REVISTA DO COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO - OUTUBRO DE 2025
Expediente
Presidente: Cláudio Ademar
Vice-Presidente: Altino Rodrigues Neto
Secretária: Rosa Cecília Santos
Produzido pela Assessoria de Comunicação do CBHSF, Tanto Expresso Comunicação e Mobilização Social www.tantoexpresso.com.br
Coordenação-geral: Paulo Vilela, Pedro Vilela e Rodrigo de Angelis
Coordenação de comunicação: Mariana Martins
Edição: Karla Monteiro
Assistente editorial: Arthur de Viveiros
Textos: Andréia Vitório; Arthur de Viveiros; Hylda Cavalcanti; Juciana Cavalcante e Karla Monteiro
Projeto gráfico: Márcio Barbalho
Diagramação: Albino Papa
Fotos: Assessoria de Comunicação do CBH Doce; Benjamin Abrahão Botto; Bianca Aun; Edson Oliveira; Emerson Leite; Fernando Piancastelli; Léo Boi; Leonardo Ramos; Manuela Cavadas; Michelle Parron e Pedro Vilela
Capa: Pedro Vilela
Ilustrações: Albino Papa
Revisão: Isis Pinto e Julia Ribeiro
Impressão: EGL Editores
Tiragem: 3500 exemplares
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
Direitos reservados. Permitido o uso das informações desde que citada a fonte.
Sociedade Society As Muitas Faces de Francisco The Many Faces of Francisco
38 Patrimônio ambiental Enviromental heritage Cavernas que Contam Histórias Caves that Holds History
Economia Economia 32 Desmatamento Deforestation
A Água que Move o Moinho The Water that Turns the Mill
Turismo Tourism
No Encalço de Lampião On Lampião’s Trail
RIGHTS OF NATURE
DIREITOS DA NATUREZA
Nesta CHICO vamos falar de muitas coisas, sobretudo das múltiplas belezas do São Francisco. Uma edição para encher os olhos e, assim, cada vez mais, espalhar a causa da revitalização e preservação de um dos maiores patrimônios naturais do país. Um rio, cuja bacia abrange seis estados, mais o Distrito Federal, essencial para a vida nos sertões. Não seria exagero afirmar que o São Francisco é o motor de boa parte da economia brasileira, como se vê na reportagem A água que move o moinho, além de abrigar em seu leito a diversidade cultural que define o Brasil.
Empossado em setembro, o novo presidente do CBHSF, Cláudio Ademar, entrevistado nas Páginas Verdes, chega com a proposta de priorizar uma ideia inovadora, que a CHICO abraça e apoia: a transformação do Rio São Francisco em sujeito de direito. O que é isto? No mundo inteiro, existe um movimento crescente para se dar personalidade jurídica, com direitos próprios, separada dos seres humanos, a rios, florestas e outros ecossistemas: Rights of Nature ou Direitos da Natureza.
Alguns países do mundo ocupam a vanguarda. Na Nova Zelândia, o Rio Whanganui foi reconhecido como pessoa legal em 2017. Como funciona? O Whanganui é representado legalmente por duas pessoas, uma do governo e outra da comunidade, com poderes de recorrer à justiça em casos de ofensas ambientais. Na Índia, os Rios Ganges e Yamuna também contam com status de “entidades vivas”, com direitos legais. Na América do Sul, já são dois exemplos: o Rio Atrato, na Colômbia, e toda a natureza, a Pachamama, no Equador.
Na reportagem “As muitas caras de Francisco”, você vai conhecer o emaranhado humano que compõe a bacia, uma soma profundamente brasileira. Ao longo desta edição, destacamos oito rostos do São Francisco, gente que está na luta cotidiana para que o Velho Chico continue a fluir por muitas gerações. Para isto, ele precisa se tornar um sujeito de direitos.
Um CNPJ para o São Francisco já.
Boa Leitura!
ilustração: Albino Papa
In this edition of CHICO, we’ll talk about many things — above all, the countless beauties of the São Francisco River. It’s an issue meant to delight the eyes and, more importantly, to spread awareness of the cause of revitalizing and preserving one of Brazil’s greatest natural treasures. A river that crosses six states and the Federal District, essential to life in the hinterlands. It would be no exaggeration to say that the São Francisco River drives much of Brazil’s economy, as shown in the feature The Water That Turns the Mill, while also carrying within its waters the cultural diversity that defines the country.
Appointed in September, the new president of the CBHSF, Cláudio Ademar — the interviewee in the Green Pages — brings with him a proposal to prioritize an innovative idea, one that CHICO wholeheartedly embraces and supports: transforming the São Francisco River into a subject of rights. What does that mean? Around the world, there is a growing movement to grant legal personality and inherent rights to rivers, forests, and other ecosystems — the so-called Rights of Nature.
Several countries are leading the way.
In New Zealand, the Whanganui River was recognized as a legal person in 2017. How does it work? The Whanganui is legally represented by two people — one from the government and one from the local community — who have the authority to take legal action in cases of environmental harm. In India, the Ganges and Yamuna rivers also hold the status of “living entities” with legal rights. In South America, there are already two examples: the Atrato River in Colombia, and all of nature — Pachamama — in Ecuador.
In the feature The Many Faces of Francisco, you’ll discover the human web that makes up the basin — a profoundly Brazilian mosaic. Throughout this edition, we highlight eight faces: the faces of the São Francisco — people engaged in the daily struggle to ensure that the Old Chico keeps flowing for generations to come. For that to happen, the river must become a subject of rights.
A CNPJ for the São Francisco — now.
Happy reading!
Por: Juciana Cavalcante
Foto: Fernando Piancastelli
CLÁUDIO
O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) está sob nova direção. A história do novo presidente, Cláudio Ademar da Silva, confunde-se com a história do Velho Chico. Nascido em Paulo Afonso e criado na vizinha Glória, filho de um agricultor e uma professora, ele testemunhou, ainda na infância, a inundação das terras da família e a construção da Usina Hidrelétrica de Itaparica. A partir desta experiência, construiu o forte compromisso pessoal com a defesa do meio ambiente e dos direitos dos povos afetados.
Graduado em Direito, Cláudio Ademar já tem estrada dentro do CBHSF. Atuou na Câmara Técnica Institucional Legal como relator da comissão processante de mediação do conflito por recursos hídricos no Oeste da Bahia, e foi também coordenador da Câmara Consultiva Regional do Submédio São Francisco, de 2021 a 2025. Atualmente, é coordenador da Câmara Temática de Bacias Hidrográficas do Fórum Nacional de Mudanças Climáticas.
Dentre as ideias de Cláudio Ademar para o São Francisco, está tornálo um “sujeito de direito”. Embora não esteja previsto na legislação, conforme explicou o presidente do CBHSF, outros países da América Latina, como o Equador, já reconhecem rios como sujeito com personalidade jurídica e direitos constituídos. “Se a plenária do Comitê aprovar, buscaremos esse reconhecimento, garantindo ao São Francisco o direito de se defender na justiça”, apontou.
ADEMAR
The São Francisco River Basin Committee (CBHSF) is under new leadership. The story of the new president, Cláudio Ademar da Silva, is deeply intertwined with the story of the “Old Chico.” Born in Paulo Afonso and raised in the nearby town of Glória, the son of a farmer and a teacher, he witnessed in his childhood the flooding of his family’s land and the construction of the Itaparica Hydroelectric Plant. From that experience, he developed a strong personal commitment to defending the environment and the rights of affected communities.
A law graduate, Cláudio Ademar already has a long trajectory within the CBHSF. He served on the Institutional and Legal Technical Chamber, acted as rapporteur for the committee mediating a water resources conflict in Western Bahia, and was also coordinator of the Regional Consultative Chamber of the Sub-middle São Francisco from 2021 to 2025. He currently serves as coordinator of the River Basin Thematic Chamber of the National Forum on Climate Change.
Among Cláudio Ademar’s ideas for the São Francisco River is the proposal to make it a “subject of rights.” Although this is not yet established in Brazilian law, as the CBHSF president explained, other Latin American countries—such as Ecuador—already recognize rivers as entities with legal personality and established rights. “If the committee’s plenary approves, we will pursue this recognition, ensuring that the São Francisco has the right to defend itself in court”, he said.
Como a luta da sua família o preparou para assumir um cargo de tamanha responsabilidade, a presidência do Comitê que rege o Velho Chico?
Minha preparação vem desta longa luta histórica pela garantia de direitos à terra. Nasci numa região propícia à energia hídrica, onde várias usinas foram construídas, como a de Itaparica, que atingiu as terras da minha família. Essa experiência me ensinou que não se consegue nada de braços cruzados. É preciso ir à mesa de negociação, discutir e lutar pelos próprios direitos. A caminhada histórica, que começou nas comunidades eclesiásticas de base, me levou à luta sindical e, depois, à luta territorial. Minha abordagem é inspirada no pensamento de Milton Santos, que defendia que as políticas públicas devem ser construídas da base para o gabinete – e não o contrário. Essa filosofia de pensar de baixo para cima foi fundamental para minha formação. Entrei no Comitê do Rio São Francisco por acaso, quando vi um anúncio do processo eleitoral. Eu me identifiquei imediatamente como um ribeirinho, um barranqueiro.
Qual a sua visão para a bacia do São Francisco nos próximos anos?
Minha candidatura foi motivada pela percepção de que o Comitê do Rio São Francisco tem um peso político que precisa ser utilizado. A visão principal é elevar o Comitê a um patamar com maior poder de negociação. Para isso, é crucial envolver os governos estaduais nas discussões do Comitê de bacia. Precisamos de uma política de revitalização efetiva e, para isso, é necessário dialogar com organismos internacionais e buscar novas fontes de financiamento. Já comecei a explorar essa possibilidade. Como presidente, pretendo transformar o São Francisco em uma ponte para captação de recursos internacionais. Outra prioridade é envolver a sociedade no debate, e pretendo desenvolver o plano de educação ambiental associado a uma estratégia de marketing para trazer a população e todos os usuários para essa discussão.
Quais, na sua opinião, são os maiores desafios e as maiores oportunidades que o Comitê e a bacia enfrentam?
O maior desafio é, sem dúvida, o envolvimento da sociedade. Precisamos que todos se unam para que possamos cobrar, com segurança, ações mais concretas do poder executivo na revitalização do rio. O Fundo da Eletrobras é um começo, mas ainda é insuficiente para as necessidades. Por isso, a diretoria colegiada e eu lutaremos para ter uma cadeira no Conselho de Administração do Fundo, por uma questão de justiça e legalidade. A maior oportunidade, e que considero o legado mais importante que posso deixar, é tornar o rio um sujeito de direito. Embora não previsto em nossa legislação, outros países da América Latina, como o Equador, já reconhecem rios dessa forma. Se a plenária do Comitê aprovar, buscaremos esse reconhecimento, garantindo ao São Francisco o direito de defesa.
