Desdobra 02

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Editorial

A segunda Desdobra conta com o texto “Pixar é humano’: escritas insurgentes na cidade”, de Filipe Gondim, presente na Outras Gramáticas, publicação organizada e editada pela Propágulo. O autor compõe a galeria impressa da segunda edição de nossa revista. Também apresentamos a transcrição do episódio do podcast AFTA em que Heitor Moreira, designer do Coletivo, compartilha um pouco sobre seu processo de criação e pesquisa gráfica nos impressos que produzimos. Encerrando, trazemos anexadas fotos de Thaís de Menezes e Ana Luiza Yoneda do dia de lançamento da Propágulo Nº 2, em 2018, na Travessa Tiradentes e no Casarão das Artes, projeto social no Bairro do Recife. Os textos são revisados por Guilherme Moraes, Nathália Sonatti e Rod Souza Leão. O projeto gráfico é de Heitor Moreira, com revisão de Rod Souza Leão. Os editores 01


“Pixar é humano”: escritas insurgentes na cidade Filipe Gondim

2020

Fui criado em um bairro de grande tradição na pixação. É relatado que desde o final da década de 80 e início da década de 90 existiam pixadores em Beberibe e nos arredores da Zona Norte do Recife (PE). Cresci onde o pixo era parte do cenário das avenidas, ruas, becos e vielas. A pixação surgiu, pelas bandas de cá, junto com o fenômeno das galeras periféricas — grupos de jovens que se uniam em torno de uma sigla, na maioria das vezes, representando uma abreviação dos seus bairros. Ocupavam os bailes funks da RMR. Os pixadores eram um tipo de propagadores dessas siglas pela cidade. No bairro de Beberibe, o comando mais expressivo e antigo é a ATM (Atacante Terroristas de Muros), em atuação até hoje. Não sou da primeira geração de pixadores, longe disso, comecei bem depois que os primeiros registros de pixação apareceram em Recife. Nesse ambiente suburbano, tive meu contato inicial admi02


rando as escritas nos muros. Depois, colocando os primeiros nomes nas paredes. Com certeza essa foi a primeira experiência com o fazer artístico, de maneira mais consciente, mesmo ainda, nessa época, não me entendendo como artista. Com o passar do tempo, os limites territoriais do bairro foram ficando restritos, outros bairros foram fazendo parte das caminhadas. O pixo me fez conhecer a cidade e suas regiões. Ocupando cada vez mais territórios, da periferia até o centro da cidade, local hostil aos jovens periféricos. A vontade de deixar o pixo em mais lugares expandiu os horizontes fazendo com que a cidade negada cotidianamente fosse ocupada. E mais, transformou caminhos que eram apenas passagem em paisagem.

“Parede branca, povo mudo” A pixação exercita o olhar e faz enxergar a cidade de uma outra maneira. Onde para alguns é apenas cinza e concreto, para os pixadores viram locais com possibilidade de intervenção, mudando, assim, nossa identificação com esses territórios. Rompendo nossos limites cartográficos impostos socialmente. Ressignificando a urbe, suas esquinas, encruzilhadas e avenidas. Rompendo as amarras em uma atitude intrusiva, de penetrar os espaços proibidos pela sacra lei da propriedade privada. As paredes riscadas são apenas parte de algo bem maior que existe por trás, no silêncio da ilegalidade imposta pelo Estado. Engana-se quem acha que a pixação começa e termina no ato de “vandalizar” muros. Ela existe em um amplo movimento, artérias e circuitos, que promove espaços, encontros e relações de irmandade e, também, de competitividade. Esses espaços de atuação geram identidade e representatividade. E, nesse processo, cada pixador se olha enquanto parte de algo maior. Uma 03


