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SETEMBRO/OUTUBRO2022 171 REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE BORDO
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JOÃO TAVARES

EDITORIAL

Em Dezembro acontecerá o acto elei toral com a escolha dos órgãos sociais que irão governar o nosso CLUBE no próximo triénio 2023 a 2025

É um dos momentos mais importantes da vida das associações e, em particular da nossa associação, porque se decide a governação para os próximos três anos Todos são convidados a participar e a exercer o direito de voto de forma livre e directa.

É o momento para juntar os esforços em prol do associativismo e participar de forma altruísta, desinteressada, volun tária, cooperante, solidária, responsável e convergente para o bem comum, e o primeiro acto de boa vontade é, o dever de pagar as quotas “ a tempo e horas ” tal como está definido nos estatutos O CLUBE não pode ser visto como uma resposta a problemas pessoais e a interesses individuais. Não pode viver na dependência e condicionada pelas estratégias das empresas Aquilo a que incentivo é uma parti cipação colectiva numa acção visando o bem comum e a resolução de proble mas de interesse geral, não o de as pectos de interesses particulares Não o de um pequeno grupo!

Existem muitos desafios quer de ordem social, económica e cultural que caracte rizam a classe dos oficiais da marinha mercante portuguesa e a forma de os ultrapassar não é através da divisão mas pela Inclusão, o espaço de troca de ideias onde nasce a criatividade que de forma cumulativa procura juntar os esforços voluntários, desprendidos e isentos na procura das possíveis e melhores respostas. Isto é: o reforço da coesão

Aí, devem coexistir os valores da leal dade, do respeito, do espírito de equi pa, da moral e da ética que assentam na perfeição no carácter do verdadeiro Oficial da Marinha Mercante São esses valores que formam a “comunidade” que em tempos existiu nos navios mercan tes nacionais e que tem resistido aos ventos do individualismo, até agora, no seio do CLUBE.

O envolvimento na vida do CLUBE promove o sentido de comunidade, desenvolve atitudes de confiança, de capacitação e de solidariedade e no fim reforça o capital social e humano do CLUBE

O CLUBE entre outras vertentes, tem importância como espaço de cidadania participativa e de aprendizagem social, como espaço de inspiração para os mais jovens que percorrem as primei ras milhas da sua carreira profissional.

É dever e sentido de responsabilidade de todo o associado a um maior envol vimento, a uma participação activa, a integrar as listas para os órgãos de governação do CLUBE

Termino com as palavras do grande escritor Italo Calvino

" as associações tornam o homem mais forte e põem em destaque os melhores dotes do indivíduos, e produzem a alegria que rara mente se obtêm ficando isolado, ao ver quanta gente honesta, séria e capaz existe e pelas quais vale a pena desejar boas coisas"

Votos para que o nosso CLUBE saia mais coeso e forte!

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SUMÁRIO

Editorial

João Tavares

COMM Natura

Modelos de Marques da Silva Ana Maria Lopes

O Farol em Datas, Hoje, 31 de Agosto Ana Maria Lopes

A Matança do Porco (naquele tempo) Senos da Fonseca

Mergulharmais fundo que nunca) António Costa

Bárbara Chitas

A REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL ONLINE para leitura, duma forma fácil e intuitiva em http://issuu com/clubeoficiaismarinhamercante/docs/bl171 HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DA SEDE DO COMM 2 ª , 3 ª , 4 ª , 5 ª , 6 ªF das 15h00 às 18h00 A SEDE DO CLUBE DISPÕE DE LIGAÇÃO PAGAMENTO DE COTAS: NIB 001000006142452000137
SETEMBRO/OUTUBRO 2022 DIRETOR Lino Cardoso COLABORARAM NESTE NÚMERO João Tavares, Bárbara Chitas, Ana Maria Lopes, Senos da Fonseca OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias TIRAGEM 1000 exemplares PERIODICIDADE Bimestral REG PUBL 117898 DEPÓSITO LEGAL 84303 CORREIO EDITORIAL Despacho DE10012022GSB2B/jan PROPRIETÁRIO/EDITOR Clube de Oficiais da Marinha Mercante Trav S João da Praça, 21 1100 522 Lisboa Tel (+351) 218880781 www comm pt org secretaria@comm pt org CAPA @ Alberto Silveira Ramos DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
Notícias Os Jovens e o Mar
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China entrega outro mega navio porta contentores

Um navio porta contentores super grande com capacidade de 24.000 TEUs (unidades equivalentes a vinte pés) foi entregue pelo seu construtor Hudong Zhonghua Shipbuilding (Group) Co Ltd

12 dias antes da data de entrega original na terça feira, de acordo com um relatório da cs com cn, o site oficial do China Securities Journal

Projetado autonomamente pelo Hu dong Zhonghua, o navio tem 399,99 metros de comprimento e 61,5 metros de boca e servirá rotas oceânicas do Extremo Oriente à Europa.

CHINA ENTREGA OUTRO MEGA NAVIO PORTA CONTENTORES

O convés da embarcação cobre 24 000 metros quadrados, equivalente a 3,5 campos de futebol padrão O número máximo de camadas de contentores pode chegar a 25, equivalente à altura de um prédio de 22 andares O navio está entre os maiores navios porta contentores do mundo, com capaci dade para 240 000 toneladas de carga, segundo o relatório Hudong Zhonghua recebeu um total de nove encomendas de navios de 24.000 TEU, superando outras empresas de construção naval na China Além dos dois que já foram entregues, mais um deve ser entregue no decorrer do ano.

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COMM NATURA QUANTOS CONTENTORES SE PERDERÃO ESTE ANO?

À medida que mais uma vez caminhamos para o inverno no Pacífico Norte, devemos preparar nos para mais uma temporada de perdas de contentores ou, como indústria, começamos a aprender algumas lições?

