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Rabino Sérgio R. Margulies

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Paulo Geiger

Paulo Geiger

Na lagoa apreNdi taNach

rabino sérgio r. margulies

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“Sem intuição não teríamos artistas que nos proporcionam o contato com o inesperado. É o que chamamos de criatividade.” (Abraham Palatnik)

“Há uma contínua criação.” (Zohar)

Na adolescência fui indagado: se o Estado de Israel guerrear com o Brasil quem você apoiaria? A pergunta traz uma suposta verificação tanto da lealdade para com a identidade judaica, que carrega em seu bojo o sionismo, quanto para com o país do qual somos cidadãos. A indagação pressupõe que há um conflito entre múltiplas identidades.

Respondi que em função da distância geográfica entre as duas regiões este problema inexistia, mas esta resposta foi contestada dado que as guerras vencem as distâncias. Então poderia resolver a questão tirando o elemento de sionismo da identidade judaica. Permitir isto, no entanto, seria como extirpar os membros de um corpo, tornando-o disfuncional.

Ao admitirmos que a pluralidade das identidades seja harmonizável e complementar não compactuaremos com rótulos que criam formas de controle calcadas no maniqueísmo. Maniqueísmo que induz a exclusão, engessa a criatividade e amordaça o pensar. Tal como o monopólio econômico e a monocultura agrícola são prejudiciais, também a identidade destituída do potencial de sua pluralidade empobrece o ser.

Enquanto o judaísmo, o sionismo e a brasilidade abraçarem a pluralidade, o conflito inexistirá. No entanto, se alguma destas condições tentar erradicar o respeito ao ser, que em sua integridade harmoniza sua pluralidade, perderá seu propósito. Urgirá, então, o resgate deste propósito a fim de não sucumbirmos à erradicação da pluralidade que emerge do ser. Respeitando as condições locais e mantendo a uniformidade litúrgica, uma comunidade judaica pode se inserir em novo contexto e preservar a conexão para com a tradição que almeja perpetuar.

Lumpy Noodles/iStockphoto.com

Do ser que é parte de um todo, podendo sentar num lugar da arquibancada do estádio de futebol numa torcida distinta daquele que senta ao lado em seu santuário religioso. Do ser que pensa e sente, podendo em sua afiliação religiosa ou política pertencer a um dos inúmeros grupos que compõem o todo comunitário ou social, pois também dentro de uma parte deve haver espaço para subpartes.

Desatei a armadilha da pergunta capciosa com um contundente texto do jurista e ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Waldemar Zweiter, no qual afirma: “Sou brasileiro, judeu e sionista”. Assim, em nossa múltipla identidade podemos ter estas identidades e ainda outras.

“É o vento ventando / é a chuva chovendo / são as águas de março.” (Tom Jobim)

“Cause a chuva cair e o vento soprar.” (Sidur – livro de oração)

Ao final do ano de 2009 foi sancionada a lei de autoria do deputado federal Marcelo Itagiba, que estabeleceu o Dia da Imigração Judaica no Brasil, a ser celebrada no dia 18 de março. A data escolhida corresponde à reinauguração da sinagoga Tsur Israel, estabelecida em Recife no século 17 por judeus holandeses. Foi a primeira sinagoga em todo o continente americano.

Esta comunidade se deparou com uma questão em relação à frase, que, inserida na Grande Oração (denominada em hebraico de Amidá), recitada diariamente, pede pela chuva. O pedido pela chuva reconhece nossa dependência do ciclo da natureza e enfatiza que a vida espiritual deve estar acoplada às necessidades da subsistência.

O dilema da comunidade era que a frase do pedido da chuva estava associada às estações climáticas da Terra de Israel e do continente europeu. Aqui, o ciclo das estações difere. Cabia ou não alterar o período em que a frase era recitada para se adequar à realidade da nova terra?

A resposta foi a de não alterar o período do ano em que a frase da chuva era dita. Porém, em respeito às condições locais, em que a chuva na estação errada poderia ser perigosa, a comunidade foi isenta da obrigatoriedade de recitar a frase. Assim, de um lado respeitando as condições locais, e de outro lado mantendo a uniformidade litúrgica, uma comunidade judaica pode se inserir em novo contexto e preservar a conexão para com a tradição que almeja perpetuar.

No novo lugar que traz a promessa de ser definitivo, o imigrante abraça a mensagem do patriarca Iacov: “Então neste lugar há Deus”.