identificação pelo que faz. E, levando em conta toda a alienação gerida pelo capitalismo, identificar-se como parte de algo é uma das razões do pixo, que, mesmo com toda repressão do Estado, não foi banido ou apagado do cenário urbano. Lembro que sempre um amigo falava: — “quando estou pixando é o único momento em que me identifico com o que faço”. Essa frase, por si só, revela o caráter desalienador do pixo, tanto no que diz respeito ao processo artístico, quanto ao processo de ocupação do espaço público, como meio de se reconhecer e se manter vivo na paisagem desumanizadora das metrópoles. É lamentável que quando se levanta alguma discussão sobre pixação e arte, na maioria das vezes, os discursos se desdobram em um questionamento que, por trás da problematização, esconde aspectos conservadores sobre concepção artística e de aspectos sociais. E esse questionamento sempre gira em torno de ser ou não uma expressão artística. Essa problematização em torno de uma questão não deveria mais hegemonizar as discussões sobre a pixação no Brasil, já que essa expressão atua no ambiente urbano desde a década de 80, tempo histórico suficiente para se ter aprofundado estudos e análises sobre a temática. Também para escutar e acompanhar o desenvolvimento dessa expressão da arte urbana no cenário nacional. É possível, levando em conta as especificidades de cada local, traçar escolas, estilos e traços característicos de um estado ou tempo histórico. Cada artista, dentro do seu período de atuação, desenvolve sua técnica, criando suas letras, que mostram seu caráter criativo e suas influências e transformações ao longo do tempo. O que, por muitos, é apontado como sujeira e rabiscos desordenados é, na verdade, um grande lastro de saberes e 04


estilos desenvolvidos a partir de influências estéticas, desenvolvimento técnico, estudo individual e coletivo para chegar a um formato artístico para ser riscado nos muros. Só que, diferente de outras expressões e linguagens artísticas, o pixo surge como uma ação de transgressão e ruptura ao processo histórico de silenciamento, de negação dos espaços públicos, dos espaços privados, de afirmação artística e territorial de populações submetidas à marginalidade política, social e econômica.

“O verdadeiro bandido não foi pra cadeia. Tá comprando amazônia e dizimando aldeia” Existe uma escassez de materiais e registros históricos produzidos pelos próprios pixadores. Essa escassez se aprofunda quando se procuram materiais das décadas passadas, onde o acesso a material audiovisual era algo difícil, dificuldades essas impostas pelos limites econômicos e pela falta de políticas públicas de democratização da produção visual e audiovisual. O material que se tem ou é fruto de recortes de matérias de jornais da grande imprensa, com um linha editorial quase única de apoio à criminalização e à perseguição ao pixo, ou são estudos e documentários realizados por pesquisadores, que muitas vezes reproduzem, em algum nível, o discurso do sistema opressor. Existiram várias iniciativas de organização de zines ou vídeos produzidos pelo próprio segmento artístico, e esses materiais são de grande riqueza documental, mas, pelo grau de estrutura, se encontram dispersos e pulverizados. Muito do que resistiu, enquanto memória, foi fruto da cultura oral, onde uma geração passa para outras suas experiências, técnicas e histórias. Todo esse material discursivo circulando 05


nos encontros, nos rolês... Houve uma melhoria no processo de documentação depois da massificação da internet e do fenômeno das redes sociais. Sabemos que parte da luta pela sobrevivência de uma cultura é sua luta pelo direito à memória. Apagar os muros com tinta, perseguir criminalmente e ignorar a existência da pixação é tudo parte do mesmo pacote de dominação e preservação das narrativas elitistas e higienizadoras para silenciar processos de transgressão e de enfrentamento com a historiografia “oficial”. Diante disso, não é de se admirar que, durante toda existência da pixação, existiram ações judiciais para sua criminalização. Até 2008, o pixo era enquadrado no Artigo 63 do código penal como crime de depredação ao patrimônio. No mesmo ano, é aprovada no Congresso Nacional a Lei 9605 (lei dos crimes ambientais), que traz no Artigo 65 a tipificação do pixo como crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural. Além disso, ainda tem as leis e projetos de lei municipais e estaduais que fazem coro com a Lei 9605 e que, em alguns casos, chegam a ser mais duras. Todo esse aparato judicial esconde, por trás de um debate contra o pixo e a higienização das cidades, uma narrativa de perseguição às práticas culturais provenientes das periferias urbanas e da proteção à propriedade privada, buscando o esmagamento e o desaparecimento dos seus artistas, sendo a motivação delimitada por questão de classe e raça. São os pixadores, jovens das periferias urbanas, que sofrem perseguição judicial e, no silêncio da madrugada, violência policial, tortura psicológica e até mesmo, em alguns casos, assassinatos. Todos os pixadores carregam o peso de histórias e relatos dessas violências por parte da força policial e do poder judiciário.