Existem muitas teorias que rodeiam as razões para o aumento das perdas de contentores, que vão desde o aumento da gravidade do clima causado pelas mudanças climáticas, navios maiores que são carregados além dos manuais de segurança de carga e planeamento de passagem ou errada tomada de decisão ao se aproximar do mau tempo Embora todos esses fatores possam desempenhar um papel, é opinião consensual que nenhum incidente de perda de contentor pode ser atribuído a uma única causa Assim como qualquer desastre, é uma combinação de fatores que levam a um evento que

poderia ter sido evitado O facto de não vermos mais incidentes de grandes perdas de contentores é, provavel mente, apenas por razão de sorte Sempre que há um incidente que envolva a perda de contentores no mar é inevitável que as pessoas queiram respostas Os carregadores, a linha de navegação, o P&I Club, os advogados marítimos e toda uma série de outros intervenientes. Eles não colocam essas questões porque queiram saber o que acon teceu Eles perguntam porque querem saber quem vai pagar

Invariavelmente as culpas, no geral, acabam por recair no Comandante do navio Tomaram as decisões certas quando navegavam em direção ao mau tempo? Partiram do último porto em condições de navegabilidade? O navio ainda estava em condições de navega bilidade quando o incidente ocorreu? Na realidade, isto é um bode expiatório fácil No entanto, haverá um problema muito mais fundamental do que esse? Durante anos, as companhias marítimas tiveram uma procura aparentemente insaciável por navios cada vez maiores Em 1997, os maiores navios porta contentores que navegavam nas rotas Ásia Europa eram navios do tamanho Panamax (pré expansão do Canal do Panamá) e, portanto, estavam limitados a uma entrada nominal de TEU de, aproximadamente, 4 400 TEU

A Maersk Line foi a primeira a tomar a decisão de que os navios que operam nas rotas Ásia Europa não precisavam passar pelo Canal do Panamá e, portanto, o único fator limitante no tamanho dos navios tornou se a capacidade dos terminais e respetivos

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guindastes Hoje em dia, um navio de 4 400 TEU é considerado um navio ali mentador e os navios de linha principal carregam perto de 24 000 TEU (capacidade nominal)

Há um padrão bastante previsível de como esses navios são empregues. Quando novos, os maiores navios são colocados nos tráfegos Ásia/Europa, pela simples razão de que este é o principal corredor comercial e, como tal, os portos dispõem de equipamen tos para movimentar esses navios Quando novos navios entram nesse comércio, navios menores são lançados em cascata no comércio transpacífico e depois nos tráfegos transatlânticos Afinal, não podemos adicionar capaci dade, continuamente, a um negócio sem remover alguma Já estamos a regressar à situação de oferta a superar a procura, e isso só vai piorar à medida que a onda de despesa em construção naval, propiciada pelos lucros devidos ao tempo de COVID, começar a normalizar a operação em 2023. De forma geral, os tráfegos Ásia / Europa têm condições climatéricas bastante modestas Este é um tráfego cujo principal objetivo financeiro é conectar cargas dos centros de fabrico na Ásia aos mercados consumidores do oeste e com os tráfegos Norte/Sul mais rentáveis. As linhas de navegação sabem que precisam maximizar a en trada de carga em todas as viagens e, por isso, as levam ao limite Embora isso, em geral, seja conseguido sem incidentes, estabelece um prece dente, potencialmente, perigoso para a quantidade de carga que pode ser carregada em cada um navio específico.

Há um esforço constante para aumen tar a carga do navio até o mais próximo possível do seu TEU nominal. Como a classe do navio é marcada pelo efeito cascata no comércio transpa cífico, essa expectativa de entrada de carga não altera. Se um navio pode transportar 18 000 TEU num deter minado serviço, por que não pode fazer o mesmo noutro? O navio é o mesmo Os guindastes são capazes de carregar e descarregar o navio Por que mudar?

A resposta: meteorologia O Pacífico Norte no inverno é uma fera, com pletamente diferente quando compara do à relativa calma do Oceano Índico, mesmo durante a estação das monções Os capitães e os engenheiros chefes, por norma, permanecem no mesmo navio por vários anos Isso é lógico, pois permite que eles aprimorem os seus conhecimentos sobre como esse navio em particular se comporta Eles conhecem as peculiaridades e manias que todo navio tem Eles sabem como o navio se vai comportar durante a atracação e desatracação Eles sabem como obter o melhor desempenho do navio, mas, por outro lado, isso cria outro problema.

Tudo o que eles sabem sobre o navio se baseia num determinado tráfego Ao mudar para outro, o processo de aprendizado começa novamente. Como o navio se comporta em climas muito mais difíceis? Qual o ângulo que o navio rola? Quais são os novos limites em que o navio pode operar em segurança? Embora as condições climatéricas pos sam ter mudado, as pressões comer ciais ainda permanecem Manter o cronograma e minimizar o consumo de

combustível, ainda pesa muito na mente do capitão Decisões que teriam funcionado nos tráfegos Ásia/Europa agora são muito mais arriscadas Quão rápido eu forço o navio nas atuais condições climatéricas? Até que ponto eu tenho que alterar o rumo para evitar a evolução da depressão e ainda manter o cronograma?

Embora as perdas de contentores sejam, relativamente, pequenas em termos de percentagem geral perdida, versus transportada anualmente, o facto de que agora temos navios muito maiores em tráfegos altamente pro pensos a condições climatéricas extre mas cria um problema real Mesmo uma “ pequena ” perda de contentores por um navio de 14 000 TEU representa um número muito maior de conten tores do que há apenas alguns anos Em alguns casos, podemos estar a falar da perda e/ou dano de vários milhares de contentores

Talvez seja hora de pararmos de culpar apenas o navio tripulação e começar a olhar para os problemas fundamentais que a indústria criou a si própria

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MODELOS DE MARQUES DA SILVA

do Blogue Marintimidades

ANA MARIA LOPES

Desde 7 de Agosto até 31 de Dezembro, está patente no Museu Marítimo de Ílhavo, a exposição “Ciências Náuticas Memórias e Modelos”, que pretende homenagear o Capitão António Marques da Silva, através da exibição dos seus trabalhos

Desde 2008, o Amigo Marques da Silva, com a generosidade que lhe é conhecida, depositou no Museu, uma riquíssima colecção de modelos de embarcações tradicionais da Ria de Aveiro, de modelos de lugres da pesca do bacalhau e de sete embarcações que navegaram nos Descobrimentos Portugueses, entre outros artefactos relacionados com a pesca à linha do bacalhau e alguns desenhos a lápis de lugres e do lugre patacho “Gazela Primeiro” Ainda estão presentes as publicações com que nos foi brindando, entre 1998 e 2021

Este post no “Marintimidades”, tem por objectivo chamar a atenção para a exposição, em que os modelos têm um lugar de honra Meia dúzia de fotografias de telemóvel, e com o defeito do reflexo das vitrines, pretende cativar os leitores, para os irem observar ao vivo, para apreciar toda a sua minúcia e beleza as mais bonitas “maqettes” saídas das hábeis mãos de Marques da Silva. Muito parabéns ao Autor e continuação da feitura de mais uns modelos, que põem à prova toda a sua sabedoria, paciência e habilidade manual.

