Revista Propágulo 7

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Celebrando os diálogos sobre arte a partir de Pernambuco, surgiu a Propágulo. O compromisso desta iniciativa é promover, através de diferentes plataformas, discussões pertinentes ao universo artístico. Com formatos reestruturados a cada edição, entre reportagens, entrevistas, textos críticos e ensaios, a revista Propágulo reflete, portanto, a intenção de proporcionar uma conversa em meio às inúmeras vozes que compõem a produção contemporânea das artes visuais.



Celebrando os diálogos sobre arte a partir de Pernambuco, surgiu a Propágulo. O compromisso desta iniciativa é promover, através de diferentes plataformas, discussões pertinentes ao universo artístico. Com formatos reestruturados a cada edição, entre reportagens, entrevistas, textos críticos e ensaios, a revista Propágulo reflete, portanto, a intenção de proporcionar uma conversa em meio às inúmeras vozes que compõem a produção contemporânea das artes visuais.


Equipe Propágulo Bruna Pedrosa: produção executiva Guilherme Moraes: curadoria, editoração, educativo, revisão e mídias sociais Heitor Moreira: projeto gráfico e design digital Marianna Melo: expografia e montagem Nathália Sonatti: editoração, coordenação editorial e revisão Rod Souza Leão: gestão de projetos, design digital, revisão e mídias sociais

Redação Abiniel João Nascimento

Luane Barbosa

Paulete Lindacelva

Alisson Nogueira

Mitsy Queiroz

Transälien

Daniel Lie

Nathália Sonatti

Conselho editorial Ariana Nuala

Moacir dos Anjos

Chico Ludermir

Valkiria Dias

Colaboradores Estúdio Orra

Guilherme Licurgo

Studio Pirata

Felipe Avila

Iagor Peres

Toca Salamandra

Fernando Tomaz

Marina Curcio

Ton Gomes

Fkawallys

Matheus Nogueira

Vale Saig

Génova Alvarado

Meujaela Gonzaga

Vicenta Perrotta

propagulo

propagulo@gmail.com

Revista semestral, Recife - PE, ISSN 2596-2213


Embora semelhantes, nas fontes de texto latinas dispomos de pelo menos três diferentes tipos de traços. Na língua portuguesa, o maior desses caracteres, o travessão [ — ], é usado para indicar falas em discurso direto. Graficamente, ele separa e, por isso também, serve enquanto substituto aos parêntesis em acréscimos e ressalvas enxertadas no escrito. Em ordem decrescente, existe a menos conhecida, meia-risca [ – ], usada para unir elementos em série, como letras ou números, separando assim as extremidades de um intervalo. Um exemplo deste uso está no período “As revistas Propágulo Nº 1–5 foram lançadas cada uma individualmente, diferentemente desta(s) que você tem em mãos”. Perceba que, entre os números “1” e “5” existem, evidentemente, os números “2”, “3” e “4”, mas estes já estão implícitos no caractere — já que é justamente esta a sua função. O mais curto de todos, o hífen [ - ] — que inclusive se encontra no termo “meia-risca” supracitado — aparece, entre outros usos, quando queremos indicar uma união semântica entre duas palavras. Resolvemos abordar narrativas duplas nas páginas principais da(s) Propágulo(s) 6-7. Assim, artistas nesta edição foram convidades para, simultaneamente, escreverem sobre si e para serem entrevistades por outras pessoas que se somaram a este processo. Resultado: 14 textos de diferentes tipologias e tempos nos foram propostos. Uma vez assumindo tamanha abertura (e, por que não, vulnerabilidade) em nosso processo, buscamos receber cada escrito a partir da convicção de que, se decidimos pôr no mundo uma criatura inesperada, impor-lhe um molde seria não apenas aparar suas asas, mas consequentemente impedir seu voo. Isto posto, apresentamos uma série de textos de artista, textos críticos, reportagens, enunciados, prosas poéticas e poemas que maravilhosamente exemplificam o tanto que se pode produzir a partir de (ou em concomitância aos) processos de criação pautados em visualidades. A(s) Propágulo(s) 6-7 vem (vêm) de uma gestação única. Sinta-se livre para passear por entre suas páginas como lhe couber. Aqui, deixo sugestões. Caso deseje segui-las, atente ao primeiro parágrafo deste editorial. Alguns percursos: Nº 6, pág. 03-Nº 7 pág. 03 — Nº 7, págs. 38–50 — Nº 6, págs. 40–48; Nº 6, págs. 06–15 — 26–39 — 49–61; Nº 7, págs. 30–37 — 16–29 —51–61; Nº 7, págs. 06–15 — 30–33; Nº 6, págs. 16–39; ... Guilherme Moraes


Sumário

06

Uma das mil maneiras que nasce um rio

33

Chá de revelação

Entre as coisas pequenas e a ferrugem do tempo

38

Anunciação Transälien

Projetos de vida, projetos de morte

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Quando ser basta por si só

Um corpo descansa à beira de sua vertigem

51

Mitsy Queiroz

Alisson Nogueira

08

Transälien

Nathália Sonatti

16

Daniel Lie e Paulete Lindacelva

30

Abiniel João Nascimento

Luane Barbosa

Galeria



POR

ALISSON

NOGUEIR A


Esses dias, tenho tentado pensar na figura do tempo. Foi erro crasso chegar a pensar que se tratava de algo suspenso. Na realidade, sinto e sei que ele se tornou uma grande vala que quase se confunde com um abismo. * De logo cedo, Vó Carminha — que também é minha mãe — me ensinou que o Opará, esse rio que aqui nos une nesse grande rosário e mata nossa sede, nasceu das lágrimas de um luto incessante. Um parto forçado pela morte. Não sei te dizer se desaguando um rio nosso luto acaba, mas infelizmente percebo que parir um rio é dor que cabe em toda vida. * Lembro quando Vó Marta se encantou, meu pai me ligou em meio a uma chuva braba. Eu estava a mais 500 km de casa. Guardo aquela chuva no peito. Foi o meu primeiro encontro com as águas. (muitos outros encontros se assucederiam depois) * Nessa altura das coisas, acho que já não compreendo tão bem assim o que é o tempo, mas embrulho em mim um sentimento parecido com pedra, terra e presente. Na noite passada, sonhei que estava no quarto de Vó Carminha. No sonho, eu estava parado mesmo na passagem da porta, enquanto olhava ela deitada. (Esse sonho tinha jeito de lembrança). Então Vô Cabecinha entrava, acendia uma vela. Perto da cômoda, que estava localizada no mesmo lugar que eu lembro na infância. Sem despedidas, ele ia embora. No mesmo momento, minha tia chegava, eu perguntava se ela também tinha visto, ligeiramente me responde que não. Pergunto a Vó, e ela então me mostra várias velas derretidas, da parede até o pé da cama. Altar. Acordei. * Um rio é rastro do choro de deus.

Vó Carminha - Maria de Lima Nogueira, Ingá - PB - Avó Materna. Bença Mãe. Vó Marta - Maria Marta de Araújo, Petrolina - PE - Avó Paterna - Encantou-se em 2014. Bença Vó. Vô Cabecinha - José Nogueira, São João do Cariri - PB - Avô Materno - Encantou-se em 2019. Bença Pai.


ENTRE AS COISAS PEQUENAS E A FERRUGEM DO TEMPO

por Nathália Sonatti

VERSÍCULO I - arrudeios do tempo Quando criança, dos 5 aos 7 anos, eu realizava constantes fugas lá de Vermelho, entrava em Kombis rumando para casa dos meus avós aqui em Petrolina. ... Lembro das brigas homéricas de Mãe Carminha com a minha mãe por causa disso, eu sei, não fui uma criança fácil. Por ter crescido vendo Pai Cabecinha mexer em graxa, meu corpo de imediato se entendeu escorregadio. Escorria pelo mundo facilmente. ...

