Revista Propágulo 5

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Equipe Bruna Pedrosa: produção executiva Guilherme Moraes: curadoria, educativo, editoração, revisão e mídias sociais Heitor Moreira: projeto gráfico e design digital Nathália Sonatti: editoração, coordenação editorial e revisão Rodrigo Souza Leão: divulgação, produção de eventos e design digital André Santa Rosa: redação (convidado) Ian Manor: desenvolvimento web Joseildo H. Conceição: redação (convidado) Júlia Lyra: redação (convidada) Júlia Melo: redação (convidada) Karolina Santana: desenvolvimento web Mariana Melo: expografia (convidada)

Conselho editorial Ariana Nuala Chico Ludermir

Moacir dos Anjos Valkiria Dias

Colaboradores Adriano Marcusso Clara Moreira Eduardo Nóbrega Filipe Aca Ianah Maia propagulo

Isabella Alves Julia Moreira Marlon Diego Mayara Bione

Nomes Pedro Mooniz Raphael Malta Rayana Rayo

propagulo

propagulo@gmail.com

Revista semestral, Recife - PE, ISSN 2596-2213


Quais as consequências da suspensão social de 2020 para aqueles que trabalham com arte? O que nós, enquanto classe artística, trazemos como aprendizado após esse período conturbado que se soma ao vasto pavilhão de aberrações que nos é proposto? Quem deve garantir e assegurar a produção, a pesquisa e o amplo acesso aos bens culturais? Falar de um assunto como esse é, também, pisar em ovos de cascas finíssimas. É que o sistema de interações nas artes se dá de forma extremamente heterogênea. Justapondo narrativas, podemos tatear nesse vale polifônico onde classe, gênero, etnia e linguagem se interseccionam e resultam em territorialidades muito distintas. Convido-o, leitor, a uma experiência agridoce desta vez. Que tal deixar ideias de dom e talento um pouco de lado, ou colocá-las em uma nova perspectiva, quem sabe? Quando falamos de uma classe artística, dialogamos com esforços e acessos muito, mas muito distintos uns dos outros. Referimo-nos a uma colcha de retalhos esgarçada. Preste atenção nos retalhos, mas também atente aos rasgos, às falésias. Quando falamos de incentivo à arte, nos referimos a uma cultura que pode flertar com a instrumentalização do capital privado. Quando falamos de incentivo à arte, também nos referimos a uma trajetória de descontinuidades de políticas públicas, um Tetris meio torto, de peças derrubadas em si mesmas. Quando falamos de instituição, conversamos sobre articulações de pessoas, de violências históricas e de esforços homéricos de sobrevivência. Quando falamos de Pernambuco, falamos de uma diversidade absurda de discursos e linguagens, de evasão para circuitos mais estruturados e de teimosia. Falamos de relevos profundamente contrastantes. Em resumo: forma, continuidade e contexto estão sempre amalgamados. É preciso coragem para continuar fazendo arte, sejam quais forem as paisagens em que se habite. Esta edição é resultado de distintos processos de vontade e insistência. Com atenção, pode-se perceber força nos percursos dos mais variados gestos. Com atenção, pode-se perceber os diferentes terrenos onde esses caminhos se desenrolam. Guilherme Moraes


Sumário

06

Julia Moreira

32

Nomes

08

Rayana Rayo

42

Pedro Mooniz

16

Isabella Alves

44

Eduardo Nóbrega

18

Clara Moreira

55

Galeria

30

Ianah Maia

63

Colunistas



Julia Moreira @moreirajuliarego

Perfurantes 2017


coluna

07


RAYANA RAYO

por Júlia Melo Tem 20 anos e é estudante de Jornalismo na UFPE. Quando criança inventava jeitos de escrever fora da escola, seja um poema ou livros nunca terminados. Hoje, vive atrás das brechas entre a faculdade, as comédias românticas e o estágio para continuar contando histórias.