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Sabemos que na cidade, no geral, dois projetos estão sempre em disputa. De um lado, privatização dos espaços públicos, gentrificação, elitização e criminalização da pobreza, da arte urbana e dos movimentos sociais. Processo este encabeçado pelo capital especulativo e grandes construtoras e apoiado por muitos governos e suas forças de repressão armada, que se beneficiam das gordas verbas e financiamentos de campanhas eleitorais. De outro lado, um projeto de cidade popular, com democratização do acesso e ocupação de seus espaços; garantia do direito pleno à moradia, trabalho e lazer; fomento e incentivo ao diálogo artístico urbano e preservação do patrimônio arquitetônico e histórico. Dentro desse espaço de fissuras sociais, a garantia do direito de expressão artística é uma luta importante para construção do projeto de uma cidade popular e inclusiva.

“A pixação é a arte que discriminaram” O processo de apagamento e invisibilização do pixo se dá, também, em âmbitos relacionados à arte. Um aspecto disso são as narrativas nos manuais e livros didáticos do ensino da arte nas escolas e universidades. Quando muito, esses materiais falam é de grafite e de outras expressões da arte urbana. E reforçam uma falsa dicotomia entre grafite/arte urbana vs pixação, se apropriando de um discurso que é muito propagado pelo estado e, infelizmente, em alguns espaços artísticos, coloca as outras artes urbanas como uma alternativa higienizada e positiva, apontando a pixação como algo sujo e criminoso. Quando, na verdade, a origem do grafite remete aos mesmos princípios do pixo, onde, na rua, os artistas intervêm no cenário urbano de forma não autorizada pelo estado e pelos proprietários dos imóveis, deixando suas escritas como forma de manifesto e afirmação artística. 07


Outra postura bastante negativa é dos espaços institucionalizados de arte, incluindo as galerias, as mostras, as revistas especializadas, que, ao não incorporar a pixação como uma expressão artística contemporânea, agem reproduzindo uma das lógicas do discurso e práticas conservadoras, que apaga qualquer possibilidade de discussão sobre a temática. Alguns espaços e galerias, principalmente as relacionadas a arte urbana, agem com uma outra postura. Como exemplo, temos a exposição em homenagem ao pixador DI (em memória), sendo esse um dos principais pixadores de São Paulo da década de 90 e um dos precursores da modalidade de pixos nos prédios. A exposição ocorreu em 2016, na A7MA Galeria, em São Paulo. Essas iniciativas são muito importantes, diante do peso e da presença que a pixação tem no cenário contemporâneo nacional e do necessário respeito que ela merece. Contudo, longe de achar que o pixo precisa da legitimação do circuito de arte institucional e mercadológico para existir, pelo contrário. Talvez sua caminhada na contramão de todas essas institucionalidades seja parte da gênese do seu espírito libertário e do seu poder transgressor, justamente por conta de sua existência estar intrinsecamente ligada ao caráter “ilegal” da intervenção artística. Porém, uma coisa não precisa negar a outra, elas podem coexistir de maneira positiva e, ao incorporar nas suas programações, esses espaços, veículos e instituições ajudariam a desconstruir a propaganda ideológica criminalizante que recai sobre a pixação. No pixo existe uma pluralidade de vozes e de visões sobre as escritas urbanas e elas todas precisam ser escutadas e visibilizadas. Esse texto é um relato pessoal de algumas experiências, 08


vivências e opiniões que tenho sobre a pixação dentro do contexto social e artístico. Tenho noção da importância do pixo na minha formação artística e humana, quanto ela foi decisiva na compreensão da arte em que eu acredito e que me impulsionou a transitar por outras expressões, como a fotografia, a colagem, o lambe. Mas sempre entendendo a rua como um espaço de ocupação, resistência e intervenção. Pelo direito ao espaço público e à democratização da arte. “Pixar é humano”, já falava DI, e é parte da necessidade de se expressar em meio ao ruidoso caos urbano e sensibilizar nossas ações, desobediências e transgressões na urbe. Filipe Gondim é artista visual e transita na sua vivência artística pela colagem, fotografia, poesia, lambe-lambe e pixação. Faz parte de alguns comandos e grupos de pixação como RDN e ATM.

