Jacinto Júnior, Dulce Tupy, Fernando Piancastelli, Helenir Gaipo, Israel Almeida, João Alves, Léo Boi, Leonardo Ramos, Mariana Teixeira, Pedro Vilela e Udner Rios
Foto de capa: Leonardo Ramos
Ilustrações: Clermont Cintra
Revisão: Ísis Pinto e Júlia Ribeiro
Impressão: ARW Gráfica e Editora
Tiragem: 600 Exemplares
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
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RECURSO QUE TRANSFORMA
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MIKA RIBEIRO: ARTE QUE FLORESCE NAS RUAS
P. 30
LEI GERAL DO
LICENCIAMENTO
AMBIENTAL P. 34
REINADO DE BOM DESPACHO: PATRIMÔNIO CULTURAL
P. 42
TERRITÓRIOS: PITANGUI
P. 42
SAF: AGRICULTURA E NATUREZA LADO A LADO P. 46
RIOS QUE NAVEGAM HISTÓRIAS
E D I T O R I A L
Navegar é preciso. E mais do que nunca, conhecer é urgente.
Na Bacia Hidrográfica do Rio Pará, navegar não é apenas atravessar um corpo d’água – é mergulhar em camadas de história, ciência, cultura e resistência que moldam esse território e seus habitantes. Nesta quarta edição da Revista Rio Pará, convidamos você a percorrer conosco mais uma jornada pelas margens, pelos leitos e pelas vozes que dão vida a esse rio e às suas muitas histórias.
É com este espírito de travessia que apresentamos um dos destaques desta edição: a criação de um sistema inédito de mapeamento hidrográfico do Rio Pará. O que começou como uma iniciativa para identificar trechos navegáveis se transformou em uma poderosa ferramenta de gestão e preservação das águas, integrando tecnologia de ponta com saberes tradicionais. O resultado é um retrato vivo da bacia, em que o conhecimento técnico e a escuta das comunidades ribeirinhas caminham lado a lado.
Se navegar é preciso, cuidar é imprescindível. Uma matéria especial nos leva a refletir sobre o impacto da crise hídrica que atinge a bacia do Rio Pará, com efeitos severos sobre ecossistemas, o abastecimento e o cotidiano das pessoas. Em tempos de emergência climática, a água – ou sua ausência – nos força a olhar para nossas escolhas e responsabilidades.
Esta edição também aprofunda um tema essencial para a sustentabilidade da gestão hídrica: a Cobrança pelo Uso da Água. Mais do que uma taxa, ela é um instrumento de transformação. É graças a ela que ações como o Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água vem sendo implementado com sucesso. E se os resultados são visíveis no campo, são ainda mais potentes no que representam: a crença de que é possível aliar produção, preservação e justiça ambiental.
Falando em justiça, trazemos um olhar especial sobre gênero e governança da água, em uma conversa com a pesquisadora Fernanda Matos. A presença feminina nos espaços decisórios é urgente – e não apenas por representatividade, mas porque mulheres têm sido protagonistas na luta pela água como direito, não como privilégio. A gestão hídrica precisa ser também uma gestão mais democrática.
Da luta à arte. Dos saberes às cores. A arte urbana de Mika Ribeiro colore os muros da bacia com propósito e consciência, transformando o espaço público em território de pertencimento, memória e esperança. Sua obra nos lembra que a natureza não é cenário – é parte viva de quem somos.
No campo das políticas públicas, abordamos nesta edição a nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental e os impactos que ela pode gerar na bacia do Rio Pará. Agilidade, sim. Mas com responsabilidade, escuta e equilíbrio.
Como em toda edição, celebramos também as raízes históricas e culturais do nosso território. Pitangui, tricentenária e pulsante, nos recebe com seus casarões e memórias. Já o Reinado de Bom Despacho, reconhecido como Patrimônio Cultural, ecoa as vozes de fé e resistência do povo negro –herança viva que ainda pulsa nas ruas, nos cantos e nas celebrações.
Siga conosco. O Rio Pará segue correndo – e resistindo.
Boa leitura.
COM A PALAVRA
O PRESIDENTE
É com alegria e responsabilidade que retorno à presidência do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Pará. Após um período de significativa evolução e amadurecimento institucional, retomo este cargo com ainda mais convicção de que a gestão participativa das águas é um caminho sem volta — e o CBH do Rio Pará tem mostrado, ano após ano, sua relevância e capacidade de atuação em nosso território.
Gostaria de iniciar este texto expressando meu mais sincero agradecimento a Túlio Pereira de Sá, que liderou o Comitê com empenho, visão estratégica e grande dedicação nos últimos dois anos. Túlio foi um parceiro fiel da causa das águas, tendo conduzido com firmeza e sensibilidade importantes entregas, como a implementação do Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água, o lançamento do Programa de Saneamento Rural, a finalização do Plano de Educação Ambiental, dentre outras muitas ações. Sua trajetória no Comitê é um exemplo de comprometimento, diálogo e profundo conhecimento da gestão dos recursos hídricos. A ele, nosso muito obrigado.