Detalhe de Paralelo

Imergir no mundo de Rayana Rayo é como nadar dentre formas geométricas particularmente coloridas que às vezes sustentam figurativos, mulheres que surgem deitadas no meio de um mar de quadrados, retângulos e cilindros, ou junto de um jacaré, ou no meio de pedras e plantas com um bebê na barriga, ou no colo. Conversar com ela foi como rolar a tela de seu Instagram para baixo e conhecer camadas e camadas que formam uma superfície presente nos seus trabalhos. A primeira coisa que noto é a mudança das formas com o passar do tempo. As publicações mostradas no topo trazem grandes representações da abstração geometrizada de Rayo, que tem se descoberto no muralismo. Durante a descida das fotos, vemos a geometria colorida de hoje já ter contracenado com seres humanos e animais, até

atingir-se uma época na qual o figurativo com apenas homens e mulheres era protagonista de tudo. “Comecei a desenhar pessoas no Risco! com o estudo de modelo vivo. Como utilizava um papel grande, senti a necessidade de desenhar um fundo, porque eu só fazia as pessoas soltas na folha. Pensei num fundo geométrico e, a partir daí, ele tomou conta e as pessoas foram embora”. Essa mudança é só uma de muitas que permeiam a vida e a arte de Rayo. O perfil que se movimenta apresenta a variedade de superfícies as quais já receberam seu traço: parede, tela, placas de acrílico, tecido... Adaptar as formas para cada uma dessas plataformas é abraçar a constante possibilidade de mudanças. A artista não tem medo de transformar-se e passar por mutações profundas.

 Grupo experimental de desenho com modelo vivo, entrevistado em nossa primeira edição.


Estrogênio - acrílica sobre tela - 2018 - 59 x 80cm


Ela me contou que, em um momento de divagação há alguns meses atrás, se viu como uma pantera bailarina. Acho que toda pantera é, necessariamente, uma bailarina: movimentam-se de forma ágil, mas sem perder a delicadeza e uma certa elegância. Ao mesmo tempo, são quase opostas: as panteras, assim como todo animal selvagem, correm livres pela natureza, enquanto a bailarina é disciplinada, focada, segue uma música e executa cada passo dentro do ritmo. Rayana teve contato com arte desde pequena, já que seu pai, o também artista Zé Carlos Viana, incentivava os filhos a fazerem experimentações através do desenho. Mesmo gostando desse mundo, escolheu ser advogada: essa foi a parte mais bailarina de sua vida, quando seguia à risca os passos necessários para um futuro idealizado. Advogando e com uma vida confortável aos 26 anos, começou a se entregar pouco a pouco à liberdade que a criatividade trazia. Ser pantera parecia um sonho cada vez mais tangível. Um dia, roubaram seu carro e, com o dinheiro do seguro, se jogou de vez nas suas produções. Logo quando começou a se dedicar por inteiro aos seus processos criativos, Rayo cultivou um contato íntimo com os desenhos. Ela anotava cada parte do processo, o que curtia, o que dava certo e o que não dava. A arte ganhou essa dimensão de autoconhecimento e esse fazer se enraizou no seu subconsciente a ponto de suas produções contarem coisas que ainda não estavam na superfície do racional. “Eu fiquei grávida em Fortaleza e não sabia. Nesse processo, 11


Pedra de Raio - acrílica sobre tela - 2018 - 50 x 40cm


“É preciso ser um pouco bailarina para ser mulher, artista e mãe.” fiz 5 telas e parecia estar falando pra mim disso. E aí descobri que tava mesmo”. Todas as obras feitas nesse período intenso incluem ovos diversos e olhos observando de dentro pra fora. São naturezas vivas, paisagens dentro de um corpo, órgãos múltiplos cuidando de um zigoto, que carrega o universo inteiro. O nascimento de Cícero aconteceu em dezembro de 2018 e dividiu a vida de Rayo em duas partes: Antes de Parir e Depois de Parir. Ela começou a encarar sua arte como modo de subsistência. É o fim do deslumbre da vida de pantera: é preciso ser um pouco bailarina para ser mulher, artista e mãe. A principal questão da vida de Rayo passou a ser o tempo. As criações agora acontecem entre os pequenos espaços vagos proporcionados pelos cochilos de Cícero. Ela trabalha com a mão-livre, sem rascunho e,

como o muralismo domina o seu fazer atual, as produções mais recentes foram feitas na hora, por formas que tomaram a parede naquele instante. Nos futuros planos, temos a aguardada entrada de Cícero na creche em agosto de 2020, um mestrado que vai fugir das leis estudadas na graduação, peças feitas no tear — que ela afirma estar tentando lutar para aprender — e muitas surpresas coreografadas de um jeito que só uma pantera bailarina consegue fazer.