Citações: * A frase “Pixar é Humano” é de autoria do artista DI (SP), citado no texto; ** “O verdadeiro bandido não foi pra cadeia. Tá comprando amazônia, e dizimando aldeia” é um trecho da música Pixadores II, de autoria de Nocivo Shomon; *** “Parede branca, povo mudo” é uma frase de autoria desconhecida pixada diversas vezes nas paredes de diversos lugares do Brasil e do mundo; **** “Pixação é a arte que discriminaram” é trecho da música “Pixar é humano”, de Grilo 13.

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Entrevista com Heitor Moreira AFTA #T1E2

2020

Entrevista realizada no primeiro semestre de 2020 para o AFTA, Podcast da Propágulo. Nathália Sonatti - Como surgiu seu interesse por design? Heitor Moreira - Veio muito de procurar algo mais prático, mais aplicável, artes gráficas aplicáveis — que é até algo que se estuda no design e faz parte da origem da própria área, um pouco do movimento Arts and Crafts. Vitor Carvalho, designer brasileiro, fala em uma entrevista sobre como o design muitas vezes é uma profissão e área de estudo formada por pessoas que tinham, desde criança, uma inclinação para as artes visuais, que desenhavam na escola, mas que por uma série de razões, como a família botando terra — o que não foi o meu caso — , elas acabam procurando algo mais prático. Porque também existe toda essa questão do “ser artista”... Eu lembro que no Ensino Médio recebi um Guia do Estudante, e nele tinha uma seção falando só sobre Design (as áreas de atuação, o que o designer faz, meta salarial, etc). Daí quando chegou o momento de escolher no Sisu, acabei 10


optando sem nem saber necessariamente o que iria fazer depois de formado, sentimento que me acompanhou até metade do curso. O que só mudou quando a Propágulo surgiu na minha vida e deu essa luz que de fato eu estava no lugar certo e que era isso que eu queria fazer para o resto da minha vida. NS - A gente vive um processo de digitalização crescente no mundo, intensificado principalmente nos últimos tempos por conta desse período [da Pandemia do covid-19] em que estamos. É muito comum ouvirmos que o “o impresso está morto”, “por que não fazer algo digital?”, dentre outras variáveis dessas frases. Heitor, você pode falar um pouco sobre por que fazer uma revista impressa? HM - Existe essa afirmação de que o impresso morreu, mas o que eu acho que ocorreu de fato foi que a nossa forma de consumir conteúdo mudou. Agora, a gente está em uma lógica na qual parte do nosso conhecimento da atual conjuntura vem de ler 144 caracteres no Twitter, é um momento muito pautado pela instantaneidade. Então, eu não vejo a disposição do texto, se ele está impresso em tinta em um papel ou em uma tela, como a causa desse declínio, e também entram outros aspectos que influenciam nisso, como o acesso. Além disso, acaba sendo muito difícil para esse objeto tridimensional e limitado que é o papel, né? Porque o papel tem suas limitações e é uma tarefa tortuosa tentar traduzir certas coisas que o celular que está do lado faz com praticidade, você está lendo um texto lá, você consegue pegar o dicionário ali mesmo e ver o significado da palavra, pesquisar algo sobre o autor, criar um hipertexto dentro daquilo, tudo isso de uma vez só. Para mim, isso é o incrível do digital e de forma alguma eu tenho essa visão ortodoxa de que “só o impresso interessa, morte ao digital”. Seria até ingenuidade da parte da 11


