Desdobra 03

Page 1



Editorial

Nesta Desdobra, apresentamos a transcrição do episódio 2 da segunda temporada do podcast AFTA, com Marianna Melo, expógrafa, montadora de exposição, curadora e educadora, profissional fundamental para a realização de boa parte das ações culturais das artes visuais da cidade do Recife. Por fim, anexamos algumas fotos que registram os processos que atravessaram a exposição Propágulo 3, realizada entre maio e junho de 2019, por Guilherme Moraes. Os textos são revisados por Guilherme Moraes, Nathália Sonatti e Rod Souza Leão. O projeto gráfico é de Heitor Moreira com revisão de Rod Souza Leão. Os editores 01


Entrevista com Marianna Melo 2020 Entrevista realizada no segundo semestre de 2020. Heitor Moreira - Aqui em Pernambuco não se tem um ensino formal no campo da expografia. Então, queria que você contasse um pouquinho da sua trajetória: como você iniciou sua pesquisa e prática, e que caminhos você indicaria para quem está começando? Marianna Melo - De fato, aqui em Pernambuco não existe um espaço formal para pensar, refletir e aprender sobre expografia e montagem de exposição. Eu aprendi através da prática durante meu segundo estágio em uma empresa daqui de Recife, a Art.Monta, na figura de Eduardo [Souza]1, que, na época, era o diretor e dono da empresa. Foi com ele que eu aprendi muito 1 - Eduardo Souza (1975-2018) foi artista, professor de arte e designer de exposições, pós-graduado em Design da Informação/UFPE, graduado em Artes Plásticas/UFPE e com formação técnica em montagem de exposições/FUNARTE-RJ. Foi professor de museografia na Faculdade AESO. Idealizou a Art.Monta, empresa especializada na produção, design e montagem de exposições e eventos. Foi coordenador dos espaços autônomos de arte Peligro e Casa da Rua, além de um dos idealizadores do Risco! Grupo experimental de práticas em desenho e modelo vivo.

02


da prática de expografia e montagem de exposição. Na verdade, foi com ele que descobri que isso existia, porque a minha experiência com exposição, além de visitante, foi sendo mediadora no MAMAM (Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães), meu primeiro estágio na faculdade de Artes Visuais. E, como parte da equipe do educativo do museu, não participava do processo de montagem. Os educadores eram liberados e, quando a exposição estivesse pronta ou quase pronta, chamavam curador, artista e faziam um bate-papo com os mediadores. Obviamente, a gente já tinha recebido material sobre a exposição, sobre o artista e já estava estudando, só não tinha esse contato com as práticas da expografia e da montagem. Curiosamente, eu estava por lá um dia e estava rolando uma montagem. Fiquei observando de longe a dinâmica e fiquei super curiosa para saber como é que funcionava. Até então eu nunca tinha me dado conta do universo que era pensar a expografia e montagem de exposição, não sei o que passava na minha cabeça, devia achar que simplesmente você chegava na exposição e a galera só tinha pendurado os quadros na parede (risos). Então, foi no MAMAM que eu tive meu primeiro estalo e comecei a abrir os olhos. Fiquei muito curiosa vendo a dinâmica, vendo as pessoas conversando, acompanhando só de longe, foi quando eu fui procurar Eduardo e falei que gostei muito do que tinha visto e queria aprender, estagiar. Acabou que não surgiu a vaga para mim, outra pessoa ficou no lugar, só que eu não queria deixar passar, então, eu disse que topava estagiar, nem que fosse de graça e ele fez ‘‘massa, então, vem!’’. Comecei a estagiar lá de forma não remunerada no início, mas depois da primeira exposição, ele disse que eles queriam me pagar e que eu continuasse no trabalho. E foi isso, grande parte do que eu sei hoje é graças à Art.Monta e graças à figura de Eduardo.