“Jeová, Jeová olhe pra mim que estou mais pra lá do que pra cá.” (Juca Chaves)

“Como cantar uma música para Deus numa terra estranha?” (Salmo 137:4) Talvez o judeu que veio da Europa e assentou no Rio Grande do Sul pudesse rezar junto

A comunidade estabelecida no Reci- àquele que estava no fe foi expulsa com os demais holande- Amazonas, mas as ses diante da tomada daquela região pelos portugueses. O século 19, seguindo- conversas teriam que se pelo início do 20, assistiu novas levas encontrar um terceiro migratórias.1 Chegam à região amazôni- elemento comum. O ca judeus oriundos do norte da África e Brasil propiciou este ao sul do país outros vindos da Europa elemento e assim os Central. Tanto quanto a distância geográfica – do Oiapoque ao Chuí – os separaque estavam perto em vam os dialetos judaicos – ladino e haki- fé e vínculo étnico, mas tia no norte e iídiche no sul – e os ri- distantes na língua e tos mesmo que compartilhassem do mes- na linguagem, puderam mo calendário religioso, tinham elementos distintos. Talvez o judeu que veio da Europa e fortalecer a integração do vínculo ancestral. assentou no Rio Grande do Sul pudesse rezar junto àquele que estava no Amazonas, mas as conversas teriam que encontrar um terceiro elemento comum. O Brasil propiciou este elemento e assim os que estavam perto em fé e vínculo étnico, mas distantes na língua e na linguagem, puderam fortalecer a integração do vínculo ancestral. Deste modo, tanto os imigrantes contribuíram com sua vitalidade e espírito empreendedor quanto a nação brasileira facilitou o fortalecimento dos vínculos que irmanam os membros da comunidade judaica.

Novas levas migratórias no início do século 20 traziam judeus fugidos de discriminação na Europa Oriental. Desprovidos de recursos materiais e tendo que construir uma vida, em que o aprendizado da cultura local se fazia urgente, não hesitaram em criar marcos institucionais, dos quais se destaca o Grande Templo localizado no centro do Rio de Janeiro.

Estes marcos demonstram a esperança de integrar-se plenamente à nova terra. Aqui sonhava o exilado: a sua terra de destino seria a terra de origem para a futura geração. Aqui sonhava o exilado: não seria mais hóspede do lugar que permitia estar de favor ou ao sabor das decisões dos déspotas. Aqui seria ele responsável pelo seu destino, de sua família, de sua comunidade e de sua nova nação. O hóspede despejado antes poderia se transformar no anfitrião acolhedor de amanhã. O amanhã nem sempre raiou como esperado e, diante das nuvens sombrias que dominaram a Europa com o advento do nazismo e o Holocausto, o Brasil poderia ser o porto seguro para muitos refugiados. A política de concessão de vistos era contraditória, discursos destoavam da prática de restrição à entrada de refugiados e ideologias antissemitas ganhavam espaço no escopo da política nacional. No entanto, a nova terra não seria um campo fértil para que sementes do ódio antigo pudessem florescer. Assim, imigrantes aportaram, criaram suas instituições culturais e religiosas, das quais a Associação Religiosa Israelita (ARI) é um exemplo, e integraram-se à vida nacional. Nos anos 50 chegam judeus fugidos da perseguição de Nasser no Egito. Estes judeus, em sua maioria de origem sefaradi, encontram os de origem ashkenazi que recém-chegaram da Europa como refugiados do nazismo. O pluralismo que a liberdade enseja permite a expressão de subidentidades particulares existentes dentro de uma mesma identidade. Tal como apreciamos a liberdade da nação que faculta o pluralismo, devemos igualmente apreciar esta liberdade no âmbito de nossa própria identidade religiosa e étnica. E vice-versa.

“Filhos da guerra, curados ao sol de Copacabana.” (George Israel)

“Não há coisa que não encontre seu lugar.” (Pirkei Avot/ Ética dos Pais 4:3)

Encontrar numa nova terra a chance de estabelecer uma nova vida exige o esforço de não deixar o olhar ver o novo lugar pelo prisma do antigo. Esforço de romper o medo que o antigo lugar impunha e abraçar a esperança que o novo possibilita. O imigrante carrega em sua bagagem esta esperança. Para o imigrante a esperança é eterna.2

No novo lugar que traz a promessa de ser por opção o definitivo – e senão definitivo será por escolha, como a

qualquer um sem distinção –, o imigrante abraça a mensagem do patriarca bíblico Iacov: “Então neste lugar (makom) há Deus”. Se em função das perseguições nos lugares passados a fé era abalada, através da oportunidade do novo lugar pode reencontrar sua fé. Reencontrar sua fé, independentemente de seu nível de observância religiosa, pois reencontra fé na vida. Ganha o país que presenteia e é presenteado com esta fé. Fé propulsora da construção de um futuro sempre melhor.