Propágulo pensar que o impresso chegaria em todos os lugares, a gente enxerga as mídias sociais da Propágulo como uma forma de mediação e criação de conteúdo. E a Propágulo está cada vez mais nesse processo de encontrar maneiras de se digitalizar, só que sem largar esse pé do impresso também. O que me chamou atenção quando os meninos me chamaram para fazer parte da revista era ser uma publicação impressa. E aí, voltando um pouquinho para aquela coisa da faculdade que falei, quando eu entrei na universidade em 2015, estava naquele finalzinho do boom do ressurgimento do impresso independente, também se vivia o auge da Feira Plana em São Paulo e vários estúdios de risografia abrindo pelo Brasil. Existem essas duas vertentes: o impresso tradicional, como a revista Veja e a Glamour, que em termos de público decaíram absurdamente, mas existe um nicho fora do eixo mais global, que tem esse fetiche pelo papel, pela fisicalidade e espacialidade que ele ocupa, sabe? E eu estava neste nicho, ainda em expansão. E aí a Propágulo surge para mim exatamente como esse direcionamento e me dá possibilidade de trabalhar com aquilo que eu estava maravilhado pesquisando e estudando. Porque apesar de eu já vir do digital, minha geração em si parte bastante desse lugar, e da minha forma de consumir conteúdo estar atrelada ao virtual também, resgatar o impresso foi muito importante para pensar outras possibilidades. Por exemplo, teve o caso da segunda revista na qual contamos com a participação de biarritzzz, artista que trabalha muito com GIFs e internet, e foi um desafio traduzir para o papel estático algo que era em movimento, que partia do digital. Então pensei em fazer um frame a frame, tirar uns prints e colocar na revista para talvez dar uma pontinha do que é esse universo gigantesco de biarritzzz. Foi incrível fazer essa entrevista 12


que poderia traduzir um pouquinho sobre esse universo dela, só que nunca seria a mesma experiência imersiva de quando você entra no site dela, sabe? Optamos por colocar um QR Code direcionando para o site. Para mim a grande questão é pensar essa intermodalidade dos meios, de pensar que o impresso pode somar ao digital e vice-versa, eles podem estar em coexistência. Um tempo atrás, já em 2020, representei a Propágulo no Call Center, live organizada pelo festival No Ar Coquetel Molotov [e mediada por Aslan Cabral], e lá surgiu esse questionamento sobre por que continuar produzindo impresso em uma era tão digital como a nossa. E eu fiquei pensando depois: se a gente pegasse a revista impressa, reduzisse para um tamanho, sei lá, de 14 x 21 cm, aumentasse um pouquinho o número de páginas e começasse a chamar aquilo de livro, chamar a Propágulo de livro de entrevistas, um acumulado de referências, eu não sei se esse questionamento ainda existiria. Há muito essa visão do impresso, da revista ter morrido, mas acho que mesmo essas pessoas que proclamam a morte do impresso ainda acreditam muito no livro físico, inclusive. O processo de produção da revista é um processo longo que demora meses e meses, mas a gente acredita que é algo que você vai revisitar daqui a alguns anos… Vira quase um objeto arqueológico de referência de pesquisa. Óbvio que ele está sujeito a ser destruído, mas a gente acredita nesse lugar da documentação do papel, do impresso, do arquivo. A revista tem uma lógica de você guardar e ler aos poucos, ela circula no espaço, você pode levar a revista para uma sala de aula e 30 pessoas terem acesso a essa revista e debaterem sobre ela. Eu sempre falo que acredito nessa tridimensionalidade do impresso, exatamente por ter 13