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http://marintimidades blogspot com/2022/10/modelos de marques da silva html
SET OUT 2022 | BORDO LIVRE 171 | 9 1 Lugre Creola 2 LugreArgus 3 Lugre patacho Gazela Primeiro e lugre Hortense 4. Bateira ílhava 5 Barco do mar Sto António 6 Bateira de bicas e caçadeira de pesca Namy

O

EM DATAS

AGOSTO

do Blogue Marintimidades

Parece que a luz dos faróis nos norteia, também em terra, sobretudo quando gozamos férias na Costa Nova E quem não deu os seus passeios até ao farol, a pé ou de bicicleta? E quem não o subiu, na escalada dos seus 271 degraus, ou mais recentemente, de elevador, para apreciar, de perto, os tais metais polidos e “repolidos” da sua óptica reluzente? E o panorama deslum brante, assombroso, quer da imensidão do verde prateado do mar calmo ou revolto, sob um céu azulino ou violáceo, quer da planura recortada por estradas, laguna e casario esmagado, que nos alongam a visão até ao recorte das serranias mais próximas Caramulo?

E se um nevoeiro denso, qual pano de cena, nos absorve em nós próprios, numa ambiência ensimesmada, miste riosa e acinzentada?

Com um primeiro projecto datado de 1841, vicissitudes várias fizeram com que a obra fosse apenas iniciada em 1885 e confiada ao Engenheiro Benja mim Cabral. Foi concluída em 1893, pelo Engenheiro José Maria de Mello e Mattos

Algumas curiosidades sobre o Farol de que todos nos orgulhamos:

demorou oito anos a construir (1885 a 1893);

a sua construção importou, sensi velmente, em 60 000$00 réis; tem uma torre de alvenaria de secção circular, em que foi utilizado o grés de

Eirol e alguns granitos, encimada por uma lanterna cilíndrica, terminada em cúpula com cata vento;

inicialmente, uma trompa de Holmes de ar comprimido instalada nas pro ximidades do farol, constituía o sinal sonoro, para aviso à navegação, em dias de nevoeiro; conhecido pelo termo ronca, foi, ao longo dos tempos, alvo de várias transformações; hoje, é um quase imperceptível sinal sonoro; em 31 de Agosto de 1893 foi inaugurado oficialmente pelo Ministro das Obras Públicas, à época, Conse lheiro Bernardino Machado;

a 15 de Outubro do mesmo ano, fez se ver, pela primeira vez, a sua luz, através da projecção de quatro clarões brancos, de 24 em 24 segundos, sepa rados por eclipses;

em 1936, foi electrificado, através da instalação de grupos electrogéneos; em 1947, após intervenções suces sivas de conservação, instalou se lhe um novo equipamento óptico, com um alcance luminoso de 23 milhas; em 1948, foi lhe instalado um radiofarol Marconi;

em 1950, passou a ser alimentado pela energia da rede pública; em 1958, foi provido de um elevador de acesso à torre, alternativa aos seus 271 degraus graníticos;

em 1987, esteve representado numa emissão filatélica e na Exposição “Faróis de Portugal”, tendo sido igual mente objecto de uma medalha mandada cunhar pela Direcção de Faróis;

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ANA
MARIA LOPES
FAROL
, HOJE, 31 DE
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http://marintimidades blogspot com/2022/08/o farol em datas hoje 31 de agosto html CIMA. Antigo postal, escrito, datado de 10 9 1911 BAIXO Licínio Pinto 1917 Fonte Nova Aveiro

em 1990, foi automatizado; em 1993, foi alvo, em Ílhavo, de festejos do centenário, com pompa e circunstância; em 30 e 31 de Agosto de 2008, com alguns festejos bastante mais singelos, foram lembrados os seus 115 anos de existência, pela CMI. ao longo dos tempos, tem servido de fonte de inspiração a artistas plásticos: Amadeu Teles, em 1912, numa bonita paleta de cores envelhecidas, Eduardo Alarcão, em 1987, numa interpretação original e “ naïve ” , Alfredo Luz, em 1989, com um certo toque surrealista Dele existem igualmente, registos, em azulejaria é o mais alto farol de Portugal e o segundo maior da Europa.

Foi inserido no livro “Faróis a terra ao mar se anuncia” de J Teixeira de Aguilar, com a boa apresentação e qualidade que caracterizam as edições dos CTT, em Abril de 2008 Todos nós olhamos o nosso farol, é um ponto de referência, quer lhe chamemos da Barra, de Ílhavo ou de Aveiro, com carinho e alguma admiração É alto e imponente, numa torre de 62 metros de altura e 66 de altitude, listrada de branco e vermelho e já centenário

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CIMA Em construção desde 1885 até 1893 MEIO Praia da Barra e Farol em 1987 BAIXO. Farol actual

De entre as memórias de rapazito que, com frequência, me ocorrem, a matança do porco, é sem dúvida das mais duradouras, e uma daquelas que com mais intensidade me ficou gravada desse tempo, em que, garoto despreo cupado, inserido numa família onde as tradições eram ainda! para manter e durar, ia vivendo (participando) nas peripécias do dia a dia, apercebendo me como eram intensos e se forta leciam, os laços de amizade, aprovei tadas que eram todas as ocasiões para conseguir tal desígnio

As relações familiares dos «Fonsecas», lavradores vindos com a história da Vila, eram muito próximas, reforçadas por uma contínua presença em casa de uns e outros, numa vivência onde a partilha era lei A vida vivia se em partilha continuada E nem um facto insólito perturbou essa proximidade

Refiro me a que o meu avô, o Prof. Fonseca, ter sido deserdado, e ter per dido o Morgadio Porquê? quererá, possivelmente, o leitor, ser informado Pois por um rocambolesco caso de amor; uma cena digna de romance Camiliano, quando, apaixonado pela Maria Rosa (que foi minha avó), moçoila bonita, rapariga de trabalho, simples e de poucas ou nenhumas posses, decidiu romper com a oposição familiar ao casamento com aquela, que tinha as origens em família pobre de pescadores, os «Arrombas» Decidido a casar com ela, mandou às malvas a recusa dos seus, abastada família de lavradores lá do Cimo de Vila que, como era hábito nesses tempos já tive ocasião de o contar em detalhe escolhiam para mulheres dos seus filhos especialmente do primogénito,

A DMATANÇA O PORCO (NAQUELE TEMPO)

o Morgado mulher de cabedais idênticos, para reforço e engrandecimento da sua «CASA» Ora num belo dia, meu Avô, não esteve com meias medidas: filou o padre Fonseca (seu familiar) por incrível que pareça, talvez o tipo mais rico de Ílhavo, um dos chamados Quarenta Maiores! pelo pescoço, trancando se com ele e com a Maria Rosa, na Capelinha da Sr ª do Pranto, chave do portal no bolso, e frente ao altar da Senhora, avisou o fradaço:

Vá!: ou case nos ou encomende se que vai de catâmbrias para o inferno Não me moa a paciência, e poupe a Senhora a espectáculos impróprios para santas Ou casa ou vem do sino cá para baixo Escolha lá mas depressa O pobre, que conhecia bem o Professor, transido de medo perante as palavras que, parecia, feriam lume, e do olhar decidido e convincente de meu avô algo que era bem conhecido por aquelas bandas , logo se apressou a entara melar o «in nomine patris » para abençoar e tornar lícita, à luz divina, aquela união. Desse dia em diante, a Maria Rosa que não deixou, toda a vida, de tratar seu marido por «Sr Professor» , foi uma mulher feliz, e uma respeitada mãe de farta prole.

