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Rabino Dario E. Bialer
FraNz roseNzweig: a Fé do homem moderNo
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Obras de Leila Danziger
rabino dario e. Bialer
Aprofundidade da obra de Franz Rosenzweig poderia nos levar a acreditar que nasceu num lar de ilustres doutores e exímios conhecedores do judaísmo. No entanto, o começo de sua vida nada tem de excepcional. Este jovem alemão, filho de comerciantes, cresceu bem longe das tradições judaicas numa família bem assimilada. Tanto que em determinado momento pensou seriamente em abandonar formalmente o judaísmo, mas por algum motivo difícil de explicar conseguiu romper com seu próprio passado e se tornou um judeu profundamente convicto, até chegar a ser um dos principais expoentes do moderno pensamento judaico.
Em 1912, logo após Rosenzweig receber seu doutorado sobre a filosofia de Hegel, seu primo Hans, com quem discutia intensamente sobre os assuntos profundos da existência humana, decide se converter ao cristianismo. Rosenzweig defende essa atitude contra os reclamos familiares, argumentando a necessidade do jovem de descobrir uma religião vivente, coisa que seus pais não tinham se preocupado por brindar-lhe.
“Somos cristãos em tudo. Vivemos num estado cristão, frequentamos escolas cristãs, lemos livros cristãos, toda a nossa cultura se baseia inteiramente em fundamentos cristãos. Portanto, quando um homem não conta com nada que o retenha, precisa apenas de um leve impulso que o leve a aceitar o cristianismo.”1
O judaísmo tinha perdido toda sua relevância, pois nada dizia sobre a vida que os judeus realmente levavam; nada acrescentava às artes, às ciências e às profissões, nem influenciava a política ou o devenir histórico. O judaísmo tinha deixado de ser ele mesmo, tinha deixado de ser Torá para se converter num “saco vazio”. A causa disso, de acordo com Rosenzweig, é que o lar judeu tinha fracassado. Não era culpa da escola nem da sinagoga. “A educação religiosa for-
mal não tem eficácia alguma na ausência da realidade vista com os olhos, degustada com a boca, escutada com os ouvidos em resumo, praticada fisicamente.”2
Foram meses de profundos conflitos interiores, debatendo-se dia e noite sobre o que fazer de sua vida. No dia de Iom Kipur de 1913 ele entra numa sinagoga – talvez pela primeira vez – e chega à conclusão inesperada que escreve para seu primo, o agora pastor Ehrenberg: “Devo te dizer algo que vai te resultar incompreensível. Depois de um prolongado e exaustivo autoexame inverti minha decisão. Vou continuar sendo judeu”.
Experimentar tão intensamente a falta de uma fé religiosa o obrigou a reconstruir seu mundo e sua vida dentro dos marcos da fé, e o que pensava que só poderia achar dentro de uma igreja, acabou descobrindo na sinagoga: uma fé vinculada com razão, que daria sentido à sua vida.
No final da Estrela da Redenção – sua obra de maior destaque – ele diz: Le Chaim! À vida! Essa é a chave. Penetrar na vida. Como os sábios que em todos os tempos confrontaram a Torá com tudo o que eram e com tudo que sabiam do mundo onde viviam.
