BL 174 março/abril 2023

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BORDO LIVRE

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MARÇO/ABRIL2023

REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
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AMADEU ALBUQUERQUE

Há uns meses estive a ler um artigo acerca das desvantagens de escolher a vida marítima e fiquei aterrorizado Credo, nunca na minha vida escolheria ser marítimo!

Depois, olhei para o espelho e exclamei: espera aí, eu sou marítimo há 50 anos! Que diabo de escolha, ainda bem que só li aquilo agora! Olha do que eu escapei! No entanto, acabei a pensar o que poderia eu dizer às novas gerações que traga alguma esperança a estes tétricos horizontes Na verdade, com os MASS a chegar em grande velocidade, haverá lugar para jovens (ou não jovens, na verdade)?

Bom, vamos à situação atual, uma coisa de cada vez Quando se fazem inquéritos acerca da razão pela qual jovens escolhem a carreira marítima, uma das primeiras razões apontadas é o trabalho em ambientes multiculturais Aprendemos como outras culturas reagem de maneira diferente da nossa, perante determinada situação Isso parece enriquecer-nos intelectualmente, somos menos discriminatórios e mais tolerantes (já sei que isto é um mau motivo para muitos )

Claro que temos esta experiência enquanto viajamos pelo mundo, contactamos outros povos, vemos cenários fantásticos e, surpreendentemente, aprendemos que a terra não é plana e que a distância mais curta entre dois pontos é, na verdade, uma curva Nunca pensei estar a defender esta ideia no século XXI, mas nunca deixo de me surpreender com as pequenas maravilhas do cérebro humano.

Hoje em dia, outra grande vantagem é relacionada com os ordenados que se praticam, frequentemente isentos de muitos impostos, devido à legislação de cada país e com comida incluída

O tempo de férias tem crescido Há que procurar uma companhia onde a relação entre o período de trabalho e as férias seja bem definido É verdade que não temos fins de semana mas, quando chegamos, temos mais tempo livre e, normalmente, sem perder tempo a ir de e para o

MEDITAÇÕES PRESIDENCIAIS NOVAS GERAÇÕES

trabalho Na maior parte das empresas (infelizmente, não em todas ) a rotação está definida com cerca de 10 a 12 meses de antecipação, o que nos ajuda a programar a nossa vida

No final, o facto de termos responsabilidades importantes, mesmo no mais baixo nível, estarmos habituados a pensar em termos de segurança, proteção e ambiente, parece ser bom argumento no nosso CV, para trabalhar em terra

No lado menos bom, estamos ausentes por períodos longos e, muitas vezes, perdemos acontecimentos importantes na nossa família e amigos Durante dezenas de anos, o meu Natal era passado bastante longe de casa e, embora a vantagem económica de não comprar nem receber presentes de ninguém seja importante, pessoalmente senti muita falta de filhoses e bolo-rei

Também é verdade que, nos primeiros anos da minha filha, eu não era conhecido como o papá mas sim como o gajo que vinha dormir com a mãe, ocasionalmente Isso só mudou quando a garota descobriu que o paizinho, por causa das saudades, a estragava com mimos cada vez que aparecia, muitas vezes para irritação da minha mulher

Na idade em que estamos pensando em constituir família, fica bem difícil encontrar o/a/e parceiro/a/e num navio de carga com 15 tripulantes Se estivermos num navio de cruzeiro, o normal é acabar casado/a/e com alguém do outro lado do mundo, com todas a vantagens e desvantagens associadas, a menor das quais não é ter que dividir onde morar e o dinheiro gasto em visitas à família de um ou outro lado Já agora, chamo a atenção para o meu esforço em ser socialmente correto e tentar cobrir todas as possibilidades de género, esperando ter estado bem

Não existe isso de 40 horas semanais Devemos considerar mais realista um número entre 60 e 70 horas semanais, mas isto varia muito conforme o tipo de navio Claro que o sistema de quartos garante, à partida, 8 horas diárias, portanto 56 horas

semanais No entanto, a carga burocrática aumentou muito e a papelada exigida consome muito do nosso tempo

Por outro lado, o espaço em que nos movemos é pequeno, por muito grande que seja o navio e, com mau tempo, é costume ter ocasião de fazer uns vídeos engraçados, que tenho visto na net. Mas quando estamos cansados e queremos dormir, ter que fazer uma cama com truques especiais, do tipo “ em V” para não cair dela abaixo, com o balanço, é uma experiência que contribui muito para a nossa aprendizagem de palavrões em várias línguas Mais um fator de enriquecimento espiritual.

Antes de terminar, um momento para refletir acerca do futuro, com os MASS a chegar Na verdade, ainda não sei bem se o termo MASS se aplica a navios controlados remotamente e sem humanos a bordo ou a navios controlados remotamente, mas com alguns humanos a bordo Se calhar, aos dois tipos

A discussão atual, interessantíssima, tem um aspeto fulcral, que se resume a saber quem será responsável, quando alguma coisa correr mal Agora, parece que é aconselhável ter um comandante a bordo Vem-me imediatamente à cabeça a piada, antiga, de que os navios do futuro terão só dois tripulantes, um cão e o comandante O comandante serve para ser responsabilizado por tudo o que corra mal O cão serve para impedir o comandante de tocar no computador que na realidade, controla o navio

Independentemente da piada, o que reserva o futuro, para os atuais praticantes a oficiais? Estão estudando para ficar em terra, copiando controladores aéreos? Ou serão só gestores de carga, a bordo? Não tenho nenhuma dúvida de que os navios de passageiros necessitam de humanos E os outros?

Bom, procurei lançar alguns desafios, para ver se os nossos colegas mais jovens se animam a discordar de mim e a dizer de sua justiça No final, não existe nada melhor, para uma boa conversa, do que amigos/as/es com opiniões diferentes.

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DIRETOR

Lino Cardoso

COLABORARAM NESTE NÚMERO

Amadeu Albuquerque, Bárbara Chitas, Alberto Fontes, Senos da Fonseca, Ana Lopes, D'uarte, João Marques, António Sena OS TEXTOS ASSINADOS SÃO

DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES

COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias

TIRAGEM 1000 exemplares

PERIODICIDADE Bimestral

REG PUBL 117898

DEPÓSITO LEGAL 84303

CORREIO EDITORIAL Despacho

DE10522023GSB2B/jan

PROPRIETÁRIO/EDITOR

Clube de Oficiais da Marinha Mercante

Trav S João da Praça, 21 1100-522 Lisboa

Tel (+351) 218880781 www comm-pt org secretaria@comm-pt org

CAPA @ A S Ramos

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS

DA MARINHA MERCANTE

SUMÁRIO

MARÇO/ABRIL 2023

Meditações Presidenciais

Amadeu Albuquerque

COMM Natura

Sabedoria do Mar

Alberto Fontes

O Naufrágio do Corajoso Capitão Manuel F. Caneca Joaquim Saial

A Salga, na exposição Faina Maiorde 1992

Ana Maria Lopes

Histórias " Marebolantes " II

D'uarte

SenhoradoMar

João David Marques

ABibliotecadoCOMM

António Sena

« O Barateiro »

Senos da Fonseca

Os Jovens e o Mar

Bárbara Chitas

A REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL ONLINE para leitura, duma forma fácil e intuitiva em http://issuu com/clubeoficiaismarinhamercante/docs/bl174

HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DA SEDE DO COMM 2 ª , 3 ª , 4 ª , 5 ª , 6 ªF - das 15h00 às 18h00

A SEDE DO CLUBE DISPÕE DE LIGAÇÃO

PAGAMENTO DE COTAS: NIB 001000006142452000137

DIA DA MULHER NO MAR

No próximo dia 18 de Maio comemora-se o Dia Internacional das Mulheres no Sector Marítimo

Através da Resolução A 1170(32), de 09 12 2021, a IMO estabeleceu este dia celebrando as mulheres na indústria marítima, promovendo o seu recrutamento, permanência e sustentabilidade do seu emprego no sector marítimo e aumentando o conhecimento geral do perfil destas profissões. Desta forma fica também fortalecido o compromisso da IMO com o Objectivo de Desenvolvimento Sustentável 5 das Nações Unidas (Igualdade de Género).