03


Apesar de não ter um espaço formal de ensino e aprendizagem de montagem, há pessoas pensando de maneira não formal, digamos assim. A gente consegue ver, de vez em quando, um curso, uma oficina, sobre expografia, sobre montagem. Na época, Eduardo era muito atuante nesse sentido de formar pessoas, tanto na prática da montagem, como na formação em expografia. De fato, hoje a gente tem um déficit. HM - Você falou da importância da figura de Eduardo na sua formação, eu queria aproveitar esse gancho para perguntar exatamente: quais são as suas principais referências? MM - A expografia é tão escanteada... Assim, a gente consegue ter até referências teóricas, pessoas que escrevem sobre, tem a Sonia Salcedo2, uma grande referência brasileira. Ela, inclusive, é formada em arquitetura, pra você ver como não existe uma formação específica para atuar na área, não existe um curso que vai fazer com que você seja um expógrafo, por exemplo. Não sei se é afinidade ou interesse, sabe? Eu sou formada em Artes Visuais, tem gente que é formada em Arquitetura. E é doido a gente pensar em uma cidade do tamanho de Recife a referência ser somente Eduardo, ser a Art.Monta. Ao mesmo tempo, a gente criou uma cadeia que era dependente dele, né? Logicamente, ele é uma pessoa super admirada e referência, mas é muito raro ter alguém ocupando o lugar que ele ocupou.

2 - É artista, curadora e autora dos livros “Cenário da Arquitetura da Arte - montagens e espaços de exposições” (2008); “Poética Expositiva” (2011), “Asas a Raízes” (2015), “Arte de Expor - curadoria como expoesis” (2015); “Pontotransição” (2016) e “Da visualidade à cena: dimensões expositivas da arte” (2017).

04


HM - Para além de atuar em exposições independentes, você também experienciou esses processos dentro de instituições. Como é pensar o ato expográfico dentro das instituições culturais? Existe alguma diferença na hora de criar nesses espaços? Eu trabalhei em duas instituições: uma pública e outra privada. Na privada, era uma empresa, então a gente vendia algo, estava vendendo um projeto expográfico. Na instituição pública, era diferente, acho que, se não a única, a Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco) era uma das únicas instituições que tinham uma coordenação de expografia e montagem de exposição. E, na época que entrei, nessa coordenação ainda existia [a área de] produção, Heitor sabe disso, ele estava lá comigo, tinha design, expografia... enfim, era uma coordenação voltada para isso. Só que a gente acabava estando à mercê da curadoria do museu. Acho que não tem a ver com a instituição, necessariamente. Depende de quem está à frente da curadoria. Por mais que a gente fale que não existe hierarquia, a gente sabe que, na prática, há. Dessa forma, às vezes a curadoria fala mais alto, infelizmente. Guilherme Moraes - Queria entender qual seria para você esse processo de troca com a curadoria. Como é para você uma postura que valha a pena ser seguida enquanto curadoria, tendo em vista que você é uma profissional de montagem de exposição, de expografia? MM - O importante para mim é uma curadoria que dialoga, sabe? É muito bom você pensar na expografia junto da curado05


ria, não alguém que chega “Ó esse é o artista, esse é o texto, agora monta”. Quando você consegue pensar a expografia conversando, entendendo o trabalho do artista através da curadoria e/ou do próprio artista, é muito mais fácil, e acho que as coisas fluem muito mais. É quando você sente que você está fazendo de fato um trabalho. O trabalho da expografia depende da curadoria, então, acho que a gente precisa estar em sintonia. Não vou fazer uma exposição onde a curadoria pensa em uma coisa e a expografia vai trazer outra coisa, expografia também comunica. Quando falo diálogo, eu falo de uma construção conjunta, não quando alguém chega com tudo pronto para você diagramar no espaço. HM - Você já vem acompanhando o processo da Propágulo há um certo tempo e desde nossa terceira edição colabora conosco propondo projetos expográficos, sejam eles dentro de instituições, como foi o caso da nossa terceira edição, na Galeria Capibaribe CAC/UFPE, quanto em lugares não institucionalizados, como no caso da quarta edição, que foi em um estacionamento, um galpão no centro do Recife. Pensando nisso, quais são as principais potencialidades e desafios que você vê em atuar tanto em locais mais formais, como nesses locais mais inusitados, como a rua e o próprio galpão? MM - Eu acho que pensar em exposições para lugares informais como os que você citou, de rua, de galpão, a potencialidade é nesse sentido de que tudo é permitido, eu posso tudo. Ao mesmo tempo que a gente tem maior liberdade de pensar soluções para esses espaços que, às vezes, não são possíveis dentro da galeria, o desafio está aí, porque o nosso olhar está muito voltado para o espaço institucional, e, ao mesmo tempo que a gente tem a liberdade, a gente ainda está preso a uma lógica formalista. 06


