GABRIEL FURMIGA
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GABRIEL FURMIGA
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FORMAS DE VOAR
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GALERIA
GUILHERME MORAES
FORMAS DE VOAR
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I - XIII Em 21 de fevereiro de 2022, uma segunda-feira, Gabriel Souza — ou Furmiga, nome pelo qual responde — pode ser visto cruzando as ruas do Centro do Recife levando telas de pintura, sacolas de marcadores hidrográficos e uma sorte de papéis coloridos para a Propágulo, revista-espaço independente de pesquisa em arte situada na capital pernambucana. Neste dia, dará início à execução de um projeto aprovado pelo edital da Lei Aldir Blanc no estado de Pernambuco. O artista já sabia que, a partir das obras a serem produzidas em uma residência de duas semanas, desenvolver-se-iam imagens, vídeos, sons e textos. O que viria a habitar esses registros topicalizados no projeto, contudo, ainda estava no campo da indefinição.
II - XII Encaminhando-se para a conclusão do curso em Design na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pontadas de ansiedade tornavam-se cada vez mais recorrentes no dia a dia de Gabriel. Em meio a trânsitos entre seu novo endereço, 10
a Propágulo e o Ateliê Coletivo Escadaria, espaço de confluência entre diversos pares artistas1, Furmiga tenta organizar dentro de si a necessidade de aplicar à sua produção visual uma outra camada: munir-se de um discurso que o permita abordar, em palavras escritas, o processo que atravessa a sua pesquisa em imagem. Essa empreitada, pensa, parece oportuna para o momento, já que precisa entregar seu trabalho de conclusão de curso em Design ao fim do semestre. “O texto linear ainda me intimida”, escreve no canto de cima da primeira página do caderno de capa roxa que elegeu como companhia para o período de residência na Propágulo.
III - XI “olhos de flecha criaturas abissais monstros marítimos dançam em mim”. 1 - amorí, Rayana Rayo, Dani Guerra, Eduardo Nóbrega, Xinga, Mirela Rodrigues, Clara Nogueira, Fefa Lins, Geo Brandão e Lu Ferreira.
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IV - X Mas como seria, afinal, fazer jus ao seu trabalho em imagem por meio de palavras? Como negociar um acordo entre sua produção e o território acadêmico? “O desenho e a gravura como são conhecidos pertencem a uma série de práticas normativas e embranquecidas do mundo da arte.” Tem como aproximar a escrita de um gesto largo, misterioso, intuitivo, opaco? Como contornar castrações seculares que formataram a aprendizagem e o registro da aprendizagem? “Ultimamente as coisas parecem um pouco movediças”, escreve. Retorno, em gesto arriscado, essa pergunta à criança pesquisadora que Furmiga fora em alguma de suas lembranças. Daí, as coisas parecem movediças? Me mostra, por favor, como você tem experimentado o mundo. Quando você se sente inteligente? Quando te dizem que você é inteligente?
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V - IX Para Neves (2010), o estudo autobiográfico permite o encontro de múltiplas possibilidades onde o eu pessoal dialoga com o eu social. Nele, o pesquisador, simultaneamente autor e narrador do texto, mune-se da auto escuta, comunicando ao mundo aquilo que sobre si avalia ser importante para o outro. Para a autora (apud CUNHA, p.2), “Quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma, percebe-se que reconstrói a trajetória percorrida dando-lhe novos significados. Assim, a narrativa não é a verdade literal dos fatos, mas, antes, é a representação que deles faz o sujeito e, dessa forma, pode ser transformadora da própria realidade”.
VI - VIII “O carbono me possibilita desapegar do controle final da imagem, [...] me interessam também as texturas, não somente as que surgem da marcação intencional no papel, mas também as que nascem do toque.” Lembra que escrevera em outro dia, na Propágulo, após testar o 14
desenho sobre as folhas de pigmentos transferíveis nas cores azul, preto, amarelo, verde e vermelho. Na residência, o artista pudera aprofundar a sua pesquisa na materialidade ambígua sobre a qual não mais cabem duplos imiscíveis como matriz e gravura ou positivo e negativo. Ao passo que transfere para o papel gestos desenhados no carbono, Furmiga oferece os índices de uma pigmentação retirada dessa segunda materialidade, um desenho. Enquanto a imagem transferida sobre papel pode ser vista diante de uma convencionalidade lumínica, “as matrizes utilizadas têm um aspecto interessante: vão guardando as marcações do desenho e acumulando os materiais que usei para marcar: o pastel, a caneta, o cabo de pinluz cel. Isso tudo só se revela contra a luz.”
