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A invenção da vida

A INVENÇÃO DA VIDA

Eva entrou na sala errada. Quinze anos de clínica, ainda perdia a noção do espaço em toda sessão. O recepcionista apenas a olhava e sorria. − É Eva, a sempre hiperbólica! − A esquisita que se perde até no quintal de casa.

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No consultório, duas cadeiras velhas, um cheiro de mofo e um quadro de natureza morta comprado na 25 de março. − Eu não sei ainda o que digo.

Eva respirava com dificuldade e demorava a formular as frases. − Por quê? Indagava o analista. − Pensei no corpo, sabe?

Entre pausas, voz inaudível e respirações fortes, Eva não conseguia continuar. O olhar perambulava entre as paredes em busca de respostas. − Somos perenes. − Pode explicar? − Penso no corpo. Esse corpo sou eu? − Desculpe, não entendi. − Meu corpo se acasala com o mundo.

Então, Eva sorria com os lábios cerrados, era mais uma pausa nas longas digressões. − Obrigado pela presença, Eva. A gente se encontra na próxima semana.

O gesto firme do analista indicava-lhe o caminho e lhe despertava do torpor. Saiu da sala e teve que retornar à clínica, porque esquecera as chaves do carro. − Sai da frente, tartaruga!

Os xingamentos lhe pareciam indiferentes. Eva se lembrou de tantos apelidos e dos anos de bullying. Trinta anos depois, ninguém mais se incomodava com suas frases estranhas. Esqueceram-se dela em casa. Tinha quinze anos quando começou a se tornar excêntrica, alheia à vida social.

− Minha mãe não suportou o peso de existir.

Tinha sido educada pelo pai, um doutor desembargador. Entre Lisboa e São Paulo, a vida foi se encaixando. Apesar do desastre da primogênita, teve mais três filhos de outros casamentos, todos no padrão da high society paulistana: advogado, promotor e médica, tudo gente melhor que você.

Eva nunca fora nada e nunca seria. Ninguém a ouvia. Aprendeu a falar consigo mesma, sem se queixumar. A menina cresceu às margens, uma sombra nos retratos de família. − Fazer o quê? Suspirou resignado o desembargador.

Eva devorava a biblioteca do pai, dedicava-se especialmente aos filósofos existencialistas. Anos entre as prateleiras, o fluxo de pensamentos jorrava profusamente e a impedia de se concentrar em algum propósito definido. Graças à flexibilização pedagógica e a conta bancária do pai, a personagem conseguiu concluir o ensino médio.

A única diversão de Eva era a análise semanal. E foi assim que a encontramos naquele 21

de novembro no consultório da velha natureza morta. Não se enfade, Caro Leitor, este conto está no fim.

Domingo, às 17 horas, pai, madrasta, irmãos reunidos, seguranças de terno preto no luxuoso condomínio nos Jardins: − E a titia, não vem? Perguntou a sobrinha com ingenuidade infantil.

O meio-irmão mais novo decidiu subir ao andar superior para buscá-la. Voltou pálido e trêmulo. Apenas uma frase: − Ela se foi.

Não houve lágrimas. Findara a vida de Eva e com ela os pensamentos difusos. A família decidiu não fazer autópsia, a enterraram no outro dia sem convidados.

À noite, se ouviam sons de uma respiração ofegante vindos do quarto da defunta, num fortíssimo crescente. O fenômeno se seguiu por uma semana. Até que o mais velho dos irmãos, promotor de justiça, decidiu acabar com aquela assombração típica das classes populares: mandou exumar o corpo.

Qual não foi a surpresa, quando encontraram a defunta incorruptível como os santos medievais. A notícia correu.

“O corpo está em expansão, híbrido e perene!” Essa frase de Eva não saía da cabeça do analista ao ler a notícia da chamada “Santa dos Jardins”. Fechou o consultório às pressas e, de soslaio, jurou ter visto a morta sentada na cadeira.

Decidido a tirar férias, o analista desceu as escadas com vagar. A câmera enquadra o detalhe da mão ainda trêmula e se abre em um grande plano geral.

Ao fundo, a trilha do The Mamas & The Papas a subir, estéreo.

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