“Acho que a minha compulsão é de guardar lembranças e memórias contra possíveis esquecimentos que vão sendo instaurados. E o tempo acaba entrando nesse processo, porque ele funciona como uma máquina de comer narrativas: vai comendo, comendo, comendo e as narrativas que não são legitimadas são soterradas por esse tempo que foi colocado para a gente.” É preciso cavar brechas, tirar as pilhas do relógio e “compreender esse relógio enquanto tempo, mesmo ele sem pilha, lembrar que existe uma possível relação entre você e o objeto, mas não necessariamente com o passar dos ponteiros. O passar dos ponteiros é só um símbolo”. Demorar-se em uma imagem é um movimento necessário para desmanchar o tempo cronológico, “para tentar compreender o que foi deixado no caminho, como as pequenas coisas, as coisas íntimas”. “Quando pintei a tela dos meus avós, passei semanas nela, enquanto era uma tela que eu podia ter resolvido em apenas uma... É quase um processo de sedimentação das coisas. Tenho pensado muito o tempo como uma pedra, uma rocha sedimentar na qual você vê suas camadas e pode acessá-las, mas que é um corpo só, porque elas não se excluem. Porém, também só passam a fazer sentido quando você vai para a próxima camada, já que a primeira delas é terra, e é com a sobreposição dessas que se vira uma rocha.”

1 - Legenda de postagem retirada do Instagram de Alisson Nogueira sobre a videografia “Casa dos Milagres”, 2020.


Voto N° I - Óleo sobre tela - 80 x 150cm - 2020


VERSÍCULO II - infiltração da palavra Mas sei que não me paraliso feito pedra. Porque pedra acunha carreira no mover de tempos do mundo, queria me sentir mais perto delas. ... A grande verdade é que ando por essa casa e sinto que tem algo faltando, que os dias, mesmo que parecidos, não têm pesos iguais e que algumas ausências me paralisam, tanto quanto a imagem de uma pintura. …

“Meu pai foi me contando por que para ele o lugar se chamava Vermelho. Ele me falou que era porque o mocotó da galera quando voltava das festas ficava cheio de barro vermelho, as pessoas falavam ‘ah, aquele é vermelhense’ e conseguiam distinguir. Mas, é muito curioso, porque Vermelho (PE) não é cidade e sempre que tenho oportunidade falo que o lugar inventou seu próprio jeito para se identificar, porque ser lagoa grandense não contempla o que é ser vermelhense. É massa pensar que as pessoas já estão manipulando e reconstruindo os instrumentos de poder e os nomes de poder, tá ligado? Quando eu falo aqui em Petrolina (PE) que sou de Vermelho, o pessoal não me associa mais a Lagoa Grande (PE), me associa diretamente ao local de onde eu parto. É essa a estratégia que foi elaborada pelas pessoas, e no fim das contas esse trabalho [Vermelhense] fala sobre isso.” “Eu tenho um interesse muito grande pela palavra oral. Mesmo estando no código escrito, quero que a palavra tenha um peso de oralidade e subverta algo naturalizado, que nem no título do trabalho que estava na quarta edição [da Propágulo] ‘Cara feia para mim é proteção’.” Gosto do “jogo das palavras, de ressignificá-las e causar um estranhamento dentro do campo do costume, da normalidade. Em ‘Obrigado pelo caminhar’, quando eu fiz [a primeira versão] no caderno, na minha cabeça a frase já existia, porque é uma coisa tão... Parece que alguém me falou em uma conversa de bar, parece que as coisas já são assim... E eu fico tentando procurar isso na palavra. Para mim, quando a palavra tem um peso natural, mas ao ser deslocada para outro território vira uma palavra totalmente estranha, ela também acaba entrando nessa pauta de legitimar esses interesses por memória e território”.

2 - Legenda de postagem retirada do Instagram de Alisson Nogueira sobre estudo para “Especulações em torno da palavra carrancudo” ou “Cara de ranço”, 2019, 80 x 50cm, Óleo sobre Tela. 3 - Local de origem de Alisson, situado próximo ao município de Lagoa Grande em Pernambuco. 4 - Pintura desenvolvida em 2020, óleo sobre tela - 40x40cm. O trabalho surge como uma reflexão pessoal sobre como viveu o processo de luto da morte de Vô Cabecinha.


Refugos - Aparição/Performance - 2019 (Duração: 10 Mangas Tommy Atkins ou 120min) Galeria de Arte Ana das Carrancas - Sesc Petrolina.



VERSÍCULO III - ferrugem e sangue Quando voltar, quero vir como jarro feito de barro, pra carregar essa sede feito teimosa que é. Sempre insiste em não querer ir simbora. … A voz veio carregada de ternura enquanto ela entregava seus tesouros, preparados com cuidado para alicerçar e dar continuidade à memória, uma herança preciosa, que fez os três álbuns de fotografia pesarem ainda mais em suas mãos quando os estendeu pelo ar.

“Comecei a pesquisar as relações de romaria com minha família. Todo ano a gente ia para Bom Jesus da Lapa (BA) e Juazeiro do Norte (CE), eu estava no meio de várias romarias desde criancinha. Mas o falecimento do meu avô é um marco de não ter mais romaria, sem falar que foi uma grande perda, e quando isso aconteceu fiquei pensando no processo das narrativas que ele me contava e que não ia dar mais para ouvir. O nome do bairro que eu moro hoje em dia aqui em Petrolina é José e Maria por conta dos meus avós, que foram uns dos primeiros moradores dele. Eram eles quem diziam isso, se era verdade ou não, não sei, mas essa narrativa existia, logo ela é verdade para o meu grupo familiar. Então, o trabalho veio nesse mote de tentar me colocar como testemunha também, porque eu passei muitos anos longe da casa deles quando cursei letras na Paraíba [entre Monteiro (PB) e Campina Grande (PB)] durante cinco anos, e eu não vinha para cá com frequência. Foi uma tentativa de me colocar tanto como testemunha, quanto como narrador desse processo.” … “Não menino, não vou me sentar aí não, te vira, grava aí!” … Durante um mês a câmera passeou pelos cômodos daquela casa, atravessando momentos até então tidos como esquecidos e também os corriqueiros, que se acumulam em repetições pelos dias.

“A casa também é uma oficina mecânica, então, foi meio que crescer vendo caminhão enferrujado na frente dela, e talvez brincar com essas ferrugens me relacione ao tempo também. Descobri entre uma história e outra que minha avó é uma grande acumuladora, e encontrei um álbum de fotografia dos meus avós que eu não conhecia. Foi muito intenso ver retratos deles chegando, retratos deles lá na Paraíba ainda, fotos de velórios, fotos de pessoas que eu só tinha ouvido falar, mas que eram importantes na construção da narrativa de minha família.”

5 - Legenda de postagem retirada do Instagram de Alisson Nogueira sobre o Estudo N°1 para “Vermelhense”, 2019, óleo sobre tela - 40 x 40 cm.

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Beradeiro - Instalação/Site specific - 2018 - Objetos variados sobre mesa de madeira, instalada na embarcação Nilo Brasileiro Mostra Flutuante “Ficções Cerâmica, Poética do Barro” - Sesc Petrolina.