A resolução convida todos os membros da IMO, a indústria marítima e todos os envolvidos na actividade marítima, a promoverem e celebrarem o Dia Internacional das Mulheres no Sector Marítimo de forma apropriada e significativa Mais de quarenta anos depois de ter deixado a Escola Náutica, as mulheres deixaram de trazer má sorte aos navios

O NAVIODE SARAIVA CABRAL

JOSÉPAULOSARAIVACABRAL

O NAVIO E AS INSTALAÇÕES DE BORDO descreve o navio cobrindo a riquíssima terminologia portuguesa da sua arquitetura, estrutura, instalações, equipamento e aprestamento

Começa com uma introdução às características e nomenclatura geral do navio, seu enquadramento legal e regulamentar, aprofunda a estabilidade e os respetivos cálculos. Prossegue com a abordagem à resistência estrutural, estruturas, sua função e manutenção Esquipamento relacionado com a carga, sejam contentores, granel, carga refrigerada ou passageiros O equipamento específico do navio como: leme, ferros, amarras, amarração e náutico Equipamento para as pessoas a bordo, para gaantir a habitabilidade e a segurança Componentes principais de máquinas: propulsão e produção de energia e os respetivos sistemas de suporte: encanamentos, tomadas de fundo, bombas e permutadores de calor Sistemas gerais dos navios como lastro, esgoto, combate a incêndio. Finalmente, uma reflexão sobre os princípios da resistência hidrodinâmica do navio e a problemática associada

Engenheiro naval pela University of Strathclyde de Glasgow, na Escócia Serviço na Armada de 1972 a 1974, com passagem pela Guiné Bissau, onde trabalhou no Serviço de Assistência Oficinal da Marinha Professor de arquitetura naval na Escola Náutica Infante D Henrique durante dez anos, desenvolveu os programas e lecionou as disciplinas de Estabilidade, Resistência Estrutural do Navio, Hidrodinâmica e Propulsão, dos oficiais de pilotagem de máquinas Autor do livro "Arquitetura Naval, estabilidade, cálculos, avaria e bordo livre", Centro do Livro Brasileiro, há muito esgotado Fundou, geriu e desempenhou funções técnicas durante 30 anos na empresa Navaltik Portugal, mais tarde, Navaltik Management, onde realizou inúmeras peritagens, projetos de navios, fiscalização de construções navais e estudos correlacionados, em Portugal e por esse mundo fora Nesta empresa adquiriu conhecimentos e experiência de gestão da manutenção, sedimentados em dois livros de referência: "Gestão da Manutenção, dos conceitos à prática", em 6ª edição, e "Gestão da Manutenção de Equipamentos Instalações e Edifi icios", em4ªedição,ambospublicadospelaLidel.

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Lançamento 11 Maio 2023 pelas 15h00 Auditório do COMM

Negociadores de mais de 100 países concluíram (a 4/abril/2023) um tratado da ONU para proteger o alto mar, uma medida há muito esperada por grupos ambientalistas, e que poderá ajudar a reverter as perdas de biodiversidade marinha e garantir o desenvolvimento sustentável

O pacto juridicamente vinculativo para a conservar e garantir o uso sustentável da biodiversidade oceânica, encontrava-se em discussão há 15 anos, tendo sido, agora, finalmente, acordado após cinco rondas de negociações prolongadas, lideradas pela ONU

“O navio chegou a porto”, disse o presidente da conferência da ONU, Rena Lee, após uma maratona de negociações no último dia

O tratado é visto como um componente crucial nos esforços globais para proteger 30% das terras e mares do mundo até o final da década, uma meta conhecida como “30 por 30” acordada em Montreal em dezembro

Os interesses económicos foram o grande ponto de discórdia durante a última ronda de negociações, que começou em 20 de fevereiro, com os países em desenvolvimento a pedir uma parcela

maior dos despojos da “economia azul”, incluindo a transferência de tecnologia

Um acordo para compartilhar os benefícios dos “ recursos genéticos marinhos” usados em setores como a biotecnologia também se constituiu uma área de discórdia até o fim, atrasando as negociações.

COMM NATURA ONU ASSEGURA PACTO

GLOBAL DE BIODIVERSIDADE EM ALTO MAR

A Comissão Europeia já saudou o acordo como um “momento histórico” “Com o acordo sobre o Tratado de Alto Mar da ONU, damos um passo crucial para preservar a vida marinha e a biodiversidade que são essenciais para nós e para as gerações vindouras”, disse Virginijus Sinkevicius, comissário europeu para o meio ambiente, oceanos e pescas O Greenpeace diz que 11 milhões de quilómetros quadrados (4,2 milhões de milhas quadradas) do oceano precisam ser protegidos todos os anos até 2030, para que seja atingida a meta Muito pouco do alto mar está sujeito a qualquer proteção, com poluição, acidificação e sobrepesca a representarem uma ameaça crescente.

“Os países devem adotar formalmente o tratado e ratificá-lo o mais rápido possível para colocá-lo em vigor e, em seguida, entregar os santuários oceânicos totalmente protegidos de que nosso planeta precisa”, disse Laura Meller, ativista dos oceanos do Greenpeace que participou das negociações

A Suécia, que esteve envolvida nas negociações como titular da presidência rotativa da UE, disse que o acordo é o “acordo ambiental internacional mais importante” desde o Acordo de Paris de 2015 sobre o combate às mudanças climáticas “Também é uma vitória para a ONU e para o sistema global termos conseguido entregar um acordo tão importante num momento muito desafiador”, disse o ministro das Relações Exteriores da Suécia, Tobias Billstrom, em comunicado escrito

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ALBERTO FONTES

SABEDORIA DO MAR A CIRCUM-NAVEGAÇÃO DA TERRA

Este tipo de viagem que hoje vos trago, move muitos entusiastas, com os mais variados intuitos Há quem as faça rodeado de todo o luxo do mundo, em navio o mais seguro que se possa imaginar, na viagem mais bela e sonhada, dispondo de abundante mesa como se tem em hotel, com iguarias e bebidas à escolha, sabendo a posição onde está, para onde vai, quando chega e aquilo que o espera

Em caso de haver algum percalço, contam com as comunicações com terra, mesmo que esteja bem distante, onde procurarão encontrar soluções e se necessário chegarão todos os auxílios Outrora, foi bem diferente, para aqueles ousados, que nos deram a conhecer os mares imensos, que então eram desconhecidos, sempre expostos ao perigo, com os tormentos das privações Durante anos, ninguém sabia por onde andavam, nem eles próprios sabiam para onde iam

Entre os obstáculos que precisavam ser vencidos para desbravar os mares, nenhum supera a dureza do quotidiano nas caravelas. Eram embarcações com 20 a 30 metros de comprimento e 6 a 8 metros de boca, onde vivia uma comu-nidade diversa, que podia chegar aos 120 homens.