HM - Acho também que você tem uma liberdade criativa muito maior, mas acaba encontrando uma problemática que é a questão dos recursos. Há a liberdade de ter ideias gigantescas e de fazer coisas incríveis, mas muitas vezes o recurso não acompanha. A grande questão é exatamente conseguir encontrar esses contornos de quanto você consegue criar e de quanto você consegue passar por cima desses desafios, em termos de orçamento, e conseguir dar forma a essa sua a ideia, a isso que você pensou e indo além desse olhar viciado da galeria. Rod Souza Leão - Em relação a isso da Propágulo 4, queria comentar que eu estava nessa parte de produção, na parte chata de liberar o dinheiro, dizer “Ó, isso está muito caro.”, “Isso aqui vai rolar!” e foi um desafio como um todo esse espaço, pegar um galpão e reconstruir ele, principalmente pensando no prazo. Pensando em uma lógica de espaços que não têm a estrutura para receber arte, ou uma estrutura minimamente planejada para receber pessoas, isso acaba demandando muito mais recursos, tanto de energia para você pensar em outras criações, quanto para você se deslocar e ter que montar muitas coisas a partir do zero. O que é massa das instituições culturais é justamente esse certo conforto, né? Você sabe que já vai pegar paredes, você sabe que aquelas paredes são confiáveis, você pode simplesmente pintar, você pode fazer uma exposição que vai durar mais tempo. E quando a gente parte para o informal, a gente tem muito essa liberdade de experimentar mesmo, de criar espaços que tenham uma proposta diferente em relação ao design e à expografia. Mas é muito naquilo de até onde a gente consegue ir nesse espaço e até onde vale a pena. MM - Acho que isso é um fator importante: o recurso ou a falta dele. É super importante ter, mas eu acho que, no final das contas, uma 07


boa expografia não é definida pela quantidade de verba destinada a ela, sabe? Acho que é importante ter, sim, obviamente, não é isso que eu quero falar, mas dá para pensar coisas incríveis com muito pouco. Mas é lógico que a gente quer trabalhar da melhor forma possível. GM - E ser pago. Até porque, em alguns momentos no independente, acontece de a gente abrir mão dos nossos próprios recursos para ter uma coisa melhor resolvida. Muito legal você falar do vícios formalistas da galeria, como se quando a gente tivesse a oportunidade de testar, acabamos indo para uma zona de conforto, pensando um sistema higienizado dentro de outros espaços que a gente poderia estar ousando mais e até questionando essa linguagem legitimada da exposição. Teve uma coisa que Rod falou, a questão da parede, que eu queria aproveitar para fazer um comentário. Na live do Sesc3 que você e Ariana [Nuala]4 fizeram, falou-se dessa questão de habitar o espaço institucional e, dentro desse espaço institucional, problematizar a lógica na qual ele acontece. Vocês exemplificaram com a montagem e expografia realizada em “Estratégias para o contorno”, exposição do XI Único [Salão de Arte Contemporânea] do Sesc, curada por Ariana, e achei incrível uma expografia 3 - #CulturaEmRedeSescPE​- LIVE Caminhos expositivos: Discutindo possibilidades | 01/09/2020 4 - Ariana Nuala (1993) é educadora, pesquisadora e curadora. Formada em Licenciatura em Artes Visuais pela UFPE, foi coordenadora do Educativo no Museu Murillo La Greca. É assistente de curadoria do Instituto Oficina Francisco Brennand. Coordena a Plataforma e Residência Práticas Desviantes, é integrante e curadora dos coletivos CARNI — Coletivo de Arte Negra e Indígena e do Trovoa. Participou como residente do Valongo Festival e foi curadora da mostra Estratégias para o Contorno no XI ÚNICO pelo SESC PE. Foi co-curadora da Propágulo 3, curadora da Propágulo 4 juntamente com Oura Aura Nascimento, Bros e Guilherme Moraes, e é conselheira editorial das edições 5, 6 e 7 da Propágulo.