O Comitê é formado por representantes de diversos setores. O senhor, quando assumiu a coordenação da Câmara Consultiva Regional do Submédio São Francisco, há quatro anos, prometeu uma gestão participativa e democrática. Como planeja fortalecer a colaboração entre esses diferentes atores para garantir uma gestão participativa e eficaz?
Vamos acabar com o discurso de que um segmento é mais importante que o outro. Todos são cruciais para a Bacia do Rio São Francisco: quilombolas, pescadores, agricultores, indígenas, grandes centros urbanos, mineração, indústria. Todos precisam de água. O que precisamos é entender que somos um só corpo e só conseguiremos resultados de qualidade com a ação e força política de todos. Para isso, o caminho é fortalecer o diálogo. É fundamental recuperar as nascentes e as matas ciliares e estabelecer uma política clara para os afluentes, que são as veias do rio. Precisamos fortalecer a comunicação e fazer com que todos se vejam como aliados, não como opositores. Meu objetivo é que a sociedade civil, os usuários e os governos estaduais e federal trabalhem juntos. Não é um caminho fácil, mas temos que começar pelo diálogo. A longo prazo, nosso plano de educação ambiental será fundamental para essa transformação. Pretendo levar essa proposta aos estados, discutir com secretários de educação e governadores, e buscar a inclusão do tema no currículo escolar.
Quais serão as três principais prioridades de ação e o que a população e os usuários da bacia podem esperar de imediato?
Minha principal prioridade é promover uma visão de bacia integrada. O Alto, o Baixo, o Médio e o Submédio, e todos os usuários, devem defender o São Francisco, e não apenas seus segmentos. Sei que é um desafio para estes quatro anos, mas precisamos começar a plantar a semente para garantir água suficiente para todos. A segunda prioridade, como já mencionei, é tornar o rio um sujeito de direito. Isso daria ao rio direitos de defesa em nosso ordenamento jurídico. Pretendo criar, em diálogo com a OAB, uma Comissão Nacional de Defesa do São Francisco para estudar e viabilizar essa proposta. Em terceiro lugar, vamos recuperar o espaço político do Comitê. Sendo o maior Comitê federal de bacia do país, precisamos fortalecer nossa política de recursos hídricos em nível nacional. Queremos ter uma participação ativa no Conselho Nacional de Recursos Hídricos e cumprir nosso papel de interlocutor entre toda a bacia e os demais órgãos. Além disso, focaremos em uma gestão mais ágil e eficiente, com processos mais rápidos para dar respostas imediatas à sociedade.
Qual a mensagem você gostaria de deixar para a população ribeirinha: agricultores, ambientalistas, usuários e todos que de alguma forma dependem do Rio São Francisco?
A minha mensagem é clara: a gestão será participativa e democrática. Todos serão prioritários, desde que estejam em defesa do Velho Chico. Precisamos acabar com a ideia de que um segmento é mais importante que outro. Meu olhar está focado na Política Nacional de Recursos Hídricos e estou pronto para ouvir e receber a todos. Vamos construir um Velho Chico forte, incluindo os 20 milhões de habitantes que vivem na bacia e nos municípios que recebem a transposição. A união resultará na recuperação e na defesa do nosso rio.
How did your family’s challenges shape your ability to take on a position of such great responsibility? The presidency of the committee that governs the “Velho Chico”?
My preparation stems from a long historical struggle to secure land rights. I was born in a region rich in water resources, where several hydroelectric plants were built — including Itaparica, resulting in flooding of my family’s land. That experience taught me that nothing can be achieved with folded arms. You must come to the negotiating table, discuss, and fight for your rights. My journey began in grassroots ecclesiastical communities, which led me to union activism and later to the struggle for land. My approach is inspired by the thinking of Milton Santos, who argued that public policy should be built from the bottom up — not the other way around. This philosophy of grassroots thinking was fundamental to my development. I joined the São Francisco River Committee by chance, when I saw an announcement for the electoral process. I immediately identified myself as a ribeirinho — a riverbank dweller.
What is your vision for the São Francisco basin in the coming years?
My candidacy was driven by the perception that the São Francisco River Committee has political weight that needs to be used. My main goal is to elevate the committee to a higher level of negotiating power. To achieve this, it’s essential to involve state governments in basin committee discussions. We need an effective revitalization policy, which requires dialogue with international organizations and the search for new funding sources — something I’ve already started exploring. As president, I intend to turn the São Francisco into a bridge for attracting international resources. Another priority is to engage society in this discussion, and I plan to develop an environmental education plan linked to a communication strategy that will bring the public and all users into the debate.
In your opinion, what are the greatest challenges and opportunities facing the committee and the basin?
The biggest challenge, without a doubt, is engaging society. We need everyone united so that we can safely demand more concrete actions from the executive branch toward the river’s revitalization. The Eletrobras Fund is a start, but it is still insufficient to meet the needs. That’s why the board and I will fight for a seat on the Fund’s Board of Directors — as a matter of fairness and legality. The greatest opportunity — and what I consider the most important legacy I can leave — is to make the river a subject of rights. Although not yet provided for in our legislation, other Latin American countries, such as Ecuador, already recognizes rivers in this way. If the committee’s plenary approves, we will pursue this recognition, ensuring the São Francisco’s right to legal defense.
The committee is composed of representatives from various sectors. When you took over as coordinator of the Regional Consultative Chamber of the Sub-mid São Francisco four years ago, you promised a participatory and democratic administration. How do you plan to strengthen collaboration among these different actors to ensure participatory and effective management?
We need to put an end to the notion that one sector is more important than another. Everyone is essential to the São Francisco Basin — quilombolas, fishermen, farmers, Indigenous peoples, major urban centers, mining, and industry. Everyone needs water. What we must understand is that we are one body, and we will only achieve meaningful results through the collective action and political strength of all. The way forward is to strengthen dialogue. It’s vital to restore the springs and riparian forests and establish clear policies for the tributaries, which are the river’s veins. We must also improve communication so that everyone sees themselves as allies, not opponents. My goal is for civil society, users, and federal and state governments to work together. It’s not an easy path, but we have to start with dialogue. In the long term, our environmental education plan will be key to this transformation. I intend to bring this proposal to state governments, discuss it with education secretaries and governors, and seek to include the topic in school curricula.
What will be your three main action priorities, and what can the basin’s population and users expect in the short term?
My top priority is to promote an integrated basin vision. The Upper, Lower, Middle, and Sub-middle regions — and all users — must defend the São Francisco, not just their individual sectors. I know this is a challenge for the next four years, but we need to start planting the seed to ensure enough water for everyone. The second priority, as I’ve mentioned, is to make the river a subject of rights. This would give the river the right to legal defense within our legal framework. I plan to create, in dialogue with the Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a National Commission for the Defense of the São Francisco river to study and advance this proposal. Thirdly, we will work to restore the committee’s political standing. As the largest federal river basin committee in the country, we need to strengthen our national water resources policy. We aim to play an active role in the National Water Resources Council and fulfill our role as a bridge between the basin and other institutions. In addition, our focus will be on promoting agile and efficient management, with streamlined processes that ensure timely and effective responses to society.
What message would you like to share with the riverside communities — including farmers, environmentalists, and all those who depend on the São Francisco River?
My message is clear: the administration will be participatory and democratic. Everyone will be a priority, as long as they stand for the Old Chico’s defense. We must abandon the idea that one sector is more important than another. My focus is on the national water resources policy, and I’m ready to listen and welcome everyone. Let’s build a strong Old Chico — one that includes the 20 million inhabitants living in the basin and in the municipalities reached by the transposition project. Unity will lead to the river’s recovery and protection.
Cacique do povo Pankará, Cícera Leal é membro do Comitê e luta pela valorização da cultura e pela dignidade dos povos originários deste país
Chief of the Pankará people, Cícera Leal is a member of the Committee and fights for the appreciation of culture and the dignity of this country’s Indigenous peoples
Ambientalista, jornalista e expresidente do CBHSF, Anivaldo Miranda celebra uma vida inteira dedicada à defesa das águas nacionais
Environmentalist, journalist, and former president of the CBHSF, Anivaldo Miranda celebrates a lifetime dedicated to the defense of the nation’s waters
Gestão das águas
Water Manegement
DEMOCRÁTICAS ÁGUAS
DEMOCRATIC WATERS
Surgidos na esteira da Lei das Águas, os Comitês de Bacias Hidrográficas têm papel fundamental na revitalização e preservação dos nossos rios: Quais suas atribuições? Como funcionam?
Emerging in the wake of the Water Law, the River Basin Committees play a fundamental role in the revitalization and preservation of our rivers: What are their responsibilities? How do they operate?
Leo Boi
Por: Arthur de Viveiros Fotos: Assessoria de Comunicação do CBH Doce, Bianca Aun, Fernando
Em São Francisco (MG), onde o rio encontra sua margem, as canoas atracadas atestam a presença do povo deste território. Cuidar das águas nacionais é cuidar das pessoas deste país
In São Francisco (MG), where the river meets its bank, the moored canoes bear witness to the presence of the people of this land. Caring for the nation’s waters is caring for the people of this country
Piancastelli e Léo Boi
Em 8 de janeiro de 1997, o Brasil ganhou uma nova lei, que colocou o país na vanguarda da governança e gestão hídrica mundial: a Lei das Águas, como ficou conhecida a Lei 9.433/1997. Com a nova legislação, surgiu, então, o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) e as águas brasileiras passaram a ser consideradas um bem de domínio público, com valor econômico. Para administrar os recursos arrecadados com a Cobrança Pelo Uso da Água, foram criados os Comitês de Bacias Hidrográficas, os chamados parlamentos das águas brasileiras.
“Esta legislação figura, sem sombra de dúvidas, como a maior de todas as conquistas da política pública dos recursos hídricos”, comentou Anivaldo Miranda, ex-presidente do CBHSF. “Isso porque essa lei, de forma muito objetiva e extremamente feliz, conseguiu sintetizar os princípios fundamentais da boa gestão das águas, definir com clareza os grandes objetivos dessa gestão e estabelecer as principais diretrizes para sua execução. Dentre esses princípios fundamentais, um deles é o mais definidor de todos: a água, no Brasil, é um bem de domínio público. Isso faz toda a diferença”.
Mas o que são, exatamente, os Comitês? Segundo o capítulo terceiro da legislação, os Comitês de Bacias Hidrográficas (CBHs) são órgãos tripartites, ou seja, reúnem, em seus plenários, representantes dos poderes públicos (municipais, estaduais e/ou federal), dos usuários de água e da sociedade civil organizada. Eles são responsáveis, portanto, pela gestão hídrica participativa e descentralizada dentro do território da respectiva bacia hidrográfica.