“As imagens gravadas em Casa dos Milagres me levaram para além das minhas fugas de Vermelho, para os momentos em que eu não estava lá na casa dos meus avós. Foi uma forma de me reconectar com essa família, que é um grande quilombo (todo mundo mora aqui neste bairro). Eu saí de Vermelho, moro a 7km da Universidade [Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)], porque minha mãe, meus avós, minhas tias, tão tudo morando por aqui, e aí acaba sendo um grande ponto de apoio.” Quando terminei de gravar, “eu convidei todo mundo para ir na casa da minha avó, peguei meu Data Show e botei o povo para assistir. ‘Bora, gente, assiste! Se estiver ruim vocês dizem e eu edito, e é isso, eu preciso da aprovação de vocês, porque no fim das contas é sobre mim e vocês’. E foi bem massa ver a reação dos meus tios e da minha mãe, eles se vendo no vídeo, reconhecendo-se nas fotos antigas, ou, então, tem umas cenas que são só umas mãos, aí eles ‘ah, a minha mão’, ‘as mãos de não sei quem’. Eu queria que meu trabalho fosse para isso, para essa galera, não exclusivamente para o circuito de grandes artes, porque esses momentos de encontro e identificação para mim são muito mais potentes. Acho que meu objetivo agora é que meu trabalho alcance esse lugar do verso de uma fotografia”. .... Registro da conversa realizada entre Alisson Nogueira e a Propágulo em 10 de fevereiro de 2021. Nathália Sonatti é formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atua de maneira transdisciplinar nas áreas de cultura, tecnologia, design e comunicação. Em seus textos, pesquisa a subjetividade enquanto ferramenta de mediação no jornalismo de arte.


Cadeira vazia oficina do cão - Fotoperformance - 2019


PROJETOS DE VIDA, PROJETOS DE MORTE DANIEL LIE & PAULETE LINDACELVA

Através de videochamada, Paulete Lindacelva esteve, da cidade de São Paulo, com Daniel Lie, atualmente em Berlim, Alemanha. Na conversa, elas trataram de diferentes pontes e pontos de vista sobre as instâncias de vida e de morte. Paulete Lindacelva (1994) é de Recife - PE, residindo em São Paulo - SP. É curadora independente, DJ, artista visual e apresentadora. Sua produção é permeada por questões de raça, desobediência de gênero e políticas de afirmação. Atualmente desenvolve o projeto “MOTE” em parceria com a Cereal Melodia. Daniel Lie (1988), é artiste indonesiane-pernambucane, transgênere. Tendo nascido em São Paulo - SP, atualmente vive em Berlim, Alemanha. Em sua pesquisa, dedica atenção às tensões e tentativas de quebrar binariedades entre ciência e religião, ancestralidade e presente, morte e vida. Por meio de instalações, objetos e hibridização de linguagens de arte, explora elementos que possuem o tempo contido em si, como a matéria em decomposição, o corpo e o crescimento de plantas e fungos. Os Anos Negativos: A Privacidade Alheia - Escócia - Reino Unido - 2019 Instalação em uma galeria que fora um salão de dança. Em diálogo com o teto de afresco e candelabros, uma coluna de lã desce do alto e se funde com uma coluna de flores horizontal. Este lugar escuro é acompanhado por uma instalação sonora e as luzes e sombras desempenham um papel na dramaturgia do trabalho. No chão, 6 esculturas de argila fresca contêm em seu interior sementes de linhaça fermentando — a lã e o barro são provenientes da fazenda de Jupiter Artland. Entidades sem nome, argila com linhaça fermentada, corda de fibra natural, flores, luzes, lã e instalação sonora.

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Paulete Lindacelva - E aí amiga, por onde a gente começa todo esse papão? Daniel Lie - Quanto tempo você quer viver, Paulete? PL - A gente comunga de algumas vivências, né? Óbvio, cada uma com suas especificidades, mas somos corpos racializados, pessoas trans, viemos de uma condição de pobreza, eu no Nordeste e você no Sudeste. Na minha construção de vida tenho que caminhar e trabalhar para conseguir o mínimo de subsistência para sobreviver de fato. Sobreviver, não para viver. Então, sobre o quanto tempo quero viver, acho que o tempo em que eu esteja confortável e que eu não dê trabalho para mim mesma, sabe? No sentido de ficar elaborando o peso que estou fazendo na terra, inclusive para os corpos que vão estar comigo. Espero não estar só, trabalho muito para não viver uma solidão na minha velhice, caso eu chegue lá. Confesso que não consigo me projetar velha. Para mim não é uma realidade, tanto pelas coisas que acontecem no nosso entorno, por a gente viver a situação que estamos vivendo socialmente no Brasil, que tem duas frentes muito poderosas manipulando o futuro: uma frente natural que talvez esteja tentando expurgar a humanidade, a Natureza construindo ferramentas para poder sobreviver sem os humanos, e, de outro lado, uma frente política instrumentalizada a partir do Estado, que também tem uma prática higienista, racista… Inúmeras práticas que tentam expurgar meu corpo e figuras subalternas, assim como eu, para que essa 18

existência deixe de ser um problema. No processo de higienização, nossos corpos estão ali na frente, né? Óbvio que têm outros corpos na frente desse processo, como pessoas em condição de rua. DL - Fico me perguntando o que seria uma vida idosa para uma pessoa trans. Talvez 40 anos já seja isso, uma vez que, no Brasil, a expectativa de vida desse nosso grupo é, infelizmente, de apenas 35 anos de idade. Mas o que fico sentindo falta é de uma orientação, especialmente de pessoas com essas experiências de vida, as idosas. Talvez nos caiba ser esse exemplo e chegar na velhice, já que é muito raro, para que assim saibam que é possível. Eu precisei ter contato com pessoas de diversos campos para entender que era viável existir — profissional e afetivamente — na minha identidade e subjetividade. Achei muito forte isso que você falou, essas duas frentes que tentam manipular o futuro. Parece que elas são antagônicas, porque uma, a natural além de humana, demonstra que o tempo tá acabando para a humanidade. Já essa outra frente fala: “A gente quer acabar porque não existe mundo sem colonização.” Todas essas visões que falam de apocalipse e fim do mundo me fazem questionar “Apocalipse para quem? Apocalipse quando?”, uma vez que entendo que já sou a segunda geração de várias pessoas que já passaram por um apocalipse, que imigraram (como é o caso da minha família da Indonésia). Quando chegaram ao Brasil, tudo acabou. Afetos, condições de vida e de humanidade se reconstruíram a partir de uma forma muito dolorida e traumática. Já não seria isso o apocalipse?


Os Anos Negativos: Velar a Vida - Escócia - Reino Unido - 2019 Instalação externa e interna, onde uma corda é amarrada a uma parede de pedra no térreo e, na outra extremidade, dois andares acima, está pendurada uma estrutura feita com materiais orgânicos em que estão brotando e frutificando cogumelos. Envolvendo esta corda, vários buquês de flores. O espaço interno é naturalmente pintado à mão com carvão de madeira triturado e gel de linhaça. Cogumelo ostra rosa (Pleurotus salmoneostramineus), entidades sem nome, corda de fibra natural, polia, flores (cravos), saco de juta, pedras, carvão, tinta gel em linhaça.

Ao mesmo tempo, o que falamos parte de um entendimento muito binário da morte. O encontro com essa morte, esse apocalipse como um fim total, não havendo mais possibilidade de encontros após isso. Viver bem, morrer bem… É preciso, no meu entendimento, começar a se conversar sobre esses processos, entendendo-os como potências de movimentos. A morte como movimento, como energia, para além desse lugar binário vida–morte, a morte em vida, como uma força. E há uma grande diferença entre

projetos de matar e de morrer. Eu acho que morrer é um direito absoluto de qualquer ser com vida. Já matar, na lógica humana, é tirar esse direito de outra pessoa, ser e ambiente. Acho que esse encontro com a própria morte é o grande mistério. Penso que vai ser super interessante, que tudo do que vivi vai se reconfigurar quando eu encontrar minha própria morte. Ao mesmo tempo, não tenho pressa. Além disso, lidar com o viver também é lidar com a morte alheia. Enquanto estamos com vida nunca estamos

1- HARAWAY, Donna. Staying with the trouble: making kin in the chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.