08


em que vocês assumiram a parede e criaram uma estrutura para além dela. A exposição acontecia no espaço. Como foi pensar nesse processo e com ela? MM - Ariana estava na curadoria e Iagor Peres5, que inclusive participou da quarta edição da Propágulo, estava pensando comigo a expografia. Foi engraçado, porque foi muito rápido o estalo para pensar nisso. Quando Ari falou do título da exposição e a gente leu o texto, pensamos logo em como contornar. A gente estava falando de estratégias de contorno e a gente estava dentro de um espaço institucionalizado, mas essa primeira ideia, que foi de não usar o espaço da instituição, já aconteceu na primeira conversa que a gente teve. Não sei se é porque na época eu estava lendo sobre expografia para terminar meu TCC e estava falando da lógica do cubo branco, e eu pensei “vamos usar a lógica do cubo branco e negar ela”. Depois a gente foi afinando, afinando... A expografia não é totalmente prática, mas às vezes eu enxergo de uma forma muito prática. HM - Eu acho que é todo esse acúmulo de conhecimento, de referência, que te possibilita ter esse olhar prático e quase que rápido. Porque não é como se você tivesse construído isso hoje. Agora não enquanto designer ou pessoa que está dentro dessa cadeia das artes visuais, mas eu falo como espectador, uma coisa que me incomoda muito é o uso de vitrine, de cúpulas, quando associado a obras que são pensadas exatamente nessa relação com a pessoa que está ali a 5 - Iagor Peres (1995), vive e trabalha em Recife. É membro do coletivo CARNI – Coletivo de Arte Negra e Indígena. Pesquisa densidades e substâncias visíveis e invisíveis que compõem as relações no espaço, utilizando matérias sintéticas e orgânicas e partindo da perspectiva como corpo racializado. Está atento a processos de formação do imaginário e a arquitetura, buscando práticas híbridas para compor processos de criação e assim imagear esculturas, telas, videoinstalações, performances e textos.

09


experienciando. Então, por exemplo, os livros de artistas que são expostos sem levar em conta o toque, o folhear, enfim, quando entram nessa cúpula, que impede esse contato, eu sinto que muito da relação desse trabalho se perde ali. Como é o caso dos “Bichos” de Lygia Clark mesmo, que é um trabalho que foi pensado nessa construção com o espectador e hoje por esse trabalho ter passado por uma sacralização imensa, ele quase sempre é exposto de uma forma onde não existe esse contato proposto pela artista. E é lógico que eu sei que isso vem por questões de fragilidade do material, segurança do objeto, enfim. Mas é algo que eu fico pensando em como chegar em algum lugar que contorne isso. MM - Essa discussão acontece muito, não sei nem se eu tenho propriedade para falar, porque eu também acho que em algumas circunstâncias eu sou contra, a não ser que a intenção seja de fato sacralizar o objeto, porque eu acho que é o que acontece quando você coloca um objeto dentro de uma cúpula, em uma vitrine, e ele não pode ser tocado. Acho que perde o sentido. É como você pensar Cildo Meireles, aquele projeto “Inserções em circuitos ideológicos” que é um trabalho que foi feito para circular, e você o coloca dentro de uma exposição, de uma galeria que está ali para você passar e ver, então, acho que perde um pouco do sentido de fato. Eu não curto, acho que depende de obra para obra. É compreensível que isso aconteça com algumas, por exemplo os “Bichos” da Lygia Clark, que você citou. Mas até que ponto a obra continua sendo a obra se eu não posso tocá-la? GM - Eu já fui para uma exposição que tinha a réplica desse trabalho dentro de uma cúpula, então nem na réplica eu podia mexer...