Apesar da perda do Morgadio e consequentemente de todos os bens meu avô foi sempre reconhecido como o Patriarca como o seria depois meu Pai acarinhado por todos que o trata vam por «Padrinho» venerado, respei tado, e obedecido quando preciso fosse por um par de bem aconchegados cachações ou reguadas nas pequenas tricas familiares, sendo o elo de fortalecimento do clã Seu filho, meu Pai, tinha ainda tiques

claros, reveladores da sua origem, com uma paixão louca por tudo que dissesse respeito à lavra Nos quintais lá de cima, tudo era simulado à imagem de uma grande lavra: fazia se farto vinho do enforcado , que me competia a mim e a meu primo calcar na dorna; cultivavam se todas as espécies de verduras; mantinham se e renovavam se, com um amor indescritível, árvores de fruto da mais variada espécie e sebavam se porcos com um desvelo como se se tratassem de animais de estimação (embora o destino destes fosse uma morte, morte que quase parecia heroica, gloriosa) Recriava se, dum modo muito real e muito expressivo, uma casa de Lavoura, de que a irmã Vicência a tia Vé era a administradora permanente e a incansável obreira, nos momentos pós aulas

Neste ambiente a matança do porco era uma verdadeira festa, durando, no mínimo, três dias Mas, muito antes da data aprazada para o acontecimento, já eu acompanhava o meu pai a visitar, um a um, «os primos», em verdadeira via sacra com o fim de indagar, e melhor comparar, o estado de desenvolvimento dos porcinos dos primalhos, já que cada qual pretendia que o seu fosse, o maior e o mais vistoso de entre todos e nisto “cada bufarinheiro louva os seus alfinetes”, é certo. «Primos» era «coisa» que não faltava: pareciam existir por todos os lados, Cimo de Vila, Cruzeiro, Moitas, Vale d’Ílhavo, etc; as visitas sucediam se, eram constantes, e sempre que se batia à porta, depois dos abraços, era sacramental ouvir: Oh primo «doutor», já não vai daqui sem jantar Que a «Maria» até levava a mal. Vamos provar

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SENOS DA FONSECA

o palhete, enquanto ela prepara uma cabidela de galo, de estalo

As «primas Marias» todas elas! eram mulheres governadeiras, escufe nadas, mulheraças de brio, caprichosas no bem receber, desempoeiradas e breves em ir buscar e torcer o pes coço ao melhor cantador da capoeira Num zás trás, enquanto a conversa e as provas decorriam, já o bicho estrebuchava na caçarola, cheirando que regalava, o que nos tirava todas as dúvidas se é que as tínhamos ?! de desertar

Lá íamos, então, fazer horas para a adega, no alpendre, para a prova do «enforcado»; retirado o espiche à pipa e aparado no copo a borbulhar, eles diziam a mim, confesso, me não parecia ser veludo a escorregar gorgomilos abaixo, vivinho, fresco, ágil a deslizar, mais parecendo canto celestial a pedir acompanhamento à altura: um naco de chouriça entre dois taleigos de broa cozida no dia, tão rescendente que consolava Vitualhas em que eu, pro priamente cascava, até me refastelar Mais uma saúde, mais lérias, vizinho que aparecia e fazia teima de irmos provar «a sua pipa», o que valia é que o dito era «água pintada», e, tal como se bebia, também logo se vertia numa ida ali ao quintal, que já venho Claro que o fundamental dar uma olhadela ao bicho lá era feito, miran do se de todos os ângulos com o fim de medir o animal, e de dar palpites Depois das provas, o bicho até parecia aumentar de bojo: quem bebe pelo S Martinho faz de velho e de menino. Chegada a hora, anúncio vindo lá de dentro, alertava para a prontidão da cabidela malandra que fumegava na caçoila, já albardada na mesa. Abusa

cávamo nos na casinha da lavoura cozinha do dia a dia , à lareira, onde chiavam uns cavacos espevitados Local de resfastelo onde o meu Pai insistia em apoitar, apesar da pena da «prima Maria», desejosa de pôr os pratos de cavalinho na mesa, aos ilustres fami liares (?!), guardados que estavam para as grandes ocasiões, no aparador da sala Por ali ficávamos a contar estó rias, em mais um seroar Às vezes, diga se, nem sempre por mim muito apreciado, já que lá se ia uma tarde própria para namoriscar, actividade para a qual eu revelava, já então, muito mais credenciais do que para a «lavra» Mas diga se, que entre umas horas de desvelo amoroso e uma boa cabidela, o diabo que escolhesse E depois, dias para namorar, eram mais que muitos E para a cabidela, nem todos Só quando caía do céu tal iguaria E nestas coisas,

é bem certo: antes desejo que fastio, que o que é bom, não dura E é bem verdade: mais vale ovo hoje, que galinha amanhã

Mas voltando ao bácoro…

O olho do dono engorda o animal mas certo é que era normal, naquele tempo, os mesmos atingirem pesos, entre as catorze e as dezasseis arrobas. Eram animais impressionantes, que para o fim já não se tinham nas patas, vivendo deitados para a seba final, por vezes alimentados à mão, já que nem tal exercício conseguiam fazer pelos próprios meios, dado o estado de prostração provocado pela (excessiva) obesidade, deliberadamente provocada

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Em cima do carroço

O DIA DA «MATANÇA»

