
4 minute read
Mar, a menina e o vento
MAR, A MENINA E O VENTO
Maria era o seu nome, mas sempre fora chamada de Mar. – Sim, assim mesmo, só três letrinhas: m a r, como aprendi com a Tia Edna. Ela escrevia no quadro de giz e cantava alto as três letras espalhadas, com sotaque de bolacha crocante: – Mar! – Essa menina tem olhos imensos – dizia a velha Sizinha, curandeira famosa de Caiçara. – Cresceu sem conhecer o pai. Já a mãe era uma alma boa, Deus a tenha! – completava Bastinha, professora do primário. – Era um homem das águas grandes – ajuntava Zé da Esquina, bodegueiro que vendia doces no baleiro.
Advertisement
Mar não tinha dinheiro para comprar aquelas balas e esperava o dia dos santos gêmeos. Seu Zé abria a bodega e distribuía os pacotinhos de alfenim e rapadura de goiaba. Esse dia deixava Mar tão contente: ela se vestia de renda e colocava flor no cabelo.
Sorrindo, Mar lembrava o cheiro da terra, colecionava as ondas do mar, que só vira em fotografias de arquivo. E as imaginava escorregando entre alto e baixo como os cabelos da vozinha. – Voinha era Maria do Céu, cheia de água no coração. Um dia, ganhei um barquinho de palha, e o coração dela parou. Eu fiquei triste. Neném falou no dia de chuva: “Mar, ela virou estrela branca no céu”. – Eu chorei tanto, as águas escorriam e formavam pedrinhas de sal.
E foi passando o tempo, redondo como aqueles cachinhos. Mar largou as bonecas, feitas de mangas e palitos, e foi trabalhar com o tio Bernardino na feira de Angicos...
Todo sábado à tardinha, Mar subia no cajueiro, queria se “encantar” para fazer susto a
Neném e soprava bem muito, rios de ventos saíam dos lábios.
Também colocava sapos na pia só para ver Neném, roxa de braba, fingir ter medo e desmaiar. – Neném, você desmaia com os olhos abertos? – E Mar ria das travessuras da tia-avó.
Depois, arrependida, dava água com açúcar e fazia cafuné. Neném gostava de tanto amar...
Neném fazia bolo preto de curimã para vender na feira com a cunhada Zita. O cheiro subia bem alto nas estradas de Caiçara e vinha gente até da capital comer aquela preciosidade.
Depois da feira, Mar voltava com os pés rachados de argila e poeira. Vinha com sorriso largo, os lábios grossos de sertão e os olhos de graúna. – Essa menina é toda festa, mesa de domingo em pé de algaroba – declamava o cantador, Chico de Assis, com seu violão de sete cordas.
Veio o tempo da estiagem e Neném ficou doente. Mar não saía da cama e contava as his-
tórias aprendidas com a avó Maria do Céu. Trouxeram as curandeiras, o beato Xavier e até um doutor da capital. – Mar, a roda não para e eu vou ser passarinho também – disse Neném, com os olhos tristes. – Vai não, titiazinha. Eu ainda não aprendi a fazer bolo preto e você prometeu me ensinar. Lembra? E Mar rezou naquele dia cinza. Pediu a Nossa Senhora Negra que curasse Neném e não levasse aquele sorriso. Juntou o tio Bernardino e a Mãe Zita para rezar o terço e o credo ao revés. E dormiu... Entre o sono e a vigília, viu duas mãos abertas e muita luz. – Era a Virgem Maria, eu vi, igualzinha à imagem da casa de voinha! Era ela, sim! No dia 2 de março, era o seu aniversário de 12 anos. E Neném se levantou sem febre como milagre. – Meu presente! – E Mar brincava no tanque fazendo-se rios de água doce. Todo dia levava flores nos bolsos de chita, espalhava fios de anilina no bolo preto das
madames e arranhava-se nos pés de algaroba correndo com os cachorros – no tempo bem azulzinho, quando brincava de balão no terreiro.
É, Leitor, Mar não sabia, mas estourava esperança em pó.
E todo mundo amava os olhos grandes de Mar, a menina com cheiro de cravo e alecrim. – A roda não para – dizia Neném, agora dançando ciranda.
Naquela manhã, Mar não levantou cedo. Neném estranhou. Procurou pela casa e gritou o seu nome pelo terreiro. Bernardino e Zita se desesperaram pelas estradas na tentativa de encontrá-la. O povo de Caiçara se juntou na busca até de noite e com velas.
Mar desapareceu como por encanto... Até o céu chorou de saudade. E, durante três dias, choveu forte e o vento soprou sem se aquietar.
O tempo passou redondo como a vida. Numa tarde de domingo, o sol já estava na barra, seu Zé sentiu um cheiro de alecrim e cravo na calçada da mercearia; as irmãs da Casa da Mangueira notaram a alegria dos ca-
chorrinhos. Lili e Nona ouviram um rodopio de vento. As beatas Jacira e Clotilde encontraram anilina azul no bolo preto. E tantas outras histórias que não caberiam neste livro.
E uma onda verde se espalhou como vento na região: Bibi, que não enxergava direito, leu toda a cartilha do ABC; Junim, atrasado em matemática, conseguiu passar para o quarto ano com louvor e até Josefa perdeu o medo de escuro. No alto da Serra da Gameleira, fizeram um santuário, o povo vinha de longe rezar à Santinha. – Verdade, vó? – perguntou interessado o pequeno Aldrinho. – Sim, meu filho. Hoje a Cidade se chama Caiçara do Rio do Vento, em homenagem àquela menina de olhos imensos. O povo ainda sente o cheiro de alecrim e cravo nas varandas. Os mais antigos dizem que Mar veio para a capital, como um rio a cumprir a sina do seu nome. – Vó, a senhora tem olhos de graúna também, né?
Fim.
– Espere, Leitor! Essa história não tem fim, é redonda, a roda não para!
Maria era o seu nome...