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VII - VII Mas, não é como se produzir na Propágulo fosse deixar de lado a saudade de produzir em seu ateliê. Trata-se de uma experiência outra, assim como estar no Escadaria difere de quando pintava no andar de cima da casa em que antes morava com sua família. Assim como pintar no andar de cima da casa em que antes morava com sua família se difere de quando, numa mesa de bar com amigos, poderia ser visto curvado sobre um caderno que dividia espaço com copos de cerveja e canetas Posca. Assim como ser visto curvado sobre um caderno que dividia espaço com copos de cerveja e canetas Posca se difere de quando esquecia da aula de química e mergulhava em rabiscos que escapuliam quase automaticamente de suas mãos para os cadernos de pauta azul. “Chegando ao final da residência, sinto que voltar ao desenho me proporcionou uma rotina de intimidade maior com o que eu produzo. Sinto saudade de pintar e sinto falta do meu ateliê, mas também sinto que esse momento de incubação me transportou para novos propósitos e desenhos com a pintura.” 18
VIII - VI “O exercício de escrita pessoal e o olhar posterior para estas narrativas fundamentadas na memória representam um recurso metodológico de pesquisa, pois caracteriza-se em um esforço individual que busca elaborar uma ideia aparentemente distanciada de nós”. (NEVES, 2010, p 127). Para Barbosa (2002), os textos escritos no passado também abordam o presente, porque o presente contém todo passado, uma vez que o passado só existe enquanto discurso do presentificado. Assim, para Neves, a construção autobiográfica não se situa em um terreno neutro, pois demanda decisões sobre o que e como pode dar a ver suas narrativas.
IX - V E se daqui a alguns anos mudar de ideia sobre algo já escrito? Como arcar com o peso de alimentar uma criatura disforme, dobrada em si mesma, que se crê eterna, cristalizada? Será que, se escrever sobre suas trajetórias e lacunas, estará enfraquecendo suas imagens? Será que 19
desenhando estará ilustrando os pensamentos daquelas que com ele pensaram nos últimos meses? Questiona-se Furmiga no quarto dia de sua residência na Propágulo. O ateliê já está bem diferente de como ele havia encontrado. As paredes brancas e as janelas largas já se encontram folheadas pelo processo dinâmico que o artista pôs em prática. “Diferentemente da pintura, o desenho tem algo de segurança, de útero, que me permite me sentir muito mais confortável”, comenta enquanto tem seus trabalhos registrados por um dos integrantes da revista-espaço.
X - IV Se seu processo artístico está sempre em formação, em mudança, em tropeço e em descoberta, será possível relacionar-se com a sua escrita também dessa forma? Se reconstruir uma trajetória vivida através do relato é dar-lhe novos significados, como propõe Neves (2010), talvez a saída seja assumir a pesquisa, e a escrita que dela se desdobra, como um outro território de experimentação, 20
entendendo que ela pode ir se “fazendo ao mesmo tempo que certos afetos [vão] sendo revisitados (ou visitados pela primeira vez)”. (ROLNIK, 1989, p. 18).
XI - III As pesquisas em imagem de Gabriel aconteceram em graus diferentes de aprofundamento. A intimidade que tem com o desenho é muito diferente da que no momento sente com a pintura, atual campo de descoberta. Enquanto desenhar é como planar em um líquido amniótico, lidar com tinta em tela mais parece “exercitar a insegurança enquanto forma de voar”, escreve no caderno de capa roxa que elegeu como companhia para esse percurso. Independente da linguagem, pensa: mil vezes trabalhar com imagem do que escrever sobre esse processo. É que, encaminhando-se para a conclusão do curso em Design na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), lembrar do desafio que assumira de pensar linearmente é como quando, em sonho, se cai ao pisar em falso. Será que pesquisar 21
significa aproximar-se de uma verdade cristalizada? Será que buscar coerência significa esterilizar o processo e impossibilitar o inesperado?
XII - II De acordo com Corazza (2007), o processo metodológico é alquímico. Para a autora, a pesquisa pode ser então um processo de “bricolagem diferenciada, estratégica e subvertedora das misturas homogêneas típicas da Modernidade. Alquimia que rompe com as orientações metodológicas formalizadas na e pela academia [...], cuja direção costuma ser a das abordagens classificatórias”.