Chegado o dia, logo de manhãzinha, caldeiros bem cheios de água eram postos na lareira da casinha, que crepitava O matador era, nada mais nada menos, que o meu primo Manuel Fonseca Jr o sénior era o meu Pai Que recebera as facas do seu Pai, José Fonseca, meu tio avô Não, não eram faquinhas de cortar a broa ou chouriça, ou o queijo (com olhos ou sem eles) Nada disso Eram facalhões de arrepiar um mortal Que ao velho José Fonseca tinham sido legadas por seu pai, meu bisavô. Dos varões da família, já então só restava eu, por cá Assim, se a tradição fosse seguida, essas facas que confesso me arrepiavam! deveriam ser me entre gues para «continuar» a saga, e exercer o mister Praticamente um monopólio familiar, aqui na terra Deus me salvasse! pensava eu, arrepiado só em as ver Eu nunca neguei o berço: mas só de pensar que tal me podia calhar em sorte, estava disposto, como meu avô e por muito menos! , a renunciar a todo e qualquer morgadio de matador Mais vale um gosto que os três vinténs, é certo, mas eu não tinha queda para ser el matador. Era bem verdade, des

culpem lá isso os meus anteriores, que no resto até julgo não os ter deslustrado, que se veja Chegava, pois, o Manuel um poder do senhor, bisnagau de uma força bruta espantosa, exímio jogador de malha, e habitual ganhador do jogo da corda, presença obrigatória das romarias ao tempo trazendo os ditos facalhões, chegando se ao animal para, com o seu olhar sabedor, garantir (apostar!) o peso esperado para o bicho. Tendo sido emigrante quando novo, nos States, fazia gala de se exprimir em americanês: nice boy good pig dizia, e com um primeiro, «VIVA A PÁTRIA», dava início à função Que homem lento p ’ ra nada tem tempo O suíno, que já nem se podia mexer,era levado de padiola (ou em cima do arado)para ser colocado no carroço (ou numa escada) ,com a cabeça quase ao nível de solo Bem amarrado fosse lá saber se se o abate correria bem com um adibal atado aos presuntos poste riores, que o fixava ao leito da morte, mas mesmo assim fortemente agar rado pelos rabeiros.

Dois valentes fixavam as patas do animal que ia ser sacrificado Avante, um deles puxava a pata para baixo, enquanto o outro levantava a dextra do

bicho, para cima, O matador colocava então o braço por debaixo do cachaço, cingindo o animal e, com a direita, agarrava num pano, que mergulhava em água a ferver, para com ele limpar a zona onde iria dar o golpe fatal Uma última olhadela, «camóne let’s go: VIVA A PÁTRIA», e aí vai disto: sem hesitar, num golpe certeiro, a faca terminada em bico uma monstruosa lâmina de uns trinta centímetros afiada e pronta a cortar papel, entrava no pobre bicho que lançava um grunhido de dor assustador, roncos arrepiantes ao sentir se ferido de morte. Eu que fazia de conta que passava as facas ao meu primo que era para me ir habituando: diziam! fechava os olhos ao ver o sangue sair em golfadas enquanto o matador rodava a faca, abrindo ainda mais o golpe, no sentido de facilitar a saída do sangue que era aparado num alguidar postado em sítio certo para receber o esguicho

Era fatal que chegaria o momento, em que o primo Manel fazia de conta que o animal se escapava, e, balançando com a cabeça do pobre bicho, gritava:

Takerease baby be quiet o que fazia com que o mulherio presente desatasse a fugir, pirando se

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como um bando de pardais à vista do milhafre

A verdade é que, em poucos minutos, a vida do animal esvaía se Do forte grunhido, ia restando um rumor de sofrimento do animal, como que despedindo se da vida Quando já não mexia salvo pequenos estertores, reflexos musculares lá vinha novo «VIVA A PÁTRIA», «VIVA O ANIMAL», o que levava todos os circunstantes a levantarem o seu boné ou garruço , saudando o bicho pela galhardia (?!) com que encarava o sacrifício

No sangue aparado, eram então feitos dois golpes em cruz Depois de

temperado com sal e limão, seguia de imediato para o caldeiro, onde a água a ferver o esperava Cuidava se que nenhuma mulher que naquele dia andasse no período, tocasse no sangue

“ para não o coalhar” Nunca soube a verdade do dito, mas o certo é que tal se dizia suceder, fosse com o sangue do porco, com o leite creme ou maionese etc Seria?

O porco era então arriado e deitado no chão

Ia começar a chamuscagem do seu pêlo. Coberto de agulhas, era ateado lume O matador, e um ou outro conhecedor, com a ajuda de dois paus de feijões, iam nas movimentando pelo corpanzil, percorrendo o lombo do animal de modo a chamuscar o cabelo, com o cuidado extremo de evitar qualquer queima do couro Era uma operação que exigia muita atenção, destreza e habilidade Cha muscado de um lado e do outro, com uma fogueira concentrada junto dos pezunhos, retiravam se as unhas as castanholas , momento que servia de diversão aos mais novos, para as meterem nos bolsos dos assistentes Não era uma operação nada fácil; tinham se de aquecer bem os pezunhos para os cascos incharem, e se sepa rarem, e puxá los com eles a ferver, de uma palmada: shit até fervem dizia o Manel Jr , escaldado Iniciava se então a operação da lava gem e raspagem o fazer a barba ao couro do animal Com água corrente, equipados com caliças (de adobe), ia se afeiçoando o couro cabeludo do bicho, utilizando se no final uma faca do tipo das usadas no bacalhau para o trote, com que se fazia um escanhoar cuida doso, até se obter um couro bem ama

relo e macio, aqui e ali chamuscado, mas nunca queimado

Terminada a tarefa cortava se o rojão do carro: o cagueiro do porco Era me destinado o agarrar da língua do ani mal, com toda a força, para, diziam me e eu pantono acreditava que tinha de a segurar para que as tripas não saíssem, por detrás do bicho.

Estávamos assim chegados ao final do 1º round

INTERVALO

Da cozinha vinha então um cesto poceiro, com sarrabulho cozido a escorrer em cima de ramos de louro colhido na hora, fresquinho, acompanhado por uma broa cortada numa malga, e uma quarta de verdasco E copos para todos Depositado o manjar sobre uma toalhi nha estendida na barriga do animal, saboreava se o sarrabulho e cavaquea va se, contando estórias de outras matanças, comparando animais, recen temente abatidos

Terminada a refrega do repasto entrava se em nova e decidida azáfama

O porco era puxado para dentro da adega, e nos tendões das patas tra seiras era enfiado o chambaril, uma peça de madeira por onde, com a ajuda de uma talha, se içava o animal, fixando o no gancho preso no tecto

Bem suspenso, o chão juncado de agulhas para aparar os restos san guíneos do animal, o matador mudava de faca, empunhando agora uma outra mais curta, com gume tão bem afiado como se tratasse lâmina de barbear, fazendo com ela uma incisão nas duas abas do animal, de cima abaixo, deslocando o manto da barriga, atoa

