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Os pássaros

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Carnaval

Carnaval

OS PÁSSAROS

Essa é a história de alguém que não esqueceu. Condenado a sempre lembrar, como o personagem de Borges. A memória é um tijolo na retina.

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A minha primeira lembrança dele é clara: estávamos nós, no Beco da Lama, no centro da cidade, noite de folia de Carnaval. Depois do Desfile das Kengas, restavam apenas uns poucos animados e muito suor. Eu sorria, ele me olhava, foi tudo.

Vieram os anos de luta, de golpes e ódios: “Fora petê!” e “Minha bandeira jamais será vermelha!”. Nas ruas, o revi. Dessa vez, não me reconheceu.

Passaram-se oito anos desde os últimos acordes do “Ó Abre Alas” que meus ouvidos ainda teimam em escutar. Eu estava outra vez naquele beco, agora com as bagagens de uma história forjada em desencontros, quando nos revimos. Naquela tarde de samba, ele sorriu, me beijou e entrou em minha carne.

No Bardallos, ao som de Raul, nos beijamos e enfrentamos o mundo, com cheiro de cebola e saliva. Ele vestia camisa branca, bermuda preta, tênis, óculos e sorrisos.

É, Leitor, beijos com cheiro de cebola. Apenas bobagens de quem está condenado a nunca olvidar.

Omar entrou na minha vida e bagunçou as gavetas, as meias e as malas. Ele “dois para lá e eu dois para cá”, na canção de Renato Braz. E fez promessas. Numa noite quente, entre sorrisos, me dizia que estaria comigo até que desligassem os meus últimos aparelhos. Rimos da piada fúnebre e sorrimos no sempre querer-mais dos enamorados. Era manhã de um domingo, as andorinhas cantavam na janela.

O tempo passou, eu o procurava desesperadamente nas entranhas, nos becos, encontrava silêncios e noites maldormidas. Foram tantas, eu até esqueci de chorar. Chegou o Natal, não houve presentes. −Terminamos!

À noite, uma cama vazia. Alheias a isso, as andorinhas teimavam em cantar.

Depois do Carnaval, um reencontro e um abraço. −Você por aqui?

Eu sorria e solfejava com os pássaros. −Quando se volta, se volta inteiro! E assim fomos: eu e ele, nós e uma multidão.

Pandemia mundial. Quarentena. Confinamento. Na vida real, o amor líquido escorreu no ralo do desencontro. Fim. A sete quilômetros, ouvi o último sino do Bardallos e as andorinhas, não sei se por respeito ou razões inexplicáveis da existência, resolveram, por fim, silenciar.

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