Agradeço também aos colegas da Diretoria, que seguiram firmes na condução dos trabalhos e na construção de consensos. A parceria entre os segmentos que compõem nosso CBH — poder público, sociedade civil e usuários — é o que dá legitimidade, força e pluralidade à nossa atuação.
O ano de 2026 se apresenta desafiador. Os impactos da crise climática são cada vez mais visíveis e sentidos em nosso território: estiagens severas, aumento da temperatura, pressão sobre os corpos d’água e, ao mesmo tempo, uma demanda crescente por quantidade e qualidade hídrica. Nesse cenário, o papel do CBH do Rio Pará torna-se ainda mais estratégico. Precisamos garantir que as ações estruturantes iniciadas nos últimos anos avancem com solidez, e que novas frentes sejam abertas com responsabilidade, técnica e diálogo.
Nosso compromisso permanece o mesmo: atuar em prol de uma bacia hidrográfica com mais e melhores águas, que proporcione qualidade de vida para as atuais e futuras gerações. Para isso, conclamo todos os conselheiros e conselheiras a estarem conosco, com presença ativa, olhar atento e espírito colaborativo. O Comitê somos todos nós, e cada contribuição é essencial para que alcancemos nossos objetivos coletivos.
Sigamos juntos, com coragem e esperança, cuidando da nossa Bacia do Rio Pará, que é de todos nós.
Viva o CBH do Rio Pará! Viva a gestão participativa das águas!
José Hermano Franco
Presidente
do CBH do Rio Pará
INSTITUCIONAL
NAVEGAR É PRECISO
Combinando ciência, tecnologia e saberes ribeirinhos, CBH do Rio
Pará mapeia e cria sistema para orientar ações de navegabilidade, preservação e gestão das águas
Texto: João Alves
Fotos: Fernando Piancastelli, Pedro Vilela e João Alves
Registro aéreo da equipe técnica em ação durante os trabalhos de mapeamento hidrográfico do Rio Pará, entre maio e junho de 2025.
O ato de descobrir um mundo pode ser resumido em uma palavra: expedição. Expedir-se, expandir fronteiras, sejam elas territoriais ou do conhecimento científico, é uma prática que acompanha a humanidade. Das grandes expedições marítimas pelos oceanos às viagens científicas que marcaram o Brasil, o impulso sempre foi o mesmo: explorar e compreender. No mundo contemporâneo e conectado, a expedição se renova.
Pode ocorrer em terra, como antigamente, ou através da tecnologia de ponta, com drones e equipamentos avançados. Independentemente da forma, o desejo permanece: conhecer as características da região e os atores que a influenciam. Foi nesse horizonte que o CBH do Rio Pará adotou uma metodologia inédita, utilizando tecnologia avançada para compreender, de maneiras novas, a própria bacia que protege.
Combinando tecnologia de ponta, participação social, visitas ao leito do rio e uma metodologia que integra diferentes perspectivas, o Comitê desenvolveu uma interface inédita de mapeamento hidrográfico. Mais do que um registro de pontos navegáveis, a ferramenta se tornou um instrumento estratégico para orientar futuras ações e expedições por terra. O projeto ganhou profundidade a partir das oficinas com a comunidade: ribeirinhos e moradores contribuíram com informações próprias, registrando experiências que vão além dos mapas tradicionais. “A entrega superou nossas expectativas. O que começou como um mapeamento de navegação transformou-se em uma ferramenta muito mais ampla, capaz de reunir e valorizar o conhecimento local sobre a bacia”, ressalta Túlio de Sá, ex-presidente do CBH do Rio Pará.
O mapeamento hidrográfico, realizado pela empresa Terra Brasil entre maio e junho deste ano, percorreu o Rio Pará desde o município de Passa Tempo até a sua foz, nas regiões de Martinho Campos e Pompéu. O levantamento revelou detalhes até então desconhecidos: variações de profundidade e largura da calha fluvial, obstáculos à navegação, ações humanas, barragens e a indicação dos tipos de embarcação mais adequados para cada trecho. Mais do que um levantamento técnico, tratou-se de um verdadeiro trabalho de expansão do conhecimento sobre a bacia, esclarecendo aspectos que orientam sua gestão e preservação.
P. 9
Em 2023, o CBH do Rio Pará percorreu mais de mil quilômetros em duas semanas, visitando 12 municípios da bacia. Foi durante essa primeira Expedição que surgiu o desejo de, no futuro, realizar uma travessia navegando o próprio rio. Segundo Túlio de Sá, “Naquele momento, percorremos os municípios por rodovias, parando em diferentes trechos do rio para encontros com a população. Foi então que pensamos: por que não realizar a próxima expedição navegando pelo leito do Pará? Mas havia uma dificuldade: não sabíamos exatamente quais trechos permitiriam a navegação”.
