
3 minute read
Carnaval
CARNAVAL
− Eu tinha 17 anos, em 1981, e me alembro da primeira vez que atirei. Tremia como vara verde, mas meu tio, do meu lado, me dava coragem.
Advertisement
Órfão de pais, Damião da Silva fora criado com dois tios e a avó na região do agreste paraibano. O jovem se orgulhava de nunca ter errado um tiro na vida. Ficava de tocaia à espera da vítima, a pontaria era cantada em toda a Paraíba. Aprendera com o tio Geraldo a arte da pistolagem. − Despachei para o inferno o caba safado. O tiro foi direto na cabeça do desinfeliz. Depois disso, rezei uma Salve Rainha.
Enquanto esperavam, mestre e aprendiz planejavam o futuro com o dinheiro daquela empreitada. De frente para o riacho, viam o tempo passar e as garças se refrescarem da quentura do dia. Geraldo cantava melodias antigas e Damião molhava os pés na água. − Vamos melhorar o sítio de mãe, comprar cachaça da boa e uma bota nova para você.
Geraldo batia nas costas do sobrinho e sorria, sentia orgulho daquele menino. Não sabia ele que, um ano depois, estaria também numa cova.
Na noite de Santo Antônio, fazia frio na serra de Guarabira, onde só se via a cerração. Era festa. Damião completava 18 anos e já tinha uma lista de vivos e mortos.
Tio Geraldo arrastava o sobrinho para o puteiro e para as tocaias. O ritual dos pistoleiros era matar, rezar e beber uma aguardente.
Cinco meses depois, encontraram o corpo de Geraldo em um matagal em Remígio, três tiros na região do coração e uma orelha decepada. A mãe não resistiu e morreu de tristeza três meses depois.
Damião sumiu no mundo, escondeu-se no interior do Rio Grande do Norte, onde passou fome e perambulou pelas estradas. Se soubesse escrever, teria preenchido um caderno com suas agruras.
Numa noite de pastoril, conheceu Mocinha, dez anos mais velha, com um menino de braço no colo, rugas e um vestido de cambraia. Dizem que foi milagre do próprio Menino Jesus, Damião se açucarou e decidiu mudar de profissão. Aposentou-se da pistolagem e foi extrair calcário nas terras de Jandaíra. − Tomava água barrenta, todo dia. A gente trabalhava 12 horas de sol a sol.
No fim de semana, ia ao prostíbulo Sol e Lua, com os colegas de trabalho. Voltava para casa e brincava com o menino Toinho. A vida foi assim por nove meses quando veio o tempo de miséria e o menino não resistiu à fome.
Depois do enterro, Damião se jogou num pau de arara e correu léguas. No caminho, só o balanço do carro e as sombras lhe acompanhavam.
Chegou ao Rio em fevereiro, teve um assombro com as fantasias, plumas e alegrias do povo. Perambulou pelas ruas até se tornar pedreiro e com ajuda do povo conseguiu emprego numa fábrica de fios. Além de aço, Damião fazia solidões.
Morava num quartinho alugado na comunidade do Chapéu da Mangueira. Falava pouco e da janela observava o sobe e desce dos morros em dias de samba. A vida se resumia à fábrica e à favela.
Viveu assim por mais quinze anos quando o levaram sem vida para o Hospital das Clínicas. Foi-se à sepultura com um segredo. E só eu, Narrador Onisciente, o posso revelar.
Às sextas-feiras, Damião recolhia flores e fazia um colar para si, vestia-se de branco e dançava ao som dos tambores. À meia-noite, era a hora dos convidados: Geraldo, Toinho, Voinha e até os encomendados. Estavam todos presentes com roupas de festa: não havia querela e nem mágoas entre os fantasmas. Só a lua a brilhar. Eram noites de Carnaval.