O abastecimento e a alimentação constituíram um problema permanente Os géneros embarcados tinham péssima qualidade. Estavam muitas vezes deteriorados logo no início da viagem e apodreciam em pouco tempo O rol dos produtos oficialmente embarcados, incluía carne vermelha defumada, peixe seco ou salgado, favas, lentilhas, cebolas, vinagre, banha, azeite, azeitonas, farinha de trigo, laranjas, biscoitos, açúcar, mel, uvas-passas, ameixas, conservas e queijos Também eram transportados barris de vinho e água, embora passadas algumas semanas, o vinho se transformasse em vinagre e a água ganhasse larvas Para garantir a presença de alimento fresco, iam a bordo alguns animais vivos, como galinhas, bovinos, porcos, carneiros e cabras, que faziam imenso esterco e urina, o que contribuía para agravar, o quadro de doenças entre a tripulação. A ausência de hábitos básicos de higiene, piorava os estragos causados pelo alto grau de deterioração dos víveres

Era heroica a vida a bordo. Velas eram o único meio de propulsão, que dependia do vento, que se apresentava caprichoso, inconstante, variável, quer em força como em direcção, de regime ignorado em toda a sua grandeza e complexidade

Para o aproveitar era necessária ciência e habilidade de marinheiro Não esquecendo ainda o alto e magno problema de

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melhor aguentar o mar, numa luta desigual onde o homem só vencia pela astúcia, saber náutico, aperfeiçoamento na solidez e tamanho do barco, habilidade de manobra, de coragem e fé, para muitas vezes, vencer um mar em fúria ou sobreviver às inclemências do clima e à hostilidade dos povos indígenas. Fernão Magalhães é considerado como o primeiro homem que planeou fazer por mar, a volta ao mundo Considerado uma figura-chave na história dos Descobrimentos e na história Universal, marcou o início do conhecimento global da Terra A viagem deste português, numa das épocas mais fascinantes e ricas de sempre em Portugal, só foi possível devido à notável escola de marinharia, onde figuravam homens experi-mentados na arte de navegar, versados em cosmografia e ciências afins, produ-zindo tratados náuticos, roteiros, cartas de marear. Paralelamente desenvolve-se a construção naval em madeira, passou-se da caravela para a nau para poderem ir mais longe, com navios cada vez mais adaptados ao objectivo da viagem e mais capazes, conforme era exigido pela em-presa da Expansão Marítima do reino de Portugal. Foram estas as bases para que esta viagem verdadeiramente épica, tornasse Fernão Magalhães num homem universal e uma figura ímpar do seu tempo. Com o avanço da navegação corrigiram-se ideias sobre geografia; modicaram-se encurtando-as em tempo, rotas comerciais; estabeleceram-se relações entre povos distantes; modificou-se a economia das nações e criaram-se laços de entendimento entre civilizações avançadas que mutuamente se desconheciam.

Em pleno século XXI, a 14 ª edição de circum-navegação à vela profissional, faz-se em embarcações construídas em fibra de carbono, com 10 metros compri-mento e 6 metros de boca, com 950 Kgs, dispondo de um mastro com 16,5 metros, capaz de envergar duas velas, tudo com o objectivo de satisfazer os requisitos de velocidade na água Os barcos IMOCA irão fazer 32 000 milhas, tendo na 3 ª etapa o record de 12 750 milhas quando navegarem os três Oceanos o Índico, o Pacífico e o Atlân-tico durante um mês e três semanas entre a cidade de Cape Town e Itajaí no Brasil Por sua vez os barcos da classe VO65 só competirão nas três etapas europeias, onde como Skipper da embar-cação totalmente portuguesa, está o nosso associado António Fontes, que desta forma, segue a linha profissional de outro oficial piloto da Marinha Mercante o João Cabeçadas, que agora a trabalhar em terra na preparação, desenvolvimento e teste da tecnologia aplicada nas embarcações, sendo o sua competência, fundamental para os êxitos da medalhada, equipa de vela profissional, a Suíça Alinghi.

Enorme orgulho para Portugal e para a Escola Superior Náutica Infante D. Henrique, que vê reconhecidos a nível mundial, dois dos seus formados Para a comunidade de velejadores profissionais, esta regata está imortalizada, pela dureza da prova, por ser a mais prolongada em duração, pela exigência em resistência física e psíquica, aquela em que o perigo está sempre presente, exigindo dos que nela participam, cora-gem, ousadia e determinação.

A REGATA tornou-se também numa excelente embaixadora, que promove a apetência para a modalidade da vela pelo Mundo, acontecendo tudo isto, pela espectacularidade das imagens que propicia

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A primeira vez que observámos referências relativamente alargadas ao capitão Caneca foi na capa do jornal americano de língua portuguesa “Alvorada Diária” de 21 de Março de 19191 A notícia, datada do dia anterior e de Providence, dizia que ele estava a comparecer diariamente perante os inspectores da navegação dos Estados Unidos, submetendo-se a um exame destinado a conseguir a licença de comandante de vapores Segundo se afirmava, era bem conhecido naquela cidade e em New Bedford, como capitão de veleiros da carreira de Cabo Verde2 para estes dois portos E até já comandara o vapor “Liberia” em viagem na costa de África (onde ele e toda a tripulação haviam contraído beribéri), mas como este navegava sob bandeira britânica, isso não contava para as autoridades marítimas americanas Um mês depois, a 18 de Abril e no mesmo

1 No “Ship Registers and Enrollments of Providence, Rhode Island, 1773-1939, Volume 1” , a escuna de dois mastros “Nannie C Bohlin” construída em Gloucester, Massachusetts, em 1890, pertencia em 1905 ao capitão Caneca; em

HALTER, Marilyn “Between Race and Ethnicity: Cape Verdean American Immigrants, 1860-1965” , University of Illinois Press, 1993, encontramo-lo a comandar a escuna “Elisabeth T Doyle” em duas viagens para a ilha do Fogo, onde chegou a 19 de Setembro de 1911 e talvez a 5 de Maio de 1912 (a indicação sobre a segunda viagem não identifica local de chegada, podendo ser também, eventualmente, a ilha Brava)

2 A chamada “Carreira de Cabo Verde” era feita por escunas e barcas, navios que muitas vezes haviam sido antigos baleeiros As ligações faziam-se sobretudo entre Providence, Boston e New Bedford e as ilhas cabo-verdianas da Brava, Fogo, Santiago e São Vicente

O NAUFRÁGIO DO CORAJOSO CAPITÃO DE VELEIROS MANUEL F. CANECA E DA ESCUNA “GABRIELA”

periódico3 , voltamos a encontrá-lo E ficamos a saber que era bem conhecido em ambas as cidades acima referidas, onde contava “muitos amigos, principalmente entre a colónia cabo-verdiana, tendo feito muitas viagens entre este porto [New Bedford] e o de Providence e o arquipélago de Cabo Verde” Simultaneamente, anunciava-se que partira para Mobile4 , onde iria tomar o comando de uma grande escuna de três mastros, acabada de construir e que seguiria com carga para Lisboa Pouco depois, a 25 de Junho5 e ainda através do “Alvorada Diária”, saber-se-ia que a dita escuna, a “Gabriela”, naufragara no Golfo do México e que o capitão e mais dois tripulantes haviam morrido afogados Acontece que a “Gabriela” era um de quatro veleiros que o seu armador contratara com o governo português, para viagens entre os Estados Unidos da América e Portugal

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4 No estado do Alabama

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Desta feita levava “madeira para vasilhame”, o que nos faz supor que seria madeira para fabrico de pipas e barris, talvez o carvalho americano ainda hoje utilizado para esse efeito6 O relato do desastre, feito pelos quatro sobreviventes, revelava que a escuna abrira água durante uma tempestade, escassos dias após ter zarpado do porto de origem “Foram usadas as bombas de mão e as movidas a gasolina, mas sem darem vencimento, conhecendo-se dentro em poucas horas ser impossível evitar o naufrágio”, diziam. E que o capitão Caneca mandara arriar o bote salvavidas e dera ordens para que pilotos e restantes tripulantes saltassem para ele Como bom capitão, Caneca não abandonou o seu navio e por solidarie-

6 O Wreck Site, em nota de Jan Lettens de 26 de Novembro de 2015 , diz que a carga era de aduelas e argolas de aço [aros], o que confirma que se tratava de material destinado ao fabrico de recipientes de madeira para líquidos e que o naufrágio se deu a 4 de Junho Para além disso, segundo Lettens, o navio dirigir-se-ia para o Porto

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dade com ele ficaram os seus amigos, o primeiro piloto Joaquim Rosa e o moço de câmara António Rosário Lotes que assim também pereceram no naufrágio

Registe-se que por esta notícia se sabe que o capitão Caneca não só fizera viagens de e para Cabo Verde, como era natural das ilhas e que por azar seu abandonara o curso de capitão de vapores para comandar a “Gabriela”, “ por ser ele o preferido da companhia construtora”, para o efeito Deixou viúva Maria F Caneca e três filhas e um filho: Beatriz Senna (supomos que de outra mulher), Angelina, Jesuína e Ulysses Caneca7 Os quatro sobreviventes da tragédia e seus cronistas, todos moradores em New Bedford, foram o segundo piloto

Serafim Luiz, residente na Griffin St , o despenseiro Manuel Chor, domiciliado na Av Acushnet, o marinheiro Manuel de Almeida, seu vizinho, e o marinheiro João Semples, da School St Os estranhos apelidos Chor e Semples (e o anterior Lotes) estavam possivelmente americanizados, o que era vulgar e de certo modo comum entre imigrantes, por facilitar a assimilação. Salvaram-se quase por milagre, recolhidos por um navio-tanque inglês, depois de terem andado à deriva durante 16 horas, agarrados ao bote de salvação que se virara ao ser arriado Chegaram a New Bedford na noite de 23 de Junho

Fica assim pois aqui o que foi possível apurar para a memória de mais um capitão das ilhas, heroico lobo do mar cabo-verdiano, actor nessa grande e longa tragédia que foi a chamada “Carreira de Cabo Verde”. Ficou também para a posteridade a fotografia que ilustra este artigo, existente no Mystic Seaport Museum, em Mystic, Connecticut.

7 A família Caneca tem mais elementos referenciados nos EUA O “Diário de Notícias” de New Bedford de 16 11 1939, pág 2, no seu obituário, anota o falecimento de Boaventura J Gonçalves, com domicílio em New Bedford, cuja mãe era natural da ilha Brava e que, para além de outros, era irmão de Manuel Caneca, residente na Califórnia e de José Caneca, morador em New Bedford O site genealógico cabo-verdiano de Barros Brito (barrosbrito com/12771 html) contém um José Fortes Caneca, sem indicação de datas ou locais de nascimento e morte, mas que deixou descendência na ilha Brava

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A SALGA NA EXPOSIÇÃO FAINA MAIOR

DE 1992

ANA MARIA LOPES

A salga é a última operação que o bacalhau sofre, a bordo, indispensável à sua conservação e que é efectuada no porão

Este é o espaço do navio destinado à carga, limitado pela antepara da proa contígua ao paiol de mantimentos e ao rancho, e pela antepara da ré, que, nos antigos veleiros, era contígua aos aposentos dos oficiais (câmara ou salão). Neste porão, aparecem prumos de madeira no sentido longitudinal e transversal, que sustentam a estrutura do convés (os pés de carneiro) e ainda os vimes, que, no sentido transversal, ajudam à travação da ossada do navio É entre estes prumos, que, por colocação de madeira, se fazem as divisórias do porão – as panas Estas ainda são subdivididas em três partes chamadas hinos, dois à amurada (de bombordo e estibordo) e o hino do meio

Na impossibilidade de expor um porão inteiro, limitámo-nos a apresentar meia secção de um porão de um antigo veleiro, desde a sobrequilha até meia altura

Quando o navio se dirigia para os pesqueiros, o porão ia carregado de sal, só com uma das divisórias, a pana de proa vazia; esta levava, por vezes, barricas de farinha, amarras, apetrechos de pesca, remos, madeiras dos dóris, varas de eucalipto, isto é, material que, em viagem, era distribuído para estrafego e aliviava a pana

Iniciado o processo da salga, o peixe era passado do escorredouro do convés para o porão, através de uma mangueira de lona, caindo na dala, onde era garfado pelo passador de peixe para um dos hinos vazios, pronto a recebê-lo Aí, dois salgadores, vestidos de rou-pa oleada e botas de borracha, com os joelhos protegidos da humidade por joelheiras, ajoelhavam-se sobre um encerado, ligeiramente virados um para o outro, com o alfabuche entre os joelhos

O passador de sal (sempre sobre um hino com sal), gritava: “Sal! Sal! Sal!” e o salgador instintivamente puxava o balde de sal e despejava-o no alfabuche

O garfeiro ou passador de peixe, junto à dala, gritava: “Peixe! Peixe! Peixe!” e ia atirando o bacalhau para o meio dos dois salgadores. Estes gritos de aviso facilitavam a mecanização do serviço e faziam com que os salgadores quase instintivamente pegassem no balde do sal, sem olharem para ele e se acautelassem no sentido de não apanharem com algum peixe sobre as mãos, o que iria redundar por possível ferimento, em prejuízo do seu próprio trabalho. Os salgadores, consoante a posição em que se encontravam, agarravam no peixe com a mão direita ou esquerda e estendiam-no com os cachaços para as anteparas de vante ou de ré do hino e começavam a salgar o peixe á mão (só mais tarde as luvas de lã de cinco dedos, protegidas por luvas de borracha foram introduzidas), com mãozadas de sal, do cachaço para o rabo Seguidamente, a meio da canja (primeira corrida da salga de peixe com

cerca de meio metro de altura por meio metro de largura), punham o peixe quer de cachaço quer de rabo para a amurada, ficando todos os espaços; o peixe, ligeiramente mais alto a meio, fazia com que a salmoura escorresse para os extremos da canja Acabada esta primeira canja, os salgadores limpavam o sal caído no encerado e recuavam para fazer a mesma operação. Geralmente, faziam três canjas por hino do meio (estamos a exemplificar com meio hino) e para efectuar a terceira canja, passavam por cima do peixe salgado, viravam-se na posição contrária à que estavam, tapavam o último terço do hino e elevavam-se como se efectuassem, de novo, a primeira canja Este hino ia subindo, subindo, subindo, até cerca de dois metros de distância do tecto do porão. Safavam-se os hinos da amurada, indo o sal destes hinos para as panas contíguas (serviço feito com o auxílio de pás) e passavam a salgar os hinos da amurada…. E assim se ia repetindo sucessivamente a operação O peixe ia abatendo bastante devido à dissolução do sal, por força do balanço e sobrecarga de sal que levava em cima. Daí que, em anos de carregamento, houvesse duas operações finais: o abarrote e o empanque O abarrote consistia em salgar o peixe até ao cimo da pana desde que houvesse possibilidade do salgador trabalhar, muitas vezes já com a cabeça encostada ao tecto do porão: o empanque consistia em encher uma pana já abatida com peixe curado com bastantes dias de salga), de uma pana contígua

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Os salgadores eram pescadores com mais vocação para a salga e que se iam mantendo de uns anos para os outros Formação especial ou técnica, não tinham; iam aprendendo com a prática e essa escola ia-se aperfeiçoando durante a descarga, a que os pescadores assistiam, e ao verem a qualidade da salga, contrariavam a tendência de mais ou menos sal, no ano seguinte. Por mais arriscado que fosse o trabalho da pesca, por mais custoso e árduo que fosse o dos escaladores, o pior ainda era o dos salgadores Em algumas povoações de pescadores, mulheres havia que diziam aos filhos pequenos, quando faziam maldades: “Se não tens juízo, mando-te embarcar de salgador num navio de bacalhau” A posição incómoda, a frouxa claridade vinda da escotilha, umas pobres velas, os efeitos da humidade, as consequentes feridas nas mãos, a responsabilidade do trabalho controlado sistematicamente pelo capitão, faziam do cargo uma tarefa extremamente penosa

De recordar os utensílios: mangueira, dala (que não se veem na imagem), vertedouro, garfo de meio cabo, touco de vassoura, balde, pá, galão, joelheiras, encerado, alfabuche, tabuinhas e cachimbos, suportes de velas de estearina, com que se fazia a iluminação do porão

Ílhavo, 01 de Abril de 2023

CIMA: Secção de porão de antigo veleiro.

BAIXO: Imagem de Alan Villiers 1950

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Como ia dizendo, estávamos em Kobe, um dos principais portos do País do Sol Nascente, no dia 25 de agosto do ano de 1979, dia em que se iniciou o 1. º campeonato do mundo de futebol, versão sub-20 (na época era esta a designação, alguns anos mais tarde a designação etária foi alterada para sub-21) num país asiático. Grande surpresa para todos nós tripulantes acabadinhos de chegar a esta grande cidade, a série onde Portugal estava inserido iria decorrer precisamente na cidade de Kobe De imediato iniciou-se a preparação para uma excursão até ao estádio (pequeno campo de futebol local, relvado, com bancadas apenas num dos lados e com capacidade para 13 000 espetadores)

HISTÓRIAS "MAREBULANTES" II

Jogo inaugural: Canadá – Portugal, as bancadas estavam com não mais de 10% de espetadores, nada de portugueses, nada de canadianos, isto até chegar a comitiva dos Tugas vindos da nau Portuguesa (na altura ainda se usava a bandeira de todos nós) atracada no porto da cidade Perguntam os meus amigos: então se não havia canadianos nem portugueses a assistir a este jogo de abertura, quem eram os tais cerca de 1 000 assistentes na bancada? Boa questão, à boa maneira japonesa, os maiores em organização / planeamento, no outro extremo estão os portugueses (infelizmente), a organização deste torneio planeou organizar algum apoio a estas duas seleções vindas do outro lado do mundo e que, como seria expetável, não arrastariam multidões, por várias razões, entre elas, não serão alheias: o fato de não serem as seleções principais dos países em causa; no Canadá este futebol ser, principalmente nessa época, um desporto marginal; para além de tudo isto o povo japonês, na época, não dar qualquer importância a este desporto com efeitos opiáceos noutros povos, tais como o nosso

As claques (chamemos-lhe assim) eram compostas por crianças do ensino básico, não mais de 10-11 anos, metade com uma bandeirinha portuguesa para o lado direito, outra metade para o lado esquerdo com as respetivas bandeiras canadianas, cada um dos grupos tinha um chefe de claque, um rapazinho um pouco mais alto, luvas brancas e tambor Quando uma das claques soava: “PUM, PUM, PUM, PORTAGALÔ!”, a outra com as cores adversárias, metia a viola (tambor) no saco Repetidas umas 5 vezes esta cantilena, invertia-se a situação, tambor no saco português:

“PUM, PUM, PUM, CANADA” do lado contrário Isto tudo muito certinho até chegarem os barbudos dos Tugas que,

armados de “foghorn” de bordo, manual, acabaram por anarquizar tudo aquilo, não foi dada a mínima abébia aos assustados dos muito jovens pretendentes a juven’s ou no-names qualquer coisa, a bancada portuguesa cobriu-se rapidamente de lençóis desviados de bordo, pintados com slogans de apoio à Portuguesa, cada elemento da claque marinheira vestia as suas peças de roupa o mais aproximadas às cores nacionais, alguns, mais imaginativos, descobriram nos fardos do trapo que sempre existiam a bordo, alguns pedaços mais esverdeados e também cor de sangue que por ali se comprimiam, um sucesso em termos de apoios de todo inesperados pelos selecionados portugueses e respetivos dirigentes e técnicos Falta dizer que a equipa das quinas não correspondeu, de todo, a este enorme apoio, talvez desconcentrados com a claque extremamente barulhenta que tinha assentado arraiais na bancada, sofreram 3 golos de uma seleção mais que amadora, conseguindo apenas introduzir uma bola na baliza adversária – UMA VERGONHA!

No final do desafio toda a equipa veio agradecer o nosso apoio, que de nada serviu, excesso de confiança diziam os experts comentadores do jornal A BOLA que no dia seguinte ao encontro publicavam em Lisboa, na primeira página, uma grande foto da claque marinheira mais que inesperada. Ainda fizemos ao princípio da noite uma visita de cortesia ao grupo instalado num dos hotéis da cidade, trocámos algumas palavras com o selecionador, o Peres Bandeira e desejámos melhor sorte para os jogos que se avizinhavam

O dia já vai longo e um dia destes vou tentar reproduzir o que se seguiu Sejam felizes!

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D'UARTE

SENHORA DO MAR

JOÃO DAVID MARQUES

CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS

Comprimento 66,67 Mts

fora a fora

Comprimento 61,78 Mts

Boca 11,03 Mts

Pontal 4,83 Mts

TAB 1 177,56 Tons

TAL 658,43 Tons

Porto de Registo Lisboa, Porto (em 20-11-1952),

Aveiro (em 24-11-1969),

VianadoCastelo(em9-6-1987)e

Panamá (em Janeiro de 1990)

N º Oficial LX-36-N (em 16-05-1952)

P-782-N (em 20-11-1952),

A-2036-N (em 24-11-1969),

A-2972-N (em 4-1-1980),

A-3107-N (em 9-9-1981),

V-11-N (em 9-6-1987)

IIC C S A S

Motor propulsor MAK 750 BHP e MAK 1 380 BHP (em 1962)

Motor do molinete LLOYD DINAMOWORK20 HP

Emissor S A I T

Receptor S A I T

Iluminação Eléctrica

Aquecimento Central

Capacidade de Carga 17 557 Qts

Capacidade Frigorífica 100 m3

N º Tripulantes 24

N º Pescadores 74

N º Botes 74

Navio gémeo do “Capitão João Vilarinho”, cujo projecto foi da autoria do Eng João Farrajota Rocheta

Navio-motor em aço, construção n.º 147 dos Estaleiros da Administração do Porto de Lisboa, de que era arrendatária a Companhia União Fabril (CUF), na Rocha do Conde de Óbidos, em 1952, construído em três meses, por conta e ordem da firma Mariano & Silva, Lda , com sede na Murraceira, Figueira da Foz e escritórios no Porto, na Avenida dos Aliados, pela quantia de 7 750 000$00

A firma proprietária forneceu todo o material instalado do navio, procedeu à montagem dos motores e equipou-o com todos os aprestos necessários à sua laboração de pesca, pelo que lhe atribuiu o valor de 13 000 000$00

O aparelho propulsor era constituído por um motor Diesel, marca MAK, tipo MSV 581, de 6 cilindros, a 4 tempos, da potência de 750 BHP a 300 r.p.m., construído em 1951, em Kiel, na Alemanha, que movia 1 hélice de 3 pás e que lhe imprimia a velocidade de 10 nós, com um consumo médio de 170 gramas de gasoil por cavalo/hora

O bota-abaixo aconteceu no dia 28 de Fevereiro de 1952

No mês de Abril, o Capitão Jara de Carvalho orientou as experiências de mar, sendo acompanhado pelo director do estaleiro, D Vasco de Mello, Marquês de Sabugosa, e pelo director da construção, Almir Machado Martins

Por vistoria passada pela Capitania do Porto de Lisboa, em 21 de Abril de 1952, foi julgado em condições de poder registar para ser empregado no serviço da pesca longínqua

Em 16 de Maio de 1952 registou, na Capitania do Porto de Lisboa, sob o número LX-36-N, com a denominação de “Senhora do Mar” e foi autorizado a registar na Capitania do Porto do Douro, em 20 de Novembro do mesmo ano, por despacho da Direcção da Marinha Mercante, com a mesma denominação e com o número oficial P-782-N

Em 1958, o Dr António Martinho do Rosário (Bernardo Santareno) fez a campanha a bordo do “Senhora do Mar” para prestar assistência médica às tripulações dos navios da frota da pesca à linha

Em Janeiro de 1962, devido às fortes cheias do rio Douro, o navio garrou do seu ancoradouro de Santo António do Vale da Piedade e encalhou Ficou encostado à prancha-cais do antigo Frigorífico do Peixe, em Massarelos, com a proa perto da linha do eléctrico Este acidente levou a que o navio, a partir de então, e até ao seu desmantelamento, em 1994, ficasse com a alcunha de “ O Carro Eléctrico”

Foi desencalhado e sofreu grandes reparações, devido às avarias sofridas, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Ainda em reparação e por despacho do Ministro da Marinha, de 26 de Junho de 1962, foi autorizado a transformar de navio de pesca à linha para arrastão clássico. Foi equipado com um novo motor propulsor da marca MAK, tipo MSC 5852 AK, n º 10811, de 6 cilindros, a 4 tempos, da potência de 1.380 BHP a 300 r.p.m. e 1 hélice, construído na Alemanha, em 1961, que lhe imprimia a velocidade de 12 nós Sofreu novas arqueações, obtendo-se os seguintes resultados: TAB: 1.161,23 Tons. e

TAL: 629,29 Tons A transformação ficou pelo valor de 10 900 000$00 e fez a primeira campanha, como arrastão, em 1963.

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Por escritura lavrada a 30 de Maio de 1964, no 10 º Cartório Notarial de Lisboa, a sociedade por cotas Mariano & Silva, Lda foi transformada em Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada, sob a denominação de Pesca e Secagem de Bacalhau, SOLSECA, S A R L No início da campanha de 1964, durante a viagem de Lisboa para os Bancos da Terra Nova, foi encontrado um clandestino de 16 anos de idade, residente em Cacilhas e natural de Lisboa Este jovem foi entregue ao “Gil Eannes” com o fim de ser repatriado

No dia 22 de Janeiro de 1966, quando saía a Barra de Lisboa, com destino aos mares da Terra Nova e Groenlândia, aconteceu um incêndio na casa das máquinas A tripulação conseguiu extinguir as chamas, mas o navio ficou impossibilitado de continuar viagem Regressou ao Tejo, tendo ido atracar à ponte cais do Ginjal, da Sociedade de Reparações de Navios, Lda., para ser reparado e seguir viagem para a próxima campanha à pesca do bacalhau

Em 13 de Novembro de 1969, foi comprado pela Empresa de Pesca Ribau, Lda., com sede e secadouros na Gafanha da Nazaré e gerência de José Ribau, pela quantia de

CIMA: Navio-motor "Senhora do Mar"

Foto: Fotomar-Matosinhos.

BAIXO: Navio-motor "Senhora do Mar", encalhado em Massarelos Foto: Autor desconhecido, Colecção de Reinaldo Delgado.

20 000 000$00 Estava hipotecado ao Fundo de Renovação e de Apetrechamento da Indústria das Pescas (FRAIP) por 5.318.648$80. Foi levantada a hipoteca e registou, em 24 do mesmo mês e ano, na Capitania do Porto de Aveiro, a favor da Empresa de Pesca Ribau, Lda com a mesma denominação e o número oficial

A-2036-N

Encontrava-se, mais uma vez, hipotecado pelo valor de 7 800 000$00, mas a hipoteca foi levantada e por escritura lavrada em 18 de Outubro de 1979 foi comprado pela Empresa de Pesca de Lavadores, Lda com sede e secadouros em Ílhavo, na praia da Barra, e gerência de Amílcar José de Oliveira Madaíl e António José Mónica Lopes Conde, por 51 000 000$00, sendo registado em 4 de Janeiro de 1980, com o número oficial A-2972-N

Em 9 de Setembro de 1981, foi adquirido pela Sociedade de Pesca Luso-Brasileira, Lda., de que eram sócios Adalcino Sabino, António José Mónica Lopes Conde, Ilídio José Pomar Peixoto e Manuel Alves Mendes, por 57 000 000$00 e registado na mesma data, na Capitania do Porto de Aveiro, com a mesma denominação e com o número oficial A-3107-N

Em Fevereiro de 1987, foi adquirido pela Empresa de Pesca de Viana, Lda. e registado na Capitania do Porto de Viana do Castelo, em 9 de Junho do mesmo ano, com o número oficial V-11-N

Só fez duas campanhas à Terra Nova, tendo entrado em Viana do Castelo a 13 de Setembro de 1988 pela última vez

Em Janeiro de 1990, foi registado a favor da Naviera Ocean Wolf S A , no Panamá, empresa subsidiária da Empresa de Pesca de Viana, com o nome de “Leone IV”

Permaneceu atracado no porto de Viana do Castelo, até que em 30 de Abril de 1994 foi para Gijón, Espanha, a reboque do rebocador “Facal 14” para ser desmantelado.

Foram seus comandantes os Capitães

Joaquim Agonia da Silva (em 1952), João José da Silva Costa (de 1953 a 1965), António Manuel Papão Chinita (em 1966), Joaquim Octávio Barbosa Sá Dias (de 1967 a 1970), José Manuel Martins Condeço (de 1971 a 1979), Manuel Ângelo Nunes Correia (de 1980 a 1982) e António Manuel da Silva Camacho (em 1987 e 1988)

BIOGRAFIA

João David Batel Marques nasceu em Ílhavo, no dia 31 de Agosto de 1953. Em 1972, terminou o Curso Geral de Pilotagem da Escola Náutica e embarcou para a pesca do bacalhau como piloto do arrastão popa “Santa Mafalda” Seguiu-se um ano na marinha de comércio, na Companhia Nacional de Navegação, e regressou à pesca do bacalhau como piloto e imediato do arrastão popa “Lutador” Em 1981, concluiu o Curso Complementar de Pilotagem, tendo assumido o comando do arrastão clássico salgador “Bissaya Barreto”

De seguida, passou a comandar o arrastão clássico congelador “Praia do Restelo” e os arrastões popa congeladores “Almourol”, “Ilhavense” e “Nova Fé”

Em 1989, como não se avistava grande futuro para a pesca longínqua, regressou a marinha de comércio. Foi imediato do graneleiro “Secil Congo” e comandou o navio de carga geral “Secil Bengo”, os navios de carga geral e contentores “Secil Dande” e “Secil Namíbia”, o navio de transporte de carga frigorífica “Cuíto Cuanavale” e o navio porta contentores “Dina”

Por último, dedicou-se a formação profissional, tendo dado aulas de construção naval em madeira, componente teórica, tendo-se reformado quando atingiu a idade legal de o poder fazer.

BIBLIOGRAFIA:

AMARO, Rui Picarote, A BARRA DA MORTE

a foz do Rio Douro O Progresso da Foz

CIEMar (Centro de Investigação e Empreendorismo do Mar, do Município de Ílhavo): CRCB (Comissão Reguladora do Comércio de Bacalhau) – Diversas pastas de arquivo

CIEMar: CRCB – Fichas dos navios por viagem Jornais “O Ilhavense” de 20 de Abril, 1 de Maio e 1 de Junho de 1955

Jornal do Pescador de Maio de 1952 pp 45 a 47

Livro de Registos da Pesca Longínqua (N-1) da Capitania do Porto de Lisboa, fls 21

Livro de Registos n º 9KK da Capitania do Porto do Douro, fls 52

Livro de Registos n º 5 da Capitania do Porto de Aveiro, fls 100, 127 e 133

MARQUES, João David Batel, A PESCA DO

BACALHAU-História, Gentes e Navios, Tomo III - Os Navios-motor da Pesca à Linha - Edição Fundação Gil Eannes, Jan 2019, Viana do Castelo

MARQUES, João David Batel, OS NAVIOS DE ASSISTÊNCIA À FROTA BACALHOEIRA – Tomo II –O “Gil Eannes” de 1955 – Fundação Gil Eannes, Setembro 2021, Viana do Castelo

MARTINS, Manuel de Oliveira, Viana e a Pesca do Bacalhau, Colecções CER SEIVA, Viana do Castelo1 ª Edição 2013

Relatório da viagem n º 17 (1964) do Comte do “Gil Eannes”, Capt Mário da Costa Fernandes Esteves

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BAIXO: Arrastão clássico "Senhora do Mar" Foto: shipspotting com

Neste novo elenco da Direccção do C O M M , coube ao Hélder Martins e a mim próprio, o assunto “Biblioteca” Como éramos ambos novatos neste assunto, começámos por efectuar visitas acompanhados pelo Alberto Fontes, à Biblioteca da Escola Náutica Infante D Henrique e à Biblioteca Central de Marinha, onde fomos recebidos pelos respectivos Directores, que nos facultaram as primeiras “luzes” sobre o assunto

Definido o plano de actuação, verificámos o conteúdo de todos os armários / prateleiras da Biblioteca do C O M M , tendo apurado um total de 3 273 livros, 34 caixas e 17 dossiers Destes livros, cerca de 55% foram herança das extintas Companhia Nacional de Navegação e Sociedade Geral

Seguir-se-á a fase da elaboração duma base de dados, onde conste os títulos das obras, os autores, a localização e demais observações, que se afigurem pertinentes.

Durante o levantamento da nossa Biblioteca, vieram-me parar às mãos alguns livros sobre a Soponata

Não foi sem um pouco de emoção que ao folheá-los me lembrei da 1 ª vez que pisei a sede da Soponata na Rua do Açucar, em Lisboa

Acabado o Curso Geral de Pilotagem, em 1967 e ao pesquisar Companhias de Navegação para 1 º embarque, eu e o companheiro do mesmo curso, Abreu Freire, fomos à Soponata Claro que a possibilidade para embarcar, naqueles tempos, era imediata A mim foi destinado o N/T “INAGO” e ao meu amigo o N/T “FOGO”. Ambos matriculados de 3 º Piloto O “INAGO”, que tinha sido “apanhado” pela Guerra dos 6 Dias no Canal do Suez, na ida para o Pérsico, fez a viagem de volta já pelo Cabo A tripulação vinha um pouco “transtornada”, pareceu-me Apresentado ao Comandante Luís Reis pelo Imediato Correia Vicente, sou recebido com a pergunta: “Sabe onde se vem meter?” Foram 3 anos neste navio, uma autêntica Escola e com um “ núcleo duro” como segue: Imediato Silva Afonso, 1º Piloto Joaquim Coelho, Chefe Vitor Reis, 3º Maquinista Gomes Lopes (do meu curso da Náutica), e muitos outros onde a camaradagem imperava De notar que só do Curso 1965/1967, embarcaram no N/T “INAGO”, 15 Oficiais Mas passados estes 3 anos, com muitas viagens principalmente, para Khor-al-Amaya (Iraque), ida e volta pelo Cabo, havia que conhecer novas paragens/navios e foi o que fiz, mas voltei.

Hoje os livros já me fizeram viajar até às memórias, o que tem acontecido sempre que mergulho neste arquivo tão especial e repleto de vida de mar.

António Sena

Nota:

Em baixo, fotos dos Livros sobre a Soponata, embora nem todos existam na Biblioteca do C O M M : Soponata 1947/1957, Soponata 25 anos, Soponata 40 anos, e Soponata 1947/1997

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BIBLIOTECA DO
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A
C.O.M
M

SENOS DA FONSECA

Em meados do século anterior, fizesse o tempo que fizesse – arrenegada transmontana bravia, ou de cariz bem disposto, solarengo –, o Victor «Barateiro» palmilhava, quilometro a quilómetro, freguesia a freguesia, rua a ruela esconsa, com a traquitana de madeira assente em duas rodas de bicicleta, na qual transportava a mercadoria, percorrendo com o seu “estabelecimento comercial” todos os cantos da vila e arredores. Antecipação do hipermercado de hoje, com tratamento personalizado do freguês, servido porta a porta Em passo ligeiro, fazendo lembrar os antigos almocreves, anunciava em foghorn improvisado, a sua chegada e a dos seus produtos, hiperbolizando as virtudes da mercadoria, de um modo galhofeiro e atrevido

Era o «Barateiro», o que vendia melhor e mais barato, as mercancias No seu singular anúncio, muito antes da globalização de que nem sequer ouviu falar, dizia serem importadas da China – ou até da Cochinchina – Índia, e outras que tais, a preços de arrasar.

O Victor era uma figura de uma simpatia tal(!), que lhe permitia com a maior facilidade o contacto, e do mesmo, a aproximação capaz de facilitar a venda dos produtos com que porfiadamente ganhava a sua vida E tratou dela muito bem, pois clientes não lhe faltaram Nunca.

«O Barateiro» era um homem baixo – um Charlot andante –, nariz saliente num rosto de onde emergiam umas arredondadas maçãs que lhe moldavam um sorriso permanente, conferindo-lhe ar de pessoa benquista De chapéu com aba levantada – à patetive –, enterrado no cima da cabeça, vestia invariavelmente

fatiota de ir «a ver o Senhor», caísse chuva ou fizesse canícula abrasadora Tinha, naturalmente, tez muito morena, consequência da vida de andarilho das estradas e caminhos, batidos pelo Sol Quem atentasse no desempenho da sua missão mercantil, logo lhe descortinava a qualidade inata de um “vendedor de feira”, sabendo como poucos enliçar a clientela com conversa «fiada», acompanhada por farta gesticulação com que apresentava o produto, sabendo atribuir-lhe inesperadas vantagens, ou desconhecidas qualidades.

O Victor Malha «O Barateiro» padecia de uma certa gaguez Mas tal empecilho não lhe complicava a tarefa Antes pelo contrário, ajudava-o e de que maneira! Sabia utilizar bem esse pequeno problema em seu favor, exprimindo-se de uma maneira muito castiça onde não faltava forte dose de picardia e malandrice, utilizadas para criar uma proximidade facilitadora do negócio Vinha ao longe, e de lá gritava, anunciando-se:

Po po Povo! oh oh! po Povo«estúpido»!

Ve venham a a aqui, que bom e e ba barato, só no no «ba» «ba» «Barateiro»

E continuava, no seu gaguejo

- Me meias da ca cá casa baiona que que vão dos pés à borda da co co comprem minhas senhoras – alardeava sorridente o Victor, agarrando um par de meias tiradas da carreta, esticando-as para cima e para baixo, e para os lados, para mostrar a qualidade Em passe de prestidigitação, fazia passar o gume da navalha por entre as meias, que pareciam ser rasgadas, para logo serem mostradas, impecáveis, sem mácula, perante o mulherio espantado, interessado na sua compra perante tal milagre

– Olhai !.. Povo. Na…não é a ga…galinha,é…é o Barateiro com soutiens Ma Martelo os q’a q’aguentam, todo e qualquer, mar mar marmelo

O Victor era um malandéu, gozador. E apreciador de boas moçoilas

Na Costa Nova, em Outubro, época da clientela vinda lá das vindimas bairradinas – os Matolas – com dinheiro

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«O
BARATEIRO»

fresco no bolso, era zona predileta para o Victor exercer o seu mister

O Victor inventava muitos truques com que chamava as clientes que circundavam o carroço do estendal, inquirindo dos produtos que o «Barateiro» tinha para oferecer: cuecas, pijamas, camisas de dormir, lençóis, edredões, toalhas e lenços, etc , etc A que não faltava as «camisinhas sem mangas», um produto ao tempo difícil de encontrar nas lojas da zona E para as habituais clientes, aqueles «pozas» do «Manelzinho» (da farmácia) para verter no café do «cara-metade», capazes de fazer fervilhar os humores aos mais aquietados e o levar às performances há muito esquecidas Entrevistei, conjuntamente com o Manuel Teles, no VIP-VIP de boa memória, o Victor Foi impagável no desfilar de histórias que deliciaram uma sala apinhada, vertida em delírio com a graça portentosa de um inimitável contador de «estórias» A ponto de merecer referência no Diário de Lisboa, de então, que realçou o acontecimento.

Entre outras, recordo a estória das cuecas untadas com vaselina, quando apregoava:

– Olhai povo!...po…po…povo!... povo in… in… incréu: as cuecas «Amor» q’a q’a q’aguentam com com todo o ardor, e e até, qualquer odor

E rapando do isqueiro, chegava-lhes fogo

A vaselina ardia expelindo larga fumaça que o Victor logo apagava, mostrando à clientela, as cuecas, impunes às chamas

Po po podeis ter a pa a pa a pa passarinha a arder. Com as calcinhas «Amor», é um frescor

Desfilou um cardápio das suas adiantadas técnicas de marketing Por exemplo, quando anunciava:

Cu cu cuecas a cinco escudos o o par A quem mas deixar vestir, q’u q’u quatro pares, grátis! – atirava, ao tempo que lançava um sorriso maroto a uma ou outra moçoila, mais vistosa, potencial interessada na transacção Ora um certo dia, palavra puxa palavra, gracejo puxa gracejo, uma bairradina mais atrevidota, de boas carnes e tempero ajustado nas mesmas, dá de o desquitar:

Èh Ti Victor É mesmo a sério? hóme!

Se se se é – responde mais gago do que o habitual, o Victor E rapando das calcinhas, franqueada a porta do palheiro, ali mesmo, atrás da porta, preparou-se para as nadegar na Bernarda da Mamarrosa, que atrevidota e ladina, foi gozando :

Eh Ti Victor! vossemecê perdeu a fala ?

Q? antas p per perder a a fala,q’a a ser cego – responde o Victor mais entaramelado do que o habitual Nisto ouve-se grande restolhada Era o pai da moçoila que de porrete em punho, veio lá de dentro disposto a pôr cobro ao descoro Valeu

contou-nos o Victor – a calma da Bernarda, a demonstrar estar à altura (seria o hábito ?!) dos acontecimentos:

– Q’é lá isso meu Pai ?! O senhor Victor é bom homem, está apenas a tratar da greta do meu pé, para ver se o tamanco me calça

– É…po…po…pois …então .Ó… Ó .. Ti Zé,c’olhe que que a a gre gre greta da sua ra rapariga, pre pre precisa de de trato Está muito aberta Vou vou dar-lhe um pó pó pozinho do Ma… Ma… Manelzinho da botica, que que lha fecha E lá se livrou de boa, o atrevido Victor

Com os calcanhares molestando o dito, num ápice, desceu a correr a viela do Pardal, e dessa vez sem fala – daquela vez a sério! – foi direitinho à Mota, onde o Ti Ameixa o ajudou a carregar a carrinha das vestimentas “Toca a largar” , teria implorado o Victor ao arrais Ameixa, antes que o Ti Zé percebesse a conversa fiada, e viesse por aí, com a cachamorra empunhada

Era um bom homem, o Victor. Gozando da simpatia das clientes que lhe ofereciam um copito em dia solarengo, ou um caldito em dia friorento À porta do tasco ou do café, tinha sempre fiéis amigos, com quem se pelava para uma charla, desfiando o rol de nobidades, colhidas nas suas deambulações Assim era o Victor Um excelente e virtuoso contador de histórias, uma figura típica, arquétipo de figura popular benquista, um esperto e bonacheirão vendedor ambulante, deliciosamente astuto, sagaz, pleno de matreirice A calcorrear os caminhos lodacentos, ou a ouvir o chilrear da passarada. A lançar um olhar penetrante aos rústicos que lhe saltavam ao carroço, ofegante no afã de uma vida suada de peregrinação junto das gentes de quem não gostava menos, mesmo que os apelidando, ternamente, de «povo estúpido” Talvez por saber que nele acreditavam piamente

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OS JOVENS E O MAR

BÁRBARA CHITAS

CONTRATOS LONGOS VS CURTOS

No meu último artigo eu falei-vos da incerteza que é ser um jovem no mar e a forma que os contratos a prazo afetam os marítimos, tanto no nosso equilíbrio trabalho-vida, planeamento de carreira, instabilidade financeira e a nossa saúde e bem-estar.

No artigo de hoje, pretendo ir ao encontro de um tópico mais concreto, que é a duração destes contratos

A duração do contrato tem muito a ver com as políticas da empresa, o tipo de navio, as rotas e as condições de mercado Geralmente navios que trabalhem em rotas mais costeiras têm uma maior facilidade de proceder à troca de tripulação do que por exemplo naviostanques e graneleiros que tem longas viagens e poucas idas a porto

Mas vamos agora ver então quais poderão ser as vantagens e desvantagens:

Um dos principais benefícios que uns contratos curtos têm é a flexibilidade Os marítimos poderão escolher contratos que se adequem à sua vida pessoal e coordenar as suas férias de acordo O que permite um maior balanço da vida afetiva do marítimo Outro benefício de contratos curtos é a possibilidade de ter experiência em vários tipos de navios em ambientes/ companhias diferentes, o que fará o marítimo ganhar competências que serão uma mais-valia devido à sua versatilidade

No entanto também existem desvantagens de contratos mais curtos

Um deles é que se o contrato além de curto também for incerto, ainda traz mais instabilidade. Uma vez que o marítimo poderá não ter o trabalho garantido ou alguma fonte de rendimento depois deste contrato acabar Outra desvantagem é que também poderá dificultar o trabalho por falta de uma rotina Ao estar sempre a mudar de navio/ empresa o marítimo terá de se adaptar a novas condições de “habitação ” , a novos tripulantes, a novas políticas de empresa Esta falta de rotina poderá fazer com que os marítimos sintam uma desconexão com o seu local de trabalho e comunidade

No meu caso, como ainda sou jovem, achei que estaria na altura de explorar várias opções na minha carreira, por isso o meu próximo contrato será num iate de expedição com a duração de dois meses de trabalho e dois meses de férias

Para mim isto é um ponto positivo uma vez que eu valorizo bastante o bem-estar e a minha vida pessoal Mas nem todos partilham a opinião de ser positivo ter uma igualdade entre férias e trabalho

À conversa com colegas meus, a grande maioria prefere de facto contratos mais pequenos Quanto ao facto de ter 6 meses de férias por ano já há diversas opiniões, uma vez que para pessoas que planeiam estar o mínimo de tempo possível no Mar, o melhor mesmo é juntar a maior quantidade de dinheiro no menor espaço de tempo.

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