Atualmente, o Brasil conta com 200 Comitês de Bacia estaduais e mais 10 interestaduais. A bacia do Rio São Francisco compreende uma área de 604.476,577 quilômetros quadrados, o que torna o CBHSF o Comitê interestadual com maior território. A partir da Leis das Águas, surgiram ainda o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), ao qual os Comitês estão subordinados, e as Agências de Bacia, como secretarias executivas dos CBHs.
Cenário atual
“Comitês merecem mais destaque e financiamento. Devem ter mais autonomia perante o processo de licenciamento como um todo e não apenas nas outorgas, devendo interferir mais nas questões de supressão vegetal, por exemplo, já que a saúde de um rio é bem mais abrangente do que o seu próprio leito e margem”, comentou o advogado e especialista em Direito Ambiental, Humberto Macedo. Anivaldo completa, “mais do que conquistar espaços externos, os Comitês, empoderados por meio da Cobrança pelo Uso das Águas Brutas, precisam se transformar em espaços privilegiados, onde todos se encontrem para confrontar interesses diversos e construir uma cultura de diálogo e de consensos. Para isso, será preciso que a burocracia do Estado cumpra, primeiro, um papel de equilíbrio entre usuários e sociedade civil”.
O Secretário Executivo do Observatório da Governança das Águas, Ângelo Lima, ressaltou a urgência de todas as ações em prol do fortalecimento dos Comitês de Bacia, pois ““a conta da água não está fechando”. “As mudanças climáticas e o manejo inadequado do solo, seja em área urbana ou rural, faz com que tenhamos uma diminuição da água superficial de praticamente todas as bacias nacionais e, do outro lado, as outorgas e a demanda pela água só crescem”.
Para o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, colegiado interestadual de vasto território, com 86.475,189 km² de área, a palavra de ordem atualmente é fortalecimento. “O cenário ideal é aquele em que os Comitês disponham de autonomia efetiva, infraestrutura técnica qualificada, financiamento estável e reconhecimento institucional como instâncias deliberativas legítimas, com capacidade real de integrar e fortalecer a gestão hídrica de forma coordenada, participativa e eficiente”, apontou José Carlos Loss Junior.
Bianca Aun
Assessoria de Comunicação CBH Doce
Fernando Piancastelli
Humberto Macedoi
Ângelo Lima
Carlos Loss Júnior
On January 8, 1997, Brazil enacted a new law that placed the country at the forefront of global water governance and management: the Water Law, officially Law No. 9,433/1997. With this legislation, the National Water Resources Management System (SNGRH) was established, and Brazil’s waters came to be recognized as a public good with economic value. To manage the funds collected through the Water Use Fee, the River Basin Committees were created—known as the “parliaments of Brazilian waters.”
“This legislation stands, without a doubt, as the greatest achievement in the history of public water policy,” said Anivaldo Miranda, former president of the São Francisco River Basin Committee (CBHSF). “That’s because this law, in a very objective and remarkably successful way, synthesized the fundamental principles of good water management, clearly defined the main objectives of this management, and established the key guidelines for its implementation. Among these fundamental principles, one stands out above all: in Brazil, water is a public good. That makes all the difference.”
But what exactly are these committees? According to Chapter III of the law, River Basin Committees (CBHs) are tripartite bodies, meaning their plenaries bring together representatives of public authorities (municipal, state, and/or federal), water users, and organized civil society. They are therefore responsible for participatory and decentralized water management within the territory of their respective river basins.
Currently, Brazil has 200 state-level Basin Committees and 10 interstate committees. The São Francisco River Basin covers an area of 604,476.577 square kilometers, making the CBHSF the inter-state committee with the largest territory. The Water Law also led to the creation of the National Water Resources Council (CNRH)—to which the committees are subordinated—and the Basin Agencies, which serve as the executive secretariats of the CBHs.
Current Scenario
“Committees deserve greater visibility and funding. They should have more autonomy within the overall environmental licensing process— not just regarding water-use permits—and should play a stronger role in issues such as vegetation removal, for instance, since a river’s health extends far beyond its bed and banks,” said environmental lawyer and specialist Humberto Macedo. Anivaldo added, “Rather than seeking external recognition, the committees—strengthened by the Water Use Fee—should become key spaces where all stakeholders can meet, debate their differences, and build a genuine culture of dialogue and consensus. But for that to work, the state bureaucracy must first act as a fair mediator between users and civil society.”
Ângelo Lima, Executive Secretary of the Water Governance, The Observatory stressed the urgent need to strengthen the Basin Committees, saying that “the water balance is no longer adding up.” It warned that “climate change and poor land management, in both urban and rural regions, are depleting surface water in nearly every basin across the country—just as water-use permits and demand keep increasing.”
For José Carlos Loss Junior, president of the Doce River Basin Committee—an inter-state body covering 86,475.189 km²—the key word today is strengthening. “The ideal scenario is one in which committees have true autonomy, qualified technical infrastructure, stable funding, and institutional recognition as legitimate deliberative bodies, with real capacity to integrate and strengthen water management in a coordinated, participatory, and effective way,” he stated.
O QUE FAZ UM COMITÊ:
Promove o debate das questões relacionadas a recursos hídricos e articula a atuação das entidades intervenientes; Arbitra, em primeira instância administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos;
Aprova o Plano de Recursos Hídricos da bacia; Acompanha a execução do Plano de Recursos Hídricos da bacia e sugere as providências necessárias ao cumprimento de suas metas;
Propõe ao Conselho Nacional e aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos as acumulações, derivações, captações e lançamentos de pouca expressão, para efeito de isenção da obrigatoriedade de outorga de direitos de uso de recursos hídricos, de acordo com os domínios destes;
Estabelece os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugere os valores a serem cobrados;
Estabelece critérios e promove o rateio de custo das obras de uso múltiplo, de interesse comum ou coletivo.
WHAT A COMMITTEE DOES:
Promotes the debate on issues related to water resources and coordinates the actions of the involved entities;
Arbitrates, in the first administrative i nstance, conflicts related to water resources;
Approves the Water Resources Plan of the basin;
Monitors the implementation of the Water Resources Plan of the basin and suggests the necessary measures to achieve its goals;
Proposes to the National Council and State Water Resources Councils the accumulations, diversions, withdrawals, and discharges of minor significance, for the purpose of exemption from the requirement of granting water use rights, in accordance with their respective jurisdictions;
Establishes the mechanisms for charging for the use of water resources and suggests the amounts to be charged;
Establishes criteria and promotes the costsharing of multiple-use works of common or collective interest.
Por: Andréia Vitório
Fotos: Bianca
Seguindo o curso do Velho Chico, espalha-se a diversidade humana que habita a bacia do São Francisco. Entre quilombos e comunidades indígenas, convivem ali a mistura do Brasil.
AS MUITAS CARAS DE FRANCISCO
THE MANY FACES OF FRANCISCO
Following the course of the Velho Chico, the human diversity that inhabits the São Francisco basin unfolds. Among quilombos and Indigenous communities, the mixture of Brazil thrives here.
Aun, Emerson Leite, Fernando Piancastelli, Juciana Cavalcate, Leonardo Ramos e Miguel Aun
São aproximadamente 18 milhões de pessoas vivendo à beira do Velho Chico: quilombolas, indígenas, pescadores artesanais, comunidades de fundo e fecho de pasto, ciganos, geraizeiros, vazanteiros, caatingueiros, ribeirinhos, povos de terreiro, extrativistas e vaqueiros. No chamado Rio da Integração Nacional, povos originários e comunidades tradicionais estão presentes em toda a bacia, da nascente à foz.
“O emaranhado de povos que coexistem na bacia do Rio São Francisco pode ser definido como uma complexa e rica diversidade étnica, cultural, social e histórica, formada ao longo dos séculos por diferentes grupos humanos que interagem com o meio ambiente e entre si de formas distintas”, destacou a pesquisadora Ana Marinho, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
Juntamente com as pesquisadoras Vitória Chagas e Aline Soares, com apoio do Laboratório de Água e Solo da UFRPE, Ana Marinho está à frente de um diagnóstico inédito de povos originários e comunidades tradicionais da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Segundo Ana Marinho, esse tecido social heterogêneo é marcado por diferentes grupos que compartilham o território de maneira interdependente, com modos de vida pautados pela resistência: “Estamos lidando com uma das mais complexas dinâmicas socioterritoriais do Brasil”.
O mapeamento foi encomenda da Câmara Técnica de Comunidades Tradicionais (CTCT), do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), para melhor entender quem são e onde estão os povos e as comunidades tradicionais que habitam o Velho Chico. A ideia é fortalecer boas práticas de gestão ambiental e territorial, bem como políticas públicas voltadas a esses povos.
De acordo com Uilton Tuxá, coordenador da CTCT do CBHSF, já são mais de 641.500 pessoas que se autodeclararam quilombolas, indígenas, pescadores artesanais e de comunidades de fundo e fecho de pasto no decorrer da bacia.
Approximately 18 million people live along the banks of the “Velho Chico” (Old Chico): quilombola communities, Indigenous peoples, artisanal fishers, fundo and fecho de pasto communities, gypsies, geraiseiros, vazanteiros, caatingueiros, ribeirinhos, Afro-Brazilian religious communities (povos de terreiro), extractivists, and cowhands (vaqueiros). In what is known as the River of National Integration, Indigenous peoples and traditional communities are present throughout the basin, from its source to its mouth
“the São Francisco River Basin is home to an intricate web of peoples whose coexistence embodies a rich mosaic of ethnic, cultural, social, and historical diversity—shaped over centuries by communities interacting with both the environment and each other in unique ways,” highlighted researcher Ana Marinho, from the Federal Rural University of Pernambuco (UFRPE).
Together with researchers Vitória Chagas and Aline Soares, and supported by UFRPE’s Water and Soil Laboratory, Ana Marinho is leading an unprecedented survey of Indigenous peoples and traditional communities within the São Francisco River Basin. According to Marinho, this heterogeneous social fabric is characterized by various groups sharing the territory in an interdependent manner, with ways of life grounded in resilience: “We are dealing with one of the most complex socio-territorial dynamics in Brazil.”
The mapping was commissioned by the Technical Chamber of Traditional Communities (CTCT) of the São Francisco River Basin Committee (CBHSF) to better understand who the traditional peoples and communities inhabiting the Velho Chico are and where they are located. The aim is to strengthen good practices in environmental and territorial management, as well as public policies directed toward these groups.
According to Uilton Tuxá, coordinator of the CTCT of the CBHSF, more than 641,500 people have already self-identified as quilombolas, Indigenous peoples, artisanal fishers, and members of fundo and fecho de pasto communities across the basin.