o aspecto do contato humano, da circulação material do saber. Lógico que existem outras formas de circulação, como mandar o link da matéria, da entrevista, enfim… Eu tenho um afeto muito grande pelo impresso. Acredito muito nessa materialização. Guilherme Moraes - Eu queria contar uma coisa em relação à segunda Propágulo, sobre isso de trazer certas dinâmicas para a mídia impressa. A capa dessa edição foi elaborada em diálogo com o trabalho da artista Cecília Gallindo, “Válida por 12 meses”, e puxava para uma experiência totalmente física, tátil e sensorial, que era a possibilidade da pessoa carimbar sua revista durante o dia do lançamento. Esse tipo de interação com o público é uma coisa que eu acho muito difícil o digital trazer. NS - Essa questão do individualizar, do tornar único é algo que o digital também faz, porque cada vez mais o ambiente virtual é personalizável. Mas o que eu acho é que são sensações diferentes. A gente consegue perceber com a pandemia como o digital permite que vários processos continuem acontecendo, só que ao mesmo tempo também sentimos saudades do contato presencial, não é como se uma coisa anulasse a outra, são experiências diferentes e cada uma é rica à sua maneira. HM - E eu acho que essa foi a grande questão do porquê da risografia e tantas outras técnicas de impressão terem ressurgido entre 2000 e 2010. A gente tava nessa saturação do digital perfeito, que você aperta o Ctrl-Z e consegue editar sempre, só que, quando você parte para esses outros meios, a máquina pode engatar o papel e sair uma matriz sobre a outra, e vir duas cores que você não tinha intenção, que dão um resultado incrível. O papel dá essa possibilidade de cada edição ser única muitas vezes, essa 14


questão do carimbo para mim foi uma sensação única, a revista trouxe o espectador enquanto protagonista também, ele estava intervindo naquele material editado pelo autor. Rod Souza Leão - Então, eu acho que se pauta muito essa obsolescência do impresso sobre como ele às vezes está mais atrasado em vários aspectos em relação ao digital. Mas pensar um enquanto oposto do outro faz a gente perder em muitos níveis. Acredito que pensando a associação entre online e offline potencializamos muito os contatos que temos com nossas produções. E eu percebo também que o impresso está atrelado a uma lógica de legitimação. Por exemplo, as fotografias estão muito presentes hoje em dia, mas não se costuma mais revelar fotos. É muito mais difícil a gente ter esse arquivo de memórias e para mim o impresso ainda tem esse poder de trazer memórias, por exemplo quando a gente organiza o quarto e encontra coisas que nem lembravamos que existiam, sabe? Não sinto que o digital traz muito essa ideia de memória, de construção de lembranças, ele traz mais a presença momentânea, enquanto o impresso tem essa carga de resgatar processos muito mais afetivos. O x da questão é muito esse de construir o impresso não pensando que estamos criando uma plataforma obsoleta no mundo digital, mas tendo em vista de que formas a gente consegue associar o impresso a outras ações e fazer com que cada uma delas tenha sentido a partir dessa soma. NS - Até porque uma coisa é a experiência de quem acompanha o impresso e outra é de quem acompanha ele e as redes ou só as redes. 15


GM - Isso me fez lembrar da entrevista com o artista e curador Abiniel João Nascimento na quarta edição. Na conversa, ele contou que a primeira vez que entrou em contato com esse universo da arte contemporânea foi através de uma revista Continente na biblioteca da escola que frequentava. Então, é também pensar que o impresso vira quase uma mensagem numa garrafa, esperando ser aberta. E o quanto isso também contribuiu para ele chegar até onde chegou, sendo esse artista incrível, sabe? NS - O projeto gráfico da revista Propágulo é algo que desde seu lançamento chama atenção e é alvo de comentários positivos por parte do público. Quais foram tuas principais referências na hora de criar a identidade da Propágulo? HM - Eu acho que um grande diferencial da revista Propágulo é que o seu miolo sempre se altera de acordo com a edição. Cada entrevista traz uma diagramação diferente e exige que eu me debruce sobre certo tema para poder produzir aquilo. As únicas coisas que são fixas são essas partes mais institucionais da revista e a capa, que foi a primeira coisa em relação à revista que eu criei. Eu tenho muito carinho por ela, porque, apesar de seguir esse modelo de sempre trazer o trabalho do artista, a gente procura possibilidades dentro daquele grid fixo, que tem o nome da revista, o número da edição e o ano. Tem edições que o trabalho do artista está dentro da caixinha e em outras ele sangra para além desse grid e ocupa a revista inteira, como na segunda edição. Para mim era um desafio muito grande elaborar essa capa. Eu acho que, como qualquer designer em formação dos anos 2010 para cá, minha principal referência — sonho profissional de toda essa geração de novos designers que está em formação e/ou acabaram de se formar — era o núcleo gráfico da Cosac 16


