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Paulo Geiger
pediatras, urgeNte!
paulo geiger
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Há 90 anos, em 1920, Lênin escrevia um ensaio chamado “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, no qual, pasme-se, condenava o excesso de esquerdismo de algumas facções da Terceira Internacional. O superzelo (chamemo-lo pelos nomes com que hoje é chamado: extremismo, fundamentalismo, fanatismo etc.) ideológico, estratégico e tático, na visão de Lênin, subtraía da ideia original, no caso o comunismo, o senso de realidade, a visão das coisas como eram e como poderiam evoluir, em favor de objetivos e métodos que, diante dessa realidade, por mais ‘revolucionários’ que fossem, não conseguiriam sair do papel e ainda prejudicariam a causa. Como certas receitas de comida com as quais não se consegue preparar comida alguma, e só se podem comer no papel, embora papel seja indigesto.
A genialidade de Lênin é ainda mais admirável por ter sido ele mesmo um ideólogo da extrema-esquerda (mas já não se fazem mais ideólogos da extrema-esquerda como antigamente...). E, no caso, ser da ‘extrema’ seria mais doentio – para usar a terminologia de Lênin – do que ser da ‘esquerda’, ou da ‘direita’. A doença, parece, vem das extremidades mais do que das lateralidades. Porque o que se assiste hoje no mundo é uma enorme epidemia de doenças infantis, não importa de que lado, esquerda ou direita.
Parece que muitos supostos líderes, políticos, ideólogos, não tomaram as vacinas de democracia, tolerância e pluralidade que praticamente acabaram com essas doenças infantis, e, doentes, não conseguem enxergar o mundo a não ser através de uma retícula formada por sua própria ideologia, ou seja, suas intenções; só enxergam o que a grade deixa passar, o que frequentemente está muito longe da realidade, se não for o contrário dela. Parece que esses vírus ou bactérias patogênicas destroem as células do centro, como lugares de convívios, diversidades e pluralidades, e os doentes tendem cada vez mais para uma extremidade, lugar de preconceito, intolerância, exclusão dos diferentes e dos moderados.
Mas será que Lênin chamaria candidamente de ‘infantis’ as doenças do extremismo de esquerda, de direita, de cima (fé religiosa) ou de baixo (tramas diabólicas de domínio e subjugação) como manifestadas em Stalin, Hitler, Pol Pot, Mao, por exemplo, no passado recente, e ainda hoje em Ahmadinejad, Al Qaeda, Nasralah, talvez Chavez e outros infantes sul-americanos?
Esse vírus de infantilidade teve efeitos devastadores, não importa de que lado atacaram, da direita, da esquerda, do céu ou do inferno, e nos caso dos primeiros acima citados, só foi debelado com a morte de seus portadores. Como fazer, então, para que consequências similares não sejam o preço a pagar pela extinção dos vírus atualmente em ação? Até este momento, nenhuma resposta alvissareira, ou ao menos esperançosa, parece ter surgido.
No caso específico do conflito do Oriente Médio, é preciso cuidado para não confundir com doença infantil os casos incuráveis, as enfermidades terminais do extremismo religioso ou político, o antissemitismo visceral, as visões medievais de domínio despótico de uma religião, a exclusão do diferente, as saudades de um Holocausto negado, a subjugação política como desejo e mandamento divinos, a recusa da partilha e da convivência. Esses vírus resistem a tratamento convencional, e têm de ser radicalmente erradicados (para quem não percebeu, erradicar radicalmente é um paradoxo semântico que expressa muito bem o paradoxo existencial do extremismo).
Mas nem sempre a doença se apresenta em sua trágica e nada infantil versão de fundamentalismo, ódio, ameaças de extermínio, recusa da convivência. Em sua forma branda (mas muitas vezes paralisante) ela se parece com o que Lênin detectou no comunismo do início do século XX: um superzelo que redunda na perda de perspectiva da realidade e de oportunidades de avanço. Já é lendária a capacidade palestina de perder oportunidades, quase sempre intencionalmente. Do nosso lado, alimentado por cem anos de intransigência, terrorismo, negação e ódio, o superzelo se infiltra insidiosamente em organismos maduros e equilibrados: muitos deles elogiavelmente pacifistas e moderados, mas que, em nome da muito desejável paz e convivência, contagiados pela doença infantil, deixam de enxergar os perigos da não reciprocidade de suas boas intenções, sem falar nas explícitas más intenções de quem continua tendo como objetivo estratégico nossa destruição; por outro lado, os salvacionistas, defensores patriotas e devotados da legitimidade e preservação de uma nação judaica, o que é uma causa de inquestionável justiça, deixam de enxergar que será preciso correr riscos para assegurar o único futuro viável dessa nação judaica dentro dos princípios que a fazem judaica: a convivência com as aspirações nacionais de seus inimigos de hoje, contanto que seja recíproca.
O que constatamos ao observar os extremismos é que o extremista de esquerda é mais perigoso para o moderado de esquerda do que o moderado de direita. E vice-versa. Mas enquanto a doença for infantil, seja qual for o lado que ataque, talvez seja possível curá-la.
Pediatras, urgente!
Bulent Ince / iStockphoto.com
Lênin, que condenou o excesso de “esquerdismo”.