In Ibotirama (BA), man, boat, and river blend together in a symbiotic moment
Em Ibotirama (BA), homem, barco e rio se confundem em momento simbiótico
Leonardo Ramos
Comunidades de fundo e fecho de pasto
Os modos de vida das comunidades de fundo e fecho de pasto estão ligados à terra e ao bioma onde vivem. Criam animais soltos — caprinos (fundos) e gado (fechos) — que se alimentam da vegetação nativa, alternativa à agricultura em região seca. Essas comunidades compartilham áreas comuns, sem cercamentos, baseadas na convivência e no uso coletivo do território.
The ways of life of the fundo and fecho de pasto communities are closely tied to the land and the biome where they live.
They raise free-ranging animals — goats (fundo) and cattle (fecho) — that feed on native vegetation, as an alternative to agriculture in arid regions. These communities share common, unfenced lands, based on coexistence and the collective use of territory.
O modo de vida e de produção dos caatingueiros está profundamente ligado ao bioma da Caatinga. Descendentes, em sua maioria, de imigrantes europeus, mantêm traços culturais e familiares desses povos. Produzem alimentos variados e laticínios, criando gado que se alimenta das pastagens nativas em meio às longas secas da região.
Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades
Negras Rurais e Quilombolas (CONAQ), “quilombo” vem do quimbunco, idioma banto que significa “sociedade de jovens guerreiros desenraizados de suas comunidades”. Nascidos da resistência ao modelo escravagista, os quilombos seguem lutando pela titulação de seus territórios. Preservam cultura, tradições e modos próprios de viver.
According to CONAQ, “quilombo” comes from quimbunco, a Bantu language term meaning “society of young warriors uprooted from their communities.” Born from resistance to the slave-based colonial system, quilombos continue to fight for the recognition of their territories. They preserve their own culture, traditions, and ways of life.
The lifestyle and production methods of the caatingueiros are deeply connected to the Caatinga biome.
Mostly descendants of European immigrants, they preserve cultural and family traits of these peoples.
They produce a variety of foods and dairy products, raising livestock that feeds on native pastures amid the region’s long dry seasons.
Quilombolas Ribeirinhos
Ribeirinhos vivem próximos aos rios, dependendo da pesca artesanal para sobreviver. Cultivam pequenos roçados para consumo próprio. Também praticam atividades extrativistas e de subsistência.
Caatingueiros
Riverside communities live near rivers, relying on artisanal fishing for survival. They cultivate small plots for personal consumption. They also engage in extractive and subsistence activities.
Conhecidos pelos trajes de couro (que os protegem da vegetação espinhosa e do sol quente) e por percorrer o sertão à cavalo e cuidar do gado, os vaqueiros têm como grande desafio a busca por água, o que faz com que percorram grandes distâncias até onde haja uma fonte para os animais. O vaqueiro é tão importante no cenário da Caatinga que até possui um dia nacional, 20 de Julho, bem como celebrações tradicionais como vaquejadas, uma forte expressão popular da caatinga.
Povos e comunidades de terreiro são aquelas famílias que possuem vínculo com casas de tradição de matriz africana – chamadas casas de terreiro. Esse espaço congrega comunidades que têm características comuns, como a manutenção das tradições de matriz africana, o respeito aos ancestrais, os valores de generosidade e solidariedade, o conceito amplo de família e uma relação próxima com o meio ambiente. Essas comunidades possuem uma cultura diferenciada e uma organização social própria, que constituem patrimônio cultural afro-brasileiro.
Known for their leather outfits (which protect them from thorny vegetation and the hot sun) and for traveling the sertão on horseback while tending cattle, cowboys face the major challenge of finding water, often traveling long distances to reach a source for their animals. The cowboy is so important in the Caatinga region that he even has a national day on July 20, as well as traditional celebrations like vaquejadas, a strong popular expression of the Caatinga.
Povos and Communities of Terreiro are families connected to Africanrooted traditional houses, known as casas de terreiro. These spaces bring together communities with shared characteristics, such as preserving African-rooted traditions, honoring ancestors, valuing generosity and solidarity, embracing an extended concept of family, and maintaining a close relationship with the environment. These communities have a distinct culture and social organization, forming part of Afro-Brazilian cultural heritage.
No Brasil, existem vários grupos que compõem os povos ciganos, por exemplo: os Rom, os Sinti, os Calon. Estão distribuídos em todos os estados da Federação e no Distrito Federal. Cada um desses grupos étnicos possui dialetos, tradições e costumes próprios. Muitos deles ainda estão voltados às atividades itinerantes tradicionais da cultura cigana, porém nem toda pessoa de etnia cigana é nômade.
In Brazil, there are several groups that make up the Romani people, such as the Rom, Sinti, and Calon. They are spread across all states and the Federal District. Each of these ethnic groups has its own dialects, traditions, and customs. Many still engage in the traditional itinerant activities of Romani culture, but not all Romani people are nomadic.
Vaqueiros
Ciganos
Os indígenas são os povos mais antigos do Brasil, por isso denominados povos originários. Cerca de 70 mil habitam a bacia do Rio São Francisco. São 32 povos indígenas vivendo e sobrevivendo desse rio. Mesmo sofrendo com constantes tentativas de expulsão de suas terras e correndo o risco de perderem os direitos conquistados na Constituição de 1988, os povos originários permanecem firmes na luta pela conservação dos seus modos de vida que têm por princípios o respeito e a defesa da natureza, com profundo zelo e senso de pertencimento
Povos Indígenas
Indigenous peoples are the oldest in Brazil, which is why they are called the original peoples. Around 70,000 live in the São Francisco River basin, representing 32 distinct indigenous groups that rely on the river for their survival. Despite facing constant attempts to be expelled from their lands and the risk of losing rights secured by the 1988 Constitution, these original peoples remain steadfast in preserving their ways of life, which are guided by respect for and protection of nature, with deep care and a strong sense of belonging.
Extrativistas
O extrativismo se dá com a coleta de produtos naturais, sejam eles de origem animal, vegetal ou mineral. Até hoje, povos e comunidades extrativistas se agrupam para a extração e a coleta enquanto atividade econômica e de subsistência. São pequenos agricultores que possuem culturas distintas, que desenvolvem seus modos de vida e produção alinhados com a lógica do ecossistema em que habitam. Possuem um conjunto amplo de saberes oriundos das percepções e relação direta com o meio ambiente.
Extractivism involves the gathering of natural products, whether of animal, plant, or mineral origin. To this day, extractive peoples and communities organize themselves around extraction and collection as both an economic and subsistence activity. They are small-scale farmers with distinct cultures, developing their ways of life and production in harmony with the ecosystem they inhabit. They possess extensive knowledge derived from their direct perception of and relationship with the environment.
Geraizeiros
São as mulheres e os homens do Cerrado que, às margens do Rio São Francisco, se adaptaram com sabedoria às características do bioma e às suas possibilidades de produção. Muitas vezes, eles dividem uma propriedade comum, conhecida como quintais, onde plantam e criam animais. Dessa forma, garantem a subsistência familiar e comunitária. O excedente é comercializado em comunidades vizinhas ou em feiras.
They are the women and men of the Cerrado who, along the banks of the São Francisco River, have wisely adapted to the characteristics of the biome and its production possibilities. Often, they share a common property, known as quintais, where they grow crops and raise animals. In this way, they ensure family and community subsistence, while any surplus is sold in neighboring communities or at local markets.
Fruticultor e ex-coordenador da Câmara Consultiva Regional (CCR) do Médio São Francisco, Ednaldo Campos passou oito anos à frente da CCR
Fruit grower and former coordinator of the Regional Consultative Chamber of the Middle São Francisco, Ednaldo Campos spent eight years leading the CCR
Pescadora de Barreiras (BA) e membro da Câmara Técnica de Povos e Comunidades Tradicionais (CTCT) do CBHSF, Fernanda Henn fundou a Associação de Pescadores Artesanais da Bacia do Rio Grande
A fisherwoman from Barreiras (BA) and a member of the Technical Chamber of Traditional Peoples and Communities of the Committee, Fernanda Henn founded the Association of Artisanal Fishers of the Rio Grande Basin
Economy ECONOMIA
As comportas e turbinas da Usina Hidrelétrica de Três Marias transformam o movimento das águas em energia, essencial para o desenvolvimento de Minas Gerais e do Brasil
The gates and turbines of the Três Marias Hydroelectric Plant transform the movement of the waters into energy, essential for the development of Minas Gerais and Brazil
Leo Boi
A ÁGUA QUE MOVE O MOINHO
WATER THAT TURNS THE MILL
Por: Hylda Cavalcanti
Foto: Bianca Aun, Emerson Leite e Leo Boi
O Rio São Francisco tem 2.830 quilômetros de comprimento e sua bacia compreende seis estados: Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Além de ser o maior rio que nasce e morre no território brasileiro, é o segundo maior do país, perdendo apenas para o Rio Amazonas. Ao longo desse extenso traçado, abriga usinas hidrelétricas, sistemas de irrigação vitais para o agronegócio brasileiro, canais de transposição para matar a sede do sertão, hidrovias importantes, além da agricultura familiar. Nunca se fez o cálculo. Certamente, porém, as águas do Velho Chico movem boa parte do PIB do Brasil. Não por acaso ganhou o título de rio da integração nacional, banhando 505 municípios. Foi descoberto pelos europeus, em 1.501, em um 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, o santo que, no belo “Cântico das Criaturas”, louvou a natureza.
Luz para muitos
São cinco grandes hidrelétricas: Três Marias, Sobradinho, Apolônio Sales, Paulo Afonso, Luiz Gonzaga (antiga Itaparica) e Xingó. Somente o Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso, conjunto formado pelas usinas Paulo Afonso I, II, III, IV e Apolônio Sales, produz 4.000 megawatts de energia, gerada a partir do desnível natural de 80 metros da cachoeira de Paulo Afonso. A Usina de Sobradinho, por sua vez, está localizada nos municípios de Sobradinho e Casa Nova, na Bahia. Tem uma potência instalada de 1.050.000 quilowatts (1.050 megawatts) e conta com seis máquinas geradoras de energia.
Oásis tropical
No Vale do São Francisco, entre Norte de Minas Gerais e o Oeste da Bahia, tudo o que se planta nasce. Ali, grandes projetos de irrigação transformaram a região em grande produtora de frutas tropicais, como uvas e mangas, e também de vinhos. Trata-se, por sinal, de um dos poucos lugares do mundo que produz duas safras anuais de uvas. Em 2024, movimentou R$ 8,15 bilhões, um aumento de 43% em relação a 2023. São mais de 125 mil hectares cultivados, com uma produção de 4,42 milhões de toneladas de itens agrícolas, especialmente frutas. A região responde por 90% do total de produção de manga e 98% do total de produção de uva que são exportadas pelo Brasil — e ostenta o título de “oásis no Nordeste”.