Dessa inquietação nasceu o projeto de mapeamento, que inicialmente tinha como objetivo identificar pontos navegáveis. Com o tempo, porém, a iniciativa se expandiu, passou a reunir informações sobre vazão, pontos de monitoramento, intervenções humanas irregulares, alterações do leito e, sobretudo, o conhecimento compartilhado pelas comunidades ribeirinhas. “O que começou como um estudo de navegabilidade transformou-se em uma ferramenta muito mais ampla, capaz de orientar pesquisas e fortalecer a gestão das águas”, ressalta Túlio.
Além da participação popular registrada nas oficinas, o mapeamento incorporou técnicas que vão além da simples coleta sistematizada, combinando metodologias inovadoras e tecnologia de ponta. Entre elas, destacou-se o aerolevantamento, que captou mais de 71 mil imagens aéreas, utilizou drones de última geração e mapeou mais de 140 pontos de controle georreferenciados, integrados à Rede Brasileira de Monitoramento Contínuo (RBMC).
Além disso, foi realizado um levantamento expedito, técnica rápida e eficiente que permitiu identificar, em campo, características essenciais do território e obstáculos à navegação. A ação percorreu cerca de 294 km do Rio Pará, registrando formações naturais, estruturas humanas, pontos críticos e afluentes. Paralelamente, realizou-se a batimetria de alta precisão, método que detalhou a profundidade e a topografia do leito do rio. Os dados batimétricos foram fundamentais para indicar trechos de maior ou menor profundidade.
Túlio de Sá destaca a importância da ferramenta para a gestão integrada das águas na bacia do Rio Pará.
Trabalho de campo durante o mapeamento hidrográfico reuniu observações em tempo real e técnicas especializadas ao longo do leito do rio.
DESENVOLVIMENTO
Para muitos, acessar um aplicativo como este pode parecer simples diante dos avanços tecnológicos atuais. No entanto, desenvolver uma ferramenta desse porte exige tempo, programação avançada e dedicação. Segundo Artur Zanini, engenheiro de computação e analista de sistemas da Terra Brasil, o desenvolvimento da aplicação buscou superar limitações de visualização e acessibilidade. “Consideramos que diversas empresas, entidades e órgãos trabalham diretamente com o Rio Pará. A questão foi: como disponibilizar essas informações de forma acessível? Por isso optamos por um ambiente web responsivo, que permite que as pessoas não apenas acessem e recebam dados, mas também contribuam com informações que ainda não conseguimos visualizar. O rio muda constantemente, são justamente aqueles que vivem às suas margens os mais indicados para registrar essas alterações e enriquecer o mapeamento.”
Zanini ressalta também o papel da tecnologia na produção de conhecimento sobre o território, assim como nas expedições históricas. Ao aplicar geotecnologias ao contexto do rio, é possível identificar situações concretas que merecem atenção: trechos com corredeiras, áreas de agricultura ou pontos de degradação ambiental. “Quando você mostra onde está o impacto, dá sentido à informação. É aí que o geoprocessamento ajuda a compreender o problema e a propor soluções”, afirma. Para ele, a ferramenta criada traduz dados técnicos em conhecimento acessível, fortalecendo a gestão dos recursos hídricos e o cuidado com o Rio Pará.
Oficinas participativas reuniram representantes da sociedade em geral para integrar saberes técnicos e comunitários ao mapeamento do Rio Pará.
Panorama do Rio Pará revela a grandiosidade da bacia e os desafios para sua navegabilidade e preservação.
Para Túlio de Sá, ex-presidente do CBH do Rio Pará, a ferramenta representa muito mais do que um sistema de mapeamento de navegabilidade: ela simboliza uma mudança no modo de pensar e planejar ações para a bacia. “Ela será utilizada futuramente pelo órgão gestor, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), que já contribui com ideias. Com isso, teremos informações sobre áreas de preservação permanente do Rio Pará e a possibilidade de integrar essa camada aos sistemas de licenciamento”, destaca.
A estrutura da plataforma, segundo ele, abre caminhos para além do Rio Pará, permitindo sua expansão para outros afluentes e favorecendo a integração entre Comitês. As imagens em alta resolução captadas durante o levantamento possibilitam identificar trechos, avaliar a navegabilidade e, futuramente, monitorar níveis de água e elevação. “O que começou como uma pequena ideia transformou-se em um sistema robusto e rico em informações, acessível a todos por aplicativo ou site. Uma ferramenta que estará nas mãos de diversos segmentos da sociedade, fortalecendo a gestão das águas e o cuidado com o Rio Pará e seus afluentes”, conclui.