@rayanarayo 13



15

Paralelo - acrílica sobre papel - 2018 - 73 x 103cm


Isabella Alves @amulherferida

eu me abismo eu meu abismo - 2019


coluna

Chocando o ovo do cuco - 2020


Instintos Coordenados - lápis de cor sobre papel de algodão - 2019 - 100 x 70cm


CLARA MOREIRA por Júlia Lyra

Tem 21 anos e é estudante de jornalismo pela UFPE. Escreve e gosta de contar histórias, seja do outro, seja de si a partir dos outros.

“Isso aqui tá foda. Teve um dia que choveu e tava respingando no desenho, aí improvisei uma proteção. Tá trash, mas até que foi bom, porque eu fiquei com a mesma iluminação de dia e de noite”. Essa não é a primeira vez que Clara Moreira teve que ir do acaso à (re)invenção. Aos 35 anos, a desenhista pernambucana tem formação em arquitetura e já foi de tudo um pouco: urbanista, acadêmica, professora, assessora parlamentar… Mas hoje o que ela faz questão é de se apresentar como aquilo que, na realidade, sempre foi — artista.

Para além das dificuldades de abandonar a “profissão principal” de arquiteta pelo suposto hobbie, que era o desenho de cartazes, sobretudo, Clara entende que o se enxergar enquanto profissional é um processo longo e custoso para aqueles que trabalham com arte. A desenhista acredita que isso acontece porque paira sobre a figura um mito; uma crença numa luz imaginária e acesso ao divino, ao mesmo tempo em que não é preciso — ou não somente — diploma, formação ou validação externa para o reconhecimento de um artista. “Tem que passar por você”, reforça. 19


Sem título - lápis grafite sobre papel de algodão - 2017 - 28 x 19 cm


Arrodeios e outras pausas Mas essa percepção aguçada não veio por acaso. Na realidade, já havia uma “veia artística” na família, passada de sua avó paterna, Marieta, para o pai, Álvaro. Nutrindo as mesmas afinidades com o teatro, a música e a poesia, ambos compartilharam da impossibilidade de viver de seu fazer artístico em razão da condição socioeconômica. Para Marieta, o destino foi comum ao de muitas mulheres da época: não pôde estudar, foi ser dona de casa. Já para Álvaro, o nascimento dos três filhos foi o que o fez deixar de lado a sua produção artística — composição, dramaturgia, escultura e pintura a óleo — para trilhar outros caminhos em um cargo público concursado. A não concretização do fazer profissional, por outro lado, não apaga ou diminui a essência artística dos familiares de Clara, como ela bem faz questão de ressaltar. “É muito difícil ser artista se você tem que lutar para ser. Às vezes acho que se você já tem algum tipo de privilégio, ajuda. Meu pai não teve.”, explica. Entretanto, foi a partir do estímulo dele, “que não pôde ser e queria que eu fosse de algum jeito”, que iniciou a sua imersão no mundo do desenho. Com as técnicas repassadas desde muito cedo pelo pai — como a perspectiva e o pontilhismo, além do uso de nanquim e tinta a óleo — e, ao

mesmo tempo, pela formação crítica da mãe pedagoga, Clara foi apurando o seu olhar sobre o lugar no qual habitava. Inquieta, convivendo com o limite suburbano da cidade, num Engenho do Meio semi-rural, escolheu o curso de Arquitetura, “por incrível que pareça, não buscando o desenho” e, sim, movida pelo interesse em sociologia e teoria urbana.