“A troca e o intercâmbio de informações é muito rica, faz com que a atividade agroindustrial seja dinâmica. Cerca de 40% do que é produzido vai para o mercado interno e 60% é destinado à exportação”, destacou a empresária Lara Secchi: “A fruticultura irrigada tem um papel social importantíssimo. Por se tratar de uma atividade manual, que precisa de mão de obra em todas as escalas, desde plantio e produção até o beneficiamento, passando pela comercialização, tem grande impacto na geração de emprego”.
Referência mundial em fruticultura irrigada, o Vale do São Francisco enfrenta hoje o desafio da reforma agrária, para que seja intensificada a agricultura familiar. Mesmo com desigualdades sociais e desafios estruturais, as famílias e organizações da sociedade civil procuram se estabelecer coletivamente em cooperativas e pleiteiam, junto às gestões municipais, estaduais e à União, mais inclusão em programas estruturantes. Como aconteceu, por exemplo, com os moradores do Assentamento Safra, em Pernambuco, que fundaram em 2015 uma cooperativa, legalizada no ano passado. O objetivo deles, a partir de agora, é reaproveitar parte da produção que é perdida com a instalação de uma agroindústria para o processamento de polpas e outros derivados.
Integrar é preciso
A transposição do Rio São Francisco, levando água de um estado a outro por meio de canais, era um sonho antigo. O imperador Dom Pedro II já pensava nisso. Agora, a gigantesca obra já foi praticamente concluída. No último agosto, deu-se início a uma das últimas etapas, interligando o Rio Grande do Norte e parte do estado da Paraíba. “O Rio Grande do Norte é uma das pontas desta engenharia. Estamos chegando lá com planejamento, responsabilidade e olhar social”, afirmou o ministro da Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes.
Em setembro, durante evento da Associação Mundial para Infraestrutura de Transporte Aquaviário, realizado nos Estados Unidos, surgiu mais um plano para o Velho Chico: a reativação da hidrovia do São Francisco. O projeto, apresentado por Leandro Gaudenzi, diretor de gestão administrativa e financeira da Autoridade Portuária da Bahia (Codeba), prevê a integração logística da hidrovia com ferrovias e portos, com a expectativa de movimentar até R$ 5 milhões em cargas no primeiro ano de operação, com potencial de crescimento à medida que a integração ferroviária e portuária seja ampliada. O projeto é considerado estratégico para reduzir custos logísticos, aumentar a competitividade e favorecer o desenvolvimento regional no interior do Nordeste.
Trama d’água
De acordo com estudos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o São Francisco recebe água de 90 afluentes pela margem direita e 78 pela margem esquerda, em um total de 168 afluentes. Desse total, 99 deles são rios perenes. Nessa trama d’água, mais de 150 espécies nativas de peixes foram registradas na bacia e novas espécies são identificadas até hoje, além das que foram introduzidas ao longo dos anos. Porém, estudos científicos já constataram que, entre 1985 e 2020, o rio reduziu significativamente a quantidade de peixes do bioma. Com isso, pesquisadores da área estão focados em estudos que visam evitar que espécies invasoras modifiquem a fauna local.
O futuro nos pertence
Não se pode deixar para amanhã: a revitalização do Velho Chico urge. Um estudo do Laboratório Lápis (Análises e Processamento de Imagens), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), usando dados de 1991 a 2020, apontou uma redução da vazão do São Francisco em aproximadamente 60% nos últimos trinta anos. Outro estudo, este do MapBiomas, indicou que a bacia do São Francisco perdeu cerca de 50% da superfície de água natural entre 1985 e 2020. As causas desta tragédia silenciosa são muitas: secas-relâmpago, provocadas por ondas de calor, desmatamento, uso abusivo da irrigação e as mudanças climáticas em geral.
“O homem precisa mudar urgentemente a sua relação com a água”, destacou o coordenador do Laboratório Lápis, da UFAL, Humberto Barbosa.
As bananas de Verdelândia (MG) representam a fartura desse chão
The bananas of Verdelândia (MG) represent the abundance of this land
Os peixes do ‘Aquário do Rio São Francisco’, no Zoológico de Belo Horizonte (MG), evidenciam toda a resiliência da fauna do Velho Chico
The fish in the “São Francisco River Aquarium” at the Belo Horizonte Zoo (MG) highlight the resilience of the fauna of the Velho Chico
Bianca Aun
Bianca Aun
Também em Verdelândia (MG), homem e frutos evidenciam a intrínseca relação entre esta terra e a produção sustentável de alimentos
Also in Verdelândia (MG), man and fruit reveal the intrinsic relationship between this land and the sustainable production of food
A trama das águas, na Ilha do Rodeadouro, em Juazeiro (BA)
The weave of the waters on Rodeadouro Island, in Juazeiro (BA)
Bianca Aun
Emerson Leite
The São Francisco River is 2,830 kilometers long and its basin spans six states: Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas, and Sergipe. In addition to being the largest river that both rises and ends within Brazilian territory, it is also the second largest river in the country, second only to the Amazon. Along its vast course, it hosts hydroelectric plants, irrigation systems vital to Brazilian agribusiness, transposition canals to quench the thirst of the backlands, important waterways, and family farming. Although the exact figure has never been calculated, it is certain that the waters of the “Velho Chico” drive a significant portion of Brazil’s GDP. It’s no coincidence that it earned the title of “river of national integration,” bathing 521 municipalities.
It was discovered by Europeans in 1501, on October 4 — the day of Saint Francis of Assisi, the saint who, in the beautiful Canticle of the Creatures, praised nature.
Light for Many
There are five major hydroelectric plants: Três Marias, Sobradinho, Apolônio Sales, Paulo Afonso, Luiz Gonzaga (formerly Itaparica), and Xingó. The Paulo Afonso Hydroelectric Complex alone — a group formed by the Paulo Afonso I, II, III, IV, and Apolônio Sales plants — produces 4,000 megawatts of energy, generated from the natural 80-meter drop of the Paulo Afonso waterfall.
The Sobradinho Plant, in turn, is located in the municipalities of Sobradinho and Casa Nova, in Bahia. It has an installed capacity of 1,050,000 kilowatts (1,050 megawatts) and operates six generating units.
Tropical Oasis
In the São Francisco Valley, between northern Minas Gerais and western Bahia, everything that is planted grows. There, large irrigation projects have transformed the region into a major producer of tropical fruits such as grapes and mangoes — and also wine. In fact, it is one of the few places in the world that produces two grape harvests per year.
In 2024, the region moved R$ 8.15 billion — a 43% increase compared to 2023. There are more than 125,000 cultivated hectares, yielding 4.42 million tons of agricultural products, especially fruit. The region accounts for 90% of Brazil’s exported mango production and 98% of exported grapes — proudly bearing the title of “oasis of the Northeast.”
“The exchange and sharing of information are very rich and make the agro-industrial activity dynamic. About 40% of what is produced goes to the domestic market, and 60% is destined for export,” said businesswoman Lara Secchi. “Irrigated fruit farming plays a very important social role. Because it is a manual activity that requires labor at every stage — from planting and production to processing and marketing — it has a major impact on job creation.”
A global reference in irrigated fruit farming, the São Francisco Valley now faces the challenge of agrarian reform, aiming to strengthen family farming. Despite social inequalities and structural challenges, families and civil society organizations strive to establish cooperatives and advocate with municipal, state, and federal governments for greater inclusion in development programs.
One such example is the residents of the Safra Settlement, in Pernambuco, who founded a cooperative in 2015 — legally recognized last year. Their goal now is to reduce waste by creating an agroindustry to process fruit pulps and other derivatives
Integration Is Necessary
The transposition of the São Francisco River, carrying water from one state to another through canals, was an old dream. Emperor Dom Pedro II had already envisioned it. Now, the gigantic project has been practically completed. Last August marked the beginning of one of its final stages, linking Rio Grande do Norte and part of the state of Paraíba. “Rio Grande do Norte is one of the endpoints of this engineering feat. We are getting there with planning, responsibility, and a social perspective,” said the Minister of Integration and Regional Development, Waldez Góes.
In September, during an event of the World Association for Waterborne Transport Infrastructure held in the United States, another plan for the Velho Chico emerged: the reactivation of the São Francisco waterway. The project, presented by Leandro Gaudenzi, director of administrative and financial management at the Bahia Port Authority (Codeba), envisions the logistical integration of the waterway with railways and ports, with an expectation of handling up to R$ 5 million in cargo during its first year of operation, and the potential for growth as railway and port integration expands. The project is considered strategic for reducing logistics costs, increasing competitiveness, and fostering regional development in the interior of the Northeast.
A Water Network
According to studies from the Federal University of Bahia (UFBA), the São Francisco receives water from 90 tributaries on its right bank and 78 on its left bank — totaling 168 tributaries, of which 99 are perennial rivers. Within this vast water network, more than 150 native fish species have been recorded in the basin, and new species are still being identified, in addition to those introduced over time.
Researchers remain vigilant, continuously studying ways to prevent invasive species from altering the local fauna. Scientific studies have already shown that between 1985 and 2020, the river’s fish population decreased significantly.
The Future Belongs to Us
There’s no time to waste — revitalizing the Velho Chico is urgent. A study by the Lápis Laboratory (Image Analysis and Processing) at the Federal University of Alagoas (UFAL), using data from 1991 to 2020, revealed that the São Francisco’s water flow has dropped by approximately 60% over the past thirty years.
Another study, by MapBiomas, indicated that the São Francisco Basin lost about 50% of its natural water surface between 1985 and 2020.
The causes of this silent tragedy are many: flash droughts caused by heat waves, deforestation, excessive irrigation, and climate change in general.
“Humankind urgently needs to change its relationship with water,” emphasized Humberto Barbosa, coordinator of the Lápis Laboratory at the Federal University of Alagoas (UFAL).
Representante do Serviço Autônomo de Saneamento Básico de Itabirito (MG), Heloísa França foi secretáriaadjunta do CBH Rio das Velhas, representando a voz dos usuários
Representative of the Autonomous Basic Sanitation Service of Itabirito (MG), Heloísa França served as deputy secretary of the CBH Rio das Velhas, representing the voice of the users
Sergipana, Rosa Cecília Santos é bióloga, mestre em Saúde e Ambiente, professora e atualmente ocupa o cargo de Secretária Executiva do CBHSF
From Sergipe, Rosa Cecília Santos is a biologist, holds a master’s degree in Health and Environment, is a professor, and currently serves as Executive Secretary of the CBHSF
Desmatamento
Deforestation
Por: Juciana Cavalcante
Fotos: Bianca Aun, Leo Boi e Manuela Cavadas
TRÊS
The São Francisco River crosses three biomes — Cerrado, Caatinga, and Atlantic Forest. The Cerrado accounts for 53% of Brazil’s annual native vegetation loss; the Caatinga has lost over 15% (8.6 million hectares) since 1985; and the Atlantic Forest is regenerating slowly. The health of the “Velho Chico” depends on speeding up this revitalization.