10


MM - Teve uma vez, em uma exposição, que aconteceu a coisa mais absurda, colocaram dentro de uma cúpula uma tese de doutorado, acho que tinha acabado de sair. Isso fala muito sobre o vício do cubo branco que a gente tinha comentado. HM - E tu levantou uma questão logo no começo da tua resposta que eu nunca tinha parado para pensar, de quando a cúpula é colocada com a intenção exatamente de sacralizar o objeto. O fato dele ocupar esse local de vitrine tem todo esse imaginário, esse mistério em volta que gera isso de ser um objeto que precisa ser protegido. Então, isso é mais um elemento da construção dessa narrativa. MM - É muito complicado como a gente enxerga ainda, acho que é um problema museológico. Por mim, a gente poderia quebrar. Porque a ideia é a mesma, é o que vale. Então, pode fazer mil daqueles, o sentido, a intenção, não muda. RSL - Eu acho que vai muito do objetivo da construção da exposição, se é preservar a materialidade daquele trabalho ou se é garantir as experiências que o espectador vai ter a partir do que está exposto. O que às vezes acaba gerando esse bloqueio, a pessoa entende que aquilo está em um ponto muito isolado e não é algo para se relacionar, é algo para se ver de longe, gerando essa lógica de afastamento da arte como algo cotidiano, como algo público. HM - Mari, a expografia me parece muito um campo de negociação, porque envolve negociar e encontrar o intermédio entre o que o artista imaginou enquanto proposta para o seu trabalho e as ideias traçadas pela curadoria. Queria saber como é que você se relaciona com o artista nesse sentido, quando está trabalhando com ele, com um artista vivo que está presente no espaço. 11


MM - Na maioria das vezes, o diálogo é muito mais com a curadoria. Apesar de eu tentar da minha maneira. Inclusive, na própria Propágulo, se a gente for parar para pensar, eu não conhecia nenhum artista da terceira edição. Assim, eu conheci através da curadoria, então já era um olhar enviesado. Obviamente, quando se tem a oportunidade, é sempre bom trocar ideias com o artista, e depende da exposição, porque eu já participei de exposições em que nunca vi nem a cara do artista, para você ter ideia. Acho que a curadoria ainda consegue ficar muito à frente, nesse sentido. GM - Uma coisa que mudou da Propágulo 3 para a 4 foi a gente montando os trabalhos junto com os artistas e se reunindo com eles. Ficou muito na minha cabeça o momento em que a gente estava discutindo o trabalho de Lizandra [Santos]6 e chegou em alguma questão, a artista perto, ouvindo o que a gente falava, e a gente se perguntando se estava bom ou se não estava, e você virou e disse “O que a artista acha?”, eu achei aquilo maravilhoso. Essa sensibilidade sua de ouvir muito e de entender até onde tensionar a partir das lógicas que o artista está propondo. Isso é uma coisa que eu aprendi muito com a tua prática. MM - Que honra! Eu acho que é importante a gente descentralizar, pelo menos eu tento, na minha prática. Sou eu que estou pensando a expografia, mas ela não precisa se centrar em mim. Mais uma vez eu uso a palavra diálogo, porque é isso, não tem como fazer uma boa expografia sem dialogar com ninguém. Mas a Propágulo 4, de fato eu acho que foi uma das exposições em que eu mais vi participação de todo mundo. Foi incrível a experiência, inclusive, não sei 6 - Liz Santos (1988) trabalha com desenho, pintura, modelagem em barro e resgates afetivos e documentais de peças de herança e acervo familiar. É de Surubim, município do Agreste de Pernambuco. Em suas séries, é atravessada por narrativas que envolvem moral, religião e aspectos ditos femininos na perspectiva do pensamento interiorano.

12


nem se considero que eu fiz a expografia. Pelo menos, não sozinha. No sentido de pensar em conjunto, é o melhor exemplo que eu posso dar na minha prática, porque foi uma construção extremamente coletiva, até na live que eu e Ari fizemos pelo Sesc acho que comento sobre a solução do trabalho de Dani [Guerra]7. Estávamos “O que a gente vai pensar para expor esse trabalho?” e na reunião da Propágulo tinham mais cinco ou seis pessoas pensando coletivamente e chegamos em uma solução. O lugar ideal da expografia era um espaço que dialogasse com artista, curadoria, mediação, produção, todo mundo faz parte, no fim das contas. RSL - Mas eu acho que a autoria da sua expografia talvez esteja exatamente no espaço que você dá para o diálogo. Acho que é muito importante, a gente acaba tendo processos muito mais ricos quando a gente ouve. Para tu ter esse brainstorm, essas ideias, é muito importante também estar nesse espaço de escuta. A partir do momento que você assina a expografia, está dizendo “vamos quebrar essas barreiras e construir isso juntos. O que estou propondo enquanto ponto sensível aqui na minha expografia é essa construção coletiva”, mas você é a pessoa que tem um repertório muito maior, que cria soluções que quem não trabalha com isso provavelmente não vai ter tanta facilidade em pensar. Nathália Sonatti - No seu encontro com Ariana Nuala promovido pelo Sesc, que já foi citado algumas vezes, você fala um pouco da tua visão da expografia como comunicação. Você pode comentar um pouquinho sobre isso?