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CIMA: Lavagem da peituga BAIXO: O aparar do sangue

lhando o nas costas do animal. Desse modo tinha acesso às vísceras Com um alguidar trilhado entre as patas dian teiras, com gestos seguros e rápidos de sabedoria acumulada, conseguia extrair todo o aparelho digestivo do animal Com especial cuidado, as tripas, para que não rebentassem, passando as então ao mulherio, para serem levadas ao rio da Fontoura, onde se procedia a uma escufenada lavagem em água corrente, retirando lhe os folhos: as sainhas. Com as tripas lavadas, esfre gadas com sal, far se iam as linguiças e salpicões, que iam a estagiar no fumeiro da casinha velha, até ficarem no ponto para degustar

A mim era me entregue a bexiga e o pissalho A primeira, depois de fumada, dava uma excelente bola Por seu lado, o «dito» do animal, era graxa excelente para ensebar as botas, impermeabi lizando as

E assim íamos esgotando as horas… O primeiro dia da azáfama estava a terminar O animal, limpo, ficava a escorrer todo o resto do dia e toda a noite, pois só no dia seguinte se iniciaria o seu desmancho (desmem bramento)

Era chegado o momento de nos sentar mos, matador, ajudantes e alguns familiares entretanto chegados pelo fim da tarde, em volta da mesa, para um pausado e retemperador repasto, onde se recuperavam os humores e se apreciavam as primeiras vitualhas por cinas do animal sacrificado Uma sarrabulhada bem apurada, sangue cozido acompanhado de fígado cortado às lascas, a boiar num molho gordalhudo onde refogava uma forte cebolada, temperada ao ponto, com fartura de pedacinhos de alho e umas folhas de louro, que lhe davam um odor catita O verdasco pinga de estalo,

diziam! corria então da picheira para os copos, que sôfrega e insistente mente eram chamados à boca E à medida que tal chamada se fazia, a língua começava a soltar se, e a jantarada tomava foro de festa

Estômagos já recompostos, vinha um arroz amalandrado de bofes avinhados (e ou de labercas), que fazia companhia a uma bifalhada cortada apres sadamente das franjas entremeadas do animal Noutra pichela, lá vinham as iscas embrulhadas numa cebolada avinagrada Pitàu de fazer soar as campainhas gulotonas que, faziam um indígena levantar se lesto, quebrando as regras de mesário, não dando tréguas à digestão a empanturrar se com a iguaria

Findo o repasto porcino, lá vinham umas «castanhas abafadas» Era tempo para divertimento

O primo Manel era um tocador emérito da concertina. Meu Pai também tocava o mesmo instrumento, embora fosse mais tosco de mãos Tocava se e dançava se numa alegria que envolvia todos os presentes. Até a minha Tia Micas, sempre muito reservada , não se escusava a desenmalar o bando lim para acompanhar os tocadores que, incansavelmente, davam à sanfona. Mas o que mais me impressionava era ver o meu tio avô José Fonseca [1] , já cego e com uns bons oitenta anos, cantar ao

[1] Este meu Tio era o executor e guardador do arco triunfal da Sr ª do Pranto Era um poço de sabedoria Sempre bem disposto, mesmo quando já cego dava conselhos amiúde Lembro me de um, jocoso: “olha rapaz, a mulher é como a pipa Quando lhe tirares a espicha vê se esguicha Se não esguichar, outros lá andaram a bebericar”

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desafio no que era inacreditável e inexpectável superior a pandegar numa espécie de dança feita sobre os joelhos dobrados, que só muito mais tarde vi ser muito semelhante às danças cossacas

A noite corria entre palratórios e lenga lengas, e só tardiamente, já bem lastrados, se recolhiam os convivas a penates, pois ao outro dia, novo trabalho a requerer a presença do matador

2º ROUND

Logo de manhã começava nova faina Arriado o porco, procedia se ao seu desmanche, tarefa para o que me lembro de ser especialmente dotado: com muito jeito, dizia se, parecendo com isso quererem dar me alento e predisposição, para herdeiro da tradição

O desmanchar do porco era feito com critério e ao gosto da dona de casa, que dava, amiúde, indicações de que tamanho queria as peças que se iriam separar Tudo cortado, peça a peça, procedia se à salga das mesmas, numa salgadeira de cimento, onde se depositavam as peças separadas por sal, suficiente para as conservar. Dispostas por ordem, ou critério de utilização: no fundo, acamadas, ficavam as mantas de toucinho; depois os ossos de assuão, costela, coiratos, etc., etc.

Separava se a carne para rojões que, de imediato, se vertia para caldeiros de cobre, onde a lume brando se iam estrugindo no unto de pão até ganharem uma cor rosada indiciadora de que estavam prontos para irem para os potes de porcelana Onde ficavam afogados em banha, à espera de

utilização futura: quase sempre breve, ali em casa Chegava, então um momento porque há muito ansiava: o hábito de levar o prato aos familiares e amigos. Cortada uma febra, juntavam se umas peças de sarrabulho e fígado, umas folhas de louro e sainhas e, em casos de graduação especial, um ou outro rojão. E lá ia eu, lépido, com o cestinho eu queria lá saber do aspecto! entregar o dito Esperando, como sempre aconte cia, por uma gorjeta, que, acumulada de casa em casa, me rendia pecúlio apreciável, quase sempre para investir numa bola de futebol E não se julgue que eram poucos os distinguidos Não! , que a família era grande, acrescendo que para lá desta, havia os amigos, os capitães a quem se retribuía a habitual oferenda da cestada de caras, línguas e samos, que viriam perto do Natal Por isso, não raro, ouvia minha mãe lamuriar se de que, por maior que fosse o bicho e era, pois meu pai fazia gala de atingir as 16 arrobas ia se todo nas oferendas Claro que minha mãe não estava a fazer contas, ao que por aquelas épocas recebia, pois este hábito o prato , era uma perfeita troca Que até fazia jeito Não havendo ainda frigoríficos, estas trocas permitiam, pelo menos por estas épocas e durante semanas, comer se carne sempre fresquinha, o que era um maná. Feitas bem as contas não se ficava a perder, pois todos se esmeravam na oferta Grandes hábitos Tradições que vinham do tempo onde respeitáveis gentes faziam agasalho da amizade À noite, tudo escufenado e ordenado, depois de uma «banhoca» lá voltavam para uma segunda emposta, à mesa. Os

convivas aumentavam no número, pelo que as travessas de rojoada eram, só por elas, por tão abundosas, de uma imponência de recriar o olhar guloso

Por norma, este dia era menos familiar, mais voltado para os amigos Sempre muitos e dos bons

Na cozinha, o mulherio preparava a carne para avinhar, e com ela bem temperada, encher a tripalhada já limpa, a aguardar hora de saltar para o fumeiro

A matança chegava ao fim; novos seis meses para engorda de novo bácoro, entretanto já adquirido na «feira dos treze», e que prometia boa e anafada engorda

A vida recomeçava então, de novo Colocar o «brinco» no animal para ele não refocilar; chamar o alvitar para o capar, não fossem os apetites estra nhos pôr em causa a engorda, atra sando a, dar lhe umas colheradas de óleo de fígado de bacalhau para lhe abrir o apetite, boas couves para deslassar o trânsito intestinal, e assim emborcar mais abóbora misturada na farinha que vinha do moleiro de Vale de Ílhavo E todos os dias avaliar «os gramas» da engorda

Era bonita esta vida, onde uma boa parte do que comíamos, vinha ali do quintal ao lado: do aido de «Cima» ou do «Lá de Baixo»

A vida tinha encantos; a televisão não invadia o seroar; contavam se estórias da história, a mesa era local privile giado de reunião familiar, onde com requinte se depunham vitualhas feitas com tempo e gosto, que, paulatinamente o tempo corria mais devagar! se iam degustando

As tradições valiam, ainda então, como ouro de lei, a respeitar.

