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Espectros do trem
ESPECTROS DO TREM
23 de julho de 1971, chove em São Paulo, Ivani senta-se em uma cadeira da escrivaninha e datilografa, alheia ao som do telefone e ao apito do trem que passava em frente ao edifício.
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Os raios de sol nem tinham chegado à cama, eu sabia: ele viria. Entraria por aquela porta, no auge da minha loucura, a via torta, duas portas, dois destinos, mas só havia um: ele viria. Eu me precipitei, levantei, caí. Não era uma fraqueza comum, era nas veias. O sangue que tanto me acusaram de não ter corria, velozmente, por cada veia. E não conseguia ficar em pé. A cabeça estava certa, o corpo se contorcia e a certeza que ele viria me angustiava. Por quê?
– É o fado, o destino reservado a cada um e só.
O telefone soa mais uma vez. Ivani não pisca, continua a datilografar e joga os escritos no chão.
E o meu sangue, seria vermelho? Às vezes, imaginava que os meus líquidos eram multicolores e desarmonicamente se uniam, cor a cor, formando e deformando as cavidades, pequenas células, de mim mesma. Era a coloração, sim, ela me impedia de ver o mundo. As cores estavam dentro, tudo fora era cinza e pastel. Até quando o conheci... 12 de setembro de 1971, o relógio acusa o avançar da noite. Ivani está nua na cama. Abre a porta e recolhe o prato de comida no chão. Ao redor, um universo de papéis datilografados.
Preciso me levantar e se ele não vier? Talvez seja um devaneio, fruto da mente ressequida. Quero água!
E o presente?! Chorei ao abrir a caixa, tão meigo, singelo e irreal; eu sempre tão dura... Seria agora sintoma da demência?
E o relógio bateu outra vez. − Maldito! 10 de março de 1972, Ivani não consegue levantar. Olha para o teto onde vê uma pichação ilegível em vermelho. Os apitos do trem ecoam. É ele? E se eu me escondesse dentro de algo, uma caixa. Melhor, se me queimasse? A ideia do fogo sempre me fascinou, pegar nas brasas, ser forte e consumida num orgasmo de dor – sou fraca, esse zum-zum no ouvido... Tudo é nada, fruto de um olhar que me ameaça. Meus pelos se levantam. Tenho frio e lembro-me das areias. Estava numa praia, qualquer praia... E se ele não me visse? Há muitos cegos por aí. Ele não. Ele é rápido e certo. Quão bom seria se hoje fosse sábado, eu não iria para a loja. Senhor Leitor, qual é o dia da semana? Eu quero é ser um Samsa ou uma centopeia, com tantas pernas, eu seria mais rápida. Quem sabe esse escritor ordinário possa realizar meu desejo. Não! Ele não quer, seria fácil demais. E se eu não abrisse a porta? Ele entraria. Ele pode tudo. 31 de janeiro de 1972, sons de batidas crescentes à porta do quarto. Ivani está novamente nua de bruços na cama.
− Vinho, quero vinho. − Meu Deus! O que é isso?! − Sou livre, livre, livre... 5 de maio de 1972, cinco da tarde, Ivani escuta batidas na porta. Dessa vez, levanta-se. Ele entra e a olha, com desejo. Eles se abraçam e começam a dançar uma música de Piaf. O som do acordeom ecoa no quarto e se mistura aos apitos do trem. − Ivani, abra essa porta!
Após 30 minutos, Marcos e dois auxiliares quebram o cadeado e entram no cômodo. Aos pés da cama, está o corpo de Ivani ainda quente. O enfermeiro observa um pedaço de papel na boca da defunta, um calafrio percorre-lhe a espinha. Quase sem voz, pede aos auxiliares que saiam do quarto e liguem para a funerária. A temperatura do quarto começa a cair, Marcos desdobra o papel e lê o escrito datilografado. O chão treme mais uma vez e o apito ensurdecedor do trem toma conta da cena. Marcos se dirige à penteadeira e pega um batom carmim. Sem hesitar, o enfermeiro
se encaminha ao espelho da cabeceira e escreve em letra cursiva: “Ele voltou”.
tela em black. Sobem os créditos finais.