Naify: Elaine Ramos, Tereza Bettinardi, no começo. Enfim, tudo que a Cosac Naify trazia para o mercado editorial brasileiro. Foi um divisor de águas, um novo momento do design gráfico no país. Toda a galera que estava envolvida nesses projetos incríveis foi muito importante na minha formação e foi muito importante para a Propágulo ser o que é hoje. NS - E é massa como até a forma que tu pensa essa questão de posicionar os textos e os trabalhos no impresso interfere no modo das pessoas receberem aquele conteúdo, adicionando camadas de interpretação sobre o que está posto, seja pela cor escolhida, a fonte do texto... Isso muda totalmente a experiência de leitura da Propágulo. GM - Do mesmo modo que o artista está sendo apresentado do ponto de vista de uma pessoa que está escrevendo, o texto é diagramado por meio da perspectiva de quem está responsável pelo design dele. Então, acho que contribui muito para entender que a Propágulo não é só um objeto que se expressa a partir das palavras de quem escreveu, mas também de quem está pensando no design desse material. NS - Por se pautar em um caráter processual, as áreas da Propágulo acontecem em constante diálogo uma com as outras, mas sempre mantendo suas autonomias. Como funciona o setor de design da Propágulo? HM - Lidar com esse “Setor de Design da Propágulo”, que na verdade sou eu e Rod trabalhando juntos, é entender que é uma cadeia, é todo um processo que se inicia desde os primeiros pensamentos curatoriais, passa pela redação, pelos artistas, até chegar em mim. É um processo longo, cada etapa vai trazendo coisas 17


novas e o fato de eu conseguir acompanhar esses processos traz um resultado diferente no meu trabalho. É uma responsabilidade muito grande lidar com o design da Propágulo, porque é de fato a primeira coisa que você vê, você abre a revista e, antes de ler, você identifica aqueles códigos, você olha para aquilo. Tem até um texto em que eu estava lendo esses dias, que foi inspirado em uma série de televisão dos anos 80, “Modos de Ver”, do John Berger, onde ele abre o texto exatamente com essa fala de que primeiro a criança vê e reconhece o objeto, reconhece aquele grupo de elementos, antes mesmo de saber aquelas palavras. Por exemplo, ela enxerga um cavalo e consegue relacionar aquilo a um cavalo mesmo sem ter noção de fato do que é a palavra cavalo. Lidar com design é muito isso, é entender que muitas vezes ele vai ser a porta de entrada. Existe um texto publicado pela Beatrice Warde, uma tipógrafa dos anos 30, em que ela traz o conceito da taça de cristal: comparava a boa tipografia a uma taça de cristal, o conjunto de tipos tinha que ser invisível e entregar o texto da forma menos aparente possível. Warde acreditava na tipografia como uma ferramenta de entrega de mensagem e dizia que quando uma fonte começava a chamar muita atenção ela acabava por atrapalhar a mensagem que estava querendo ser passada. Então, eu acho que no meu processo tem muito isso de entender esse momento de recuo e de avanço. Me resguardar um pouco no meu design não significa pôr em prática um design fraco ou com pouco protagonismo. Acho que às vezes a excelência do design vem exatamente de você conseguir dar local e dar esse direcionamento para o texto da melhor forma possível. Só que eu não acho que isso seja uma verdade absoluta. É incrível quando designers conseguem hackear esse conceito ou se apropriar dele e criar algo a partir disso, como foi o caso de algumas entrevistas em que os 18