Bianca
O São Francisco atravessa três biomas — Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica. O Cerrado responde por 53% da perda anual de vegetação nativa do país; a Caatinga já perdeu mais de 15% (8,6 milhões de hectares) desde 1985; e a Mata Atlântica se regenera lentamente. Para a saúde do Velho Chico, urge apressar a revitalização da natureza.
BIOMAS
THREE BIOMES
A Caatinga
A Caatinga, bioma exclusivamente brasileiro, enfrenta uma deterioração preocupante. Entre 1985 e 2023, o bioma perdeu 14,4% de sua vegetação nativa, o equivalente a 8,6 milhões de hectares.
A agricultura e as pastagens são os principais vilões. A expansão agrícola foi de 1.557%, enquanto a área de pastagem aumentou 112% no mesmo período. A maior parte do desmatamento (67,4%) ocorreu em áreas de vegetação primária.
Há uma esperança: pesquisas têm indicado que a Caatinga foi responsável por 50% do sequestro de carbono do Brasil em 2020. Sua resiliência e capacidade de retenção de carbono vale muito dinheiro em créditos de carbono, grande incentivo para a sua restauração e preservação.
O Cerrado
“Coração aquático do Brasil”, o Cerrado abriga as nascentes de várias bacias hidrográficas. Contudo, o bioma tem sofrido perda alarmante de água. São 30 piscinas olímpicas por minuto, segundo o estudo “Cerrado – O Elo Sagrado das Águas do Brasil”, da Ambiental Media.
A principal causa é a expansão descontrolada do agronegócio, somada às mudanças climáticas. Entre 1970 e 2021, a vazão de segurança do São Francisco caiu 50%, passando de 823 m³/s para 414 m³/s. No mesmo período, a área de cultivo de soja na bacia aumentou em 7.082%, resultando na perda de 20% da vegetação nativa original.
A Mata Atlântica
A Mata Atlântica desempenha um papel importante na proteção das cabeceiras do Velho Chico. Um estudo recente revelou que, embora a Lei da Mata Atlântica, de 2006, tenha ajudado a frear o desmatamento, a maior parte do ganho de vegetação se deu na forma de pequenos fragmentos. Foi ganho 1 milhão de hectares desde 2005, mas em fragmentos com tamanho médio de um campo de futebol.
Segundo o professor Jean Paul Metzger, da Universidade de São Paulo (USP), essas áreas pequenas não conseguem garantir a manutenção de relações ecológicas duradouras. O desmatamento segue sendo uma ameaça, especialmente por ocorrer em áreas de mata madura e por meio de licenciamentos questionáveis. Em 2024, a queda no desmatamento foi da ordem de 27%, graças ao aumento da fiscalização
The Caatinga
The Caatinga, a biome unique to Brazil, is facing alarming deterioration. Between 1985 and 2023, the biome lost 14.4% of its native vegetation, equivalent to 8.6 million hectares.
Agriculture and pastures are the main culprits. Agricultural expansion increased by 1,557%, while pasture areas grew by 112% in the same period. Most of the deforestation (67.4%) occurred in areas of primary vegetation.
There is hope: research indicates that the Caatinga was responsible for 50% of Brazil’s carbon sequestration in 2020. Its resilience and carbon retention capacity are highly valuable in carbon credits, providing strong incentives for restoration and preservation.
The Cerrado
Known as the “water heart of Brazil,” the Cerrado hosts the headwaters of several river basins. However, the biome has suffered an alarming loss of water—equivalent to 30 Olympic swimming pools per minute, according to the study Cerrado – The Sacred Link of Brazil’s Waters by Ambiental Media.
The main cause is the uncontrolled expansion of agribusiness, combined with climate change. Between 1970 and 2021, the safe flow of water of the São Francisco River dropped by 50%, from 823 m³/s to 414 m³/s. In the same period, soybean cultivation in the basin increased by 7,082%, resulting in the loss of 20% of the original native vegetation.
The Atlantic Forest
The Atlantic Forest plays an important role in protecting the headwaters of the São Francisco River. A recent study revealed that, although the 2006 Atlantic Forest Law helped slow deforestation, most of the vegetation gains occurred in the form of small fragments. Since 2005, 1 million hectares have been restored, but in fragments averaging the size of a soccer field.
According to Professor Jean Paul Metzger from the University of São Paulo (USP), these small areas cannot ensure the maintenance of long-lasting ecological relationships. Deforestation remains a threat, especially as it occurs in mature forest areas and through questionable licensing practices. In 2024, deforestation fell by around 27%, thanks to increased monitoring
COMPARATIVO DOS BIOMAS DA BACIA DO SÃO FRANCISCO
Contribuição para a bacia
Caatinga
Bioma exclusivamente brasileiro, vital para a bacia em seu percurso final.
“Coração aquático do Brasil”, abriga as nascentes e principais afluentes do Rio São Francisco.
Principal ameaça
Expansão da agricultura e pastagens, resultando em desertificação.
Expansão descontrolada do agronegócio exportador (principalmente soja).
Impacto na bacia
Degradação hídrica em virtude da diminuição da recarga de aquíferos e aumento da erosão, intensificando a desertificação.
Perda de vazão devido ao aumento da área de cultivo de soja (7.082%), o que causou queda de 50% na vazão de segurança do rio entre 1970 e 2021.
Protege as cabeceiras da bacia, mesmo em pequenos fragmentos.
Perda de fragmentos de mata madura, apesar de queda no desmatamento geral.
Dados do desmatamento (2024)
Perdeu 14,4% de sua vegetação nativa entre 1985 e 2023.
Potencial destaque
Grande potencial econômico e ambiental em créditos de carbono, sendo responsável por 50% do sequestro de carbono do Brasil em 2020.
Concentra 53% de toda a perda de vegetação nativa do Brasil, com 82% da devastação no Matopiba.
Fragmentação do bioma não garante a manutenção de relações ecológicas duradouras.
Desmatamento registrou queda de 27% em 2024, mas a perda de pequenos fragmentos é preocupante.
Principal contribuinte de água para a bacia do São Francisco.
A Lei da Mata Atlântica ajudou a frear o desmatamento, e houve um ganho de cerca de 1 milhão de hectares em fragmentos desde 2005.
Cerrado Mata Atlântica
COMPARISON OF THE BIOMES OF THE SÃO FRANCISCO BASIN
Caatinga
Contribution to the basin
An exclusively Brazilian biome, vital to the basin in its final stretch.
“The aquatic heart of Brazil,” it is home to the headwaters and main tributaries of the São Francisco River
Main threat
Expansion of agriculture and pastures, resulting in desertification.
Uncontrolled expansion of export-oriented agribusiness (mainly soy).
It protects the basin’s headwaters, even in small fragments.
Loss of mature forest fragments, despite the overall decline in deforestation
Impact on the basin
Water degradation due to reduced aquifer recharge and increased erosion, intensifying desertification.
Deforestation data (2024)
It lost 14.4% of its native vegetation between 1985 and 2023
Loss of flow due to the increase in soy cultivation area (7,082%), which caused a 50% drop in the river’s safe flow between 1970 and 2021.
It accounts for 53% of all native vegetation loss in Brazil, with 82% of the devastation in the Matopiba region.
Potential highlight
Great economic and environmental potential in carbon credits, being responsible for 50% of Brazil’s carbon sequestration in 2020.
Main water contributor to the São Francisco Basin.
Biome fragmentation does not ensure the maintenance of lasting ecological relationships.
Deforestation recorded a 27% decrease in 2024, but the loss of small fragments is concerning
The Atlantic Forest Law helped curb deforestation, and there has been a gain of about 1 million hectares in fragments since 2005.
Cerrado Atlantic Forest
Uma bacia, três biomas. Diferentes ecossistemas se complementam em uma existência harmônica
One basin, three biomes. Different ecosystems complement one another in a harmonious existence
Manuela Cavadas Bianca
Aun
Bianca Aun
Membro da Câmara Técnica de Povos e Comunidades Tradicionais (CTCT) do CBHSF, Sandra Andrade luta para que a voz dos povos quilombolas deste país seja sempre protagonista
Member of the Technical Chamber of Traditional Peoples and Communities (CTCT) of the São Francisco River Basin Committee (CBHSF), Sandra Andrade fights to ensure that the voice of the quilombola people of this country is always a protagonist
Representando a Secretaria de Meio Ambiente do Estado da Bahia, Larissa Cayres é membro titular do CBHSF e da Câmara Técnica Institucional e Legal (CTIL) e personifica o compromisso do poder público estadual com a gestão das águas
Representing the Bahia State Department of the Environment, Larissa Cayres is a full member of the Committee and of the Institutional and Legal Technical Chamber, embodying the state government’s commitment to water managemen
Patrimônio ambiental
A trajetória do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, santuário esculpido pelo tempo, até ser reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO.
CAVERNAS QUE HISTÓRIAGUARDAM
CAVES THAT HOLD HISTORY
Michelle Parron
The journey of Peruaçu Caves National Park, a sanctuary sculpted by time, until it was recognized as a UNESCO World Heritage Site.
Por: Karla Monteiro
Fotos: Michelle Parron e Miguel Aun
As caminhadas por ali impressionam: cavernas gigantes, silenciosas, adornadas por riachos cristalinos e fantásticas formações rochosas. Nas paredes, inscrições milenares, que remetem a outro tempo, outro mundo. Em julho, enfim, o mágico Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, no Norte de Minas Gerais, foi reconhecido como Patrimônio Mundial Natural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A decisão foi anunciada durante a 47ª Sessão do Comitê do Patrimônio Mundial, em Paris, na França.
Localizado a 670 quilômetros de Belo Horizonte, no encontro das cidades de Itacarambi, Januária e São João das Missões, o parque abriga mais de 250 cavernas, que chegam a atingir 100 metros de altura. No Peruaçu, pesquisadores já encontraram pinturas rupestres de 12 mil anos e cânions de até 200 metros de profundidade. A unidade de conservação figura entre os mais importantes sítios naturais e arqueológicos do país, com 56 mil hectares e 500 formações geológicas catalogadas.
Dentro das cavernas, o silêncio fala. O nome, Peruaçu, vem do tupi: “grande buraco”. Por séculos, o vale ficou esquecido, sem que ninguém lhe desse importância histórica. Vaqueiros e lavradores atravessavam seus desfiladeiros e descansavam à sombra das cavernas. Só no fim do século XX o Peruaçu começou a ser estudado. Espeleólogos e cientistas, vindos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de instituições internacionais, mapearam centenas de cavernas e sítios. Foi o começo da travessia que transformaria o isolado sertão em símbolo de memória e preservação.
