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Da jornada de ir e não ir

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Carnaval

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DA JORNADA DE IR E NÃO IR

Quando a vi não conseguia parar de olhá-la, fiquei quieto. Olga sorria com um saco de latinhas recolhidas na casa de repouso. Segunda-feira, frenesi de gente, empurra-empurra. Marchava entre os médicos, cumprimentava as pessoas, em meio ao corre-corre.

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No íntimo, sabia que ela ria para mim. De longe, parecia que profetizava histórias de um fim de mundo. Ao desviar o olhar para um colega, subitamente, veio em minha direção. – Pode me perguntar, moço? Você sabe que ouço vozes? – Que tipo de coisas você ouve? – Que vão construir uma teia de mentiras sobre o mundo. E vocês serão comidos pelas beiradas.

– A voz é alta? – É só um murmúrio, um aviso.

Ficou séria, desapareceu.

O engraçado é que não a esqueci. Continuei minha carreira, pesquisa, residência, até comprei um apartamento. Faz dez anos daquela visage. Aproveitei esse tempo em casa para meditar. Confesso que ruas mais vazias me ajudam a pensar melhor: o que significariam aquelas palavras?

Três de abril de 2020.

Ontem, no chuveiro, descobri. A profecia se dirigia a você. Sim, Leitor, era a você que ela falava naquela tarde. Você não ouviu? Por que você não lutou?

Vou lhe confessar: apesar dessas paredes, eu ainda a vejo, no mesmo corredor. Ela resiste às trevas e às fogueiras desse tempo. Olga ainda me olha e acena, dessa vez, na margem invisível do rio.

VARANDA

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