blocos de texto eram quase um elemento gráfico da página. Na quinta edição, na entrevista de Eduardo Nóbrega, o texto vai se quebrando e se cria um movimento dentro da página. NS - Como funciona o seu processo criativo? HM - Ele é bem caótico, mas é algo que com o tempo estou começando a organizar melhor, usando algumas ferramentas para isso. Eu mergulho no universo de um determinado artista, e começo a trabalhar em cima disso, produzindo e produzindo, até que recebo um outro texto que ficou pronto e acabo fugindo totalmente para esse, deixando o primeiro um pouco de lado. E acaba que muito do que eu pesquiso e penso para esse segundo texto soma bastante quando eu volto para aquele que estava fazendo anteriormente. Na Propágulo, esse exercício de ir e voltar entre os textos é algo que acrescenta muito no meu processo. Uma coisa que me preocupa sempre é, por estar lidando com trabalhos de artistas, ser muito fácil cair na lógica de querer reproduzir aquele trabalho por achar que assim eu vou conseguir traduzir melhor aquele artista e seu texto — sendo que na verdade isso não é o ideal para todo texto, e o complexo Matta-Clark de James Goggin fala sobre isso muito bem. Matta-Clark era um artista que tinha como processo recortar o concreto de diversas casas abandonadas e fazer inserções nessas casas. Com a morte dele, surgiram vários catálogos e livros que compilavam seus trabalhos, e Goggin observou que quase todos esses escritos tentavam trazer essa questão dos recortes no concreto em seus projetos gráficos. O que acabava por acontecer é que virava uma mimetização do trabalho. Quando Matta-Clark 19


fazia esses recortes tinha toda uma questão gigantesca por trás, não era o recorte pelo recorte e ao passar aquilo de forma puramente estética para o impresso se perdia toda essa dimensão da obra, descaracterizando e tirando a importância de um grande eixo do trabalho dele. Isso é um ponto que sempre está na minha cabeça nesse processo de diagramação da Propágulo: até onde eu posso chegar no trabalho do artista e até onde eu tenho que entender que não é o meu local de chegar naquele lugar? Eu preciso ter muito bem definido até onde eu estou fazendo referência àquele artista e quando estou quase virando uma réplica mal feita de seu trabalho. Voltando, eu acho que foi um divisor de águas para mim essa entrevista de biarritzzz, na segunda edição, porque ela, por ser uma artista que trabalha com apropriação, com a memeficação das coisas, com o digital, o GIF, o instantâneo, a ironia de forma brilhante, isso me dava essa legitimidade de me apropriar do trabalho dela, sendo que tem artistas que não faz o menor sentido tentar aplicar certas práticas sobre seus processos. NS - Quais são as suas inspirações e referências? Esse grande clichê que sempre se fala toda vez que alguém pergunta para algum artista, algum designer… É esse grande jogo em que vem de tudo, vem das músicas que eu ouço, dos filmes que eu vejo, é esse acumulado. Na hora que eu vou trabalhar, isso tudo vai desaguando. Uma vez, no Youtube, acabei caindo num álbum, que não lembro agora de quem era, e eu fui pesquisar mais sobre o selo dele. Era de uma gravadora da década de 50 e 60 de Jazz. Eles foram proeminentes nessa questão de combinar novos talentos do Jazz que estavam surgindo junto com um pro20


jeto gráfico super arrojado e inovador. Traziam toda essa questão da modernidade que aquela música estava trazendo. O nome do selo é Blue Note. Em paralelo a isso, aqui no Brasil, a gente estava com esse boom da Bossa nova e um pouquinho antes tinha a gravadora Elenco, que surgiu nesse período e foi focada exatamente nesses novos nomes que estavam aparecendo. Ela tem uma coleção, uma série também chamada Elenco, voltada para essa nova música que estava se fazendo e todas as capas foram assinadas por esse designer, que também era pintor, Cesar Gomes Villela. Ele trabalhava três cores básicas, preto, vermelho e branco, e usava técnicas de sombreamento e os tipos em caixa alta como elementos gráficos na capa do disco. É um patrimônio do design brasileiro, acho que todo mundo devia dar uma sacada depois nesse material, é algo fantástico.

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Lançamento da Propágulo N°2 Agosto

2018

Fotografias do dia 11 de agosto de 2018, lançamento da segunda edição da Propágulo, por Thaís Menezes e Ana Luiza Yoneda.

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Foto: Thaís de Menezes

Foto: Ana Luiza Yoneda


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Compêndio - UM Coletivo - Foto: Thaís de Menezes Válida por 12 meses - Cecília Gallindo - Foto: Thaís de Menezes


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Identificação - Xadai Rudá - Foto: Thaís de Menezes

Escombros Ruínas - Filipe Gondim - Foto: Thaís de Menezes


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Coletivo Bartira - Foto: Thaís de Menezes

Foto: Thaís de Menezes


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