lidando com a nossa morte de construção totalitária, mas sempre lidando com a morte alheia. A morte de si é o mistério, cada pessoa tem sua crença, sua forma de enxergar e as condições para poder acessar isso. PL - Você falou isso, da morte em vida, e fico pensando se, na lógica em que a gente vive o mundo, nós já não estamos mortos. A maneira como a gente constrói nossos planos sobre o futuro, uma coisa tão previsível, no sentido macro. Almejar algo, chegar até lá, depois disso pensar em um descanso… Fico pensando em como não morrer em vida mesmo… DL - Essa é a crítica a essa hegemonia ignorante, violenta e patriarcal: “Vocês realmente estão gastando o tempo em vida vivendo de forma tão mesquinha?” Com todas as tecnologias que a humanidade desenvolveu, antes da vinda do patriarcado e da colonização violenta, me parece que se podia tanta coisa… E volta para o que você falou, será que a gente já não tá existindo no Umbral? No espiritismo, não é exatamente um Inferno, mas um lugar obscuro que espelha o mundo em que vivemos, onde todos estão em uma prisão de sentimentos ruins. Será que é esse o momento em que estamos? Uma crítica que eu tenho feito, e que ainda estou elaborando, é que, por ter morado um ano na Indonésia — que é um outro sul global —, comecei a perceber mecanismos imperialistas da cultura brasileira e como isso se mistura com um lugar muito perverso da culpa, que não serve para nada além de construir moralismo. Fui reparando no quanto a mídia, 20

que influencia a subjetividade, informa que a possibilidade de existir só pode passar pela dor e sofrimento e que você tem que se culpar pelo sofrimento alheio. Eu acho horrível viver assim. Não estou querendo amenizar qualquer tipo de treta ou problema que vem acontecendo agora, muito pelo contrário, mas ao mesmo tempo quais são as possibilidades da gente existir? Fico me perguntando se esse tipo de existência por meio do sofrimento também não é uma ferramenta imperialista, capitalista, patriarcal, cisgênera, heterosexual, branca... Ainda preciso de mais embasamento, mas compartilho aqui como oportunidade de pensar e aprender. Fico pensando em como, no tempo em que vou viver, posso subverter isso. PL - Acho que a gente tá muito presa à culpa, quando se trata de Brasil (esse lugar bizarro em que a gente vive, construído em cima de um cemitério). É muito doido porque no processo de colonização a galera chega armada dessa culpa, o que faz com que não se entenda a complexidade das pessoas que viviam aqui, e constrói tudo o que a gente é hoje. Isso passa pelo babado de trazer a galera de fora pra cá, passa por esse lugar de construir a identidade das pessoas que lutaram para ficar vivas, em que você tinha que se livrar de um babado que pra quem tava vindo fazia mal... Vindo de um lugar bem particular, é bem difícil remontar essa lógica de não sentir culpa. Isso é um problema relacional. Você sempre vai avaliar situações e comportamentos a partir da culpa porque você precisa responsabilizar o mundo para poder se sentir bem.


DL - Comecei a questionar todo esse lugar de desculpa, inclusive a palavra “desculpa”. Desculpar é tirar a culpa, e não é sobre isso. Eu não quero tirar a culpa de ninguém, ou tirar a minha, eu quero reparação. Não é só a palavra, são atos. Já o que você diz sobre o Brasil ser um cemitério abandonado: uma coisa é ter um cemitério onde se cultua as pessoas que estão lá, em que você ainda continua essa comunicação, demonstrando respeito e afeto. Outra coisa é você abandonar esse cemitério. Nascemos em uma comunidade interpessoal nos comunicando. Chega a morte e isso não acontece mais? Cada crença, cada pessoa vai ter a sua visão, mas há muitas confusões quanto aos cemitérios. Em São Paulo, são lugares extremamente carregados, porque tem muito abandono ali. Acho que junta pessoas que morreram com culpa, pessoas que entendiam que não podiam morrer, isso tudo começa a se relacionar com a extrema necessidade de estar aqui. Quando surge essa palavra “reparação” pra mim, tudo se reconfigura. Se vou estar aqui, vou precisar olhar isso através de uma outra perspectiva. Como faz para essa reparação acontecer? Acho que a questão é pensar sobre como então temos que nos reparar com a morte. Eu tenho o desejo de estar aqui, mas de estar aqui sob uma condição: tendo humanidade — só que pensando também que esse viver vai ter um desfecho, que é o que chamamos de morte, e que pode ser um começo, uma expansão do sentir, e não o fim de uma experiência... A construção brasileira está muito pautada no morrer enquanto fim de uma experiência sensível. Nós

somos seres sensíveis, temos os cinco sentidos, o sexto, o sétimo, as emoções, e aí acredito que tenha, na hegemonia, uma ideia pensada a partir desse lugar muito autocentrado, em que o morrer é o fim dessa experiência sensível. E se não for isso? E se, quando a gente morre, a gente começa a sentir o chão, as outras pessoas por quem sentimos afeto, e começamos a nos integrar com a paisagem? PL - Acho que no outro momento em que a gente conversou falei sobre como eu talvez seja materialista. Estando em vida, acredito no desencanto e no encanto. Talvez seja um lugar que eu consiga me apegar pra me livrar de um sentimento de culpa, de medo da morte, para tornar a vida, vida, e não morte. Não consigo construir, materialmente, por mais que venha no meu imaginário essas percepções, esse lugar sensível. Como construir um imaginário saudável e estabelecer a ideia de vida com as condições que são dadas — e que são muito poucas, a nível de estrutura? Eu também não consigo movimentar esse pensamento para um lugar particular. Porque conviver, estar num ambiente onde sei que as pessoas estão passando por muita treta, me incomoda, me coloca em um lugar que me paralisa, em vez de me movimentar. Essa coisa da transexualidade mesmo… É um sujeito passível de não humanidade para o que hoje é construído de política pública no Brasil. Das pessoas precisarem pautar coisas simples: humanizar esses corpos e entender que eles precisam estar em espaços comuns! E fora outros, povos originários são desumanizados. O racismo desu21


Fome de Decadência - Bucaramanga - Colômbia - 2018 Realizada em uma antiga escola desativada, hoje uma residência, a instalação é composta de esculturas vivas e instalação sonora com criação original de Nathalia Mier. Duas colunas orgânicas em diagonal (aprox. 6m) perecem com o passar do tempo, uma feita com flores utilizadas em cerimônias fúnebres e outra com ervas medicinais locais. Ao longo da instalação, vasos de cerâmica produzidos por uma artesã local, Grasiela Florez, têm em seu interior a bebida ancestral e típica da Colômbia, o Masato, um fermentado de arroz. A instalação tinha um som que ecoava nas salas abandonadas e vazias, uma paisagem sonora com fragmentos de falas sobre memórias de resistência às violências patriarcais e de resistências de tradições pré-coloniais. Este projeto foi possível graças à generosidade de Elis Tarazon. Coluna de flor, coluna de ervas medicinais, vasos de cerâmica, aloe veras, corda de fibra natural, bloco de palha e Masato (bebida tradicional colombiana de arroz fermentado). Lindinalva e o Bálsamo - São Paulo - Brasil - 2016 Instalação/performance realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em homenagem aos 95 anos da avó de Daniel Lie, Lindinalva. Pernambucana e migrante, gerou uma família com mais de 40 integrantes em São Paulo. Na performance, a instalação era desmontada e seus itens eram oferecidos à Lindinalva e ao público. 90 cocos verdes, corrente, corda de sisal, capim cidreira, folhas de espada de São Jorge, flores e babosa.

