da Escravidão” (ou Servidão). Shemot 3:12: você adorará (taavdun) Deus Shemot 5:16: nenhuma palha é provida a teus servos (avadecha) Shemot 6:9: seus espíritos estavam esmagados por cruel servidão (avodá kashá) Shemot 7:16: deixe meu povo ir para que eles possam me louvar (iaavaduni)

Boonyachoat/iStockphoto Revista da Associação Cultural–ATID / Associação Religiosa Israelita–ARI | devarim | 13

Shemot 10:1: endureci seu coração e os corações de seus cortesãos (avadaiv) Shemot 13:3: vocês saíram livres do Egito, da casa da servidão (beit avadim).

A narrativa da Torá sobre a experiência coerciva e implacável dos israelitas no Egito é entendida como escravidão apenas no sentido contextual, porque a raiz para a palavra tem muitos significados diferentes. Quando o texto bíblico é lido apenas na tradução, o leitor não consegue discernir as diferentes conjugações da mesma palavra raiz com seus significados variados. No entanto, o significado antigo do termo bíblico eved (plural avadim) / avodá era muito mais matizado do que o nosso entendimento atual de “escravo / escravidão”.

As passagens de Shemot 1 a 13 são narrativas únicas da Torá, que definem a identidade primária de uma comunidade com o propósito de estabelecer um destino transcendente. A Bíblia Hebraica não é uma descrição factual histórica de uma realidade antiga, mas um documento que afirma ter intenção Divina. Esta não é uma história de “Avadim” sendo libertados, mas de um povo sob aliança

Um leitor do século 21 com Deus que foi trazido de “avodá kashá que se envolve com / beit avadim” para o propósito específico esses textos bíblicos de “avodá” para Deus. Não estou traduzindo as palavras hedemanda deles uma forte braicas do parágrafo acima intencionaljustificativa moral que, mente, para que o leitor “ouça” o hebraientão, diminui a sua co transmitir sua própria mensagem. Esta compreensão crítica. história de origem não é um exemplo bíblico antigo de escravidão, que é comparável a qualquer outra experiência histórica de pessoas sendo encarceradas para o propósito de benefício econômico de um povo dominante. O uso pelo hebraico bíblico daquela única palavra sugere que esta comunidade foi libertada do trabalho / serviço opressor para se tornar a comunidade primária chamada ao serviço / adoração do Eterno. Essas passagens bíblicas específicas estão ligadas a ideias e ideais distantes das questões de escravos e escravidão. Uma consideração final sobre a palavra hebraica “avodá”: Pirke Avot 1:2 cita Shimon, o Justo, afirmando que o mundo se baseia em três coisas: Torá, Avodá (na adoração / serviço a Deus / serviço do Templo) e Guemilut Chassadim (atos de bondade graciosa). A passagem é importante

para nossa leitura crítica porque a tradição rabínica primitiva está ensinando que esta palavra agora descreve o propósito da liberdade bíblica, “avodá”, de / para Deus.

Seja com qual formato que a adoração venha a evoluir sem o culto sacrificial do Templo, continuaremos a ensinar que um dos três valores religiosos essenciais de uma nova vida judaica pós-bíblica será a “avodá”, que conecta o Israel bíblico desde o deserto, através de dois Templos, até a nova, ainda não totalmente desenvolvida, compreensão rabínica da adoração.

Além da história de origem da “escravidão” hebraica no Egito, o leitor contemporâneo tem o desafio ainda mais difícil de entender as leis da escravidão encontradas em Shemot / Êxodo 21:2-11; Vaikrá / Levítico 25:39-45; e Devarim / Deuteronômio 15:12-18. Essas leis basicamente civis, ao invés de rituais, descrevem uma cultura ancestral em que escravos, homens, mulheres e crianças eram elementos aceitos daquela realidade socioeconômica. Essas leis referem-se à “escravidão da esposa” e duas formas diferentes de “escravidão por dívida”, em que cada categoria inclui israelitas e não israelitas. O texto bíblico inclui realidades sociais rejeitadas hoje, como filhas vendidas por seus pais para se casarem em uma nova casa que muitas vezes era polígama.

As circunstâncias de “escravidão por dívidas” incluem o ladrão que é “escravizado” pelo tribunal para pagar sua dívida ou uma pessoa cuja falta de recursos exige serviço autônomo para sobreviver. “O conhecimento das realidades sociais e jurídicas do antigo Oriente Próximo, muitas vezes disponível apenas através do estudo de outras culturas, como as da Mesopotâmia, são essenciais para uma compreensão completa do mundo da lei bíblica ...” (Aaron Koller) https: //www.thetorah.com/article/the-hebrew-slave-reading-the-law-collections-as-complementary.