“Não existe criança que possa não gostar de música.” (Jacques Niremberg)

“Cante uma nova canção para Deus.” (Salmo 96:1)

A liberdade transfere para a comunidade, cada família e indivíduo, a responsabilidade de optar pela afirmação de sua identidade. Recai sobre a comunidade e seus constituintes a responsabilidade de promover uma vida judaica criativa e densa para suas crianças. Deste modo, aqui – e atualmente em quase todos os países em que há uma comunidade – surge o desafio de fomentar um judaísmo pleno, em que a integração almejada seja acompanhada da manutenção acalentada. É neste sentido que o judaísmo liberal pode atuar de modo decisivo (ressaltando que no espaço pluralista comunitário urge ser reconhecido que todas as denominações podem ter atuação relevante), pois traz em seu bojo a capacidade de revitalizar os modelos sem subjugar a essência dos valores particulares e sem negligenciar a salutar inserção à vida nacional.

Uma pequena demonstração deste potencial foi dada no congresso de comunidades liberais realizado em julho de 2008, sob os auspícios da ARI, em que, ao término do serviço religioso de kabalat shabat, membros da congregação da cidade de Fortaleza cantaram ao som do acordeão e no ritmo da música Asa Branca, de Luiz Gonzaga, o poema litúrgico Adon Olam (Senhor do Universo).

Este poema, provavelmente composto no século 10 na Espanha, é recitado em todas as sinagogas do mundo. A letra e a mensagem de exaltação do Criador do Mundo são as mesmas. A melodia, porém, pode ser diversa. Os ritmos variados. Para cada makom – para cada lugar – de inserção, um possível novo ritmo. A este exemplo soma-

No novo lugar que traz -se o do lançamento ao final de 2009, no a promessa de ser por opção o definitivo – e Rio de Janeiro, do DVD “Nossos Lares” (direção de Radamés Viera, produção de André Sztjan e outros) que relata a histósenão definitivo será ria da comunidade judaica de Nilópolis. por escolha, como Nesta ocasião, tocaram o grupo Zemer a qualquer um sem com repertório de música klezmer, típica distinção –, o imigrante dos vilarejos judaicos da Europa Oriental de séculos passados, e a bateria da escola abraça a mensagem do de samba Beija-Flor de Nilópolis. patriarca bíblico Iacov: A música judaica – o próprio judaís-

“Então neste lugar mo que alavanca esta musicalidade – não (makom) há Deus”. ficou ameaçada por isso. Aliás, talvez ficasse ameaçada se perdesse sua capacidade de atuação conjunta. E o samba – bem como a cultura nacional que o enseja – demonstrou a força do respeito através da sincronia com ritmos tão díspares, mas que se tornaram ali complementos e mutuamente enriquecedores. “Estamos aqui contribuindo para o progresso desta terra abençoada.” (Arnaldo Niskier) “Nossos frutos vão ser nossas testemunhas.” (Midrash/lit. rabínica – Gen. Rab. 16:3) O que os membros da antiga sinagoga Tsur Israel em Recife diriam? Em minha imaginação comentariam: chuva em hebraico é gueshem, palavra cujas letras formam hagshama, que em hebraico significa realização. Assim, abençoariam o ideal que estamos realizando. Os frutos que estamos irrigando nesta terra. Os diversos frutos de nossa múltipla identidade. A frase de uma canção de minha filha de oito anos, neta de imigrantes, demonstra estes frutos. Escreveu ela: “Na Lagoa aprendi Tanach”.3

Notas

1. Ver cronologia da imigração judaica ao Brasil no site do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro: www.ahjb.com.br. 2. “A Esperança é Eterna”, título do documentário cinematográfico produzido em 1954 pelo imigrante Marcos Margulies (pai do autor deste artigo) sobre a obra do artista plástico Lasar Segall, também imigrante no Brasil. 3. Alusão à Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos cartões postais do Rio de Janeiro e referência ao nome hebraico do cânone bíblico judaico. Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union College (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

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