Prelúdio das imagens Enquanto aprofundava os conhecimentos em legislação urbanística, Clara conta que, por outro lado, nunca havia abandonado o desenho ou a cinefilia. Por isso, já no início da graduação, passou a frequentar o Cineclube Barravento, que contava com sessões semanais de curtas-metragens organizadas por alunos da Universidade Federal de Pernambuco. Com intensa participação nas sessões e discussões que ocorriam após, ela conheceu 21


Sem título - lápis de cor sobre Sem título - lápis de cor papel de algodão - 2017 sobre papel de algodão - 2017



Ilustração feita para o cartaz do XII Janela Internacional de Cinema do Recife - 2019

os então organizadores do cineclube. Pouco tempo depois, acabou encontrando uma “brecha”, motivada pela saída do integrante responsável pela confecção dos cartazes, para unir os seus dois grandes hobbies. Foi assim que a artista passou a fazer os seus primeiros cartazes de filme, até que os estudantes foram se tornando “cineastas, curadores, produtores de festival e eu continuei fazendo os cartazes para eles”. Não por acaso, boa parte da sua produção está atrelada ao cinema, e totaliza o impressionante número de 70 cartazes. Pela extrapolação de um vínculo afetivo em prática profissional, ela defende: “a minha formação artística está na relação com o cinema”. Além de (re)colocá-la como desenhista, Clara atribui à sétima arte uma correlação com o seu olhar para o desenho, que desemboca no fazer. “Meu jeito de criar imagens tem muito a ver com o cinema como experiência artística e plástica, experiência estética”. Perguntada sobre o seu processo criativo, ela descreve que, nos casos de encomendas de cartazes, geralmente assiste ao filme, o qual desperta determinadas ideias que se unem às conversas com diretores e produtores, até que surge o desenho. Primeiro mentalmente, depois no papel. Essa visualização que “chega de repente na minha cara, na minha pálpebra”, 24

diz Clara, na realidade, consiste na sua forma mais própria de criar, especialmente em sua poética pessoal. “O tipo de desenho que eu costumo fazer tem esse convívio na minha cabeça por muito tempo, às vezes meses ou ano, mais de ano, fica aquela imagem ali e aí uma hora...” sai.

“O tipo de desenho que eu costumo fazer tem esse convívio na minha cabeça por muito tempo, às vezes meses ou ano, mais de ano”



Pássara 11 - lápis grafite sobre papel de algodão - 2018 - 27 x 24 cm


“Acho que tem a ver com meu pai, com essa feitura à mão das coisas, difíceis às vezes. Eu gosto disso, parece que você está caminhando no abismo: um desenho é fatal.”

A primazia do desenho

Além do alumbramento mental de imagens, outro aspecto a se destacar em sua produção artística é o rigor técnico. Para Clara, tal preocupação tem origem datada na época dos ensinamentos de seu pai, então estudante de Arquitetura, quando ela era criança. A predileção pelo desenho no papel, no qual trabalha as técnicas que lhe são próprias, vem justamente dessa intimidade nutrida ao longo de toda a sua trajetória. Entre o planejamento e o fortuito, seu processo é marcado pelo gosto e pela imersão naquilo que se propõe a ilustrar, envolvendo desde pesquisas a um grande esforço mental e físico. A confecção manual, juntamente ao uso de procedimentos tradicionais, por outro lado, faz com que Clara, em suas palavras, se complique às vezes “só porque é tão prazeroso que eu escolho os jeitos mais difíceis de fazer”. A rejeição ao decalque e à projeção, em contraste com a preferência à construção do desenho propriamente dita, diz ela, tem a ver com certo apreço por sua natureza. E questiona-se: “O que é o desenho? O que distingue o

desenho da fotografia? O que distingue o desenho de uma pintura? O que é da natureza de um desenho?”, ao mesmo tempo em que nos fornece a resposta de que “talvez tenha a ver com geometria, com essa síntese que se faz a partir da observação”. O uso de tais ferramentas, mesmo que de forma sutil, também guarda uma dissonância da realidade, por mais verossímil ou realista que seja considerado o seu traço. E, para Clara, o motivo para tal escolha não tem mistério, se dá porque o é agradável. “É quase como um jogo você montar um desenho e ir construindo a partir desse olho, desse teste. Seria diferente vivenciar a construção de um desenho que não fosse assim pra mim”, resume. “Acho que tem a ver com meu pai, com essa feitura à mão das coisas, difíceis às vezes. Eu gosto disso, parece que você está caminhando no abismo: um desenho é fatal. Se rasgar, às vezes se errar, perdeu, não dá para remendar. É só uma vez.” 27