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MERGULHAR MAIS FUNDO,QUE NUNCA, PELOS OCEANOS DE TODO O MUNDO

O fumo escuro parece subir de formações únicas e semelhantes a chaminés das fon tes hidrotermais mais profundas e mais quentes conhecidas do nosso planeta Durante o verão, Anna Michel pôde vê las, pessoalmente alguns quilómetros abaixo da superfície do oceano Michel, uma cientista associada da Instituição Oceano gráfica Woods Hole, era uma, de três membros, de uma tripulação do Alvin, o submersível, quando este mergulhou até alcançar o Mid Cayman Rise

Conhecido como o Campo de Ventilação Hidrotermal de Beebe, os respiradouros existem no fundo do oceano, onde as duas placas tectônicas se separam quase meia polegada todos os anos em direção ao sul das Ilhas Cayman

As fontes hidrotermais desenvolvem se onde o magma, sob o fundo do mar, se transforma em cadeias de montanhas submarinas, conhecidas como cordilheiras oceânicas

A água do mar fria penetra, gradualmente, pelas rachaduras do fundo do mar e é aquecida a 750 graus Fahrenheit, quando entra em contato com as rochas aquecidas pelo magma. Essa interação liberta minerais e nutrientes, que levam à formação do ecossistema perfeito para a vida marinha que os cerca

O Alvin está em funcionamento há 58 anos Ele terá atingido a profundidade de cerca de 6 453 metros, em julho de 2022, na Fossa de Porto Rico, que fica ao norte de San Juan, em Porto Rico. Em várias excursões, Alvin viajou cerca de 6 200 a 6 500 metros abaixo da superfície do oceano para atender aos requisitos, anterior mente, estabelecidos pelo Naval Sea Systems Command e pela Marinha dos EUA

A nova faixa indica que quase 99% do fundo do mar está agora ao alcance do

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ANTÓNIO COSTA

Alvin e de dois passageiros e respetivo piloto Para Alvin, é o terceiro incremento de profundidade desde que o submersível foi comissionado pela primeira vez, segundo Andrew Bowen, o principal engenheiro associado à Applied Ocean Physics and Engineering da Woods Hole Oceanographic Institution

Michel trabalhou de perto com veículos subaquáticos, operados remotamente, cer ca de 20 anos, mas o verão de 2022 foi sua primeira vez como passageira do Alvin No entanto, apesar da natureza fechada do submarino, Michel nunca se sentiu desconfortável ou claustrofóbica uma única vez Em vez disso, ela disse que quase parecia que estava num elevador, e que a expedição de oito horas tinha passado a voar Os cientistas terão, agora, acesso às zonas mais profundas dos vastos oceanos, explorando zonas que os humanos nunca conseguiram alcançar antes Os pesqui sadores esperam encontrar novas espécies e estudar os fundamentos da vida No verão, Michel e um geofísico chamado Adam Soule, professor de oceanografia, lideraram cinco mergulhos científicos para a Expedição de Verificação Científica do Alvin, viajando para as Ilhas Cayman e Porto Rico

Formam se, na Fossa de Porto Rico, vários penhascos subaquáticos à medida que as placas tectónicas do Caribe e da América do Norte colidem entre si Aqui, a equipa especializada recolheu amostras de crosta oceânica e alguns dos tipos de organismos mais profundos do fundo do mar Na pesquisa do Mid Cayman Rise, os pesquisadores recolheram amostras quí micas e biológicas das fontes hidroter mais

Antes, o Alvin só conseguia descer até os 4.500 metros. A nova façanha só foi pos

sível após 18 meses de revisão do submer sível de 20 toneladas. As atualizações da Alvin incluem um sistema de imagem 4K, um braço manipulador hidráulico de última geração, propulsores mais avança dos, novos controladores de motor e um sistema integrado de controlo e comando O Alvin terá contribuído para várias descobertas, incluindo a de naufrágios e a ciência oceânica. O veículo operado por humanos transportou mais de 3 000 pes soas em mais de 5 000 mergulhos nas profundezas É, até agora, o único veículo de submersão profunda nos EUA que pode transportar humanos até o oceano profundo

Os pesquisadores enviaram o Alvin para estudar e conduzir pesquisas sobre fontes

hidrotermais e placas tectónicas para descobrir a vida marinha e explorar o RMS Titanic em 1986, depois que o cientista da Woods Hole Oceanographic Institution, Robert Ballard, encontrou o naufrágio. O submersível ajudou a Mari nha a desenterrar uma bomba de hidro génio da Segunda Guerra Mundial e levou cientistas ao fundo do mar localizado sob o derrame de óleo da Deepwater Horizon em 2010

Cientistas apresentam propostas para reservar tempo para realizar pesquisas no Alvin. O submersível faz pelo menos 100 mergulhos por ano para explorar a vasta biodiversidade oceânica, a crosta do planeta e a vida que prospera em pro fundidades inalcançáveis.