APLICATIVO
Uma versão de demonstração da aplicação já foi apresentada aos conselheiros e às comunidades participantes em julho deste ano e, em breve, estará disponível gratuitamente para acesso em dispositivos móveis e computadores. A expansão das fronteiras do conhecimento sobre a bacia do Rio Pará ganha, com esse mapeamento, novos sentidos e propósitos, abrindo caminho para ações que garantam sua navegabilidade e preservação. É o anúncio de novos tempos: de gestão mais integrada, de cuidado partilhado e de um olhar renovado sobre o rio e os seus afluentes.
Arthur Zanini, analista de sistemas da Terra Brasil, destaca que a plataforma foi pensada para tornar os dados acessíveis e colaborativos.
Seja nas cidades, seja no campo, Cobrança pelo Uso da Água busca incentivar o uso racional e garantir sua disponibilidade para as próximas gerações.
P.
RECURSO QUE TRANSFORMA
A
importância
da Cobrança
pelo Uso da Água para garantir investimentos na bacia do Rio Pará
Texto: Henrique Ribeiro
Fotos: Bianca Aun, João Alves e Udner Rios
Aos 88 anos, o senhor Fidel Pereira da Fonseca tem a sabedoria de quem sabe, pela experiência, que sem natureza preservada não há futuro digno para as próximas gerações. Décadas atrás, ele adquiriu uma área de 29 hectares na comunidade dos Custódios, zona rural de Cláudio, no Alto Rio Pará. A propriedade é atravessada pelo Ribeirão dos Custódios e abriga várias nascentes — todas cuidadas com zelo pela família desde o início.
Ao longo dos anos, Fidel comprovou, na prática, que preservar os recursos naturais traz resultados positivos e duradouros. Hoje, seus filhos são os responsáveis pela terra, mantendo vivos os ensinamentos do pai e, principalmente, o compromisso com a conservação dos cursos d’água que compõem a paisagem da fazenda.
A propriedade foi uma das beneficiadas pelo Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água do CBH do Rio Pará, que, só na comunidade dos Custódios, viabilizou obras em cerca de 80 propriedades, com investimentos que somaram quase R$ 8 milhões. “Aqui foram construídas cacimbas, curvas de nível, feita a correção do solo e o terraceamento. Tudo isso é essencial para preservar nossas nascentes e o córrego que passa nos fundos. Ficamos extremamente felizes com essas melhorias, feitas sem custo nenhum para os moradores”, comemora Agda Carmelita, filha de Fidel.
Aos 88 anos, Fidel Pereira acompanhou de perto as melhorias realizadas na propriedade da família por meio do Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água.
A COBRANÇA COMO MOTOR DE TRANSFORMAÇÃO
As obras realizadas em Custódios — assim como todas as ações do CBH do Rio Pará — só são possíveis graças aos recursos arrecadados por meio da Cobrança pelo Uso da Água. Esse mecanismo é, atualmente, a única fonte de financiamento do Comitê para viabilizar suas atividades em toda a bacia.
“O Comitê tem um papel essencial como colegiado, em que todos têm voz e voto, contribuindo nas decisões sobre os usos múltiplos da água e na execução dos projetos. Embora apenas parte dos usuários pague pela utilização da água, os recursos arrecadados retornam em forma de melhorias que beneficiam toda a bacia — do Alto ao Baixo Pará”, explica José Hermano Franco, presidente do CBH.
INSTRUMENTO DE GESTÃO E SUSTENTABILIDADE
Entre os instrumentos criados pela Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), pela Lei nº 9.433 — conhecida como Lei das Águas, está a Cobrança pelo Uso da Água, que tem três objetivos principais: incentivar o uso racional dos recursos hídricos, reconhecer a água como um bem econômico e gerar recursos financeiros para ações previstas nos Planos de Recursos Hídricos.
Em Minas Gerais, a Cobrança é gerida pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), enquanto no âmbito federal a responsabilidade é da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). É importante destacar que, apesar da Cobrança ser feita pelo IGAM e pela ANA, os valores arrecadados pelo Instituto não ficam para o governo. Todo os recursos são integralmente destinados aos Comitês de Bacia, para que sejam aplicados justamente nos territórios onde foram gerados.
A Cobrança incide sobre atividades que impactam significativamente a quantidade ou qualidade da água — como captação, derivação, extração ou lançamento de efluentes. Para isso, os usuários devem obter outorgas, autorizações emitidas pelos órgãos gestores, que os tornam sujeitos à Cobrança.
José Hermano Franco, presidente do CBH do Rio Pará, destaca que os recursos da Cobrança retornam em forma de investimentos que beneficiam toda a bacia.
Os Comitês de Bacia Hidrográfica são os responsáveis por implantar e fiscalizar a Cobrança em seus territórios, com base em diretrizes definidas pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais (CERH-MG). Os valores cobrados são calculados anualmente com base nas outorgas e nas Declarações Anuais de Uso dos Recursos Hídricos (DAURH), preenchidas pelos próprios usuários.