7 - Dani Guerra (1990) além de artista, trabalha com arte/educação, curadoria e cenografia. Possui um processo pautado na experimentação, em um laboratório de trocas e misturas de linguagens. Em seus caminhos, transfigura e reconfigura processos políticos, corpos, temporalidades, escritas, traumas, cansaços, travessias e afetividades.

13


MM - Eu acredito que a expografia é um recurso de comunicação e de mediação. Assim como o texto e a obra comunicam, o pensar espacial também comunica, o pensar materialidade, pensar se a obra vai estar na vitrine, como a gente tinha até falado antes, também comunica. Então acho que é nesse sentido mais amplo, de eu ter noção de que tudo que estiver no espaço vai comunicar algo. NS - Existe uma visão da comunicação às vezes muito como algo ligado ao utilitário, de ser útil, de estar prestando uma informação, mas a comunicação tem outros eixos, também envolve subjetividade, e subjetividades são construídas de várias formas, até mesmo quando se pensa espacialidade. MM - É engraçado às vezes como algo pode comunicar, mesmo quando a gente não tem a menor ideia. Assim como tudo comunica. Inclusive, às vezes você entra em uma exposição e o segurança está lá. Isso comunica, não comunica? NS - E acho que isso da comunicação também, pensando o que a exposição quer propor, tem uma ligação muito direta com o público, com as pessoas que vão transitar naquele espaço, se vai ser um lugar onde ela se sente confortável ou não recebida, e se esse não confortável é algo da exposição ou é algo que não foi pensado. MM - Às vezes, inclusive, de coisas simples, por exemplo: a diferença entre uma exposição que tem um banco e outra que não tem, a gente meio que não permite que a pessoa esteja e fique, permaneça. Até que ponto eu crio mecanismos para as pessoas estarem e ficarem? Tem coisa que pode ser resolvida de forma muito simples. 14


GM - Inclusive, foi algo que você fez questão que tivesse na Propágulo 3, as almofadas. Lançamos a exposição sem almofadas e depois elas mudaram completamente a maneira como as pessoas se relacionavam com as obras e com a Galeria. MM - Só um exemplo de como pensar sobre o espaço pode estar agregado a outras coisas. A gente precisa também estar muito consciente quando vai pensar na questão de acessibilidade e segurança, tanto da obra, como do público. Tem como se fosse uma convenção: a obra estar sempre na altura de 1,45m a 1,50m, porque é uma altura que está no cone visual de criança, de idoso, de cadeirante, enfim. Não há regra, sabe? Tem uma convenção e a gente utiliza, mas talvez tenha a obra que peça 3m e que fique a uma distância, porque a intenção é que eu veja de baixo, veja de longe, mas, em relação à acessibilidade, o máximo que a gente possa fazer para a exposição ser acessível é importante ser feito. RSL - Para além dos trabalhos de arte colocados, o projeto expográfico é também responsável por criar algumas narrativas a partir de cada exposição, entendendo a exposição enquanto corpo individual. E a expografia entra nessa parte de solucionar muitos pontos no ato de expor, mas também tendo esse aspecto discursivo proposto, e eu enxergo que essa prática se aproxima também de muitos debates parecidos no campo do design. Queria saber se você enxerga semelhanças e diferenças nesses dois fazeres, design e expografia. HM - É engraçado, porque existe um campo do conhecimento que é design de exposições, você tem essa nomenclatura para isso. Então, como Mari estava falando, existe um manual de boas 15