XIII - I É noite de domingo. Amanhã, dia 20 de fevereiro, o artista Gabriel Furmiga começará a residência na Propágulo. Sabia que imagens, vídeos, sons e textos seriam desenvolvidos nesse arco de acompanhamento, mas o que viria a habitar esses registros ainda estava no campo da 22
indefinição. Mesmo levando sacolas de marcadores hidrográficos e uma sorte de papéis coloridos para a sede da revista-espaço independente de arte no Recife, torce para poder trabalhar nas suas pinturas em tela, processo que no momento tem sido um dos seus maiores desafios e, consequentemente, seu grande fascínio. Quem sabe, por ainda não ter tanta intimidade com essas novas materialidades que lhe apareceram, uma sensação semelhante à de quando experimentava pela primeira vez com os cadernos da escola desponte dentro do seu peito.
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REFERÊNCIAS
BARBOSA, J. J. História oral e hermenêutica. Ano I, No. 105, Agosto. Centro de Hermenêutica do Presente. Porto Velho, 2002. NEVES, Josélia Gomes. Cultura escrita e narrativa autobiográfica: implicações na formação docente. In: CAMARGO, MRRM., org., SANTOS, VCC., collab. Leitura e escrita como espaços autobiográficos de formação [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 140 p. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFGS, 2011. SOUZA, Eliseu Clementino. (Auto)biografia, histórias de vida e práticas de formação. Memória e formação de professores. Revista Fórum Identidades. Ano 2, Volume 4, p. 37-50, jul-dez, 2008. 24
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Monotipia em carbono sobre papel Colorplus 42 x 29,7 cm - 2022 29
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Mídia mista sobre papel Avena (desenho em carbono e pastel oleoso) 118,9 x 84,1 cm - 2022 35
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Monotipia em carbono sobre papel Avena 118,9 x 84,1 cm - 2022 41
Pastel oleoso sobre papel colorplus 42 x 29,7 cm - 2022 43
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Monotipia em carbono sobre papel Colorplus 42 x 29,7 cm - 2022 47
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Monotipia em carbono sobre papel Colorplus 42 x 29,7 cm - 2022 51
Monotipia em carbono sobre papel Colorplus 42 x 29,7 cm - 2022 53
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Mídia mista sobre papel Algodão (desenho em carbono e pastel oleoso) 21 x 29,7cm - 2022 57
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Monotipia em carbono sobre papel Colorplus 21 x 29,7 cm - 2021 61
Monotipia em carbono sobre papel Colorplus 21 x 29,7 cm - 2021 63
Monotipia em carbono sobre papel Algodão 21 x 29,7 cm - 2022 65
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Monotipia em carbono sobre papel Colorplus 21 x 29,7 cm - 2021 69
Desenho sobre matriz de carbono 42 x 29,7 cm - 2022 71
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Desenho sobre matriz de carbono 21 x 14,8 cm - 2021 75
Desenho sobre matriz de carbono 21 x 29,7 cm - 2022 77
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Desenho sobre matriz de carbono 21 x 14,8 cm - 2021 81
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Desenho sobre matriz de carbono 21 x 29,7 cm - 2022 85
Desenho sobre matriz de carbono 21 x 14,8 cm - 2021 87
Desenho sobre matriz de carbono 21 x 29,7 cm - 2022 89
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Desenho sobre matriz de carbono 42 x 59,4 cm - 2022 93
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Desenho sobre matriz de carbono 21 x 29,7 cm - 2022 97
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Desenho sobre matriz de carbono 21 x 29,7 cm - 2022 101
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Desenho sobre matriz de carbono 21 x 29,7 cm - 2022 105
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REALIZAÇÃO
PROPÁGULO
GABRIEL FURMIGA ARTISTA
GUILHERME MORAES CURADORIA, EDITORAÇÃO E EDIÇÃO
HEITOR MOREIRA PROJETO GRÁFICO
RODRIGO SOUZA LEÃO COORDENAÇÃO, CURADORIA E FOTOGRAFIA
ISBN Nº 978-65-994620-1-6
Este livro foi composto com a tipografia Guarujá Grotesk desenvolvida por Tipografia Fio Recife-PE 2022