Na bacia do Rio Pará, a previsão de arrecadação para o período de 2024 a 2027 é de R$ 19,1 milhões, segundo o IGAM. Somente em 2024, o Plano de Investimento Anual (PIA) previu a aplicação de R$ 9 milhões. Em 2023, os investimentos chegaram a R$ 5,4 milhões — todos oriundos exclusivamente da Cobrança pelo Uso da Água.
“Essa arrecadação permite ao Comitê planejar e executar ações que melhoram a qualidade e a quantidade da água, além de recuperar áreas degradadas. O investimento retorna à sociedade em forma de benefícios reais para a gestão sustentável dos recursos hídricos”, destaca Túlio de Sá, ex-presidente do CBH do Rio Pará.
INADIMPLÊNCIA: UM OBSTÁCULO PARA A PRESERVAÇÃO
Se por um lado a Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos representa a principal fonte de arrecadação financeira dos Comitês de bacias, que utilizam esses valores para planejar e executar obras beneficiando toda a população dos territórios onde atuam, por outro, a inadimplência é um desafio que preocupa, atrapalha e até inviabiliza a realização de diversas ações.
O IGAM divulga anualmente às entidades equiparadas a estimativa dos recursos a serem repassados, com base na Cobrança total. Mas, segundo dados recentes, mais de 30% dos valores devidos não são quitados pelos usuários.
Na bacia do Rio Pará, a situação segue a mesma tendência do estado. Em 2023, dos R$ 6,37 milhões cobrados, R$ 2,2 milhões não foram pagos — uma inadimplência de 34,48%. Com menos recursos disponíveis, projetos são adiados ou cancelados, e o planejamento elaborado pelo CBH é comprometido.
“A inadimplência prejudica diretamente a continuidade dos programas e atrasa os projetos em andamento. Isso impacta toda a sociedade, que deixa de receber os benefícios das ações previstas. Temos feito um trabalho de sensibilização para mostrar a importância do pagamento em dia. Os recursos arrecadados são essenciais para manter as iniciativas que garantem água em quantidade e qualidade para todos”, reforça Túlio de Sá.
Agda Carmelita destaca os benefícios das obras na comunidade dos Custódios: “Ficamos extremamente felizes com essas melhorias”.
SENSIBILIZAÇÃO DO USUÁRIO PAGADOR
A fim de contribuir para a mudança dessa rota de inadimplência, o Comitê promoveu, em 2025, a Semana Rio Pará sob o mote ‘Água para produzir, Cobrança para preservar’. A programação principal incluiu rodas de conversa em cinco municípios de destaque na bacia, reunindo CBH do Rio Pará, poder público, entidades de representação e usuários de recursos hídricos.
As rodas de conversa buscaram discutir o que é a Cobrança pelo Uso da Água, quem paga e para onde vão os recursos; os projetos já desenvolvidos pelo Comitê na Bacia do Rio Pará a partir deste recurso; e a ameaça da inadimplência – apenas em 2023, 70% das outorgas concedidas no território não foram devidamente pagas, gerando um impacto de 36% dos recursos financeiros destinados ao CBH. Itaúna, Papagaios, Bom Despacho, Martinho Campos e Pompéu foram os municípios visitados.
Ex-presidente do Comitê, Túlio de Sá destacou que o principal legado da Semana Rio Pará 2025 foi a escuta qualificada e o direcionamento mais claro para futuras ações do colegiado. “A Cobrança é uma pauta permanente, e sabemos que a inadimplência não será resolvida da noite para o dia. Mas ouvir quem está no território nos ajuda a construir soluções mais próximas da realidade. Saímos com a sensação de dever cumprido, por termos compreendido melhor as demandas locais e por podermos trabalhar a partir delas. O Comitê existe para atender aos anseios da bacia e da sociedade que o sustenta. Por isso, vamos seguir levando o nome do CBH do Rio Pará adiante, mostrando que estamos comprometidos com a construção do rio que todos queremos”, concluiu.
Projetos hidroambientais promovidos pelo Comitê e financiados pela Cobrança pelo Uso da Água garantem benefícios à toda a sociedade.
Roda de conversa durante a Semana Rio Pará 2025, reuniu usuários da água, poder público e representantes do CBH para debater o futuro da gestão hídrica na bacia.
Iniciativa fortaleceu o diálogo entre setores usuários da água e o Comitê, com foco no uso consciente, nos investimentos e na superação da inadimplência.
SECO DE CORPO E ALMA
Crise hídrica no Rio Pará afeta ecossistemas, abastecimento e a vida de quem nasceu e vive às suas margens
Texto: João Alves
Fotos: Léo Boi, Fernando Piancastelli, Helenir Gaipo e João Alves
Imagina nascer e crescer ao redor da água. Criar laços, costumes e crenças moldados pelo curso que corre ao lado da sua casa, quase como uma entidade viva. Com o tempo, porém, perceber que aquilo que sustentava seu modo de vida, sua economia e até o seu emocional vai se esgotando, diminuindo. Essa é a relação que Cristina Maria Benícia, moradora de Velho do Taipa – povoado localizado na divisa entre os municípios de Conceição do Pará e Pitangui –, mantém com as águas do Rio Pará. De um passado de abundância, ela passou a conviver frequentemente com episódios de seca e, hoje, testemunha um problema ecossistêmico que ameaça não apenas o rio, mas toda a vida que dele depende.