práticas dentro do design para pensar projetos para mídias externas, internas, projetos que são aplicáveis em paredes, projetos em pequena escala, em grande escala... Vão desde questões mais básicas de design, como contraste: você não vai colocar uma parede laranja com um texto em sign vermelho, porque você sabe que vai ter quase nenhuma leitura já que vermelho e laranja não têm contraste. Ou então você sabe que existe um tamanho mínimo da tipografia a ser aplicada, porque até certa distância o espectador não vai conseguir ler, ele vai precisa chegar muito perto da obra, o que muitas vezes nem é possível dentro dos museus e instituições. Isso que Mari estava falando da altura dos olhos é algo que cruza muito bem a expografia e o design, essa coisa de você pensar a acessibilidade dentro do design, utilizar um tamanho de fonte que favoreça um melhor acesso daquela informação a pessoas com deficiência. O design, assim como a expografia, funciona enquanto linguagem, comunicação, portanto acho fundamental ser atrativo. Não que isso seja uma regra, não acho que o design precise sempre passar exatamente o que a exposição se propõe, até porque acho que isso é uma utopia, não sei se isso é 100% ajustável, 100% alcançável. MM - Sim, concordo. Heitor colocou muito bem algumas semelhanças, principalmente quando ele fala na intenção de se comunicar. Na expografia, assim como no design, se a intenção é comunicar, eu preciso comunicar claramente não importa o quê, não importa como, mas precisa estar claro. Não sei se precisa ser funcional, necessariamente. Acho que pensar em expografia está para além de pendurar quadro na parede, é pensar na narrativa. É impressionante o que você pode fazer quando você 16


vai pensar uma exposição, porque é tão louco pensar espaço que se eu quiser posso criar uma exposição na qual o visitante veja uma obra depois de outra, que tenha uma sequência cronológica, digamos assim. Isso pode ser feito a partir do espaço. RSL - Toca muito nessa questão que Gui tinha mencionado sobre as relações da expografia com a curadoria, que eu acho que é bem importante entender essa atividade enquanto algo que vai muito além da instrumentalização. Nas experiências da Propágulo, foi algo que me surpreendeu muito as soluções que tu propôs. A exposição do trabalho de Lizandra, que também foi pensada com a artista, foi muito incrível para mim ver aquilo pronto, porque me remeteu a questões tão sensíveis... Parecia que eu estava dentro de uma casa, sabe? Parecia que era um espaço muito confortável, eu via aquele trabalho em um local que ele parecia se sentir confortável enquanto trabalho. MM - Eu acho que um grande problema são os artifícios artificiais, por exemplo criar uma rua dentro do espaço. É algo tão artificial... Acho que não tem erro, tem intenção. Eu posso não gostar, mas são intenções e são formas de expor no final das contas. Inclusive, tem altos debates sobre isso, por exemplo tem a Bia Lessa8, que é odiada por uns e idolatrada por outros, que eu acho meio problemática, porque ela vai para a espetacularização da arte, é meio “museu espetáculo”. A gente pode pegar o exemplo 8 - Bia Lessa (1958) é diretora de teatro, cenógrafa e artista multimídia. Foi responsável pelo Pavilhão do Brasil na Expo 2000 na Alemanha, pelo módulo do Barroco nas comemorações de 500 anos do Brasil, e pela realização no Salão nobre da ONU do espetáculo “The second Unveiling” a partir da obra de Candido Portinari. Realizou exposições como “Brasileiro que nem eu, que nem quem”, “Claro e Explícito”, no Itaú Cultural e “Grande Sertão Veredas”, na Inauguração do Museu da Língua Portuguesa.