Em 21 de setembro de 1999, o governo federal criou oficialmente o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, com mais de 56 mil hectares. A partir daí, o desafio foi conciliar conservação e presença humana. O parque nasceu dentro de uma paisagem viva, de comunidades tradicionais que ainda pescam no São Francisco, cultivam roçados e mantêm viva a memória dos antigos caminhos de tropeiros.
Com o tempo, o Peruaçu ganhou trilhas, passarelas e guias locais formados pelo ICMBio. Vieram pesquisadores, fotógrafos, viajantes. A Caverna do Janelão, com 100 metros de altura e claraboias naturais que filtram o sol, tornou-se o coração simbólico do parque. A Lapa dos Desenhos revelou uma das maiores galerias de arte rupestre das Américas. E, nas margens do Velho Chico, as comunidades começaram a perceber que o turismo podia significar possibilidade de permanência para os nativos. O título concedido pela UNESCO consagrou não apenas a grandiosidade geológica, mas a relação entre o homem e o rio, entre o presente e o passado.
The walks through the area are awe-inspiring: giant, silent caves adorned with crystal-clear streams and fantastic rock formations. On the walls, ancient inscriptions recall another time, another world. In July, the magical Peruaçu Caves National Park, in the north of Minas Gerais, was finally recognized as a UNESCO World Natural Heritage Site by the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. The decision was announced during the 47th Session of the World Heritage Committee, held in Paris, France.
Located 670 kilometers from Belo Horizonte, at the meeting point of the cities of Itacarambi, Januária, and São João das Missões, the park is home to more than 250 caves, some reaching up to 100 meters in height. In Peruaçu, researchers have discovered 12,000-year-old rock paintings and canyons as deep as 200 meters. The conservation unit ranks among the most important natural and archaeological sites in the country, spanning 56,000 hectares and containing 500 cataloged geological formations.
Inside the caves, silence speaks. The name Peruaçu comes from Tupi: “big hole.” For centuries, the valley was forgotten, with little recognition of its historical importance. Cowhands and farmers would cross its gorges and rest in the shade of the caves. Only at the end of the 20th century did Peruaçu begin to be studied. Speleologists and scientists from UFMG and international institutions mapped hundreds of caves and archaeological sites. It was the beginning of a journey that would transform the isolated hinterland into a symbol of memory and preservation.
On September 21, 1999, the federal government officially created the Peruaçu Caves National Park, covering more than 56,000 hectares . From then on, the challenge was to reconcile conservation with human presence. The park was born within a living landscape, inhabited by traditional communities that still fish in the São Francisco River, cultivate small farms, and keep alive the memory of the old mule trails.
Over time, Peruaçu gained trails, walkways, and local guides trained by ICMBio. Researchers, photographers, and travelers began to arrive. The Janelão Cave, with its 100-meter-high vaults and natural skylights that filter the sunlight, became the symbolic heart of the park. The Lapa dos Desenhos cave revealed one of the largest collections of rock art in the Americas. And along the banks of the “Velho Chico,” local communities began to realize that tourism could offer a way for the natives to remain on their land. The title granted by UNESCO consecrated not only the park’s geological grandeur but also the enduring relationship between humankind and the river — between the present and the past.
Carved into the rocks of Minas Gerais, the Peruaçu Caves hold natural and historical treasures
Michelle Parron
Entalhadas nas pedras das Minas Gerais, as Cavernas do Peruaçu guardam riquezas naturais e históricas
PASSEIOS IMPERDÍVEIS
Centro de Visitantes / Portaria Areião
Espaço expositivo sobre geologia, arqueologia e cultura local.
Dica: comece o dia aqui. O vídeo introdutório ajuda a compreender o que o olhar distraído não percebe.
Caverna do Janelão
O ícone do parque. Um templo de pedra de cerca de 100 metros de altura, onde a luz entra por aberturas naturais e o rio subterrâneo ecoa. Dificuldade média, caminhada de aproximadamente quatro horas (ida e volta).
Dica: vá entre 9h e 11h, quando os feixes de sol atravessam as fendas e criam colunas douradas.
Lapa dos Desenhos
Uma das maiores galerias de arte rupestre das Américas, com centenas de figuras humanas, animais e símbolos pintados há até nove mil anos. Caminhada leve, em torno de duas horas. Dica: observe sem tocar — o pigmento natural é sensível e se apaga com o tempo.
Lapa do Boquete
Local das principais escavações arqueológicas do parque, abriga vestígios de antigas ocupações humanas e formações rochosas impressionantes. Dificuldade média, cerca de três horas.
Dica: vá com guia local, que costuma contar as histórias transmitidas de geração em geração.
Trilha do Travessão
Caminho pelo alto dos cânions, com vista panorâmica do vale e do curso sinuoso do Rio São Francisco. Trilha moderada, com duração média de três horas.
Dica: percorra no fim da tarde — o pôr do sol transforma o cerrado em um cenário de luz dourada.
Gruta Bonita
Menor e mais íntima, guarda formações cristalinas e o silêncio absoluto das cavernas “vivas”. Caminhada leve, de aproximadamente uma hora e meia.
Dica: use capacete e lanterna; o som das gotas d’água cria uma trilha sonora mineral.
Lapa Bonita (ou Lapa do Índio)
Abrigo natural com inscrições rupestres e um mirante para o vale. Caminhada fácil, em torno de uma hora.
Dica: leve chapéu e água — o sol do norte de Minas é forte mesmo nas trilhas curtas.
Cachoeira do Janelão (fora do parque)
Um refúgio de águas claras e poços para banho, cercado por rochedos. Caminhada leve, cerca de duas horas. Dica: combine o passeio com a visita à caverna principal; o banho é recompensador após a trilha.
Dentre os valores culturais, pinturas rupestres milenares se multiplicam pelas paredes de pedra
its cultural
Among
riches, millennia-old rock paintings multiply across the stone walls
Miguel
Aun
Como chegar: o parque fica a 15 km de Itacarambi e a 55 km de Januária (MG).
Melhor época: de maio a setembro, durante a estação seca. Agendamento: visitas devem ser reservadas com antecedência pelo site do ICMBio.
How to get there: the park is located 15 km from Itacarambi and 55 km from Januária (MG).
Best time to visit: from May to September, during the dry season. Booking: visits must be scheduled in advance through the ICMBio website.
UNMISSIBLE TOURS
Visitor Center / Areião Gate
Espaço expositivo sobre geologia, arqueologia e cultura local. Exhibition space on geology, archaeology, and local culture.
Tip: Start your day here — the introductory video helps reveal what a distracted eye might miss.
Janelão Cave
The park’s icon. A stone temple nearly 100 meters high, where light filters through natural openings and the underground river echoes. Moderate difficulty, approximately four hours round trip.
Tip: Go between 9 and 11 a.m., when the sunbeams pass through the cracks, creating golden columns.
Lapa dos Desenhos
One of the largest rock art galleries in the Americas, featuring hundreds of human, animal, and symbolic figures painted up to nine thousand years ago. Easy hike, about two hours.
Tip: Observe without touching — the natural pigment is fragile and fades over time.
Lapa do Boquete
Site of the park’s main archaeological excavations, home to remains of ancient human settlements and impressive rock formations. Moderate difficulty, around three hours.
Tip: Go with a local guide — they often share stories passed down through generations.
Travessão Trail
A path along the top of the canyons, offering panoramic views of the valley and the winding São Francisco River. Moderate hike, lasting about three hours.
Tip: Walk it in the late afternoon — the sunset turns the cerrado into a golden landscape..
Bonita Cave
Smaller and more intimate, it shelters crystal formations and the absolute silence of “living” caves. Easy hike, about an hour and a half.
Tip: Wear a helmet and bring a flashlight — the dripping water creates a mineral soundtrack.
Lapa Bonita (or Lapa do Índio)
Natural shelter with rock inscriptions and a viewpoint over the valley. Easy walk, about one hour.
Tip: Bring a hat and water — the northern Minas sun is strong even on short trails.
Janelão Waterfall (outside the park)
A haven of clear waters and natural pools for swimming, surrounded by rocky walls. Easy hike, about two hours.
Tip: Combine the trip with a visit to the main cave — the swim is a rewarding end to the trail.
O território conta com mais de 500 formações geológicas catalogadas, que formam um espetáculo de exuberância e poder da natureza
The territory features more than 500 cataloged geological formations, creating a spectacle of nature’s exuberance and power
Michelle Parron
Turismo
Por: Juciana Cavalcante
Fotos: Benjamin Abrahão Botto e Edson Oliveira Tourism
Arte: Albino Papa
Às margens do São Francisco, sertão de Alagoas, fronteira com Sergipe, fica a colonial cidade de Piranhas. Tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional, essa joia do Nordeste é a porta de entrada para a Rota do Cangaço, que transporta o visitante pelos caminhos de Lampião e seu bando.
NO ENCALÇO DE LAMPIÃO
ON LAMPIÃO’S TRAIL
On the banks of the São Francisco River, in the hinterlands of Alagoas, near the border with Sergipe, lies the colonial town of Piranhas. Listed as a National Historic Heritage site, this gem of the Northeast serves as the gateway to the Cangaço Route, which takes visitors along the paths once traveled by Lampião and his band.
No sertão castigado pelo sol, surgiu Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, acompanhado da bela Maria Bonita. Seu bando, uma confraria de homens endurecidos pela seca e mulheres lindamente ornamentadas, misturava a brutalidade dos jagunços e a poesia do estilo: cartucheiras cruzadas, chapéus ornamentais, punhais à mostra, alpercatas. O cangaço, muito mais do que que banditismo, tornou-se teatro de justiça social, feita com sangue. Em saques, assaltos e sequestros, além de confrontos com a polícia ou grupos rivais, o bando de Lampião tocou fogo na Caatinga entre os fins do século XIX e o início do século XX.
O surgimento do cangaço está diretamente associado à estrutura escravocrata do Nordeste de então. As terras se encontravam nas mãos de muito poucos, os coronéis, que viviam na abundância. Enquanto isto, o povo enfrentava a seca, a fome, a pobreza extrema, a exploração. Ao se recusarem a fazer parte desta pirâmide perversa, os cangaceiros se impuseram na paisagem como bandoleiros destemidos e sanguinários. Era matar ou morrer.
Para os ricos, Lampião era o fora-da-lei. As tropas policiais, chamadas Volantes, perseguiam-no como o maior inimigo da ordem. A fama de cruel tinha razão de ser, pois costumava degolar os inimigos e castigar companheiros desobedientes. Para muitos sertanejos, no entanto, esmagados pelo poder dos coronéis, Lampião era o justiceiro. Sua imagem de rei do cangaço se confundia com a de herói popular: o cabra que desafiava o sistema, em um lugar abandonado por Deus e pelo Estado.