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maniza as pessoas. Eu não consigo, em muitos momentos, espiritualizar esse babado… Muitas das histórias dos encantados da Jurema Sagrada partem de um lugar de muita violência. E aí fico me perguntando qual foi o mecanismo que esses seres utilizaram para conseguir se encantar, vindo de um lugar como esse. E tô falando de um ponto de vista muito meu mesmo, de como fazer isso, porque é uma tecnologia babadeira, na minha opinião. Enxergo isso como um bafo de desenvolvimento astral, sei lá que nome pode ser dado. Eu fico pensando em como desenvolver essa tecnologia, pois, para além de ter essa culpa incrustada em mim, tem essa coisa do bem e do mal, e, dentro disso, o que seria ético? Como pensar nisso dentro desse inferno em que a gente vive? DL - Penso na existência não-binária. Comecei a perceber que humanidade normalmente virou sinônimo de vida e desumanidade virou sinônimo de morte. Não essa morte como direito próprio, mas essa em que é tirado o direito do outro: matar. No que você falou dos encantados, como se faz para desencantar e virar encantade… É algo que me interessa muito, as narrativas relacionadas a deidades, orixás, espíritos, encantados, e os diversos panteões desses outros lugares, quando muitos falam de uma situação super violenta e traumática que a pessoa passou para conseguir chegar nesse outro campo. Fiquei pensando o desencantar como lugar não-binário entre morte e vida. Não é uma coisa carnal, humana, e também não tá presa, na minha forma de me relacionar com essas entidades, eu sinto que não estão 24

presas em sentimentos do mundo, estão numa outra escala… PL - Para mim, a ideia de vida está muito ligada a um peso. O que eu construo para estar viva e para me sentir viva é muito pesado, sabe? Indo para um lugar materialista: o que é o mínimo? Lógico que isso entra em uma questão de valores, por exemplo, como uma pessoa do campo entende a vida e como uma pessoa da cidade entende a vida. Isso já muda bastante. Para mim, pensar a vida está totalmente atrelado a responsabilidades que não necessariamente são minhas e que levam diretamente a essa coisa do que é ético, moral… E me faz querer não estar viva, de pensar a morte enquanto descanso. Eu, Paulete Lindacelva, elaboro muito a morte, infelizmente — ou felizmente, não sei — como um lugar de descanso, porque viver sobrecarrega figuras. Não consigo me apegar à vida da maneira em que é dada para esses sujeitos viverem. Não tem sentido lógico, não tem sentido prático querer estar viva frente ao que é dado como responsabilidades para que esses sujeitos estejam vivos! Porque é uma lógica de vida muito medíocre. E entra no capitalismo, na culpa cristã, no que é bem e mal. Uma coisa que tiro de muito proveitosa da cultura iorubá é como eles quebram com essa coisa de bem e de mal. Como não existe um binarismo, assim como não existe, logicamente, essa coisa da culpa, de você não se sentir culpada, porque o que se estabelece de bem pra mim pode não ser bom para outra pessoa. DL - Recentemente, fiquei pensando que a relação com a morte é uma relação íntima


e pessoal para o que vai acontecer após esse momento. A morte encarnada é uma questão individual. Eu sempre fico fantasiando esse encontro da morte carnal como um grande êxtase. Finalmente está chegando o grande momento desse mistério que gera milhares de confabulações sobre o que vai acontecer. PL - É foda, né, amiga? Eu fico pensando em algo que, não sei, talvez seja muito fatalista… Para quem vive na periferia, por exemplo na cidade do Rio de Janeiro, a relação de pensar como vai ser a chegada dessa morte é sempre sobre interrupção de vida. As pessoas lutam pelo direito de estar vivas, porque a morte é um convidado inconveniente. DL - Novamente matar, né? Ter que lidar com a finitude pautada em decisões alheias. É sempre uma negociação de quanto tempo posso estar aqui, negociação essa que começou muito tempo antes de termos nascido. Nesse sentido, fico pensando nessa pandemia batendo na porta de todo mundo, essa decisão que é além-de-humana. Vem o vírus e como se lida com isso? Se vai ser morte ou não é algo que volta para questões de estrutura política. Penso no viver e morrer bem, nesse morrer que pode ser a qualquer momento. Também penso que não é apenas um momento de encanto, mas de passagem de fase, tipo “Eu preciso de uma morte pra me renovar.” ou para mudar, encerrar algo. Em muitos momentos da nossa vida a gente precisou… PL - Morrer.

DL - Morrer. PL - E matar. DL - Também. PL - Eu gosto de viajar junto com você sobre essas experiências, sobre como você pensa e constrói essa relação da gente, ser humano, com outros seres, da vida, da morte, desse encanto, desse desencanto, sabe? Mas sou muito presona a tudo que faz com que a gente fique neste mal estar. DL - Eu compartilho dessa sensação também, de que o viver todo dia será algum tipo de mal estar. E talvez isso seja o viver mesmo. Será que não temos também que cultuar a morte? Não só cultuar a vida, mas também o que é inominável? A minha avó pernambucana morreu com mais ou menos 100 anos. Quando ela morreu, acabou a luz na rua toda. Isso pra mim fala muito sobre como ela estava enraizada e a minha leitura é que a morte não veio para ela como uma coisa fácil. Era algo do qual ela tinha muito medo, tanto que essa imagem é extremamente forte, de se puxar uma árvore muito antiga pelas raízes. Uma raiz tão grande, que aterrou tanto... Foi uma erosão de quilômetros. PL - Fico vendo as pessoas que vivem muito, principalmente as que têm uma história de muita batalha e luta… Acho que a velhice é de fato quando a galera vive. Deve ser o momento de descanso da galera que quer sentir esse descanso estando em vida. 25


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Centro de morte para xs Vivxs - Viena - Áustria - 2017 O acesso para o Centro de Morte para xs Vivxs era gratuito. Para entrar no espaço, nós pedíamos gentilmente algumas condições. Para tal, as pessoas deveriam deixar seus pertences pessoais do lado externo (calçados, carteiras, bolsas, aparelhos celulares, relógios...). Também deixar do lado de fora a comunicação verbal e respeitar a árvore de cannabis. A permanência dentro do espaço era de acordo com a vontade de cada um. O projeto ocorreu durante um mês. Por 4 semanas, 4 dias por semana (quinta a domingo), 4 horas por dia (18h às 22h, durante o pôr do Sol). Esta obra foi realizada em parceria com Vivian Caccuri, na criação da trilha sonora original e no soundsystem. Terra, palha, sementes de linhaça brotando, lama, tecido de cânhamo, corda de cânhamo, frutas apodrecendo, flores, sistema de som, 3 vasos de cerâmica (em seus interiores, arroz fermentando) e duas árvores de Cannabis indica.



DL - Sim, um direito absoluto, mas preciso confessar, da minha experiência entre Indonésia e Brasil, que os tempos do autoencontro com a morte (quando não foram assassinadas) foram diferentes. Vivenciei muitas histórias no contexto do Brasil em que esse encontro se prolongou com sofrimento, enquanto na Indonésia eu sempre me surpreendia com um morrer alheio que, em comparação, me parecia rápido. Tem um monte de questões que trazem essa minha impressão, mas penso no quanto essa relação de aterramento, materialidade e culpa do Ocidente, em uma sociedade com base cristã e católica, e numa outra sociedade que, por mais que seja composta por uma maioria islâmica, também está amparada por diversas outras espiritualidades e subjetividades, e me parece que esse entendimento de morte não estava como um lugar de medo. E aí acho que esse demorar para morrer se dá porque a sociedade tem medo de morrer. E ao mesmo tempo não se vive bem para que se morra bem — viver mal, morrer mal — ou não se tem uma decisão que se exima de culpa, como pedir uma morte assistida para uma vida sem assistência. Estamos falando de diversas camadas: de si próprio, de uma relação coletiva, cultural, subjetiva, e o quanto tudo isso tá nessa negociação de quanto tempo dá pra ficar aqui. E, se não der pra ficar nessa duração desejada, como subverter esse tempo? Nota: Esta conversa foi realizada poucas semanas antes do inesperado falecimento do pai de Daniel Lie. Lie Liong Khing faleceu vítima de covid-19 e da administração da República Federativa do Brasil. 28


Assumimos de agora em diante - Santiago - Chile - 2016 55 cactus de São Pedro, corda e tecido de cânhamo, terra e pasta de adobe (palha e terra coletados na casa e estrume de cavalos corredores). Trabalho realizado a partir da residência no Espacio Nave. Ao final do trabalho todos os cactus foram doados aos moradores do bairro Yungay.