17


do Paço do Frevo9, no qual foi criticada a relação de como os estandartes estão sendo exibidos, porque eles estão no chão, mas não foram feitos para isso. São escolhas, e não é que esteja errado, necessariamente. Tem pessoas que falam que o problema das exposições chamadas “espetáculos” é que no final das contas a obra é pano de fundo. Queria lembrar também quem fala isso, que uma boa expografia é quando ela não é percebida, o que eu também não sei se eu concordo, porque são dois extremos, em um ela se sobressai e na outra ela não é percebida. HM - O papel do expógrafo, através do pouco contato que eu tive, parece quase como esse grande megazord do sistema de arte, uma prática que atravessa desde curadoria, arquitetura, design, entender de prego e parafuso, a relação do corpo no espaço… Como é para você conciliar todos esses saberes enquanto expógrafa? MM - Heitor, sinceramente, eu acho que só agrega. Curiosamente eu estou fazendo um curso de marcenaria agora, nem quero ser marceneira, mas eu acho que é importante. Porque a gente está projetando coisas o tempo inteiro: vitrine, parede, suportes. Acho que é importante saber como aquele material vai se comportar, pensar melhor a solução. Obviamente, não acho que é obrigatório entender essas coisas para pensar uma expografia. Acho que é importante você ter conhecimento, o mínimo de conhecimento. Eu jamais vou pensar como o marceneiro que trabalha 9 - O Paço do Frevo é um espaço cultural dedicado à difusão, pesquisa, lazer e formação nas áreas da dança e música do frevo localizado na cidade do Recife. Surgiu através de uma parceria entre a Prefeitura do Recife, a Fundação Roberto Marinho, o IPHAN e o Governo Federal. Inaugurado em 2014, o Paço do Frevo tem museografia assinada por Bia Lessa.

18


cotidianamente com isso, mas acho que é importante a gente ter noção. Eu gosto disso de você precisar estar alinhado com diversos saberes. Algumas exposições que eu participei em montagem ou produção, não tem ninguém que faz expografia e coloca a mão na massa não, a galera está só para mandar. HM - Para finalizar, queria que você indicasse algumas pessoas, projetos e/ou iniciativas para a gente. MM - A gente falou uma hora de manual, no site do IPHAN, por exemplo, tem uns cadernos de curadoria, mediação e expografia que são bem interessantes. Acho que é uma boa partida, porque eles vão mostrando os processos, pensar circulação, pensar suporte, pensar as partes do design, ele vai destrinchando — não falando o que você tem que fazer, mas para o que você precisa estar atento. Quero frisar que acredito que não existe erro. Acho que uma expografia só erra quando a intenção é uma e o caminho é outro, sabe? Quando a expografia está em diálogo com a intenção da curadoria, acho que ela pode fazer o que ela quiser, ela pode colocar o trabalho na parede, na vitrine, desde que seja a intenção. Eu acho que o ruído só se dá aí, quando você quer, sei lá, criar uma sala que representa o céu e pinta tudo de vermelho, sendo bem simplista...

19


Exposição Propágulo N°3 Maio - Julho

2019

Fotografias tiradas entre maio e julho de 2019, com os processos de montagem para a exposição Propágulo 3: fotografia e identidade, lançamento da terceira edição da revista Propágulo, por Guilherme Moraes.

20


21


22


23


24


25


26


Apoie a Propágulo Fazendo parte da Propágulo Assinatura você viabiliza a manutenção de todas as nossas ações e ainda recebe acesso a conteúdos exclusivos disponibilizados toda semana: AMIGOS PRÓXIMOS DO INSTAGRAM

SEU NOME NA REVISTA

Acompanhe de perto nossa rotina de trabalho e saiba das novidades em primeira mão.

Tenha seu nome dentro das edições impressas da revista Propágulo.

CLUBE DE LEITURA E DEBATE

ZINE DESDOBRA

Junte-se aos encontros de conversa, movidos a partir de textos e materiais selecionados, com nossa equipe, artistas, pesquisadores e interessados em arte.

Nossa zine trimestral onde publicamos na íntegra as melhores entrevistas que realizamos para a Revista Propágulo e contamos os bastidores dos nossos processos de criação

PODCAST AFTA

MÚLTIPLO DE ARTE

Fique por dentro dos debates que atravessam a cadeia das artes visuais a partir de conversas mediadas por nossa equipe e convidados especiais.

Receba em casa uma obra de arte numerada e assinada por nossos artistas parceiros (em serigrafia, risografia, gravura, entre outras técnicas) a cada dois meses.

Saiba mais no site

→ catarse.me/propaguloassinatura


Realização

Design

Propágulo

Heitor Moreira Rod Souza Leão

Revisão

Colaboradores

Guilherme Moraes

Marcela Dias

Nathália Sonatti

Marianna Melo

Rod Souza Leão

Mariana Leal

propagulo

propagulo.com.br

propagulo@gmail.com

Rua João Barbalho, 198 - Casa Amarela - Recife - PE



Incentivo: Este projeto foi incentivado pelo edital de premiação da lei Aldir Blanc


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.