Há mais de 56 anos vivendo às suas margens, Cristina descreve uma ligação tão profunda com o Rio Pará que cada degradação e sinal de escassez se tornam uma ferida pessoal. “Eu nasci no meio do Rio Pará. Ele dá de beber, dá banho, sustenta a vida. Ver essa destruição dói demais, é como se fosse diretamente comigo. Muitos riem quando a gente fala disso, mas quem depende da água sabe o que significa. O rio não aguenta mais tanta invasão e assoreamento. A natureza já está cobrando”, afirma.
Velho do Taipa é símbolo de um cenário de escassez que se estende por toda a bacia do Rio Pará. Em 2025, pelo segundo ano consecutivo, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM) emitiu, a partir da estação de monitoramento localizada no distrito, o alerta de “Situação Crítica de Escassez Hídrica Superficial”. A medida impôs restrições, válidas por 45 dias, à captação de água para diferentes usos em diversos municípios da bacia.
Encontro entre o Rio Pará e o Rio São Francisco durante a estiagem de 2024: vazão reduzida e pedras expostas evidenciam os impactos da seca prolongada.
A decisão ocorreu em função do prolongado período de estiagem e da baixa vazão do rio. Segundo o IGAM, a média das vazões diárias em sete dias consecutivos ficou abaixo do limite mínimo, o que caracteriza a situação crítica de escassez hídrica, exigindo ações imediatas para mitigação dos impactos.
Com a situação crítica de escassez hídrica formalmente decretada, as outorgas vigentes na bacia sofreram redução de 20% no volume diário destinado ao consumo humano, à dessedentação animal e ao abastecimento público; 25% no volume outorgado para irrigação; 30% para captações voltadas ao consumo industrial e agroindustrial; e 50% para as demais finalidades, exceto os usos não consuntivos.
Os municípios diretamente afetados incluem Igaratinga, Carmópolis de Minas, Perdigão, Pará de Minas, Divinópolis, Passa Tempo, Pitangui, Itapecerica e Carmo do Cajuru. Além disso, o IGAM suspendeu a emissão de novas outorgas de uso consuntivo, bem como solicitações de aumento de vazão ou volume captado nas outorgas já existentes.
O reflexo dessa crise Cristina Maria Benícia sente de perto. “Eu fico muito preocupada com a situação, e parece que só eu falo com os órgãos governamentais e ambientais. Muita gente depende dessa água para beber e sobreviver, mas continuam acontecendo invasões e desmatamento. Eu cresci aqui e vejo a natureza de um jeito que muitos não enxergam”, lamenta, mostrando como a crise hídrica é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva.
MENOR QUANTIDADE, PIOR QUALIDADE
A redução do volume de água não afeta apenas a quantidade disponível para consumo humano, irrigação e uso industrial. Segundo a bióloga Ludmila Silva Brighenti, professora da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e conselheira do CBH do Rio Pará, a diminuição do fluxo natural das águas intensifica a concentração de poluentes e resíduos presentes nos rios, como esgoto clandestino, efluentes industriais e de atividades agropecuárias. “Com o volume menor, tudo o que já está dissolvido na água fica mais concentrado, o que piora a qualidade e exige muito mais do tratamento para abastecimento e usos diversos”, explica Brighenti. Esse efeito concentrador compromete a saúde das comunidades que dependem diretamente do Rio Pará.
Além da contaminação, a menor vazão favorece a proliferação de plantas aquáticas invasoras e algas, que se beneficiam do excesso de nutrientes concentrados na água. O crescimento descontrolado dessas espécies altera a aparência e o odor do rio, além de aumentar a matéria orgânica disponível, que é consumida por microrganismos que reduzem o oxigênio presente. O resultado são impactos graves para os ecossistemas, incluindo a mortandade de peixes e desequilíbrios que afetam toda a fauna e flora aquática, tornando o rio menos resiliente e mais vulnerável nas próximas estiagens, algo que vem ocorrendo em diversos trechos da bacia.
Bióloga Ludmila Brighenti, professora da UEMG e conselheira do CBH do Rio Pará, alerta para os impactos da seca na qualidade da água e nos ecossistemas aquáticos.
Cristina Maria Benícia, moradora do Velho do Taipa, vive há mais de cinco décadas às margens do Rio Pará e sente de perto os efeitos da escassez hídrica.
Após mais um longo e severo período de estiagem, a recuperação do Rio Pará depende do padrão das chuvas nas próximas estações. “O ideal é que a chuva seja contínua e gradual, não muito concentrada em poucas horas, para repor as reservas hídricas, abastecer nascentes e manter o volume de água a médio e longo prazo”, explica Brighenti.