Pássara 14 - lápis de cor sobre papel de algodão - 2019 - 27 x 24 cm


Magia e devir Corpos de mulheres, mulheres sem cabeça, aladas, bichos. As figuras recorrentes em suas ilustrações, aliadas ao desenho sem rascunho que flui naturalmente, quase como uma necessidade, podem dar a impressão de que Clara é uma artista em constante levitação. Longe de negar a subjetividade do ofício, ela faz questão de demonstrar que é possível ter os pés no chão, mesmo com um trabalho repleto de magia e criatividade. “Por vários motivos a gente mitifica e acho que me assumir artista com certeza teve a ver com desmistificar essa ideia. Olhando até para a história da minha família, para minha história, os artistas estão por aí, são muitos, e é uma parcela mínima, ridícula, que se destaca nisso”, expõe a pernambucana. Para ela, ao invés de tomar a figura do artista como um devir mágico, é necessário se enxergar antes enquanto pertencente a uma classe de trabalhadores da cultura em luta por sua própria existência e reconhecimento.

Se as origens de seu processo criativo caminham por vias misteriosas, levando-a desde a ideia de inconsciente coletivo a quem sabe até acesso ao divino, pouco importa: o que Clara gosta mesmo de enxergar está longe do inacessível. Chega de dons inatos, gênios incompreendidos, melancólicos, celebridades enigmáticas, artistas irreais, desvinculados do mercado privado ou das questões institucionais. “A característica do que é ser artista no Brasil é mais da dificuldade de poder viver disso do que de poder ser — e isso está errado”, contesta a desenhista, como quem conclama os seus à luta. Tomo a liberdade da paráfrase e nela deposito a bravura daqueles que criam: Trabalhadores da cultura e da arte de todo o mundo, uni-vos!

@clara__moreira 29


Receita de chuva - 2019

Foto: Raphael Malta

Ianah Maia @ianah_


coluna

Além do temporal 2019


O nome como forma de habitar e se narrar no mundo por André Santa Rosa Tem 20 anos e é estudante de jornalismo da UFPE. Estagia no caderno de cultura do Diario de Pernambuco. Pesquisa no Laboratório de Análise de Música e Audiovisual (L.A.M.A) da UFPE. Está sempre mentindo pras pessoas pra ir escondido ao cinema. Gosta de literatura, especialmente poesia, e às vezes se arrisca a escrever. Entusiasta de assombrações e mosh pits.


Foto: Marlon Diego



Noites & prelúdios

Do fundo de um bacurau atravesso a cidade madrugada adentro. Pela janela do coletivo, vejo paredes brancas, cinzas, em sua maioria, silenciosas. Aos poucos, observo cada uma delas marcada por riscos e vários nomes. Muitos deles viverão nos muros por mais tempo que a própria vida de quem os fez. Nossos nomes de batismo são anteriores à nossa identidade. Alguns nomes posteriores, às vezes, são mais adequados para relatar quem somos. Escrever seu próprio nome é um dos desafios pedagógicos primários, uma espécie de auto reflexão no próprio ato de ser alfabetizado. Ele é elemento central de individualização do sujeito. É, de certa forma, um signo que, de diversas maneiras, nos permite habitar o mundo e nos narrar. Mas a descoberta da escrita, da palavra e do nome, para muitos, vem por caminhos mais particulares. “Desde os meus 11 anos sempre tive essa vontade de riscar e rabiscar, independente do que fosse”, relembra o grafiteiro e pixador Nomes. O alto de um prédio na Boa Vista foi onde nos encontramos. Com um misto de curiosidade e fascínio, estava ansioso para saber quem era o artista fora do anonimato. O lugar é seu ambiente de trabalho e, ao mesmo tempo, seu ateliê, o que de início demarca como esses universos são embaralhados em seu processo de criação. Na atividade desde 2007, ele trabalha, na maior parte do tempo, ao estilo bomb e não vê diferenças entre graffiti e pixo — algo que não é consenso entre a comunidade —, mas a partir do gesto único de assinatura, que a princípio pode parecer limitado, consegue criar um trabalho virtuoso, provocador, repleto de nuances criativas e afetivas.