Isto é o que Rosenzweig quis dizer por “uma nova forma de aprendizado. Um aprendizado de forma reversa. Um aprendizado que não parte da Torá e chega à vida, mas um aprendizado pelo outro lado: que parte da vida, de um mundo que não sabe nada sobre a Lei, ou que finge nada saber, e regressa à Torá. Este é o sinal do tempo”.3
Uma vez identificado o problema e concluir que a forma de alcançar uma existência plenamente judia é através do estudo e da Lei, ele dedicou todo o resto de sua vida a percorrer aquele caminho – o da Torá –, que nunca chega a um final: um “caminho cujo objetivo [sempre] está um passo além – num não caminho”. Porque o caminho da Torá não nos deixa escolha alguma a não ser de passar da atitude de “caminho” para a de “não caminho”. E se nos dermos ao trabalho de fazer “o laborioso e não objetivo percurso através do judaísmo tradicional”, teremos a “certeza que o último salto, aquele que damos a partir daquilo que sabemos para aquilo que precisamos saber a qualquer preço, o salto em direção aos ensinamentos, nos conduz na direção dos ensinamentos judaicos”.4 Rosenzweig quis Nesse sentido, Arnold Eisen, atual “uma nova forma de aprendizado”, que reitor do Jewish Theological Seminary de Nova York, afirma: “A noção de Rosenzweig de salto de ‘caminho’ para ‘não canão parte da Torá e minho’ articula as características essenciais chega à vida, mas um do aprendizado judaico, e da vivência juaprendizado pelo outro daica nos dias de hoje. A essência é que telado: que parte da vida, mos que abandonar os caminhos pavimentados que abrangem o judaísmo – e as vide um mundo que não das – conhecido até este momento. À mesabe nada sobre a Lei, dida que viramos novas páginas na folhiou que finge nada saber, nha, páginas nunca antes atingidas, chegae regressa à Torá. mos a situações e dilemas que exigem respostas sem precedentes. Se quisermos responder como judeus, nos aventurando pelo ‘não caminho’ de uma forma que continue com os caminhos judaicos, nossa resposta terá de vir daquilo que a tradição anterior ensinou. E quando pulamos para o ‘não caminho’, como judeus instruídos nós carregamos conosco para o futuro a tradição da Torá. O judaísmo é então preservado, mantido vital, dentro de nós e por nosso intermédio”.5 Nesse espírito, e para atrair de volta os judeus adultos, fundou em Frankfurt a Lerhaus – uma casa de estudos onde conviviam o intelectual e o espiritual –, aberta aos professores de todas as escolas da Alemanha, “pois cada mestre tem que ser um aluno e cada aluno um mestre”, sempre lembrando que, para o judeu, aprender não é mera aquisição de conhecimento. Começa-se a aprender quando a matéria em questão deixa de ser uma matéria e se transforma numa força interior. Assim, quando um judeu aprende, ele se converte em mais um elo da tradição, mesmo que todo o seu aporte tenha sido uma pequena ideia. No judaísmo o estudo e a lei são um processo da perpétua autorrenovação. Convencido que o judeu não deve ser tão somente um herdeiro do passado, senão também um criador do futuro, deu início a um debate sobre a lei com uma tendência revolucionária. Rosenzweig diferiu da posição do judaísmo tradicional – se bem que na prática viveu conforme suas leis – e também diferia das alternativas das linhas mais liberais. Rosenzweig não defende a abordagem ortodoxa de compromisso irrestrito à halachá, mas uma escolha – uma escolha baseada, no entanto, na experiência real de viver sob a Lei. Somente na ação (e não antes) podemos per-

ceber o alcance de nossa capacidade para agir de forma significativa.6
“Deve-se viver de acordo com a Lei, mas reservando-se o direito à decisão pessoal.” Esse é, para mim, o aporte mais significativo de Rosenzweig. Uma lei que não é a halachá intocável da ortodoxia, mas também não o vínculo muitas vezes bem fraco que, especialmente em seus dias, a Reforma estabelecia com a halachá, reduzindo o judaísmo a um “monoteísmo ético” e julgando severa e até negativamente os observantes da Lei.
Ele rechaça incondicionalmente as alternativas de “cumprir com tudo” ou “nada”. Por exemplo, observava a casherut no seu lar, mas estava preparado para comer em pratos não casher fora do mesmo. “Desejamos um lar, não um gueto.” Cada judeu deve comer em seu lar, mas também deve poder visitar o cristão que o convida a comer com ele.
Seu conceito de Lei Judaica é uma síntese das posições da ortodoxia e do liberalismo, em que afirma a ambos e, ao mesmo tempo, os transcende. Por uma parte, a halachá é uma realidade objetiva imposta ao indivíduo: é “a lei dos milênios, estudada e vivida, analisada e exaltada, a lei de todos os dias e do dia da morte.”
Nessa busca por reviver o conceito de halachá, discute intensamente com seu amigo íntimo, Martin Buber, em longas cartas que no ano 1923 são publicadas com o nome de “Os Construtores”.7
Para Rosenzweig, o que foi revelado foi simplesmente a presença de Deus no seu relacionamento íntimo e comandante – embora não legislativo – com Israel. Contrariamente aos tradicionalistas, então, não foram os mandamentos específicos o que foi revelado, mas o fato de ser comandado.