Em 28 de julho de 1938, o bando de Lampião foi surpreendido na Grota de Angicos, em Poço Redondo, nos arredores de Piranhas, por uma emboscada de uma volante de Alagoas, comandada pelo tenente João Bezerra. Lampião, Maria Bonita e outros nove cangaceiros foram mortos em combates. As cabeças acabaram exibidas na praça pública da cidade de Piranhas, como o símbolo de que o Estado havia derrotado o cangaço.
Em Piranhas
Fundada ainda no século XVII, Piranhas parece suspensa no tempo. De frente para o São Francisco, nasceu como entreposto ribeirinho. No fim do século XIX, tornou-se um ponto estratégico por conta da Estrada de Ferro Paulo Afonso, que ali desembocava. Até hoje a velha estação ferroviária, de 1881, está lá, transformada em museu. O cenário também está preservado, marcado pelo casario colonial colorido, as ruas estreitas de pedras e as ladeiras que sobem e descem até o Velho Chico.
A bela cidade hoje se reinventa como destino turístico. Dali, pela manhã, partem os passeios de catamarã pelo cânion do São Francisco. À noite, o centro histórico de Piranhas pulsa, com muitos restaurantes e lojinhas de artesanato.
“Durante o período do Brasil Império, Piranhas era um porto onde as mercadorias que subiam o Rio São Francisco paravam. Como o trecho do rio era cheio de corredeiras e inviável para a navegação, as cargas eram desembarcadas e seguiam em lombo de animais. Para solucionar o problema, o Imperador Dom Pedro II trouxe engenheiros ingleses, que construíram a ferrovia para ligar o Alto e o Baixo São Francisco”, explicou o guia turístico Rafael Sabino. “Foi a partir dessa ferrovia que Piranhas se desenvolveu. A cidade cresceu em torno do trem, e a arquitetura preservada, como a torre do relógio, a estação e os armazéns, reflete essa história”.
Rota do Cangaço
A partir de Piranhas, uma viagem de catamarã ou lancha pelo Complexo Turístico do Xingó transporta o visitante para a história. O ponto alto da aventura é a trilha que leva à Grota do Angico, em Poço Redondo, Sergipe. Foi neste local que, em 1938, a polícia surpreendeu e matou Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros, pondo fim à era do cangaço.
O trajeto, que pode ser reservado com antecedência ou através das agências de turismo, oferece uma mistura de beleza natural e um mergulho profundo em um dos capítulos mais marcantes da história brasileira. Os passeios têm um custo a partir de R$ 100 por pessoa.
Para conhecer o local histórico da morte de Lampião, o visitante pode contratar o pacote oferecido pelas agências que inclui opções para desfrutar da culinária local em restaurante à beira do Rio São Francisco, além de uma trilha opcional (custa em média R$ 30 por pessoa) que leva ao exato local da morte do cangaceiro.
Informações úteis: Distância da capital (Maceió): 298 km Passeios para a Rota do Cangaço: É possível reservar online ou diretamente com agências de turismo em Piranhas.
Pontos turísticos imperdíveis de Piranhas:
Museu do Sertão (ou do Cangaço):
Localizado na antiga Estação Ferroviária, esse museu é uma imersão na história do cangaço, com fotos, documentos e objetos que contam a vida de Lampião e seu bando, além de retratar o cotidiano do homem sertanejo.
Torre do Relógio: Com um relógio inglês datado de 1879, a torre em frente ao museu é um marco no centro histórico e abriga um charmoso café local.
Mirantes: Para vistas de tirar o fôlego, Piranhas oferece dois mirantes incríveis. O Mirante Secular, que servia como farol para embarcações, e o Mirante da Igreja do Bonfim, que recompensa os 265 degraus com uma vista panorâmica do Velho Chico e da cidade.
Prainha de Piranhas: Situada no centro da cidade, a prainha fluvial é ideal para um mergulho refrescante, e de onde partem os passeios de catamarã para a Rota do Cangaço.
Palácio Dom Pedro II: Um belo edifício com arquitetura neoclássica que já foi residência de governador e hoje é aberto à visitação, contando um pouco mais da história política da região.
A gastronomia local também merece destaque, com pratos típicos como carne de sol, bode e macaxeira, servidos nos diversos restaurantes. Para os amantes da natureza, a Trilha da Linha Férrea oferece uma caminhada tranquila e cênica, margeando o Rio São Francisco.
In the sun-scorched hinterlands, Virgulino Ferreira da Silva — better known as Lampião — emerged, alongside the beautiful Maria Bonita. His band, a brotherhood of men hardened by drought and women beautifully adorned, combined the brutality of gunmen with a certain poetic flair: crossed cartridge belts, ornate hats, daggers on display, leather sandals. The cangaço, far more than mere banditry, became a theater of social justice — written in blood. Through raids, robberies, and kidnappings — and in clashes with the police or rival groups — Lampião’s band set the Caatinga ablaze between the late 19th and early 20th centuries.
The rise of the cangaço is directly tied to the slave-based social structure of the Northeast at the time. Land was concentrated in the hands of a few — the coronéis — who lived in abundance. Meanwhile, the people faced drought, hunger, extreme poverty, and exploitation. By refusing to take part in this cruel hierarchy, the cangaceiros carved out their place in the landscape as fearless, bloodthirsty outlaws. It was kill or be killed.
To the wealthy, Lampião was an outlaw. Police troops — known as Volantes — hunted him as the greatest enemy of order. His reputation for cruelty was not undeserved: he often beheaded his enemies and punished disobedient followers. Yet, to many sertanejos crushed under the power of the coronéis, Lampião was a kind of avenger. His image as the “King of the Cangaço” blurred with that of a popular hero — the man who defied the system in a land abandoned by both God and the State.
On July 28, 1938, Lampião’s band was ambushed in the Grota de Angicos, in Poço Redondo, near Piranhas, by a Volante from Alagoas led by Lieutenant João Bezerra. Lampião, Maria Bonita, and nine other cangaceiros were killed in combat. Their severed heads were later displayed in the public square of Piranhas — a gruesome symbol of the State’s victory over the cangaço
In Piranhas
Founded in the 17th century, Piranhas seems suspended in time. Facing the São Francisco River, it was born as a river trading post. By the late 19th century, it had become a strategic hub thanks to the Paulo Afonso Railway, which ended there. The old 1881 railway station still stands today, transformed into a museum. The town’s charm remains intact — with its colorful colonial houses, narrow cobblestone streets, and steep hills that rise and fall toward the Velho Chico River.
Today, this beautiful town reinvents itself as a tourist destination. In the morning, catamarans depart from there for tours through the São Francisco Canyon. At night, Piranhas’ historic center comes alive, filled with restaurants and handicraft shops.
“During the Imperial period of Brazil, Piranhas served as a port where goods traveling up the São Francisco River were unloaded,” explained tour guide Rafael Sabino. “Because that stretch of the river was full of rapids and unnavigable, the cargo had to be carried on animal backs. To solve the problem, Emperor Dom Pedro II brought in British engineers, who built the railway connecting the Upper and Lower São Francisco. That railway sparked Piranhas’ development. The city grew around the train, and its preserved architecture — like the clock tower, the station, and the warehouses — still tells that story.”
The Cangaço Route
From Piranhas, a catamaran or speedboat trip through the Xingó Tourist Complex takes visitors on a journey through history. The highlight of the adventure is the trail leading to the Grota do Angico, in Poço Redondo (Sergipe) — the site where, in 1938, police surprised and killed Lampião, Maria Bonita, and nine other cangaceiros, bringing an end to the cangaço era.
The route — which can be booked in advance or through local travel agencies — blends natural beauty with a deep dive into one of Brazil’s most striking historical chapters. Tours start at around R$100 per person.
To visit the historical site of Lampião’s death, travelers can book packages that include lunch at a riverside restaurant and an optional hike (about R$30 per person) leading to the exact spot where the legendary cangaceiro met his end.
Useful Information:
Distance from the capital (Maceió): 298 km Cangaço Route tours: Reservations can be made online or directly with local agencies in Piranhas.
Unmissable Tourist Attractions in Piranhas:
Sertão Museum (or Cangaço Museum):
Located in the old Railway Station, this museum offers an immersion into the history of the cangaço — with photos, documents, and objects that tell the story of Lampião and his gang, while also portraying the daily life of the sertanejo (backlands dweller).
Clock Tower: Featuring an English clock from 1879, the tower in front of the museum is a landmark in the historic center and houses a charming local café.
Lookouts: For breathtaking views, Piranhas offers two remarkable viewpoints. The Mirante Secular, once used as a lighthouse for river vessels, and the Mirante da Igreja do Bonfim, which rewards the climb of 265 steps with a panoramic view of the São Francisco River and the town.
Piranhas Riverside Beach: Located in the city center, this small river beach is perfect for a refreshing swim and is also the departure point for catamaran tours along the Cangaço Route.
Dom Pedro II Palace: Um belo edifício A beautiful neoclassical building that once served as the governor’s residence and is now open to visitors, offering insight into the region’s political history.
Local cuisine also deserves mention, featuring typical dishes such as carne de sol (sun-dried beef), goat meat, and macaxeira (cassava), served in various local restaurants. For nature lovers, the Linha Férrea Trail offers a peaceful, scenic walk along the banks of the São Francisco River.
Os casarios e a geografia ímpar de Piranhas são guardiões de uma das mais impressionantes histórias folclóricas deste país
The colonial houses and unique geography of Piranhas stand as guardians of one of the most remarkable folk stories in this country
Edson Oliveira
Edson Oliveira
Confira mais informações sobre alguns projetos desenvolvidos pelo CBHSF, com recursos oriundos da Cobrança pelo Uso da Água
Check out more information about some of the projects developed by CBHSF, funded by resources from the Water Use Charge
Sistema de abastecimento de água da comunidade indígena Kariri-Xocó, em Porto Real do Colégio (AL)
Water supply system of the Kariri-Xocó Indigenous community, in Porto Real do Colégio (AL)
bit.ly/4nq1ocY
Programa de Saneamento Rural, na terra indígena Jeripankó, em em Pariconha (AL)
Rural Sanitation Program in the Jeripankó Indigenous Land, in Pariconha (AL)
bit.ly/4hxO4SA
Revitalização dos canais e reservatórios para irrigação na Bacia do Rio Preto (DF)
Revitalization of irrigation channels and reservoirs in the Rio Preto Basin (DF)
Obras para o abastecimento de água, em Piaçabuçu (AL)
Water supply works in Piaçabuçu (AL)
Recuperação de nascentes na Serra dos Morgados (BA)