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“Mitsy Queiroz é um corpo transviado e não-binário, artista visual e pesquisadore no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em sua poética, investiga os tensionamentos entre programas fotográficos, corpos dissidentes e processos criativos potencializados pelo esquecimento. Ouve com atenção os ecos dessas imagens latentes e busca ainda teorizar estrategicamente suas dores como travessia consciente das experiências vividas.”


>

em vertigem há medo de queda, queda queda

mas na pisada firme também existe desequilíbrio

corp_ no chão. a memória desperta num tempo que não corresponde mais. nasce de novo, gestado em si, numa carne velada.

imagem que é abismo,

porque nela é latente a convicção.

>

Este é um texto de Abiniel João Nascimento¹ com recomposição de Heitor Moreira. ¹Abiniel João Nascimento é artista visual, performer, pesquisador e bacharelando em Museologia (UFPE).




Chá de Revelação - 2020 - Álbum de fotos e fungos - 10×15cm

Mitsy Queiroz

Chá de Revelação

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Esta primeira linha existe no dia de hoje pela chegada das contrações. Na verdade, não saberia dizer desde quando a dor que só me beliscava com a ponta da unha passou a inflamar meus gritos e tomar conta de todo o meu corpo. Esperei uma manhã de sol para voltar a escrever sobre um reinado úmido e a sedução de um quarto pouco arejado. No apanhado de estratégias para circular entre as dores e desfazer os seus nós, abro as camadas desse álbum como quem descasca às pressas um ovo quente debaixo da água corrente, supondo que as altas temperaturas dessa lembrança dessem conta de secar o chão molhado da casa que morei. Em tempos de chuva, o pequeno vão da sala se dividia entre baldes e panelas para recolher as goteiras que ali surgiam. A vigilância de não se permitir transbordar naqueles domingos era tamanha que, repetidas vezes, torcíamos o enxoval, represando a cachoeira que abria caminho pelas paredes da cozinha. Já bem afastado dos interruptores, observava cair com muito sono os pequenos riachos que se encontravam e inundavam aquele primeiro andar. No dia seguinte, as paredes que revestiam a casa mudavam de cor, as colônias de mofo estouravam em todos os cômodos e rompiam com suas camadas de tinta mais antigas. As paredes floresciam vibrantes entre verde musgo, oliva e bandeira, assistidas pelos fungos que ainda hoje carrego vivos na superfície das fotos dessa primeira infância. 36


De treze meses a três décadas a manta desse bolor se nutre e se desenvolve, decompondo os laços cor-de-rosa cuidadosamente grudados com sabão no topo da minha cabeça. Sem forma definida, os filamentos desse fungo são como uma ligação sutil entre a morte e a vida que se abrem na velocidade desse corpo em transformação. Já decidido que a casa precisava da chuva como uma fotografia precisa dos seus banhos de revelação, rego por semanas, sem resposta, incerto de que a semente enraíza, até que os brotos raiem no início do dia me perguntando: quais as condições para se revelar no mundo dessa maneira? Para entender a contingência daquilo que esqueço, nego e certamente ressurge sem tantos avisos? Para me dar conta de que tudo é mudança e de que não há quem suporte o peso dessas decisões sem o gosto de terra na boca? A espera pelos temporais estoura como bolsas de água sobre mim, encharcando o que ainda estava seco e soterrando o medo daquilo que desconheço. Me pareceu mesmo que essa transição era um eterno retorno de despedidas, todas contabilizadas pela insegurança de deixar para trás algo que me fizesse falta, como quem às pressas fecha uma mala pequena para uma viagem longa sem destino ou volta. Hoje, sentia algo de familiar ao encher os bolsos com sementes para aguentar o longo percurso dessas despedidas que, na verdade, acenavam para quase todas as esperanças em torno de quem Mitsy seria. 37


A verdade é que a verdade é que eu não sou mesmo desse mundo eu não sou mesmo desse mundo eu sou o mundo eu sou o vírus o universo a galáxia a natureza a pandemia a pandemonia eu sou o planeta o mundo o futuro a utopia o agora

e a vida a vida

o candelabro o pergaminho a bússola

a luz

eu sou a vida a vida

o caminho o bálsamo

a vida


Ouça enquanto lê

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Eu não sou mulher! E muito menos homem! Eu sou tudo, eu sou todas Eu sou muitas, eu sou poucas Eu sou monstra, eu sou tola Eu estou em todas as partes Eu sou todas as partes Eu mostro todas as minhas partes Eu louca Eu bruxa Eu séria Eu nova Eu velha Eu vento, eu água Eu fogo, eu palha Eu limpa, eu suja Eu dia, eu noite, varia Eu alien Eu gente Eu sempre diferente Mas eu? gente? Eu... humana? Quisera eu, travesti, ter o direito de ser humana Mas foi junto de uma mana, que eu corri da tua chama enquanto fazia programa Quase morri mas voltei com mais gana Te queimei com a fúria da minha trama E transpassei, me tornei pós-humana 40


Mas eu cansei! E me pulverizei E me fiz organismos, células, micro-partículas, assim como o glitter que quando sozinho se revela apenas um pequeno fragmento insignificante, mas junto de seus semelhantes faz a vida brilhar E me fiz brilho porque sou órbita E sei ser sol E sei ser só E sei ser furacão Sei ser vulcão E ser... sei? Será mesmo que sei? Sei ser mulher? Sei ser homem? Sei ser gente? Não sei Eu só sei ser Eu Eu só sei ser Eu Que é energia Energia Indelével Infinita O fim E no fim eu sou apenas uma parte de você que você não teve coragem de ser.


por Luane Barbosa As palavras que seguem abaixo compõem uma tentativa de falar sobre dessemelhanças e identidade. Este fragmento foi recortado a partir de uma conversa realizada virtualmente em setembro de 2020, entre mim, Transälien e a Propágulo — às vezes traçando linhas palpáveis, em outros momentos depositando traços invisíveis ainda que a materialidade do corpo não deixe de captar. Materialidade esta da qual ressoa uma deseducação de tudo o que está posto, apresentando outras perspectivas de existência, onde ser se basta por si só. Transälien apresenta o cultivo de um espaço quando se é, uma inflexão inédita, vital, um acontecimento divisor de tempo. “Eu acordo sendo isso e vou dormir sendo isso.” 42


Fotografia: Matheus Nogueira / Ton Gomes / Studio Pirata Look: Vicenta Perrotta - Rosto e styling: Transälien


Fotografia: Guilherme Licurgo Rosto: Toca Salamandra Look: Fkawallys


LUANE BARBOSA - Qual é a sua relação com Recife? E de que maneira a cidade se relaciona com sua trajetória? TRANSÄLIEN - Sou nascida e criada em Camaragibe, mas nunca me identifiquei com aquele lugar. Em meados de 2015, quando comecei a trabalhar mais na noite de Recife como DJ e performer, eu passei a arquitetar essa movimentação de ir morar no Centro [de Recife]. Foi um movimento que tinha que acontecer não só por eu não me identificar com Camaragibe, mas para que eu conseguisse trabalhar mais. Por conta disso, a minha relação com Recife era muito mais profissional e de interlocução com as pessoas. Eu nunca me identifiquei com o espaço, mas é aquela coisa: a gente só dá valor quando perde. Quando eu saí, passei a valorizar muito mais essa cidade e a reconhecer a importância que ela tem em relação à minha formação e à minha identidade. Não importa o quão longe eu voe ou onde eu esteja, eu sei quem sou porque sei de onde vim. Recife, para mim, é esse alicerce, estar com vocês é estar em casa. LB - É comum escutarmos comentários de pessoas que falam o quanto o seu trabalho impactou e foi importante para as próprias trajetórias artísticas e de vida delas. Como você percebe essa influência na cena da música eletrônica pernambucana? T - Quando comecei a tocar eu não tinha muita técnica. Eu dava um “ekê”, mas a minha performatividade e o que minha presença representava sobressaía. Nas vezes que eu voltei para Recife, quando vi