Onde Buber e Rosenzweig se afastam é no que tange ao relacionamento entre a revelação e a lei judaica. Eles concordam que a lei não é uma parte do conteúdo da revelação – revelação nunca é legislação –, mas Rosenzweig insiste em que o sentido de “Ser Comandado” o é.
Deus pode não legislar, mas comanda. A diferença entre lei e mandamento é que a lei é impessoal e universal, enquanto o mandamento é pessoal e subjetivo. As leis são escritas em livros e os mandamentos vivenciados.8
Por outro lado, a halachá é para hoje e não para ontem; aberta, não fechada; mutante e em evolução, não imutável e acabada. Sem dúvida, os rabinos do Talmud que criaram grande parte da lei tradicional, e sob a qual esta se desenvolveu, a consideraram contemporânea, aberta e vivente. A lei não é algo inalterável, consumado no passado; cada nova geração tem a missão de voltar a criá-la para si mesma. Nossa tarefa consiste em viver conforme as palavras de Deuteronômio: “Não com nossos pais, fez o Eterno esse pacto, mas com todos nós que estamos aqui vivos”. (Deuteronômio, 5:3)
A ortodoxia sustenta seu direito exclusivo e capacidade incontestável para determinar a lei, para definir os limites e a distinção precisa entre o permitido e o proibido. Rosenzweig alega vigorosamente: “Nós não conhecemos os limites!” Um ato permitido pela ortodoxia pode parecer ve-
dado para a sensibilidade religiosa do judeu moderno.
A consciência religiosa do judeu moderno pode descobrir novas mitzvot, novos mandamentos e novas proibições.
A ortodoxia comete um erro quando trata de congelar a realidade vivente da lei em parágrafos fixos, em códigos legais, como o Shulchan Aruch.9 Nem esta mesa, nem qualquer outra “mesa que mais alguém preparou” serve para ele. Quantas mais mesas, melhor, quanto mais variadas as mesas, melhor, quanto mais diversificadas as pessoas em torno delas, melhor; para nós e para a Torá.
Rosenzweig não observava todas as mitzvot. Ele fez uma seleção, tomando cuidado para que a escolha entre o que “pode” ou “não pode” cumprir não seja uma questão de caprichos, gostos ou preferência pessoal, mas um problema humano de profunda e extrema seriedade.10
As leis que cada um pode observar não são eleitas arbitrariamente. Sua observância emerge de um “devo” interior, uma afirmação interna da sua validade e um significado que tem caráter compulsivo.
Este “devo” interior não brota por si só. O homem tem que buscar para encontrá-lo. Devemos fazer tudo o que podemos, e é possível que algum dia descubramos que podemos fazer tudo o que devemos, pois ao fazer tudo o que podemos, chegará o momento em que não será possível prescindir da mitzvá. É assim que a lei é nossa; quando deixa de ser uma exigência exterior para ser uma necessidade interior.
O maior interesse de Rosenzweig não era que todos os judeus chegassem ao mesmo “devo” no que concerne à Lei, mas que suas decisões individuais resultassem de um profundo sentido de responsabilidade, e não que fossem motivadas pela indiferença, pela apatia intelectual ou pela frivolidade.
Quando alguém perguntava para ele se usava tefilin durante as orações matutinas, ele respondia significativamente: “Ainda não”. Ele ainda não tinha chegado a esse ponto, o que não quer dizer que não poderia chegar no futuro e o que não significava que, para um outro judeu, essa fosse uma mitzvá essencial.