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“Para quem pixa, criar sua assinatura e seu traço é, também, criar a si mesmo.” Dos passeios noturnos nos bacuraus que saem da Comunidade Linha do Tiro — bairro do artista, cuja sigla C.L.T ele leva nas suas criações —, Nomes incorporava o papel do observador do trabalho alheio, que aos poucos ia surgindo nas parede da cidade. Esse estudo de observação, quase que voyeurístico, foi central para sua formação. O gesto criativo de aprender essa escrita, essa assinatura, vem também como parte de um processo de leitura. Não só das paredes que, no auge da madrugada, iam ganhando suas intervenções, mas em papéis de chiclete, no design vernacular e na caligrafia das capas de revista. Para quem pixa, criar sua assinatura e seu traço é, também, criar a si mesmo. Antes de ‘Nomes’, o artista assumiu ‘Nemo’ — que percebi estranhamente ser um anagrama para a palavra “nome” —, mas parou de usar para evitar conflito com outra pessoa que já se reconhecia assim. A mimese é completamente mal vista no meio. Depois veio ‘Servo’, por uma vocação religiosa, na época em que o artista frequentava muito a igreja. A partir da busca e da inquietação para encontrar sua assinatura, algo vogal dentro do graffiti, um amigo sugere: “Oxe! Tu muda muito de nome, não sei porque tu não assina Nomes, tu és muito inquieto e já mudou de nome várias vezes”. Como alguém que trabalha com o pixo, utilizar a palavra “Nomes” soa como um gesto que aponta para o próprio ato do seu fazer arte, como uma assinatura que transcende a si. 36


Centro, Recife - PE

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Caos & as cores tropicais Buscar um equilíbrio, através de gestos na assimetria caótica da cidade. Para além disso, buscar na criatividade do caos, do ruído que é trilha sonora do mundo, uma arte que, ao agredir, não agrida como realidade. Com formação em Design, Nomes trabalha a partir de uma intervenção pautada em equilíbrio cromático e virtuosidade nas formas, o que salta como uma grande turbulência da contradição de suas obras, já que o pixo por si só adentra uma relação de espacialidade intrusiva dentro da lógica privativa e higienizada imposta aos espaços. Isso, é claro, também soa contrastante dentro dos processos criativos do artista, que parecem ser pautados na freneticidade e obsessão pelo riscar. De uma gaveta, ele tira uma série de papéis, todos repletos de assinaturas. “Então, às vezes eu tenho um processo de ansiedade muito grande. O graffiti, pra mim, é terapia também. É muito satisfatório chegar em casa e ter seu rolê concluído”. Enquanto vamos conversando, mais papéis completamente ocupados por riscos são retirados e jogados pelo chão. Mas a descarga de movimento do intervir no espaço ao redor reverbera no trabalho de Nomes, como uma espécie de busca por uma ocupação que agrida menos que a própria realidade; agrida menos que o lugar dado do cinza dos prédios ou que a ansiedade constante do artista. Então, a partir de usos radicais de cores e da intervenção do espaço urbano, ele constrói a possibilidade de um novo lugar, de certa forma, harmonioso. Isso também está pautado no seu uso de cores, que, segundo o artista, são aplicadas de forma a equilibrar o ambiente. Muitas delas são tropicais, reflexos de um Recife desejado. Ao mesmo tempo em que essas cores


Macaxeira Recife - PE

não condizem muito com o centro do Recife, partem de um lugar do afeto pela paisagem e pela coloração ideal. Como se cada graffiti fosse uma espécie de ilha tropical afetiva. Nomes habita o mundo e se narra a partir da escrita que “requer um movimento ágil e rápido para não ser pego”, ele relata. A agilidade é central, seja sozinho ou a partir das dinâmicas coletivas com as crews C.L.T, 33 crew e Mang boyz, grupos de que faz parte. Diferentemente de uma grafia que relaciona o corpo de forma usual, o artista utiliza em seu processo uma espécie de “coreo-escrita”, relacionando até seu corpo no escrever, marcado por movimentos alongados para abertura de seus traços sinuosos. Para que exista sua arte, o artista lança seu corpo e seu nome neste mundo que decide habitar. 39



Forte do Brum Recife - PE

@variosnomes 41


Pedro Mooniz @pedromooniz


coluna


Eduardo Nóbrega por Joseildo H. Conceição Apenas um rapaz latino-americano, graduando em Letras e idealizador da Revista Condoreira. Escrevo sobre o que a vista alcança e o que o peito sente.