Além da chuva, a preservação do solo e da vegetação da bacia é fundamental. “Quando a água cai sobre solo impermeável, como áreas com concreto ou asfalto, ela escoa rapidamente e não contribui para a recarga dos rios”, alerta a professora. A proteção dos ecossistemas e o manejo adequado do solo são essenciais para reduzir os impactos da seca e evitar novos alertas de escassez hídrica.
Embora nos últimos anos Minas Gerais tenha enfrentado longos períodos de estiagem, a primavera deste ano já apresentou índices de chuva mais elevados desde o final de setembro e início de outubro, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). Esse cenário mais favorável traz a esperança de que a reposição gradual das reservas hídricas contribua não apenas para a quantidade e a qualidade da água, mas também para a recuperação dos ecossistemas da bacia do Rio Pará – o que representaria um alívio e uma alegria para Cristina, do Velho do Taipa, e para todos os ribeirinhos e usuários que dependem do rio.
Trecho do Rio São João, afluente do Rio Pará, durante a seca de 2024: volume reduzido e leito exposto, reflexo de um cenário crítico em toda a bacia.
ENTREVISTA - FERNANDA MATOS
CAMINHOS QUE SE FAZEM COM ÁGUA E VOZES FEMININAS
Uma conversa com Fernanda Matos sobre como gênero e governança se entrelaçam na gestão das águas e podem fortalecer a democracia hídrica no Brasil.
Por: Luiza Baggio
Foto: Acervo pessoal e Dulce Tupy
A gestão das águas no Brasil é um desafio que envolve múltiplos atores, interesses e olhares. Nos últimos anos, uma dimensão importante desse debate tem ganhado destaque: a relação entre água e gênero. Afinal, as desigualdades sociais e de gênero também se refletem no acesso à água, no saneamento e, sobretudo, nos espaços de decisão sobre esse recurso vital.
Incluir mulheres nos processos decisórios não é apenas uma questão de representatividade, mas de qualificação da governança, já que elas estão historicamente na linha de frente do cuidado com famílias, comunidades e territórios. Mais do que vítimas da crise hídrica, as mulheres são também protagonistas de soluções locais, trazendo perspectivas e práticas que fortalecem a resiliência diante de eventos extremos e mudanças climáticas.
Fernanda Matos coordenou a série Retratos de Governanças das Águas no Brasil, que revelou dados inéditos sobre a baixa presença de mulheres nos Comitês de Bacia e Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos.
Para falar sobre esse tema, conversamos com Fernanda Matos, pesquisadora e especialista em governança de água e gênero. Fernanda é formada em Administração, mestre em Meio Ambiente, doutoranda e professora universitária, com mais de 16 anos de experiência acadêmica. Nos últimos anos, coordenou estudos de referência, como a série Retratos de Governanças das Águas no Brasil, que revelou dados inéditos sobre a baixa presença de mulheres nos Comitês de Bacia e Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos.
Além da produção acadêmica, também se destaca por sua atuação em redes internacionais, como o Climate Reality Project, do ex-vicepresidente dos Estados Unidos e Prêmio Nobel da Paz, Al Gore.
Como surgiu seu interesse por água, governança e gênero?
Na minha tese, incluí um prólogo que começa com um fragmento de poema do espanhol Antônio Machado: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”. Essa imagem sintetiza bem o que foi — e ainda é — a minha trajetória. O caminho não estava pronto; ele foi sendo construído a partir das minhas inquietações acadêmicas, profissionais, mas também de vivências pessoais. No mestrado em Meio Ambiente percebi a centralidade da água e, nos Comitês de Bacia, me deparei com a baixa representatividade feminina. Desde 2018, não consigo mais separar os temas: água, governança e gênero se tornaram eixos inseparáveis da minha atuação.
Percebo hoje que muito do que faço é movido pela vontade de transformar as dificuldades que minha mãe enfrentou — e que, em parte, também vivi — em caminhos que não precisem ser percorridos por outras mulheres. Cada pesquisa, cada aula, cada participação em eventos é também uma tentativa de contribuir para que o futuro seja menos desigual e mais justo do que o passado que nos antecedeu. Sei que parece muito audacioso, mas como disse a ministra Marina Silva em uma mesa de debates “viver é insistir [...] e o sonho é a matéria prima mais concreta” que se tem.
Afinal, o que água tem a ver com gênero?
Diferentes pesquisas, estudos e relatórios têm evidenciado que água e gênero estão profundamente interligados. As mulheres são, historicamente, responsáveis pelo cuidado da família, pelo abastecimento doméstico e pelo uso da água em tarefas cotidianas, especialmente em comunidades rurais e periféricas. A falta de
água e de saneamento não é neutra. Ela afeta mais diretamente as mulheres, que historicamente assumem responsabilidades domésticas e comunitárias ligadas à água. A escassez aumenta jornadas de trabalho, riscos à saúde e sobrecarga mental. Ao mesmo tempo, são elas que criam soluções locais e estratégias de resiliência. O problema é que essa experiência raramente se traduz em voz política nos espaços de decisão. Incluir a perspectiva de gênero é qualificar políticas públicas e fortalecer a justiça socioambiental.