essa nova geração [da música eletrônica] que está aí, que eu nem via no rolê, que tinha acabado de começar a sair para noite e que já me conhecia e se sentia influenciada e impactada por mim, foi quando eu percebi que a minha inserção e o meu surgimento nesse espaço foram demarcadores de algo que precisava acontecer. Porque as pessoas que se identificam comigo não se sentem influenciadas no sentido de serem como eu, mas no sentido de se sentirem meio que “autorizadas” a achar suas formas de serem quem são. Mais do que ser uma boa DJ ou qualquer coisa no espectro profissional, meu propósito e missão são muito mais de impactar as pessoas na busca de suas próprias identidades. LB - Como foi a sua mudança para São Paulo? T - Vim pra cá de vez em 2017 e consegui construir uma rede de afeto e de suporte rapidamente, muito porque já me conheciam através das movimentações no meu trabalho em Recife. Eu escuto bastante que São Paulo é um lugar de liberdade, possibilidades, porém quando a gente chega aqui entende que não é tão por aí. Inicialmente, comecei a me inserir no circuito de festas de música eletrônica e acabei trazendo, consequentemente, o Transfree, que não existia aqui, o que me surpreendeu bastante na época, porque, particularmente, eu tinha uma imagem de que São Paulo era uma cidade para frente, mas em relação a políticas para nossos corpos, especificamente, ainda não era muito diferente.

1 - Política de acessibilização de entradas gratuitas para pessoas trans e travestis em eventos culturais, shows e festas.


“quando eu falo que as máscaras que eu uso são possibilidades de revelação, isso causa uma contradição.” LB - E de que maneira esse lugar te enxerga? T - Eu escuto muito aqui em São Paulo: “Cara, nunca conheci alguém que usasse máscara e fosse como tu é 24 horas por dia”. Quando eu morava em uma casa onde todas as pessoas trabalhavam com festa (e, devido a isso, muita gente circulava por lá), tinha uma pessoa que sempre se surpreendia com o fato de eu estar em casa de máscara toda hora. E aí eu falava: “Caralho, até a pessoa mais moderna — que se diz ou pensa que é moderna — não está preparada para uma pessoa como eu.’’ LB - Por que você acha que elas reagem assim? T - O ímpeto das pessoas é de entender o que está por trás das máscaras, da indumentária, da performatividade, porque está tão no imaginário das pessoas que a máscara é algo que se usa para esconder que, quando eu falo que as máscaras que eu uso são possibilidades de revelação, isso causa uma contradição. É o tempo inteiro o movimento delas “eu quero te ver’’, “eu quero te conhecer’’, “eu quero ver teu rosto’’. E eu respondo: “isso que você tá

vendo sou eu, não é um mero objeto, um espetáculo’’. Até porque as pessoas fazem muito a relação de achar que a Transälien é um personagem, um alter ego, uma persona, mas, quando eu vim para São Paulo, eu entendi de vez que a Transälien é, na verdade, a minha identidade. LB - No texto “Quem você é?’’, que fala sobre liberdade e autonomia, você diz que “é preciso desqualificar o ‘humano’ para reivindicarmos nosso atual corpo, para só então construirmos e trilharmos nossos novos caminhos e escolhas’’. De que modo isso se relaciona com o seu processo artístico? T - Eu entendo a minha corporeidade enquanto essa ferramenta de começo, meio e fim do meu trabalho. Meu processo artístico está diretamente relacionado ao que eu vivo, a quem eu encontro, à fase que estou vivendo em determinado momento. Por exemplo, em Recife, eu era muito mais producente quanto a fazer roupas, máscaras e acessórios. Tudo que eu usava era eu quem produzia através de coisas que encontrava na rua e no meu entorno. Já aqui em São Paulo tem sido

2 - Texto escrito por Transälien no medium, disponível em: https://medium.com/@marshatrans


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Fotografia: Felipe Avila


completamente o oposto, outra experiência, tenho acesso a coisas prontas e conheci muitos amigos estilistas que fazem coisas que eu possa vir a usar. Além disso, tenho explorado mais meu trabalho enquanto produtora cultural. O que faço é entender os ciclos que estou vivendo e qual é a minha disponibilidade e propensão a desenvolver outras ferramentas e dispositivos para que eu possa trabalhar e viver deles.

corpórea da travesti é coletiva, não tem como não ser. Ainda que sejamos empurradas para esse lugar de solidão, de preterimento, temos umas às outras para conseguir estar aqui. É por isso que vem o meu tesão em continuar fazendo projetos e movimentações coletivas, porque eu não tenho a menor fé e otimismo na humanidade, mas nas travestis sim. São elas que me mantêm aqui e que me dão oxigênio.

LB - Qual a importância dos seus coletivos, não apenas enquanto movimentos políticos e culturais, mas também na sua vida? T - Nunca vou me esquecer da primeira vez que fui a uma festa aqui em São Paulo, porque quando desci do carro dei de cara com a Jup do Bairro e com a Linn da Quebrada. Ali já houve um amor, uma conexão e uma doação, algo tão genuíno... Eu venho entendendo, cada vez mais, que eu preciso das minhas irmãs, eu preciso das travestis. Eu preciso das pessoas que, inclusive, me ajudaram a chegar até aqui. Ao mesmo tempo, nessa experiência de vida, eu preciso — em certa medida e em determinados momentos — focar em mim para ter energia suficiente para cuidar do outro. Se eu também não preservasse minha energia, se eu não me fechasse em meu casulo de individualidade e força, nada disso seria possível. E acho que as coisas andam juntas, ficar só para se energizar e, consequentemente, ser um corpo coletivo. Quando a Linn fala que somos uma legião é porque realmente somos, porque a experiência 48

Transälien é uma multiartista pernambucana que atualmente mora e atua em São Paulo e trabalha enquanto produtora cultural, artista multimídia e DJ. É idealizadora do Transfree e também da coletividade MARSHA!, que realiza ações socioculturais voltadas para a comunidade Trans. Além disso, é uma das criadoras da Coletividade Námíbià, voltada para a inserção de artistas da comunidade negra na cena eletrônica paulistana no cenário das artes visuais e música eletrônica. Luane Barbosa é comunicadora, atua nas áreas de produção cultural, tecnologia e movimentos sociais. Também pesquisa sobre as relações entre audiovisual, memória, corporeidade e identidade.


Fotografia: Matheus Nogueira / Ton Gomes / Studio Pirata Figurino: Vicenta Perrotta - Styling: Transälien


Fotografia: Fernando Tomaz Maquiagem: Vale Saig


Galeria

Este é um espaço para contato inicial entre púbico e artista através da Propágulo. Estamos sempre à procura de novos artistas. Envie seus trabalhos para: propagulo@gmail.com 51