Um leitor do século 21 que se envolve com esses textos bíblicos demanda deles uma forte justificativa moral que, então, diminui a sua compreensão crítica. Os estudos contemporâneos sobre essas passagens enfatizam contextos interdisciplinares. “Os estudos bíblicos acadêmicos argumentam que essas coleções foram compiladas por diferentes editores / autores, em diferentes épocas e lugares da história israelita antiga. Embora todas as fontes sejam baseadas no direito consuetudinário (direito que surge dos costumes) – semelhante ao direito consuetudinário do Antigo Oriente Próximo, a partir do qual códigos como os de Hammurabi e Eshnuna se baseiam –, o editor / autor que redigiu cada conjunto reflete uma perspectiva histórica e geográfica diferente e tem sua própria interpretação do

que a lei deveria ser. (Zev Farber) https:// www.thetorah.com/article/the-hebrew-slave-exodus-leviticus-and-deuteronomy.

Já que Bereshit / Gênesis molda as origens de todas as pessoas, devemos ignorar exemplos da realidade social da escravidão? Na narrativa sobre Abraão e o mandamento do Brit Milá (circuncisão), encontramos menções a escravos. Bereshit 17:12-13 especifica que todos os homens do clã devem ser circuncidados e o texto usa duas palavras distintas para referenciar os filhos do sexo masculino, nascidos no clã ou comprados. Esta é a iniciação dos hebreus como grupo distinto de todos os demais, contudo, a descrição legal dos homens incluídos no grupo requer a diferenciação entre “nascido na sua casa” e “adquirido de um estrangeiro”.

Bereshit também inclui três mulheres essenciais para a narrativa, Hagar, Zilpá e Bilá, “servas” dadas a Sara, Léa e Raquel. O texto é ambíguo sobre se essas mulheres são consideradas servas com liberdade e direitos limitados. Hagar é convidada por Sara a se tornar a concubina de Abraão para substituí-la, ter um filho homem, o que gera Ismael, o progenitor dos árabes e do Islã. Zilpá e Bilá são presentes de Labão para suas filhas que por sua vez as oferecem a Jacó, e eles produzem quatro dos 12 filhos / tribos de Israel, Dan e Naftali, Gad e Asher. No texto, esses filhos parecem ser menos valorizados até que a linhagem completa de Jacó os inclua e ele abençoe a cada um deles, tal como os demais. Poderiam quatro das tribos necessárias para a antiga comunidade de Israel ser filhos de “escravos”? Esses detalhes narrativos adicionam outra dimensão às leis técnicas discutidas acima, confirmando que esta antiga comunidade abraçou totalmente a realidade de várias categorias do que chamamos de “escravos”.

Duas vezes em Devarim / Deuteronômio o texto bíblico desafia os leitores do século 21 usando a segunda pessoa do singular, “lembre-se de que você foi escravo no Egito”. Devarim 15:15: Tenha em mente que você foi escravo na terra do Egito. Devarim 24:18: Lembre-se de que você foi escravo no

Egito. Nossa identidade como Esses versos nem fazem parte da hisjudeus é ancorada pela tória da libertação do Egito, nem estão experiência comunitária diretamente relacionados com as complexas leis relativas aos escravos, mas sim compartilhada de termos são um meio de focar na história como sido escravos e nossa um estimulante ético e empático. Nossa libertação com o propósito identidade como judeus é ancorada pela de servir a Deus. Os hebreus eram um povo experiência comunitária compartilhada de termos sido escravos e nossa libertação com o propósito de servir a Deus. Os antigo que se envolveu hebreus / israelitas eram um povo antina brutal experiência go que de alguma forma se envolveu na do trabalho forçado, e brutal experiência do trabalho forçado, e foram libertados disso por foram libertados / salvos disso por conta de um propósito transcendente de ética conta de um propósito e adoração a um Criador e Redentor únitranscendente de ética co. Devarim desafia cada leitor a parar e e adoração a um Criador se envolver pessoalmente em uma mee Redentor único. mória ordenada, um passado que é muito mais fácil de ignorar quando é a história “deles”. O texto desafia a todos que o leem a considerar-se como tendo sido um “Eved”, um trabalhador forçado. Os estudos contemporâneos sobre o comércio de escravos no Atlântico e as intensas demandas políticas provocadas pelas manchetes sobre a supremacia branca e o racismo sistêmico exigem pensamento deliberado e crítico. O texto bíblico não tem respostas diretas para essas agonias históricas do passado, porque não há nada na Torá que corresponda a essas questões complexas. Os textos de Devarim exigem que testemunhemos esse passado escuro e diferente, não conforme descrito pelo discurso político contemporâneo, mas como seres humanos exigidos pela tradição judaica para buscar um reconhecimento empático do sofrimento como atemporal fardo ético. O Rabino Joseph A. Edelheit é professor emérito de estudos religiosos e judaicos da St. Cloud State University. Rabino Fundador da comunidade Beit Tikvá de Maringá, Paraná. Membro fundador do Conselho Rabínico Reformista do Brasil, atua como docente do Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista e é autor de What Am I Missing? Questions About Being Human. Traduzido do inglês por Raul Cesar Gottlieb.

This article is from: