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BORDO LIVRE REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE

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MAIO/JUNHO 2022


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EDITORIAL JOÃO TAVARES

O mercado de cruzeiros está a ter uma boa recuperação com as companhias a terem a frotas de novo operacionais. A MSC tem uma elevada procura no Mediterrâneo para a época de verão o que motivou a reposicionar o MSC Bellissima do médio-oriente para o mediterrâneo onde começará a operar cruzeiros semanais a partir de 9 Julho, dos portos de Valência e Barcelona. Será a primeira vez que a MSC terá uma frota de 15 navios a operar em simultâneo nos portos do mediterrâneo. A MSC prepara o lançamento da nova marca no segmento ultra-luxo, Explora Journey, com quatro novos navios a serem lançados nos próximos quatro anos, a classe Explora. São navios para 1.000 passageiros com residências, suites e camarotes familiares e todos eles voltados para o exterior com varandas privativas. A recente companhia no mundo dos cruzeiros, Virgin Voyages está a preparar os dois novos navios Resilient Lady e Brilliant Lady para Maio de 2023 altura em que entrarão ao serviço a partir da Grécia. Estas novas unidades irão juntar-se às actuais Scarlet Lady e Valiant Lady que estão posicionadas nas Caraíbas.

A companhia norueguesa de cruzeiros, Havila Kystruten iniciou operações, no princípio deste mês, com um navio zero-emissões nos fiordes Geiranger. Utilizou um navio de 15.800 ton com capacidade para 680 passageiros e de 122 m comprimento com recurso a bateria de 6,1 MWh. O navio dispõe de LNG como fonte alternativa de energia. Esta companhia está de igual modo envolvida noutros projectos de energia tais como o hidrogénio em sistemas que possam ser adoptados nos seus navios. A Disney Cruise Line recebeu a sua mais recente unidade, a Disney Wish construída na Alemanha e equipada com LNG, o que vem reforçar a aposta das companhias de cruzeiro no LNG como combustível alternativo e o caminho desejável para a tão esperada transição energética. A Itália seguiu o exemplo da Holanda e da Alemanha e entrou no processo de aquisição de unidades FSRU (Floating Storage Regasification Unit) para dotar o seu sistema logístico de maior flexibilidade quanto às importações de LNG. O Golar Tundra com capacidade para armazenar 170.000 m3 de LNG e de regasificar 5 bcm/ano vai contribuir com 6,5 % das necessidades de Itália e irá operar na zona norte do país. A IMO aprovou, sob proposta dos estados membros que o Mediterrâneo seja designado com ECA a partir de 2024. Assim no período de dois anos os estados costeiros irão trabalhar em conjunto para definir a MedECA e garantir as melhores condições ambientais de ar limpo no mediterrâneo e a redução dos riscos originados pelos combustíveis pesados.

No passado dia 26 de Maio realizou-se o jantar anual da Alumni, no edifício da ENIDH com cerimónia de entrega do Prémio Carreia ao antigo aluno Agostinho da Silva. A sala estava repleta de convivas e o COMM esteve representado pela Direcção que desta forma associou-se a tão brilhante evento que presta tributo a um ex-aluno que se destacou na vida profissional e pessoal e serve de exemplo aos mais jovens que estão a iniciar o seu percurso. Vamos entrar no período de férias mas ainda teremos algumas actividades interessantes para as quais chamo a vossa atenção. No dia 12 de Julho, pelas 11h, teremos um seminário organizado pelo Grupo Sousa que irá apresentar as novas orientações estratégicas que o posicionam como o maior shipowner português. Bem como novidades em matéria de transporte marítimo de passageiros e nas operações energéticas. Os almoços irão voltar a contar com a colaboração de um associado voluntário para a confecção de pratos regionais e típicos, onde os dotes culinários estarão em evidência. A lista das refeições e dos voluntários será anunciada em breve. Até breve esperamos pela tua visita às instalações.

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SUMÁRIO

MAIO/JUNHO 2022

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Editorial

João Tavares

COMM Natura A 110 Anos do Naufrágio do Inafundável 'Titanic' Ana Maria Lopes

Portugal, Potência Económica Mundial - parte 1 J. J. Rocha Ramos

Os Diferentes Tipos de Ondulação António Costa

Sabedoria do Mar Alberto Fontes

De Marujo a Araujo

Eduardo Alberto Hansen Lima Basto

As "Matriarcas" Ilhavenses Senos da Fonseca

Os Jovens e o Mar Bárbara Chitas

DIRETOR Lino Cardoso COLABORARAM NESTE NÚMERO João Tavares, António Costa, Bárbara Chitas, Alberto Fontes, AnaMariaLopes,SenosdaFonseca,J.J.R.Ramos,EduardoBasto OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES

COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias TIRAGEM 1000 exemplares PERIODICIDADE Bimestral REG PUBL 117898 DEPÓSITO LEGAL 84303 CORREIO EDITORIAL Despacho DE10012022GSB2B/jan PROPRIETÁRIO/EDITOR Clube de Oficiais da Marinha Mercante Trav S João da Praça, 21. 1100-522 Lisboa Tel (+351) 218880781. www.comm-pt.org secretaria@comm-pt.org CAPA @ Vasco Pitschieller DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE

A REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL ONLINE para leitura, duma forma fácil e intuitiva em http://issuu.com/clubeoficiaismarinhamercante/docs/bl169 HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DA SEDE DO COMM 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ªF - das 15h00 às 18h00 A SEDE DO CLUBE DISPÕE DE LIGAÇÃO PAGAMENTO DE COTAS: NIB 001000006142452000137


O VERME DO GELO QUE VIVE NOS GLACIARES Do blogue Mar e Marinheiros

ANTÓNIO COSTA

Os vermes do gelo glaciar prosperam em temperaturas que rondam o ponto de congelação, mas estão em perigo de extinção, dado que o seu habitat está a desaparecer. À primeira vista, um glaciar parece um objeto sem vida – um pedaço de gelo estéril. Mas as aparências iludem: os glaciares são o lar de uma série de minúsculos organismos que constituem um próspero ecossistema gelado. Com pouco mais de um centímetro de comprimento e finos como um cabelo, os vermes do gelo (Mesenchytraeus solifugus) pontilham os glaciares por todo o Noroeste do Pacífico, na Colúmbia Britânica e no Alasca. Enormes quantidades destes minúsculos seres negros surgem nas tardes e noites de verão para se alimentarem de

algas, micróbios e outros detritos à superfície. Depois, enterram-se novamente no gelo de madrugada para, no inverno, desaparecem nas profundezas congeladas. Estes parentes distantes das minhocas sobrevivem em camadas de água congelada dentro da neve e do gelo, prosperando em temperaturas que rondam o ponto de congelação da água. Isto é impossível para a maioria das criaturas, sobretudo as de sangue frio. Portanto, como é que eles conseguem prosperar? Os cientistas descobriram alguns dos truques destas criaturas e salientam que a compreensão destas curiosidades biológicas é surpreendentemente relevante – e urgente. E tanto mais urgente quanto os glaciares estão a desaparecer. Os seus níveis de energia sobem à medida que arrefecem, dizem os cientistas, o que nos pode parecer um paradoxo, já que à medida que desce a temperatura, as criaturas de sangue frio se tornam lentas e chegam a ficar dormentes. Segundo investigação científica efetuada noa últimos anos,

isso está relacionado com uma molécula especial conhecida por ATP, que atua como uma fonte de energia nas células e potencia a maioria das reações no corpo. Este processo acontece através de uma enzima complexa, chamada sintase ATP. Para além desta adição genética, os vermes têm, ainda, um “termostato” celular alterado que permite que a produção de ATP aconteça quando está frio. As duas mudanças combinadas significam que os vermes do gelo têm concentrações celulares de ATP muito mais elevadas do que a maioria das outras criaturas. Para além da sua incrível energia, os vermes do gelo também fazem parte de um ecossistema sobre o qual sabemos muito pouco. Estas criaturas existem ao lado de rotíferos, tardígrados, algas, fungos e outras criaturas microscópicas, além de, também, servirem de comida para as aves. As aves também podem ajudar a explicar porque é que estes pequenos animais se conseguem dispersar de glaciar em glaciar – provavelmente, transportados na plumagem, ou nas patas, dos pássaros. Alguns dos glaciares onde estes vermes foram encontrados anteriormente, como os glaciares Lyall e Lewis nas Cascatas Norte de Washington, desapareceram. Outros estão em declínio. Entre 2003 e 2015, o Glaciar Nisqually, na face sul do Monte Rainier, lar dos vermes do gelo, recuou uma média de 90 centímetros a cada 10 dias. Na verdade, o tempo disponível para desvendar os mistérios dos vermes do gelo está a esgotar-se. Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=m m98P2_MSb0 MAI-JUN 2022 | BORDO LIVRE 169 | 5


COMM NATURA

NAVIO COM EMISSÕES ZERO? NÃO EXISTE UM ÚNICO!

O compromisso de atingir zero emissões pode ter ficado um pouco mais complicado se o resto do mundo não seguir o exemplo da Dinamarca. Lá, as diretrizes do Provedor do Consumidor dinamarquês afirmam que as alegações de isenção de emissões e ambientalmente neutro devem ser totalmente documentadas e verificadas para o ciclo de vida de um produto, por especialistas. Caso contrário, uma empresa pode enfrentar multas pesadas. “Não existe um navio de emissão zero”, disse Anders Ørgård, diretor comercial da OSK-ShipTech, uma empresa de arquitetura naval dinamarquesa, ao Cruise Industry News. O que na indústria se está a implementar é o consumo de combustíveis alternativos e a transição de ferries para a propulsão a bateria, reduzindo, por esta via, a pegada de emissão “direta” da propulsão. Adianta, no entanto, que a pegada de emissão “indireta” pela construção de um navio se torna, proporcionalmente, maior.

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Ørgård disse que os armadores se devem concentrar, tanto nas emissões diretas, quanto nas indiretas. Ele observou que um estudo recente realizado pela OSK-ShipTech revelou que, para um ferry totalmente elétrico, as emissões não operacionais de CO2 podem atingir mais de 55% do total de emissões de CO2 produzidas durante o ciclo de vida de 20 anos do navio. “Em vez de se focarem, exclusivamente, nas emissões das operações, os armadores devem fazer uma análise do ciclo de vida do berço ao túmulo”, disse Ørgård. No futuro, quando a frota, eventualmente, for composta por navios com zero emissões diretas, as emissões indiretas devem ser o foco, acrescentou. O estudo foi realizado na Dinamarca, após alguma controvérsia em torno do conceito de sustentabilidade e o Provedor do Consumidor dinamarquês exigiu novas diretrizes para que declarações como “livre de emissões” e “ambientalmente neutro” sejam total-

mente documentadas e verificadas por especialistas externos. Caso contrário, as multas podem chegar a milhões de euros, observou Ørgård. De facto, a Provedoria do Consumidor recebeu, recentemente, um orçamento maior para contratar mais funcionários para poder acompanhar as reivindicações de sustentabilidade – ou a chamada “lavagem verde”. O estudo citado concentrou-se no ciclo de vida de um ferry elétrico construído em 2021, desde a mineração das matérias-primas e a produção do aço até à reciclagem do navio. Por uma questão de redundância, o ferry elétrico também está equipado com motores a diesel, mas funciona 90 a 95 por cento do tempo a eletricidade. O estudo incluiu o uso de óleo diesel, o cálculo das emissões da produção de energia elétrica em terra para carregar as baterias, incluindo a construção de turbinas eólicas, bem como uma mistura típica de combustíveis convencionais disponíveis na rede de abastecimento em toda a Europa. “Fazer uma análise do ciclo de vida desde o estágio de conceito permitenos desenvolver uma estratégia de construção, calculando o custo total de armamento e a carga total de CO2”, disse Ørgård. Os cálculos de CO2 da empresa abrangem construção, siderurgia e equipamentos. Para além da estrutura de aço, o mobiliário das acomodações de um ferry responde por cerca de 10% das emissões totais do processo de construção.


A 110 ANOS DO NAUFRÁGIO DO INAFUNDÁVEL "TITANIC" Do blogue Marintimidades ANA MARIA LOPES Desde que me lembro, conheço seis colheres sóbrias e pesadas, de prata, com a estrela relevada, no cabo, logotipo da WSL, companhia a que o Titanic pertenceu. Desde sempre o meu Avô me contou a história delas, repetida mais tarde pela minha Avó, após a sua partida. O Titanic, paquete colossal e luxuoso, naufragara contra um malvado e gélido iceberg, na sua viagem inaugural, quando saiu de Southampton (Reino Unido) em direcção a Nova Iorque, na madrugada do fatídico dia 14/15 de abril de 1912. Por essa altura, costumavam os veleiros portugueses da pesca do bacalhau partir dos diversos portos que os apetrechavam, em direcção aos Grandes Bancos, de onde voltavam por meados de setembro a novembro. Ora, consta que, em Ílhavo, algumas famílias possuem talheres provenientes do Titanic, mas todos com a mesma origem. E o que nos dizia a tradição? Na primavera de 1912, ao dirigirem-se para a pesca, pescadores do lugre Trombetas, da praça da Figueira da Foz, «pescaram» uma cómoda que boiava, mais ou menos no sítio, um pouco mais a norte, onde tinha naufragado o luxuoso paquete. Era seu capitão, à época, o ilhavense João Francisco Grilo, de alcunha, Frade, casado com a irmã Rosário da minha bisavó, a «arraisa» Joana Caloa. Nesse mesmo ano, o meu Avô, Manuel Simões da Barbeira, mais conhecido por Capitão Pisco, sobrinho e afilhado do achador, comandara o lugre Golfinho, também da mesma praça da Figueira da Foz. Entraram essa barra, ambos, a 27 de outubro de 1912, testemunha o jornal «A Voz da Justiça», da Figueira da Foz.

O capitão, à chegada, deu contas do achado ao seu armador, da Lusitânia Companhia Portuguesa de Pesca, mas, talvez, tendo este ficado com alguns talheres, não deu grande importância ao assunto e aconselhou o Capitão Frade a trazê-los para Ílhavo, ficar com alguns e distribuir os restantes por familiares e amigos. Foi esta a origem das minhas, hoje, seis colheres de prata, com a estrela relevada da WSL. Esta história mítica, mas «com pernas para andar», porque as coincidências e probabilidades são mais que muitas, manteve-se dezenas de anos no seio destas famílias ilhavenses que não gostavam muito de falar do assunto – fui constatando. O interesse pelas colheres mágicas ressalta-me, e, na qualidade de Directora do Museu Marítimo de Ílhavo, na década de noventa, tinha gosto em certificar mais esta tradição. Eis que o National Maritime Museum – Greenwich – Londres, em 1994, em grandes parangonas, anuncia a exposição – The Wreck of

Titanic. Sorvi a informação e pus-me lá, em dois tempos. Mas, embora tenha apreciado muito, talheres iguais não eram apresentados. Desconfiei…, mas, o peso da tradição ilhavense tinha mais força. Dez anos mais tarde, o Mercado Ferreira Borges, no Porto, exibiu uma exposição idêntica, que também não me elucidou completamente. Foi preciso chegar a uma terceira exposição apresentada na Estação do Rossio (Restauradores), em 2009, em Lisboa, quando, ao visitar a secção de objectos de cozinha, da baixela e faqueiros da sala de jantar, não me contive que não soltasse uma exclamação de alegria e espanto: Aqui estão talheres (eram vários) do Titanic iguaizinhos às colheres que temos lá em casa. Sorri com um brilho nos olhos. Pois, pudera, já tinha comido sopa com elas!!!!!!!!! Ílhavo, 14 de abril de 2022 O maior modelo jamais construído

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PORTUGAL

POTÊNCIA ECONÓMICA MUNDIAL (PLATAFORMA INTERCONTINENTAL DE TRANSPORTES MARÍTIMOS E AÉREOS)* PARTE 1

J. J. ROCHA RAMOS

Foi o mar que nos tornou conhecidos no mundo e será o mar que, atualmente, nos pode dar dimensão planetária. Também poderá ser o nosso mar que nos pode ajudar a sair da profunda crise económica em que nos encontramos. Para tirar partido do nosso mar torna-se imperativo derrubar a "Muralha de Jericó" criada que foi sendo construída em redor da nossa costa ao longo dos anos, o que torna o mar praticamente inacessível a qualquer tipo de intervenção e/ou inovação mais eficaz.

TRANSPORTES MARÍTIMOS

*NOTA PRÉVIA Um artigo semelhante, tratando da mesma matéria, já foi publicado nesta revista em Fev. 2017. Esta é uma versão atualizada e reformulada do mesmo tema que se continua a considerar de importância relevante para o setor marítimo e aéreo e para a economia nacional.

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O mar e o ar são as maiores autoestradas do planeta que não precisam de manutenção nem de pagar portagem. O mar é de longe a via onde o grau de poluição é o menor, em função da quantidade de carga e pessoas transportadas. Mais de 85% de todas as mercadorias do planeta utilizam o transporte marítimo entre portos. Acresce que a poluição gerada por este meio de transporte também já está a ser reduzida com recurso à nova geração de eco navios preparados para utilizar combustíveis menos poluentes e / ou combustíveis verdes que já começaram a ser adotados em algumas unidades: (e.g. Bioenergies, Tiltable Motor Sail, Sustentable Shipping Initiative – SSI, Methanol Fuelled, GNL, Amónia etc.). Do mesmo modo, a poluição em porto originada por navios, quando atracados, causada pelos seus geradores pode,

igualmente, ser praticamente anulada se os navios acostados passarem a ter alimentação elétrica a partir do cais através de uma “Standard Electrical Shore Connection” como já se usa para o abastecimento de água e combate a incêndios abordo. Para se ter uma noção dessa disparidade, basta comparar que 10 camiões TIR, em conjunto, com comprimento unitário na ordem de 20 metros, com uma potência média instalada de 350 Kw cada um transportam cerca de 400/500 T enquanto que, com uma única embarcação com potência semelhante 3.500 Kw (350 Kw x 10), se pode transportar 15 vezes mais carga (6.000T/7.500T) poluindo 100 vezes menos a atmosfera e sem degradar ou ocupar qualquer via rodoviária. O custo benefício entre o transporte marítimo e o transporte terrestre é tão grande a favor do marítimo que parece completamente injustificável que ainda se transporte por via terrestre o que, muito mais economicamente e ecologicamente poderia ser desviado para o imenso espelho de água que cerca todos os continentes do planeta. Neste contexto, defende-se que o transporte de mercadorias pesadas por terra só deveria ser autorizado em zonas onde não existissem, para o efeito, vias aquáticas alternativas, ou por razões de urgência justificada. Reforçando este ponto de vista realço que já existem embarcações especializadas em transportar os semirreboques desatrelados da parte propulsora do camião o que permitiria que


(Infografia da Revista Visão de 5/5 a 11/5/2016)

estes só fossem utilizados após o seu desembarque no porto de destino final mais próximo do recebedor reduzindose deste modo, a poluição gerada pelos inúmeros transportes TIR, que circulam nas estradas de todo o mundo. Centrando este raciocínio no mar português, este axioma é ainda mais incompreensível. A parte continental do nosso país é retangular cujo comprimento é de cerca de 560 km e a largura pouco ultrapassa os 200 km e, além do continente, temos as nossas ilhas o que dá a impressão que todo o país não passa de um arquipélago rodeado de mar por todos os lados ou de uma Jangada de Pedra encalhada como escreveu o nosso nobilizado escritor José Saramago. Questiona-se: não será devido à incapacidade crónica dos nossos governantes em entender o mar que esse pensamento obtuso me atormenta?! É verdade que houve algumas poucas tentativas de criar um Ministério do Mar que gerisse a maior riqueza do país, mas sempre de uma forma tímida, inadequada e pouco duradora. Foi exatamente durante uma dessas tentativas quando o Primeiro-Ministro era o Dr. Cavaco Silva e sendo o Ministro do Mar o Capitão-de-Fragata na reserva Eduardo Azevedo Soares, com a especialização de fuzileiro, que foi desintegrada a nossa frota mercante e de pesca. Por outro lado, a autoridade marítima instituição militar por natureza, sistematicamente, nela tem tido uma influência menos positiva devido ao conflito de interesses que sempre

existiu entre aquela instituição, a administração marítima civil, portos, navios e tripulações e, principalmente, o interesse nacional. Só a partir de 1974, algumas competências transitaram para a administração marítima civil mantendo-se, contudo, uma fronteira difusa e muito mal definida entre essas entidades. As próprias Capitanias e Delegações Marítimas dos portos, com as suas guardas pretorianas, chefiadas por um Capitão do Porto ou Delegado Marítimo, militares da Marinha de Guerra e exercendo os seus mandatos em comissão de serviço, parecem representar mais um grão de areia na engrenagem devido à falta de conhecimento e experiência sobre a marinha civil, nela incluído o universo da marinha mercante, de pesca e portos. Quando esses militares começam a entender alguma coisa da matéria são substituídos por outros militares, igualmente inexperientes, que ocupam os lugares deixados vagos devido ao términus das comissões de serviço dos anteriores e, assim, este ciclo pernicioso vai-se repetindo indefinidamente. Internacionalmente, em países que gerem o “shipping” com sabedoria, a descontinuidade operacional apontada é solucionada através da nomeação de um Capitão do Porto civil/”Harbour Master”, normalmente Oficial da Marinha Mercante, com longa experiência do ofício tanto no mar como em terra e que ocupa o lugar de forma permanente, como obrigatoriamente deverá ser, atendendo aos conhecimentos específicos e especializados e ainda à experiência acumulada exigida

para exercer esse importante e complexo cargo. Que se tenha conhecimento, em toda a Europa, Portugal é o único país que ainda adota este sistema militar atípico para interferir nos destinos da atividade marítima civil. No presente a confusão é ainda maior pois, foram atribuídas á Guarda Nacional Republicana – GNR, entidade militar, a nível do espelho de água, atribuições idênticas às já atribuídas à Policia Marítima o que nos deixa a todos completamente confusos com esta duplicação de competências e duplicação de meios! De uma forma geral, os destinos do mar são sistematicamente entregues a entidades políticas sem tradição ou experiência marítima que não compreendem o mar no seu âmbito global e não têm hipóteses de o vir a entender tal é a rapidez com que vão sendo substituídos ao sabor das correntes políticas que (des) governam este importante setor da nossa economia. Do mesmo modo, os nomes dos serviços e organismos que superintendem a área marítima também se alteram ao sabor da mudança de cada governo e, naturalmente, os seus responsáveis não chegam a aquecer esses lugares. Se compararmos este critério extravagante como por exemplo com o inglês, que há mais de um século tem o mesmo departamento para superintender as coisas do mar e as suas fronteiras, que é o famoso “MCA – Maritime & Coastguard Agency”, chefiada por ex oficial da marinha mercante e onde estão representadas MAI-JUN 2022 | BORDO LIVRE 169 | 9


todas as forças civis, militares e militarizadas, proteção civil, etc., que interagem com tudo ao que o mar diz respeito designadamente, administração, segurança e meio ambiente marítimo, incluindo uma Guarda Costeira Civil. Na Comunidade Europeia também acontece o mesmo através da sua agência especializada MSA - European Maritime Safety Agency que está sediada em Lisboa que propôs que todos os países europeus dispusessem de uma Guarda Costeira nacional. Não estaremos a padecer de um conflito de competências em que os mais incompetentes são indicados para mandar nos mais competentes ficando estes últimos relegados para uma penumbra do poder decisório dos menos aptos!!! 10 | BORDO LIVRE 169 | MAI-JUN 2022

As retóricas inflamadas sobre o mar são mais do que muitas, as entidades que nele interferem são ainda mais e os interesses corporativos que o infetam são incontáveis. No presente é praticamente impossível desenvolver qualquer projeto que envolva o mar ou a zona ribeirinha que conflitue com os interesses instalados corporativos oficiais ou particulares. A própria fiscalização marítima distribui-se por diversas entidades em que, na maior parte dos casos, gera sobreposição competências e tornam a vida impossível a quem do mar faz vida e que dele pretende viver. Como já se referiu anteriormente, pode-se dar como exemplo da Polícia Marítima a GNR/SEF/UAF, o que onera substancialmente os montantes que esta

política custa ao erário público. Parece um facto irrefutável que estará a haver um desperdício de meios humanos, materiais e financeiros. Afinal, com uma única Guarda Costeira, não ficariam todos os problemas resolvidos incluindo o do atual Serviço de Busca e Salvamento que nem sempre tem funcionado da melhor forma devido à sua falta de agilidade, em virtude deste serviço estar subordinada a uma estrutura militar hierarquizada que por vezes não é compatível com as emergências que no mar podem surgir 24 horas por dia, 365 dias por ano e que, na maior parte dos casos, acontecem em situações meteorológicas adversas para as quais não temos tripulações experientes em navegar com mau tempo. Bizarramente, a GNR acaba de receber um excelente “Coastal Patrol Boat” que é uma unidade especializada responsável pelo cumprimento de missões em toda a extensão da costa e no mar territorial, com competências específicas de vigilância, patrulhamento e interceção terrestre ou marítima em toda a costa e mar territorial. Pergunta-se: então para que serve a Polícia Marítima?! Basta recordar a nossa história, ou observar nossa dimensão marítima. Sem mar somos insignificantes, dependentes e marginais; com mar podemos ser uma potência mundial no presente e uma das maiores do mundo se a ZEE for alargada para as 400 milhas como está previsto. Quando isso acontecer 97% de Portugal passa a ser mar. Sendo esta a realidade em que o nosso país vive, então por que razão o mar nunca constou, como merece, da agenda política de quem gere os destinos do país?! O que nós desperdiçamos os outros aproveitam e parece que ninguém se importa! Portugal, neste contexto, pode e deve tornar-se um ator ativo e deixar de ser um crónico espectador passivo. Ultimamente tem-se ouvido falar em explorar petróleo na nossa costa o que


não me parece uma medida nada acertada nos tempos que correm, para quem tem tanto mar que se pode utilizar para outros fins mais amigáveis, com mais contrapartidas e com muito menores impactos ambientais. A utilização dos nossos portos pela frota nacional e internacional padece de vários constrangimentos evitáveis; o desenvolvimento portuário, principalmente o das grandes infraestruturas portuárias tipo “Hub” e “Mega Hub”, vocacionados para a contentorização e outros navios de grande porte e calado continua a ser discutido com base em interesses regionais e/ou particulares. As ligações entre os portos e as zonas de armazenamento e “transfer” permanecem em crónica fase de estudo. O acesso ao “interland” com recurso à ferrovia e eventual aproveitamento de vias aquáticas disponíveis não passa de uma quimera. Assim, a ligação através de via dupla do Porto de Sines a Espanha e à Europa continua encalhada sabe-se lá qual razão. Uma estratégia para os Portos, e Transportes Marítimos deverá ter como principal objetivo a transformação dos portos portugueses em verdadeiras plataformas logísticas integradas em cadeias internacionais indo, assim, ao encontro das tendências de evolução que hoje marcam o sector. É com efeito a partir de um sistema portuário dinâmico, integrado e altamente competitivo que se constroem rotas, atraem fluxos e criam cadeias logísticas de distribuição e transporte que arrastam um conjunto diversificado e alargado de agentes e atividades económicas. Construir Terminais de Contentores no centro de cidades já nem em África ou América do Sul se constroem devido ao tráfego terrestre de transporte de pesados que geram na zona urbana ou nas suas imediações. Recorda-se que um camião TIR que transporte um contentor de 12 metros/40 pés = 2 TEU precisa de mais de 30 metros de via. Se

multiplicarmos este valor pelo insignificante número de 5.000 TEU a ocupação de via terreste atingirá mais de 75 Kms o que originará um intenso acréscimo de tráfego, de poluição e desgaste nas vias de circulação. Lembro que, no presente, já existem navios porta contentores que transportam mais de 20.000 TEU e que, por falta de infraestruturas adequadas que comportem unidades destas dimensões, já existe congestionamento destes navios a nível mundial. Discutir grandes investimentos para portos que não estejam naturalmente preparados para receber os atuais super-navios de grandes dimensões ou os híper-navios do futuro e/ou que, para os receber estejam dependentes de dragagens sistémicas ou de outros constrangimentos será sempre um disparate operacional e económico. Obviamente, que me estou também a referir ao tão decantado Terminal de Contentores em Lisboa que, de acordo com os diferentes estudos efetuados, já esteve para ser em Alcântara, depois passou para a Trafaria mas, depois, parece que pensaram no Barreiro que exige dragagens regulares para manter

navegável o canal de acesso. Esta última hipótese, felizmente, também já terá sido abandonada depois dos portugueses suportarem o custo de todos os estudos efetuados para nada. Sobre este caso, enfatizo que, se a solução Trafaria tivesse sido eleita aproveitando a golada do porto junto ao Bugio, poderia ter sido uma excelente opção para este fim que nenhum dos “experts” nomeados para estudar o assunto teve suficiente capacidade/competência para admitir. Este Terminal para além de todos os benefícios já apontados tinha ainda a vantagem de elevar a velocidade da corrente no canal de acesso o que o ajudaria a aumentar a sua profundidade por meios estritamente naturais. Infelizmente, essa excelente opção não vingou devido à falta de visão dos do costume e, consequentemente, a hipótese de um adequado Terminal de Contentores em Lisboa foi irremediavelmente prejudicada/perdida devido à menor competência de quem dirige os destinos do nosso enquadramento marítimo e não se deu ao trabalho de consultar quem tinha conhecimentos sobre a matéria. Continua no próximo número

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OS DIFERENTES TIPOS DE ONDULAÇÃO Do blogue Mar e Marinheiros

COMO SE FORMAM AS ONDAS DO MAR?

ANTÓNIO COSTA

Quando da praia observamos o mar, é possível notar dois tipos diferentes de ondas: as ondulações nas zonas mais distantes da praia e a de rebentação, próxima à orla. As ondas são, basicamente, distúrbios (denominados oscilações) na superfície da água, que se podem formar em todos os tipos de corpos de água como mares, oceanos, rios e até lagos. Sabemos, da física, que a onda não transporta matéria, apenas energia – à exceção das ondas do mar que se propagam nos locais muito rasos. Por outras palavras, os fenómenos ondulatórios transmitem energia através da matéria (moléculas de água), sendo que as partículas materiais apenas giram, ou oscilam, para a frente e para trás, ou para cima e para baixo (movimento orbital), transmitindo energia de uma partícula a outra. Assim, a água da superfície nunca viaja, mas a energia transmite-se, se não for obstruída por um qualquer obstáculo. Uma onda ideal (sinusoidal) apresenta partes altas (cristas) e baixas (cavas). A diferença de altitude entre cristas e cavas é a altura da onda (H). A distância horizontal entre 2 pontos homólogos consecutivos é o comprimento de onda (L). A relação entre comprimento e altura chama-se declive da onda (H/L). O tempo que demora a passar uma onda completa é o período (T). Frequência (f) é o número de cristas que passa num dado ponto num minuto. É igual a 60/T.

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São vários os tipos de ondas que existem, tal como as forças que as provocam que, também, são diferentes. A causa mais comum é o vento. As ondas provocadas pelo vento, também conhecidas como ondas de superfície, formam-se devido ao atrito entre ele e a água da superfície. Quando o vento sopra, a superfície do mar exerce força gravitacional na camada inferior do vento. Essa, por sua vez, exerce atração sobre a camada acima dela, até atingir a camada superior. Com a atração gravitacional sendo diferente em cada camada, o vento move-se a uma velocidade diferente. A camada superior cai, formando um movimento circular. Isso cria uma pressão, na superfície da água, para baixo na frente e uma pressão para cima na parte de trás, causando a onda. À medida que estas ondas se desenvolvem, a superfície do mar ganha um aspeto irregular, o que permite uma maior exposição ao vento e uma maior transferência de energia do vento para a água. Quando a causa é o vento, podemos estar em presença de ondas livres e forçadas. As forçadas são mantidas pelo vento, de tal forma que as suas características estão adaptadas a ele. Nas ondas livres, a movimentação dáse de acordo com os ventos na área de origem, mesmo não existindo uma força que as mantenha em movimento. Além disso, dado que o vento é variável, há sempre vários sistemas de ondas criados em cada área de origem (ou passagem). Existem, ainda, outras forças geradoras de ondas: a atração gravitacional do sol

e da lua sobre a Terra, condições climatéricas severas, como furacões, tufões e tornados, além de outras calamidades naturais, que incluem terramotos, deslizamentos de terra e erupções vulcânicas. As ondas são classificadas, basicamente, de acordo com sua formação, fonte de energia e comportamento. Vejamos os diferentes tipos de ondas do mar e como elas se formam.

ONDAS DE ÁGUAS PROFUNDAS, DE ÁGUAS RASAS E DE TRANSIÇÃO A velocidade das ondas depende de vários fatores, sendo os dois mais importantes a profundidade e o comprimento de onda. Ondas em locais profundos têm uma velocidade proporcional à raiz quadrada do comprimento de onda. Podemos dizer, então, que quanto maior o comprimento de onda, maior será a sua velocidade de propagação. Já em águas mais rasas, a velocidade de propagação da onda é proporcional à raiz quadrada da profundidade. A onda que provém de um local profundo perde velocidade ao se deslocar para um local mais raso. Como a frequência permanece igual, a perda de velocidade ocasiona uma diminuição do comprimento de onda e é acompanhada por um aumento da amplitude. Ondas de águas profundas ocorrem quando a profundidade é maior do que a metade do comprimento de onda, não sendo afetadas pelos fundos oceânicos. São longas e viajam em linha reta, tendo energia suficiente para percorrer distâncias muito longas. A principal causa é a energia eólica.


ESQUERDA: Ondas de rebentação CIMA: Princípios básicos da onda.

ONDAS DE REBENTAÇÃO

Ondas de águas baixas (shallow water waves)

ocorrem quando a profundidade é inferior a 1/20 do comprimento de onda. Incluem-se nesta categoria as ondas geradas pelo vento quando se aproximam da linha de costa, além das ondas de maré geradas pela atração do Sol e da Lua. Ao contrário das de águas profundas, a velocidade da onda não tem nada a ver com o comprimento de onda, sendo aquela função da profundidade da água. De entre elas podemos considerar as ondas de maré e os tsunamis. As primeiras são causadas pelas forças astronómicas, como a atração gravitacional do sol e da lua sobre a água do oceano. Podemos considerar a sequência de marés altas e baixas como a travessia de uma onda com um período de 12 horas. O Tsunami é uma palavra de origem japonesa, pois o Japão é, possivelmente, o país mais frequentemente afetado por este tipo de fenómeno. A maioria dos tsunamis (cerca de 80%) resulta de terramotos submarinos de grande escala. Os 20% restantes são gerados por deslizamentos de terra submarinos, colapsos de grandes massas de gelo, erupções vulcânicas e até impactos de meteoritos. São ondas que viajam a grande velocidade e, por isso, são altamente perigosas e devastadoras. São considerados ondas de águas rasas, porque um comprimento de onda típico

de tsunami tem várias centenas de quilómetros de comprimento, digamos 400 milhas, por exemplo, enquanto a parte mais profunda do oceano tem 7 milhas de profundidade – logo, a profundidade é obviamente inferior a 1/20 do comprimento de onda, conforme descrito acima. Ainda dentro das águas rasas podemos considerar as ondas de empolamento (storm surge). Os centros de baixa pressão são acompanhados por um empolamento da superfície da água, que acompanha o movimento da depressão. Quando a tempestade se aproxima da costa a parte desse empolamento onde os ventos se dirigem para o lado da terra produz uma subida do nível do mar que afeta a linha de costa. Podem ser altamente destrutivas nas costas baixas, sobretudo se coincidirem com uma preia-mar. Sucedem ondas de transição quando a profundidade é inferior a metade do comprimento de onda, embora superior a 1/20. A sua velocidade é governada, tanto pelo comprimento de onda como pela profundidade. São exemplo, as ondas costeiras, cujo comprimento é menor que a profundidade da água em que entram, o que lhes diminui a velocidade. Isso resulta na diminuição do comprimento de onda e aumento na altura, eventualmente, fazendo quebrar a onda.

Quando as ondas se aproximam da costa, o seu perfil é alterado pela resistência oferecida pela inclinação do fundo do mar. O fundo obstrui o movimento da base (ou cavado) da onda, enquanto a parte superior (ou crista) continua a propagar-se à sua velocidade normal. Por isso, a onda começa a inclinar-se para a frente, à medida que se aproxima, gradualmente, da costa. No ponto em que a razão de inclinação da onda atinge 1:7, a crista ultrapassa o vale de movimento lento e todo o perfil da onda colapsa sobre si mesmo, formando uma onda de rebentação. A vaga mais vulgar é a vaga por derramamento (spilling breaker). Esta resulta de um declive relativamente suave do fundo, que extrai a energia da onda, mais gradualmente, produzindo uma massa turbulenta de ar e água, que escorre na frente da onda, em vez de encaracolar no topo. Nas vagas em voluta (plunging breaker) a crista da onda adianta-se muito em relação à sua base e desaba por falta de apoio. Este tipo de vaga forma-se em praias com um declive moderado. Se o declive da praia e a altura da onda forem muito acentuados, a onda quebra sobre a forma de grandes rolos ou vagalhões (surging breakers). É o que acontece com as vagas de tempestade. As ondas de colapso são uma mistura de ondas em voluta e de grande rolo. A crista quebra, completamente, e o perfil inferior fica alinhado verticalmente e colapsa, transformando-se em águas revoltas.

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ONDAS DESCOMUNAIS OU TRAIÇOEIRAS (ROGUE WAVES) Um dos mistérios dos oceanos são as causas das ondas descomunais. São ondas maciças que podem atingir o equivalente a 10 andares de altura (cerca de 30m). Resultam de raras coincidências devidas ao que chamamos de interferência construtiva. No oceano aberto, uma onda em cada 23 terá mais do dobro da altura média. Uma em cada 1175 terá uma altura 3 vezes maior e uma em cada 300.000, quatro vezes maior. As hipóteses de ondas realmente monstruosas são raras (uma em biliões) mas acontecem! São mais frequentes a sotamar de ilhas ou baixios e onde ondas de tempestade chocam contra fortes correntes marítimas, tal como na costa SE de África, onde as ondas de tempestade se deslocam para NE e chocam com a corrente das Agulhas, vinda de NE.

CIMA: Ondas descomunais (rogue waves) BAIXO: O canhão da Nazaré

A ONDA GIGANTE DO CANHÃO DA NAZARÉ O fenómeno adjacente à geração de ondas gigantes no promontório da Nazaré advém de 3 características distintas no comportamento das ondas: A refração das ondas, caracterizada por se arquearem e os seus comprimentos se tornarem mais curtos quando "sentem o fundo" ao aproximar-se da linha de costa. É raro que o ângulo de aproximação à praia seja exatamente 90°, por isso, alguns sectores começarão a "sentir o fundo" mais cedo e atrasar-se-ão em relação ao resto da onda. Disso resulta uma curvatura da frente da onda que se designa como refração da onda. A difração pode definir-se como o encurvar das ondas à volta de objetos. Permite que a ondulação penetre nos portos e por detrás de barreiras. A difração acontece porque qualquer ponto de uma onda pode ser uma fonte a partir da qual a energia se propaga noutras direções. Nem toda a energia das ondas é consumida após esbarrarem contra a linha de costa. Uma parede vertical, tal como um promontório, pode refletir a ondulação de volta para o oceano, com 14 | BORDO LIVRE 169 | MAI-JUN 2022

pouca perda de energia. A reflexão das ondas nas barreiras costeiras ocorre segundo um ângulo inverso ao ângulo de incidência. Quando as duas massas que seguem sentidos inversos se encontram, teoricamente, podem resultar atingir o dobro da altura da onda incidente inicial. A ondulação do largo que chega à zona costeira propaga-se mais rápido sobre o Canhão da Nazaré, onde a água é mais profunda, do que na plataforma continental adjacente, onde a água é, relativamente, pouco profunda. Esta diferença na propagação da onda em razão da profundidade provoca a refração da onda, criando zonas onde

partes distintas da mesma convergem, embora com alturas e velocidades diferentes. Esta convergência potencia a energia da onda, o que se traduz numa amplificação da mesma. Por outro lado, a orientação do canhão e o modo como ele intersecta a linha de costa, permitem a alteração das correntes que a própria ondulação cria junto à costa, o que, em certos períodos, proporciona um mecanismo adicional de difração para a amplificação da onda. O efeito combinado destes processos aumenta, significativamente, a altura da onda, que pode atingir valores três a quatro vezes superiores aos registados ao largo.


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SABEDORIA DO MAR

CHEGOU A HORA DA LOGÍSTICA SER LEVADA A SÉRIO

ALBERTO FONTES Nunca a história económica e demográfica das sociedades teve a capacidade de prejudicar tanto a humanidade, de uma só vez, atacando a segurança, o seu bemestar, o desenvolvimento económico, científico e cultural. O foco está nas maiores indústrias que são o petróleo, a petroquímicas, a química, o minério (aço, alumínio), os produtos florestais, indústrias alimentares, testeis e vestuário. Alterar o paradigma de desenvolvimento para futuras competências nas economias circulares, que visam aproximar a origem dos produtos dos seus consumidores, obriga a enormes mudanças em hábitos ancestralmente adquiridos. Fazer o caminho no sentido dos combustíveis alternativos, tecnologias amigas do ambiente, avançar para meios de transporte que atinjam a descarbonização exigida pelas Nações Unidas, continuar a digitalização e garantir a segurança cibernética, são tudo vontades que obrigam a enfrentar caminhos desconhecidos, num mundo imprevisível, de crises financeiras, pandémicas e de conflitos. Todos sabemos sem querermos saber, da condição da humanidade que é débil e mortal. Perante as dificuldades sentimonos indefesos, dependentes de outros, tremendamente frágeis. A nossa economia depende das exportações e as boas contas dependem de vender bem e comprar ainda melhor. Presentemente estamos acossados pelo fantasma da nossa fragilidade. Para isso, muito contribui estarmos depen-dentes de sermos capazes de negociar 16 | BORDO LIVRE 169 | MAI-JUN 2022

bem e de termos com quem negociar. À pandemia seguiu-se a guerra e tal bastou para que muitos bens, que nos habituaram a termos, sem nos preocuparmos em saber de onde vinham e como chegavam até nós, começassem a faltar. Sabe-se que 90% das trocas comerciais mundiais são efectuadas pelo transporte marítimo, um país que depende dos outros para assegurar o seu comércio, fica exposto às condições de Mercado que lhe coloquem. Os porta-contentores transportam um quarto dos bens trocados em todo o mundo, em volume, chegando a atingir os três quintos em valor, são eles que suportam as cadeias de aprovisionamento e a chave da globalização. Falta de produção na origem, ocasiona congestionamento não só na origem como no destino das cargas. Dezenas de cidades da China estão actualmente em confinamento parcial ou total após um novo aumento de casos de coronavírus devido à disseminação da variante ómicron. O país ao reportar mais de 11 mil infecções no mesmo dia, logo as autoridades implementaram a política “zero Covid”. A cidade de Xangai com 25 milhões de habitantes, tem o maior porto do mundo em termos de movimentação de cargas, em 2021 assegurou 17% do tráfego de contentores e 27% das exportações da China. Em maio de 2022 apresenta filas de 300 navios que aguardam posicionamento nos cais para operações comerciais. O impacto económico do actual surto de Covid-19 na China é dez vezes superior ao confinamento inicial de Wuhan, afectando 160 milhões de pessoas.

Por sua vez a guerra da Rússia à Ucrânia, deu azo a sanções económicas, levantadas pelas economias ocidentais ao comércio com a Rússia que está a afectar todos os países. A invadida Ucrânia, tem os seus quatro portos situados nos Mares Azov e Negro fechados, conseguindo exportar em abril 2022 pela Roménia, 1090 milhões de toneladas de cereais, apesar das dificuldades logísticas, mas que são manifestamente insuficientes para equiparar com as normais exportações ucranianas de cereais. A Índia procura ocupar parte do volume perdido pelo mercado de trigo ucraniano, contudo o Governo Indiano já veio impor quotas às exportações de forma a não colocar em risco a oferta para o consumo interno do país. Já o comércio com a Rússia, sem seguros de transporte, nem seguros de crédito, nem sistema Swift, resulta em não haver transportes. De relevar o impedimento a segurar o risco com o tráfego do petróleo russo que se reflete nos armadores com frota de petroleiros. A frota mundial de navios para transporte de petróleo está assim dividida por nacionalidade dos armadores, 26% gregos; 12% noruegueses, americanos e coreanos; 10% chineses; 6% japoneses; 3% Singapura e 42% outras nacionalidades, todos estão afectados no seu negócio. A União Europeia prepara o Plano “Repower EU” que prevê investimentos de 195 mil milhões de Euros entre 2022 e 2027, visando tornar-se independente da energia com origem na Rússia. Já para o tráfego de contentores, a “tempestade é perfeita”, numa altura em


que a procura supera a oferta em todo o mundo, os portos estão entupidos e os contentores estão cada vez mais caros. Oito milhões de contentores equivalentes a 20’ estão nos portos, vazios ou à espera para serem descarregados. Grandes clientes como são as marcas da grande distribuição (Walmart, Home Depot, IKEA, LIDL) começaram a fretar navios. Tudo isto porque os Grandes Grupos de Armadores Oceânicos anunciaram reduções de um terço das saídas de navios da Ásia. O conjunto da cadeia logística transformouse num “gargalo de estrangulamento” sem perspectiva de ser alterado antes de 2023. As perdas no transporte marítimo avolumam-se, os problemas com as grandes embarcações, o boom da navegação e a sustentabilidade são grandes preocupações. Em atenção a segurança dos navios e das tripulações, a disponibilidade de combustível, além do potencial de risco cibernético crescente, tais como interferência electrónica no GPS, falsificação no sistema de identificação automática (AIS) ou mesmo no apoio aos marítimos, tudo em consequência do prolongamento da guerra no Mar Negro. Não menos preocupante também o registo de uma série de acidentes com navios que transportam mais de oito mil automóveis. Incêndios nos carros, com perca de estabilidade dos navios, levam a afundarem-se com perda total da carga. Por

exemplo o “Felicity Ace” navegando da Europa para os USA, ao largo dos Açores, transportava Porsche, Audi, Lamborghini e outros carros novos do Grupo VW, fustigado por enormes vagas, adornou 45º para estibordo, vindo a afundar-se. Desde 2015 até 2022 aconteceram dez grandes sinistros com navios transportadores de automóveis, o que coloca este tipo de navios no topo das maiores perdas para as companhias seguradoras. Chama-se logística ao movimento eficiente de produtos acabados desde o final da linha de produção até ao consumidor, podendo nalguns casos incluir o movimento de matérias-primas desde o fornecedor até à linha de produção. Estas actividades incluem transporte, armazenamento, manipulação de materiais, embalagens de protecção, controlo de existências, gestão de espaços em armazém e de produção, processamento de ordens, serviços de marketing e serviço ao cliente. Para a maioria dos produtos, o transporte representa uma fracção módica do custo global. Contudo com a falta de fiabilidade no meio de transporte marítimo, as empresas foram obrigadas a repensarem o seu funcionamento, para se precaverem contra rupturas de aprovisionamento, constituindo stocks bastante mais significativos do que anteriormente. Finalmente, conforme o relatório 2021 da

BIMCO/ICS, uma reflexão para os 1,9 milhões de marítimos (850 mil são oficiais) que ajudam a manter os transportes marítimos activos no comércio global e que têm no mar a sua forma de vida. Os cinco maiores países que só por si garantem 44% do total global desta mão de obra, são as Filipinas; Rússia; Indonésia; China e Índia. Por exemplo para as Filipinas as receitas financeiras com os seus marítimos, representam 7,3% do PIB nacional. Já os marítimos russos representam 10% do total mundial, enquanto 4% são ucranianos. A procura por tripulações está em alta, com muitos marítimos qualificados e experientes a deixarem o sector. Nos que permanecem, o moral está baixo, pois as pressões comerciais e a carga de trabalho são enormes. Prevê-se uma séria carência de oficiais nos próximos cinco anos. Mais de mil marítimos de vinte nacionalidades, ficaram retidos a bordo, no Mar Negro, em consequência da guerra da Rússia à Ucrânia. Todas as situações relatadas apontam para a necessidade de rapidamente surgirem planos de contingência para evitar um “pesadelo” para a logística e para as cadeias de abastecimento, no interesse dos consumidores e das empresas.

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DE MARUJO A ARAUJO Estávamos em 1962. Namorava há dois anos e para poder casar tinha pela frente 5 anos de curso, um de estágio, 2 anos de tropa e dois de guerra no ultramar. Tinha que resolver a minha vida de uma forma diferente, pois para casar, só daí a 10 anos o poderia fazer. Um grande amigo de infância, conhecido certamente dos nossos consócios mais antigos pois andou na Marinha Mercante e mais tarde Piloto da Barra na Beira, Lourenço Marques e Lisboa, de seu nome Horta Alves, mais velho que eu 7 anos, mas que na nossa juventude me levava aos pássaros, à caça submarina, a acampar, fazia ginástica e voos em trapézio no Ginásio Clube Português, contava-me histórias fantásticas da sua vida no mar que me encantavam. Porque não tirar o curso de Pilotagem e ir para a Marinha Mercante? Até tinha antecedentes familiares pois o meu bisavô materno tinha sido Capitão da Marinha Mercante Norueguesa. O meu Avô e tios tinham uma empresa de Ship Chandler em Lisboa. Um tio que vivia connosco levava-nos frequentemente a navios nórdicos que passavam por Lisboa e ainda hoje recordo o seu cheiro e os chocolates que nos ofereciam. Bem sei. No mar... sim no mar. Tinha feito vela, natação , caça submarina e mergulho de escafandro com o primeiro curso oficial do SPAS em Portugal. Na altura, 2 anos de curso e estaria a trabalhar. E assim foi. Inscrevi-me na Escola Náutica na Rua do Arsenal e dois anos depois embarquei no cargueiro Beira para criar experiência, tendo depois trabalhado no Moçambique, uma viagem no Niassa e até sair, no Príncipe Perfeito. Ao fim de dois anos de mar, casei e um ano depois tivemos uma filha sempre com muita felicidade, apesar da vida um pouco separados, mas com um trabalho muito interessante. Nunca mais esquecemos a brincadeira na 1ª passagem pelo equador em que para alem de nos lavarem a cabeça com uma 18 | BORDO LIVRE 169 | MAI-JUN 2022

EDUARDO ALBERTO HANSEN LIMA BASTO dúzia de ovos frescos dizendo que era champô de ovo e a medição do convés em número paus de fósforos de cócoras para nos pintarem melhor. E a navegação costeira da cidade do Cabo até Durban a poucas milhas da costa para evitar a forte corrente de Norte para Sul, a tirar constantemente azimutes às referências que as cartas de navegação nos davam, por vezes a navegar a meia milha das praias. E em alto mar, preparar o estudo da previsão da direção e altura das estrelas para no crepúsculo civil diurno ou noturno o Imediato dar as medições do sextante para fazer o cálculo e ter a posição certa do navio. Que bom, que prazer, que alegria. Conhecer as cidades por onde passamos não só de Africa, mas da Europa em cruzeiro do Príncipe Perfeito para alem da camaradagem dos tripulantes e amizade com muitos passageiros, foi realmente uma experiência que poucos têm oportunidade na vida. Tão depressa se saía dum porão para o salão da 1ª Classe do Navio, como para Ponte. Transportamos muita carga para as Províncias ultramarinas, muito material de guerra e muitos passageiros. Ao fim de 3 anos fomos obrigados a desembarcar e fazer uma segunda fase do período militar para juramento de bandeira, pois entre o 1º e o 2º ano do curso de Pilotagem tínhamos feito apenas a recruta. Reencontrámos os colegas de Curso e resolvi inscrever-me na Escola Náutica como externo para tirar o Curso de Comandante e com o diploma poder seguir ao topo da carreira quando houvesse oportunidade. Três meses depois tinha o “canudo” e no mesmo dia um convite para Imediato para um navio cargueiro que recusei, pois entretanto entre os colegas falava-se do futuro e um deles, também associado do Clube, o amigo e Comandante Carlos Anjos, disseme que não voltava ao mar, pois tinha concorrido e estava já a trabalhar muito feliz na TAP como navegador e para eu

não perder essa oportunidade. É claro que o tipo de vida seria completamente diferente, muito melhor remunerado e quase sempre em casa, mas muito sinceramente nunca me teria passado pela cabeça ter uma vida como aviador. Indicou-me onde me deveria inscrever e depois de nos aconselharmos com a família, fomos fazer a inscrição na TAP. A Senhora que nos atendeu, informou-nos que a empresa já não iria precisar de mais navegadores, mas se estivesse interessado, havia aberto um concurso para Pilotos com um curso nos Estados Unidos para candidatos sem experiência de pilotagem de aeronaves, suportado pela Empresa e que duraria cerca de 9 meses. Piloto de avião ? Nunca nos tinha passado pela cabeça, mas se a família concordasse... por que não experimentar? A família concordou. E assim, lá fomos para os Estados Unidos depois de um concurso muito rigoroso para uma estadia de muitos meses a estudar e aprender a voar aeronaves, agora também com um filho entretanto nascido. Outra vez longe da família, mas o lema foi sempre: “para melhor, não recusar”. Tudo correu bem e ao fim de dois anos de deixar o mar, passei a voar e como costumo dizer, passei de MARUJO A ARAUJO. A vida passou a ser outra muito diferente. Também muitas vezes fora de casa, mas com novas etapas e muita responsabilidade. Conhecemos o mundo quase todo, voamos para todos os continentes menos a Austrália, vimos cidades fantásticas e convivemos com muita gente boa. Tenho agora 80 anos e 2 filhos, um dos quais Piloto Aviador e 4 netos, o mais velho Piloto da Marinha Mercante. Mas o MAR ... Ai o MAR.


SENOS DA FONSECA

LAVRAR O MAR

Olho aqueles corpulentos Majestosos e hercúleos Bois da velha companha Que enlaçados ao calão da rede A vão alando até deixar ofegante na praia A parir do ventre estripado O prateado peixe roubado ao mar.

Velhos no sossego da sua existência Vão ruminando no alento da noite, a sua ausência, Para no amanhã prateado voltar ao fadário. Sob sol escaldante ou chuva de tarde desmaiada, Fustigados pelo vento gélido da madrugada Seguem de olhos turvos, despidos de um qualquer sudário, Parecem amarrados a uma existência amargurada.

Animais vindos do lado de lá Do perfume adocicado da resina dos pinheirais Trouxeram-nos à borda a lavrar o mar. Vão nas manhãs de nevoeiro em parelhas Cabeça baixa, olhar torvo, parecem, citados pelo mar, A investir por ele vaga adentro, encharcados.

Sigo-os duna abaixo Ao encontro do mar ousado, quebrado Mar amargo, mar azul de tão salgado A açoitar o xávega que alevantado teima ir, Lá longe onde moram as sereias, Largar a rede para tirar do ventre do mar A prata que a terra não pode parir.

Afagados pela maresia Nos dias de sol espraiado Vejo-os resfolgarem, nariz no ar À procura de uma sombra no areal caiada, Que aqui não existe. Parecem velhos... Os bois nasceram já velhos Na cor pardacenta do seu costado.

E lá vão, dobrados, encabrestados Vão ao tropeço na areia lassa da duna. Fustigados pelo aguilhão do abegão Levam à sua frente, aos tropeções, os mirones Que vindos de madrugada, de chapéu e botifarras, Calça arregaçada, desertam em louca debandada Em tropel, fugindo na frente do estoiro da manada. Na praia já se alinham os xalavares. Os bois doridos pela jornada Parecem perdidos no areal Semeado de escasso espezinhado, prateado. Hoje não há mais ir e voltar Hoje mar... podes ir acolher o sol dourado E com ele ir, lá longe, nos longes teus, namorar.

[para que as gaivotas voando sobre os vossos beijos me venham de madrugada contar a estrela do pássaro e a estrela do grito teu...MAR!] (Escreveram-se belas páginas a descrever o tumulto grandioso da arte xávega. Esquecendo figurantes de primeira que encheram de espanto poetas e simples mirones. Hoje resolvi prestar jus a quem, ficando na praia, permitiu aos outros ir ver os sóis fugidios).

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AS "MATRIARCAS" ILHAVENSES SÉC. XIX

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SENOS DA FONSECA

A permanente ausência, uma actividade feita ao sabor de tempos e marés, um cansaço de uma luta titânica com os elementos agrestes da natureza que não permite cumprir horários, acabou por criar na sociedade familiar ilhavense um tipo de matriarcado, bem mais consentido que pretendido. A mulher assumiu, aqui, por força da ausência dos seus homens, o verdadeiro papel de chefe de família, sendo-lhe remetida a quase totalidade das decisões que noutros grupos sociais cabem, normalmente, ao homem. A mulher de Ílhavo (século XIX) vai ser um claro produto do meio onde vive, da sociedade onde se integrou. As suas faculdades, por ancestralidade expeditas, as aspirações e desejos escancarados na sua alma irrequieta ou brotando da sua boca em torrentes de incontida perseverança, não conseguem ser abafados por uma vida de dificuldades que a parece querer submeter. E se por infelicidade a roda da vida corre ao contrário, era vê-la empunhar o remo, tentando, com o seu afadigado labor, suprir e remediar as faltas, procurando que ,da sua lufa lufa mortificada – nunca(!) – transpire para as vizinhas ou inimigas, o seu mal. Pois com o seu, podem as outras bem. Não raro, se necessário, recorre ao segredo da família ou, pela noitinha, lá vai pela calada das sombras, ao penhorista, para em segredo se desfazer de prendas de estimação. Herdadas ou recebidas nos momentos de fartura, que irão servir de garantia de um adiante inté ao avanço da matrícula, ou inté, que a roda da sorte gire para o outro lado. Em casa, o marido nem sonha com esta dolorosa iniciativa. Se a questão advém da perda de lugar 20 | BORDO LIVRE 169 | MAI-JUN 2022

na companha e o seu homme tarda em arranjar alternativa, é ela que, altiva, digna e desembaraçada, exibindo matreiramente a lágrima que enfeita um olhar a que todo o homem fica impossibilitado de dizer não, vai bater à porta dos que podem dar solução e, quase sempre, consegue os seus intentos. Se é preciso papelada, é suficientemente esperta e desempoeirada para a conseguir junto do regedor para, chegada a casa, dizer ao seu Tónio: vai homem, vai, e que Deus te traga com sorte, que eu por cá me arranjarei com os teus filhos. E o homem parte,

sabendo que àqueles não faltará agasalho, comidinha farta e o desvelo amoroso de mãe assumida que, para lá do essencial, não lhes faltará com uma educação rigorosa, exigente, e até com a ambição para um mudar de vida que evite momentos como aqueles, tão dolorosos. É sublime como Mãe, na ternura prodigiosa devotada aos seus filhos; mas austera na educação, como se de um Pai exigente se tratasse. Ela educa sozinha a prole que quase sempre é muita. Procura a escola, pois não perde a ambição de a levar por diante, e com o produto do seu afadigado labor lá vai comprando o necessário para os trazer minimamente decentes. Limpos e asseados... e de barriguinha cheia esta é a primeira preocupação que satisfaz –, procurando com um moirame desbragado o necessário para os prover. Quando é a hora de o seu homem voltar, é ainda ela quem prepara a roupa, lhe compra uns sapatitos novos, umas camisas na Feira dos Treze, ou até, se as notícias são boas, um fatito mandado fazer ao alfaiate – a quem dá as medidas precisas –, ou não conheça ela, melhor

do que ninguém – e de cor, bem alembradas por tanto nele pensar – as meças do seu homme. Chegado este, é ela – a arrecadadeira – que recebe por inteiro o produto da safra, deixandolhe apenas o indispensável para uma ou outra ida com os companheiros, a beber um copo, pois há muito para pagar: levantar as arrecadas no penhor, pagar à senhora mestra, ao alfaiate, ao açougue e, feitas as contas, comprar umas roupitas para a miudagem. E para ela? Nada! A sua beleza natural, a prodigalidade com que a natureza a esculpiu, tornam dispensável o uso de enfeites estranhos. Ela vive para os outros, esquecendo-se por vezes, quase sempre, de si própria. Certamente, se este sentido de sobrevalorização feminino terá tido, como não poderia deixar de ser, a sua origem na classe piscatória, verdade é que o mesmo se estendeu, mais ou menos generalizadamente, a toda a sociedade ilhavense, sendo ainda bem patente na vivência familiar de todas as casas e classes, em pleno século XXI. Foi um facto que retrata a singularidade desta comunidade, e que hoje, muito embora um pouco mais amortecido pelos novos padrões da vida, ainda tenuemente aflora nas mais pequenas coisas da vida familiar, fazendo-se sentir ainda amiúde. A mulher, por regra mais expedita e inteligente que o homem, era quem o acompanhava ao letrado, ao padre, ao escrivão ou ao médico, substituindo-o nas explicações que ele devia dar ao phisico. Era ela, ainda, quem tomava em devida conta os conselhos e aplicava o tratamento prescrito. Esta característica de comportamento acabou por ser comum a toda a mulher de Ílhavo,


tendo, como dissemos, perdurado ainda no século XX, mesmo nas famílias que não tinham homem de mar; eventualmente, nestes casos, mais atenuado esse pendor. E em todo o caso, patente, indisfarçável. E o curioso é que o homem de Ílhavo de então sentia-se bem com esse repartimento de responsabilidades, onde detinha o menor quinhão, alheando-se por vezes, egoisticamente, de assumir atitudes que lhe diriam, por norma, mais directamente respeito. Talvez este pendor matriarcal, expresso na extrema preocupação da mulher como dona da educação dos seus filhos (a quem juravam: hei-de fazer de ti doutor ou tu não és burro, hás-de dar capitão), tenha estado na base da escolaridade onde sempre descortinou ser esse o caminho para os fazer diferentes. Preocupação que desde muito cedo levou filhos de mareantes ou de lavradores a frequentarem as escolas primárias. Daí que, no século XIX fossem já evidentes, na terra, capacidades invulgares para o tempo, numa parte das suas gentes. Elite dotada de uma riqueza cultural invejável para a época, que a levaria a distinguir-se de outras da sua igualha e dimensão, mas menos ricas em saberes. Muitos dos que se começaram a distinguir na política, nas artes e/ou nas letras, ou tão simplesmente no exercício profissional onde se alcandoraram a lugar de destaque, nem sempre, ou quase nunca, eram oriundos de famílias de posses. Eram antes, amiúde, filhos de gente sem recursos que procuravam e obtinham a solidariedade dos seus conterrâneos de maiores cabedais, ou, muitas vezes, dos usurários a quem entregavam o cordão

ou arrecadas, em troca de uns dinheiritos para suportar as despesas do rapaz nos estudos para doutor. A mulher tratava da casa, fazia rendas com que amealhava alguns proventos depois de vendidas em Aveiro. Ou costurava, trabalho para que mostrava intensas aptidões. Carregava a canastra e percorria, a passo de gaivina, lépida e desembaraçada, as ruas da vila para amealhar uns reis. As suas casas eram simples: cozinha, quarto da enxerga, uma caixa ou arca para as roupas e uma mesa com quatro cadeiras, era a guarnição habitual das casas escondidas nos becos da vila. Durante a ausência dos maridos, comiam frugalmente, desprezando a carne, substituindo-a por peixe salgado, acompanhado de hortaliça. Poupando em tudo, com o único fito de fazer dos seus, gente diferente. E fizeram!..

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OS JOVENS E O MAR

Dias mais marcantes deste contrato: De todo o meu contrato, o mês de maio foi sem dúvida o meu favorito, com certos pontos sem dúvida marcantes. Entrada até à Tower Bridge de Londres:

BÁRBARA CHITAS

“Há mar e mar, há ir e voltar”

Após um completo contrato de quatro meses é tempo das minhas merecidas férias. Mas antes de o fazer irei fazer um resumo dos melhores momentos. Sendo um navio de expedição, não só vamos a portos menos visitados pela grande maioria das companhias de cruzeiro, como temos uma maior variedade nos itinerários. Neste contrato tive a sorte de visitar novos locais à volta do mundo. Revisitei as Caraíbas, visitei a América Central, atravessei o oceano até Cabo verde, seguindo para uma temporada entre as Canárias e a Madeira. Depois seguimos para Portugal continental onde fizemos toda a costa portuguesa, seguindo para o Norte da Europa, passando por Espanha, França, Reino Unido, Amesterdão e Alemanha. O último cruzeiro que fiz foi nos Fiordes da Noruega. E a melhor parte é que felizmente com a vacinação a mostrar resultados em todo o mundo, já podemos visitar os portos que visitamos e criar memórias inesquecíveis nas pausas que temos no trabalho.

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Subir o rio Thames até à Tower bridge e ver esta ponte a abrir-se para o nosso navio passar, foi sem dúvida memorável. Tivemos a assistência de dois pilotos para a subida do rio, um para a entrada e um para a parte já mais próxima da ponte. Foi sem dúvida uma ótima estreia para os nossos navios portugueses que irá ser repetia por uma das irmãs do World Voyager. Como não há propriamente um porto nesta zona, estivemos atracados ao navio de Guerra Belfast.

Noruega: Visitamos diversos portos da Noruega, como: Bergen, Floro, Geiranger, Honningsvag e passamos pelo Círculo polar ártico e pelo Cape North. Cape North:

Passar o Arctic Circle:


Dentro da Noruega: Para mim dos momentos mais especiais foi Geiranger em que transportamos os passageiros com zodíacos até ao cais.

E outro momento inesquecível foi passar as cascatas “7 irmãs” em que graças ao pequeno tamanho do navio, foi possível dar uma volta de 360º com o navio.

E como estamos no Verão, mesmo no meu quarto da meia-noite às quatro da manhã, tinha esta bela vista iluminada.

E agora é tempo das minhas merecidas férias. Até a um próximo Bordo Livre! MAI-JUN 2022 | BORDO LIVRE 169 | 23



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