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Elogio aos fantasmas
ELOGIO AOS FANTASMAS
Era véspera de São João de 2020, eu ia para o Carrefour apressada, um carro cinza me seguiu. Três buzinas, fingi não ser comigo, aprendi a me tornar invisível aos assobios e sorrisos maliciosos. Onde já se viu um flerte em plena pandemia?
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De relance, vi que um homem dirigia o Fiat Doblò com olhar lascivo. Um frio percorreu meu corpo. Tentei desanuviar. Lembrei-me daquela noite em Buenos Aires quando conheci Martin, traços morenos, um guaraná e um sorriso. Apesar do portunhol e da timidez, conversamos horas sobre o tempo, religião, ditadura, tango e amores. Chovia na Avenida 9 de Julio, quem se importa? Senta-
mos nas calçadas da Corrientes ainda úmidas e o mundo parou.
Foram três dias entre San Telmo, Puerto Madero e Palermo Soho, caminhávamos quilômetros, comíamos e nos jogávamos nos parques, nossos corpos esgotados de tanto amar. Era o ano de 2007, os prédios bailavam acima de nossas cabeças. Alheios ao meu retorno iminente ao Brasil, follavamos como se fôssemos os últimos a povoar a cidade de Cortázar. Parecia-me que ele não retornaria ao Japão e à esposa, em poucos dias.
Outra buzina trouxe-me de volta. Dessa vez, era um motoqueiro desviando com rapidez para não me atropelar. − Presta atenção, vadia!
Absorta nesse acontecimento, eu me apressei na derradeira ladeira: na bolsa uma lista de miudezas e um pote de álcool em gel que usava a cada cinco minutos.
Alguém informava sobre a promoção de papel higiênico. Um terceiro, com cartelas nos bolsos, vendia um medicamento fake para a doença. Na tv, terraplanistas pregavam con-
tra o marxismo cultural. Um evangélico de bíblia na mão e gravata gritava versículos sobre um iminente apocalipse, arrependimentos e fogo do inferno. Duas moças olhavam a cena, indiferentes.
Consegui vencer a aglomeração de pessoas desesperadas por comprar. Nas mãos, a lista de sempre: café, leite e um quilo de desesperança.
No meio da multidão, revi um sorriso. Seria possível, 13 anos depois, ele estaria aqui? Exasperei-me para sair dali, não me importei com as sacolas esquecidas no chão, corri em busca daquele espectro que se afastava. Pisquei os olhos duas vezes. É ele, com certeza. Vi que tomava o caminho do ponto dos ônibus. Não poderia perdê-lo. De cima da escada, eu o vi se aproximando do 73. Examinei minhas roupas amassadas, os cabelos desgrenhados. Ele me reconheceria? Corri.
Entrei no ônibus, engolida pelo cansaço, a visão se turvou, ouvi gritos. Muita gente à frente. Até que, impaciente, o motorista interpelou-me:
−Como eu disse, a senhora não pode embarcar no ônibus.
Sem entender a interdição, paralisei à porta. Outras bocas atrás de mim gritaram: − Está sem máscara.
Desci atônita. O motorista seguiu alheio às fantasmagorias do amor.