Smoke device - acrílica sobre tela - 2020 - 50 × 80 cm


Sintético. Tantas coisas aceitam esse adjetivo: uma língua quando apresenta vários morfemas em suas palavras; um objeto quando é obtido artificialmente; um discurso quando é objetivo, sem circunlocução.

Detalhe de Kissing in 2222

Do alto do seu ateliê no Edifício Pernambuco, o parapeito beirando o fluxo de seres formes e disformes em extrema calcinação na Avenida Dantas Barreto, nosso protagonista observa cada aspecto que pode influenciar seu processo criativo.


— Tem todo mundo de todos os tipos andando aqui, aquela fritação… muita gente não gosta disso, mas eu acho perfeito. — Reflete. A fumaça de um incenso mistura-se às entrelinhas de cada frase dita por Eduardo naquela tarde ensolarada de terça-feira.

Sem título - acrílica sobre tela - 2019 - 50 × 60 cm

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Sem título - acrílica sobre tela - 2020 - 50 × 60cm


Artista visual e designer gráfico, Eduardo Nóbrega, 29 anos, desenvolve grande parte de seus trabalhos com técnicas de colagem, pintura e serigrafia pautadas, na maioria das vezes, na abstração.

— É muito do meu dia a dia. Eu acho que tudo que eu vejo, inconscientemente, eu salvo e quando eu estou no momento que eu vou criar algo, eu pego isso. Quando se trata de recorte, por exemplo, eu salvo muita coisa que às vezes eu estou folheando. Corto, coloco na pastinha e guardo. O espectador que mergulha absorto nas cores e formas propostas por Eduardo se depara com trabalhos que possuem um aspecto torcicoloso.

À primeira vista, causam um movimento involuntário que pende a mente para o lado, como nos cartemas risografados que produziu em referência a Aloísio Magalhães; em um segundo momento, um meio-estar aflituoso e a busca pela assimilação do conteúdo. Mas, quando olhamos por muito tempo para o ambíguo, ele reforça a sua forma. Parece que a qualquer momento as obras de Eduardo podem pingar, ocupando o chão que pisamos, ou explodir e nos sugar como uma estrela no fim da vida a tornar-se um buraco negro.

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Kissing in 2222 acrílica sobre tela 2 × 1,40m


Assumindo o desapego enquanto possibilidade material, Eduardo comumente incorpora obras anteriores em novas produções, como na exposição Para Existir, feita em parceria com a artista Clara Moreira e com o grupo de curadoria independente Phantom 5, onde propôs a instalação Caminho em Recorte e Cor. A colagem tridimensional, que se alastrava a partir de um dos cantos da sala, fazia referência e brincava com a escala do quadro que a acompanhava.

Retomo o termo “sintético” e o utilizo para adjetivar os trabalhos de Eduardo. A palavra, aqui, assume uma ambiguação semântica imprescindível: antítese ao natural e originário de uma síntese. Antítese, por ele enxergar em componentes artificiais, no não-natural, a beleza e o potencial artístico em contraponto à letalidade desses mesmos materiais.

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— Eram trabalhos pequenos que eu tinha de vários momentos e fiz várias colagens deles todos.