Iagor Peres @iagorperes

Vive e trabalha em Recife (1995). Integra do Coletivo CARNI - Coletivo de Arte Negra e Indígena. Em 2020, participou do programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo (CCSP) (São Paulo - SP), e do II Ciclo de Residência no Pivô Pesquisa. No mesmo ano foi artista colunista para a Propágulo Nº 4, lançada em exposição-evento em galpão ressignificado enquanto espaço expositivo. Premiado na 6ª Edição do Prêmio EDP Nas Artes do Instituto Tomie Ohtake, (São Paulo - SP), em 2018. Residente na Villa Waldberta em Munique, Alemanha, pela residência PlusAfroT e residente em Lugar a Dudas, em Calí, Colômbia, em 2019. Realizou sua primeira exposição individual na Galeria Maumau (Recife PE), em 2018. Participou de coletivas como “O melhor da Viagem é a Demora”, no Valongo Festival, (Santos - SP) e “O que não é floresta é prisão política”, na Galeria Reocupa (São Paulo - SP). P - Quais técnicas, linguagens e suportes despertam interesse em sua pesquisa? Não tenho compromisso formal com técnica ou linguagem alguma. Então, se eu precisar passar por qualquer técnica ou linguagem que eu não necessariamente tenha contato, farei isso sem o menor pudor. Em geral, não busco esse compromisso, mas necessariamente traí-las. Mas se eu pudesse pontuar de onde minha prática vem, seria mensurar isso dentro das linguagens da dança, escultura e performance. P - O que atravessa o seu processo criativo? O que poderia ser mais interessante de ser dito não é nem enunciável. O que mais me atravessa são alguns momentos em que a atenção se faz tão presente e onde a gente consegue perceber o que poderia ser a dobra de um trabalho, ou a minúcia de algo que se apresenta num gesto às vezes muito distante do que está aparente ali, e tudo isso passa para um campo do que não pode ser enunciado. Poderia até falar sobre um segredo, vários segredos atravessam meu trabalho, mas ainda assim não é bem isso, já que essas questões estão perceptíveis para quem está atento a perceber, e não necessariamente só a ver. Sem Título #18, da série A segunda forma da ausência Monotipia (Díptico) - impressão a partir da pelematerial em papel - (2x) 29,7 × 42 cm - 2021

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Marina Curcio @domarrrrrrr

É nascida em Recife (1998), sendo discente do Curso Superior em Fotografia na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Tem interesse pelos processos políticos que podem atravessar a fotografia, assim como pelo autoconhecimento que advém desta investigação. Nesse sentido, relaciona também a natureza enquanto eixo de sua pesquisa de constante descoberta de si. P - Quais técnicas, linguagens e suportes despertam interesse em sua pesquisa? Iniciei meu processo artístico através da fotografia documental e essa linguagem é inerente às minhas produções. Em “Ponto de Ebulição”, eu e Milena Marcelino estivemos abertas à construção experimental compartilhada. Quanto ao processo, foi bem fluido, conseguimos nos abrir para a câmera configurando autorretratos documentais. A ideia inicial do projeto como suporte seria desenvolver um zine com outros artistas LGBTQIA+, tanto que a montagem foi pensada dessa maneira, assim como também a impressão de algumas das imagens em fine-art/risografia. Porém, não consegui publicar online por conter "imagens proibidas". P - O que atravessa o seu processo criativo? Minha vivência atravessa meu processo, a vivência de amigs, de pessoas que amo muito. É um conjunto de pensamentos e trocas, memórias individuais ou coletivas que vão sendo desenvolvidas e externalizadas. Ponto de Ebulição Fotografia digital - 2020

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Génova Alvarado @genovavzla

Graduada na Universidade Nacional Experimental de Artes (Unearte) (Caracas Venezuela), docente em artes através do programa de extensão “Polo Arte na Escola”, na Universidade Federal de Roraima (UFRR) em Boa Vista, e pós-graduada pela Universidade de Girona (ES) e pelo Observatório do Instituto Cultural Itaú São Paulo, em gestão e políticas culturais. Atualmente reside no município de Uruçuca (BA). Busca transgredir e questionar padrões ocidentais, heteronormativos e patriarcais impostos aos corpos das mulheres. Está debruçada sobre os papéis assumidos pelas mulheres nos trânsitos migratórios. Na Venezuela, expôs em “Cosmogonias ressonantes. Sons originais. Sons contemporâneos” no Museu de Arte Contemporânea de Caracas (MACC), performou “Alimento poético I” na Galeria Nacional de Arte (GAN), 2011, e expôs o vídeo “La Venus Hoy” no Museu Jacobo Borges (MUJABO), em Caracas, 2018. Expôs na “Urbana”, iniciativa da Cáritas Brasileira, com o apoio do Projeto Europana, Cáritas Suíça e da União Europeia, sobre migrantes no Brasil (São Paulo - SP, Recife - PE e Porto Velho - RO), com a fotoperformance “No me cabe el cuerpo en la maleta”. P - Quais técnicas, linguagens e suportes despertam interesse em sua pesquisa? Sou muito cambiante. O corpo é suporte de meu trabalho de forma muito marcante. Entendendo-o como uma materialidade simbólica, metafórica, poética e criativa, por isso comecei a trabalhar com arte corporal, performance e intervenções no espaço público lá na Venezuela. Minhas primeiras obras ocuparam lugares não convencionais para a arte contemporânea: periferias, praças e ruas, por exemplo. A partir daí me interessei por tecnologia e essa necessidade de me apropriar do registro e da fotografia como suporte também. Ao final, cheguei até a cerâmica procurando uma entrega ainda mais consciente de conexão com meu corpo e outros materiais. Até hoje, uma linguagem misteriosa, prazerosa e totalmente inspiradora para mim... Seu ofício me fez entender ainda mais sobre minha capacidade como humana criadora e, até poderia dizer, artesã da vida. P - O que atravessa o seu processo criativo? Ao utilizar meu corpo como suporte e linha discursiva, eu integro minha vida, minhas memórias e minhas mutações em trânsito abordando identidade, memória coletiva, maternidade e a vida enquanto artivista e gestora cultural independente. Desfruto ser política por meio de meu corpo como mulher, artista e mãe migrante. Para mim a performance é uma ferramenta metodológica e integral que me ajuda a compreender meus contextos e meu papel como sujeito no mundo. Practicas de Reconocimiento Performance registrada em vídeo por Rodrigo Munhoz - 2' - 2020

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Meujaela Gonzaga @meujaela

Nasceu na cidade do Porto, Portugal. Tem literalmente jogado seu corpo no abismo criado entre indivíduo/natureza. É discente do Bacharelado Integrado em Artes da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Realizou a série de vídeos “Horizonte de exterioridade radical”, em 2020, através do Edital Sesc Cultura Convida, que se desdobrou por meio da Lei Aldir Blanc Pernambuco. Em 2019, esteve enquanto intérprete criadora e figurinista de “Por Onde Andam Os Porcos”, em cartaz na Galeria Janete Costa (Recife - PE) e no Teatro Sérgio Cardoso (São Paulo - SP), com direção geral de Iara Izidoro. Atualmente, desenvolve a pesquisa “Eixocu” a partir de residências de dança líquida realizadas na Chapada dos Veadeiros (GO) e na Chapada Diamantina (BA), além de estar dirigindo, em parceria com Heron Sena, a série visual “Cicitans”, de contação de histórias com a ebomi/griô Vovó Cici de Oxalá. P - Quais técnicas, linguagens e suportes despertam interesse em sua pesquisa? Meu corpo habita entre-lugares da performance, dança, cinema e artes visuais. As técnicas que me interessam são quedas, dança líquida, butoh, dança vertical, exaustão, giros, construção de esculturas com elementos da natureza e o cinema experimental como possibilidade de criação em meio à pandemia. Essas técnicas têm o transe como ponto de partida e me fazem acessar outras camadas da consciência para criar minhas obras. Entendo o corpo como um canal que pode ser atravessado por qualquer energia ou arquétipo: tudo que existe entre a vida e a morte pode adentrar no corpo quando se consegue esvaziá-lo completamente. Então essas técnicas servem para que eu esvazie meu corpo e, no transe, entre em catarse. P - O que atravessa o seu processo criativo? Meu processo criativo é completamente atravessado pela relação humano/natureza, percebo como esse binarismo é causador da maior parte dos problemas atuais e investigo isso. Não me coloco na tentativa de achar uma solução, mas sim de lançar o corpo nesse abismo e delirar a queda, sentir prazer ao cair. Fluir Site-specific registrado pelo Estúdio Orra para a banda CURA - 3'10'' - 2019

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