A noção da transformação do “posso” na realidade vivente do “devo” representa a diferença decisiva entre a po-
Seu conceito de sição de Rosenzweig e o que ele via aconLei Judaica é uma síntese das posições tecer no judaísmo liberal. Não nos desligar da transcendência da mitzvá e não nos vincular a ela apenas nos aspectos que nos da ortodoxia e do resultam confortáveis. Um ato permitiliberalismo, em que do pela ortodoxia pode vir a ser proibido afirma a ambos e, pela sensibilidade religiosa do judeu moao mesmo tempo, os derno. Recuperar a função vital que a mitzvá tem no judaísmo, seu caráter obrigatranscende. tório, não como imposição exterior, mas como uma necessidade interior, é um dos aspectos mais significativos deste fabuloso homem, que precisamente por ter sido um judeu marginal e ter se aproximando do judaísmo a partir do seu exterior, compreendeu – talvez melhor que ninguém – a falta de sentido que o judaísmo tradicional tem para os judeus como ele: a distância entre o judaísmo e a vida cotidiana. Quando ele sentiu essa falta, consagrou sua vida para preenchê-la de sentido. E essa tarefa – mais sagrada do que qualquer outra – gerou um pensamento original, ideias que nunca ninguém antes dele tinha colocado. Talvez por isso Rosenzweig me resulte tão relevante. Porque em toda a época moderna são muito poucos os aportes originais ao judaísmo. Ele foi capaz disso, dialogando com a Torá, com seus colegas e com a vida moderna, criando uma nova Torá. E a criação de uma nova Torá é, de fato, a única forma de preservá-la.
Notas
1. Bergman, Samuel, Fe y Razón, Editorial Paidos. Biblioteca del hombre contemporáneo, Buenos Aires 1997. 2. Idem. 3. Rosenzweig, Franz, On Jewish Learning, editado por Glatzer, p. 231. 4. Rosenzweig, Franz, Teaching and law, pp. 236, 241. 5. Eisen, Arnold, Beginning with Torah, New York, 2008. 6. Noveck, Simon, Great Jewish Thinkers of the Twentieth Century. Franz Rosenzweig by Nahum N. Glazer, B’nai B’ Rith, usa 1963, p. 178. 7. Para quem se interessar em buscar este material: em inglês referenciar “The Builders” em hebraico “Habonim”. 8. Gillman, Neil, Sacred fragments, The Jewish Publication Society, Philadelphia. Jerusalém, 1990. 9. Literalmente “Mesa Servida” é o código de leis compilado por Iosef Caro no século 16 e.c. e atualmente considerado definitivo pela ortodoxia. 10. São os 613 preceitos religiosos comandados por Deus ao povo de Israel. Dario E. Bialer é rabino e serve à Associação Religiosa do Rio de Janeiro – ARI e cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Meyer, em Buenos Aires, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém.
Um arquivo de alianças, desejos e esperanças leIlA dAnzIGeR
Há alguns anos guardo imagens de anéis de casamento do século XVI pertencentes ao acervo do Museu de Arte e de História do Judaísmo, em Paris. Estes objetos me interrogam pelo difícil equilíbrio que suas formas sugerem. O que os adorna não são apenas pedras preciosas, mas recipientes em forma de edificações em miniatura ou de um sólido geométrico, que deveria conter especiarias, substâncias capazes de reavivar nossos sentidos e marcar a diferenciação entre o tempo especial do shabat e os outros dias da semana em seu transcorrer habitual.
Mas por que equilibrar tantos significados nos dedos? Quantos desejos e esperanças estes anéis transmitiram ao longo de gerações, antes de serem imobilizados no museu? Que sentidos lhes atribuir hoje, afastados dos rituais?
À ampla gama de desejos, esperanças e enigmas que envolvem os anéis associo a poesia de Yehuda Amichaï, seus poemas de Jerusalém, que delineiam a cidade longe de clichês, mostrando-a intensamente humana, voltada para a devoção a Deus, mas também plena de sensualidade.
No poema Jerusalém, 1985, Amichaï associa os pedidos deixados no muro das lamentações a um bilhete escrito na urgência de um encontro desfeito: Desejos rabiscados presos nas fendas do muro das lamentações,/ papéis amassados, empilhados.// E no caminho, sob uma velha porta de ferro,/ parcialmente escondida pelos jasmins, um bilhete:/ “Não pude vir, espero que você compreenda” (a partir da tradução francesa de Michel Eckhard Elial, em Yehuda Amichai, Poèmes de Jerusalem, Paris, Ed. de l’Éclat, 2008, p. 41).
As imagens que proponho são também bilhetes, anotações orientadas pelo que me parece ser o mais significativo da tradição judaica em sua relação com as artes plásticas: a intensa materialidade da palavra. Por outro lado, organizei as imagens de modo que não existam isoladamente, mas em contato umas com as outras, produzindo uma coleção, uma espécie de arquivo constituído por signos de alianças, pactos, desejos e esperanças; um arquivo por definição incompleto, sempre à espera de novas imagens, palavras e anotações.