— Tenho um certo fascínio pelas coisas que são vi uma foto — plásticas. Tenho umEu certo fascínio aérea umaque grande pelasde coisas são mancha de óleo na praia. Ela plásticas. Eu vi uma foto fazia umas curvas e era uma aérea de uma grande coisa bonita denasepraia. ver, mas mancha de óleo Ela uma curvas coisa totalmente fazia umas e era uma horrível. Eu já catei fotosmas de coisa bonita de se ver, rios radioativos, até o uma coisa totalmente derramamento agrotóxico horrível. Eu já de catei fotos de que teve recentemente rios radioativos, aténo o Rio de Janeiro, um caminhão derramamento de agrotóxico gigante querecentemente derramou muito que teve no agrotóxico. A lama de um Rio de Janeiro, um era caminhão rosa-bebê neon belíssimo. gigante que derramou muito agrotóxico. A lama era de um rosa-bebê neon belíssimo.


Caminho em recorte e cor instalação

E síntese, uma vez que não há espaço para confusão entre desapego e despojo no ato criativo do artista. É um ato lúcido. Há, em suma, um ciclo autorreferencial: seus trabalhos são sínteses das sínteses. Nesse jogo de conceitos, as composições se abraçam. A situação das imagens em sua produção é autofágica, abdicam de si mesmas ao passo que se reinventam.

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Bolinhas de gude acrílica sobre tela 30 × 30cm - 2020


GALERIA

Este é um espaço para contato inicial entre público e artista através da Propágulo. Estamos sempre à procura de novos artistas. Envie seus trabalhos para: propagulo@gmail.com 55


Mayara Bione É apaixonada por design editorial e pela ideia de poder usar essa linguagem como forma de expressão. Foi a partir disso que produziu a zine Tudo e Qualquer Coisa, fruto de sua experimentação com publicações pessoais

Tudo e Qualquer Coisa risografia sobre papel @mayarabione



Adriano Marcusso Arquiteto, designer e ilustrador, desenvolve os seus trabalhos em linóleo e xilogravura. É atravessado pelas raízes regionais desta técnica, mas também pelo imaginário armorial de Samico, e gravadores como Albrech Dührer, Gustav Dóre e Peter Allik. As técnicas as quais faz uso são a última etapa de um processo sendo, portanto, a saída visual amparada por uma base em colagem, onde a experimentação é livre.

Rush matriz em Neolite @amarcusso



Filipe Aca É graduado em Design pela UFPE e em História pela UFRPE. Em seu trabalho, costuma partir de experimentações manuais para depois ir ferramentas digitais possibilitam, dentre elas as que mais gosta são o bordado e a colagem.

Sem título Bordado sobre papel Vermelho Bordado sobre papel




Colunistas Isabella Alves

Julia Moreira

É artista visual, pesquisadora autô-

Graduanda em Design pela UFPE, é ilustradora e artista visual, especialmente no campo editorial. Essa ligação forte à literatura e ao suporte te textual, bem como a atmosfera da memória afetiva, são linhas centrais no seu trabalho, onde invariavelmente explora atravessamentos muito pessoais.

@amulherferida

de Recife, tendo iniciação artística através da formação acadêmica em Design pela UFPE, vive há quase 6 anos em São Paulo. Hoje, seu interesse está na criação artística que intersecta o fazer têxtil (prioritariapsicanálise no campo do desejo, corpo e potencialidades e a teoria feminista. A partir dessas inquietações, surgiu a pesquisa autônoma A Mulher Ferida, espaço-tempo que já leva 7 anos e que através da criação artística e do diálogo com outras mulheres, em vivências e cem metodologias e caminhos feministas para o autoconhecimento e autonomia feminina.

Pedro Mooniz @pedromooniz

criação de identidade visual e ilustração, mas com um pé em outras produção musical.

@moreirajuliarego

Ianah Maia @ianah_

Desenvolve trabalhos de desenho e pintura em muralismo, animação, ilustração e tatuagem. É também estudante de agroecologia. Através de seu traço, apresenta um mundo lúdico, fantástico, sutil e simbólico, relacionando-se com a natureza, com o feminino e com a espiritualidade. Desde 2017 Ianah vem desenvolvendo pinturas e murais utilizando a técnica da geotinta (tinta de terra) e pigmentos naturais como forma de trazer a prática da sustentabilidade para suas produções de arte urbana e de telas. 63


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5° edição [2021] - 1000 exemplares Esta revista foi impressa na Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), com miolo em papel offset 120g e capa em papel couché 250g com laminação fosca




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