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NOTÍCIAS

Alterações de 2022 à Convenção MLC 2006

A Convenção do Trabalho Marítimo é um tratado internacional que protege os direitos dos marítimos e foi ratificada por mais de 100 países que representam mais de 90% da frota mundial

Durante a 110ª sessão da Conferência Internacional do Trabalho, realizada entre 27 de maio e 11 de junho de 2022, a sessão plenária aprovou emendas adicionais à Convenção do Trabalho Marítimo de 2006 (MLC 2006) Estes devem entrar em vigor até dezembro de 2024

As novas alterações têm por base lições aprendidas durante a pandemia de COVID 19, quando muitos marítimos testemunharam períodos prolongados de isolamento no contexto de uma crise de rendições de tripulação As alterações visam garantir que:

• Que está disponível água potável gratuita de boa qualidade para todos os marítimos

• Que os marítimos têm equipamentos de proteção individual de tamanho adequado e, em particular, para atender ao crescente número de mulheres marítimas

• Que os Estados facilitarão ainda mais o repatriamento imediato dos marítimos abandonados

• Que os Estados fornecerão assistência médica aos marítimos que necessitem de assistência imediata e, quando necessário, facilitarão a rápida repatriação do falecido

• Que os armadores forneçam aos marítimos conectividade social adequada e os Estados forneçam acesso à Internet nos seus portos

• Que todas as mortes de marítimos serão registadas e relatadas anualmente à OIT e os dados relevantes das causas publicados

• Que os marítimos estão informados dos seus direitos em relação à obrigação de serviços de recrutamento e colocação, e para compensar os marítimos por qualquer perda monetária

Os estados de bandeira são obrigados a implementar as emendas adotadas. Portanto, os operadores de navios devem verificar com os respetivos estados de bandeira a forma de atualizar os procedimentos de gestão de segurança e de MLC existentes

O cargueiro Sea Eagle, de 3120 DWT, registado sob a bandeira do Togo, perdeu estabilidade no dia 17 de setembro durante a descarga de contentores De acordo com notícias e vídeos, o navio adornou a estibordo e, de seguida, a bombordo afundando pouco depois O navio ficou assente pela popa, e muitos contentores caíram ao mar durante o incidente

A causa do naufrágio ainda não é conhecida No entanto, quando subiu parcialmente acima da linha de água e começou a perder estabilidade, a tripulação foi alertada e todos deixaram o navio em segurança Em pouco tempo, a embarcação submergiu na água. Embora as investigações estejam em curso, o número de contentores perdidos ou a possibilidade de derrame de óleo ainda não foi determinado. O naufrágio está cercado por flutuadores No entanto, a operação de limpeza e salvamento ainda está em andamento O navio havia chegado ao porto de Limak em 17 de

setembro, vindo de Mersin, também na Turquia De acordo com os relatos da tripulação, todos os sistemas de bordo estavam a funcionar, normalmente, até então.

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Navio perde estabilidade e vira à descarga de contentores

OS JOVENS E O MAR

Olá a todos, estou neste momento embarcada num outro navio da Mystic Cruises, o cruzeiro Vasco da Gama

O Navio Vasco da Gama é um navio completamente diferente dos que tenho andado embarcada, não só pelo tamanho, mas pela sua já grande história que conta já com 30 anos de idade Já esteve registado em duas outras companhias previamente e jun tou se á frota da Mystic em 2020

Os seus espaços de passageiros foram completamente renovados, mas na ponte ainda se encontram vestígios de equipamentos bastante mecânicos, em comparação com os quase totalmente “touch” das suas irmãs mais pequenas da classe Explorer

É uma viagem ao passado de certa maneira e permite refletir sobre os avanços das tecnologias de pilotagem e navegação De igual maneira é muito interessante em termos de aprendi zagem ao dar aos praticantes e oficiais uma versatilidade para lidar com tecnologias menos usuais e comuns, o que pode ser uma mais valia.

A equipa de ponte:

Neste navio a equipa de ponte é bem maior, como devem imaginar. Ela é constituída por: o Comandante, por um Imediato, por um oficial de segurança e outro de ambiente que são primeiros oficiais que também não fazem quartos de navegação Depois cada quarto de navegação é constituído por um segundo e por um terceiro oficial.

Um navio-escola:

Este navio está de momento a ser utilizado quase que como um navio escola, tendo já tido ao mesmo tempo cerca de 10 praticantes, estando neste momento embarcados comigo 6, dos quais 5 são da ponte e um de máquinas Neste navio eles têm uma forma de ensinar os praticantes faseada, fazendo durante os seus contratos de seis meses, dois na ponte, dois com o Contramestre e dois meses a ajudar o Safety

Este tipo de dinamismo é benéfico para qualquer aluno e futuro oficial pois permite adquirir uma maior diver sidade de competências, bem como assegurar alguns conhecimentos quan to ao que os diversos responsáveis pelo navio fazem no seu dia a dia Toda esta mentalização quanto aos múltiplos pro cessos envolvidos na operação do navio também criam competências difíceis de obter num estágio mais linear

Primeiras impressões:

Ainda estou embarcada há relativa mente pouco tempo, mas já dá para entender a dinâmica muito diferente de trabalho quando se tem uma equipa consideravelmente maior

É possível fazer uma melhor distribui ção de tarefas e partilhar uma maior variedade de pensamentos e expe riências

A manobrabilidade do navio também é bastante diferente e mais desafiante sendo uma boa fonte de aprendizagem

No entanto sinto que gosto mais de navios de menores dimensões, espe cial mente porque já sinto saudades de conduzir os Zodíacos

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BÁRBARA CHITAS Bárbara Chitas, Navio Vasco da Gama

Os oceanos e mares que cercam os continentes oferecem várias maravi lhas, muitas das quais ainda não foram descobertas pelo homem.

As vastas massas de água que cobrem mais de 70% da superfície do planeta, contendo cerca de 1,35 biliões de qui lómetros cúbicos de água, possuem planaltos, vales, planícies, montanhas e fossas

E, curiosamente, as formações subma rinas são enormes em comparação com as de terra firme

As montanhas situadas na bacia oceânica são mais altas do que as que vemos em terra; da mesma forma, as planícies são mais planas, e as fossas oceânicas são muito mais profundas

OS 10 LOCAIS MAIS PROFUNDOS DO OCEANO

De todas as características que os oceanos oferecem, a própria profun didade desses corpos d'água torna os tão encantadores e desafiadores. De facto, o oceano é profundo e a pro fundidade média dos oceanos e mares que circundam os continentes é de cerca de 3,5 km.

A parte dos oceanos cuja profundidade mínima é de, apenas, 200 metros é considerada o “ mar profundo” No en tanto, algumas partes dos oceanos chegam a ter vários quilómetros de profundidade Mas quais são, exata mente, os locais mais profundos do oceano?

Cientificamente falando, a parte mais profunda do oceano refere se à pro fundidade máxima de um ponto que pode ser acedido ou definido Cada uma das partes mais profundas do oceano é referida como fossa ou trincheira profunda

São conhecidas como a zona hadal, e as fossas marítimas mais profundas foram criadas pelo movimento de placas tec tónicas.

Atualmente, existem 46 habitats hadais nos oceanos, sendo que a humanidade sabe muito pouco sobre essas regiões, pois é um desafio estudar essas zonas oceânicas Na gravura está represen tada uma lista dos dez pontos que marcam os locais mais profundos dos oceanos.

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