Em sua pesquisa Retratos de Governanças das Águas no Brasil, quais foram os principais achados sobre a participação feminina?
Constatamos que a presença das mulheres é minoritária: 31,2% nos Comitês Estaduais, 27,1% nos Comitês Federais e 32,4% nos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos. E mais: mesmo quando estão presentes, muitas enfrentam constrangimentos, interrupções e apropriação de suas ideias. Ou seja, não é apenas uma questão de números, mas também de violência política de gênero.
Lançamento do segundo volume do livro ‘Mulheres das Águas’, organizado por Fernanda Matos, se deu no Encontro Nacional de CBHs, em 2022.
PARTICIPAÇÃO MASCULINA E FEMININA
NOS ORGANISMOS E COLEGIADOS DE GESTÃO DE ÁGUAS
COMITÊS FEDERAIS (944) MEMBROS
OCUPADO POR MULHERES 69%
COMITÊS ESTADUAIS EM MINAS GERAIS (12.653) MEMBROS
OCUPADO POR HOMENS
OCUPADO POR HOMENS
CONSELHOS ESTADUAIS DE RECURSOS HÍDRICOS (1.522) MEMBROS
OCUPADO POR MULHERES
POR HOMENS
COMITÊ DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO PARÁ (80) MEMBROS
OCUPADO POR HOMENS
Quais obstáculos ainda limitam uma participação mais igualitária nos espaços de gestão da água? Existem diferenças regionais importantes nesse cenário?
As barreiras são estruturais (desigualdade de acesso a transporte, recursos e redes de apoio), institucionais (editais técnicos e linguagem excludente), culturais (naturalização do protagonismo masculino) e subjetivas (baixa autoestima coletiva e falta de acolhimento). Muitas mulheres e jovens simplesmente não se sentem pertencentes a esses espaços, o que leva à desistência.
A exclusão não decorre apenas da ausência de mulheres, jovens e populações vulneráveis, mas de um conjunto de práticas e estruturas que limitam sua voz, sua influência e sua permanência nos espaços de decisão – também sobre a água.
Complementando, existem sim diferenças regionais. As desigualdades não são homogêneas: se manifestam de forma interseccional, combinando gênero, raça, território e classe social. Em Minas, por exemplo, há tradição institucional nos Comitês, mas isso não significa equidade de gênero. Já em regiões mais distantes ou de maior vulnerabilidade socioeconômica, os obstáculos à participação são ainda mais fortes. O contexto regional influencia não apenas a viabilidade da participação, mas também a forma como os papéis sociais são interpretados e valorizados. É fundamental considerar essas especificidades para pensar políticas de inclusão efetivas.
Que mensagem você deixa para jovens mulheres que querem se envolver com a gestão das águas?
Minha mensagem é de encorajamento. Os espaços de decisão ainda carregam barreiras, mas a presença feminina é necessária e transformadora. Busquem formação, articulem-se em redes, fortaleçam-se mutuamente e não se deixem intimidar pelos estereótipos. O caminho exige coragem, mas cada passo fortalece não apenas a trajetória individual, como também o coletivo. Ao ampliar nossas vozes, ampliamos a chance de decisões mais justas, democráticas e sustentáveis.
Como você enxerga o futuro da governança da água no Brasil, em especial se aumentarmos a participação feminina?
Questões práticas, como horário e local de reuniões, influenciam essa participação? E quais medidas podem ser adotadas pelos CBHs e órgãos públicos para melhorá-las?
Totalmente. Reuniões em horários incompatíveis, locais distantes, falta de transporte e ausência de apoio ao cuidado infantil dificultam a presença das mulheres. Muitas vezes, quem consegue participar são pessoas com mais renda, autonomia e mobilidade — perfis majoritariamente masculinos, urbanos e de classes mais altas.
Para minimizar essas questões, os Comitês podem aplicar o que chamo de “teste do pescoço”: olhar a sala e ver quem está e quem não está presente. Depois, é preciso ajustar condições práticas (horários, locais, transporte, cuidado infantil) e criar estratégias de médio e longo prazo, como comunicação inclusiva, mentoria, redes de apoio e formação continuada. O mais importante: não basta garantir assento, é preciso assegurar voz e influência real.
Certa vez, Ariano Suassuna disse que “o otimista é um tolo, o pessimista um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso”. É nessa perspectiva que enxergo o futuro: desafiador, mas esperançoso. Os desafios são muitos. O Brasil enfrenta uma realidade marcada pela intensificação da crise climática, que se traduz em secas mais prolongadas, enchentes mais severas e maior pressão sobre os sistemas hídricos. Se ampliarmos a participação feminina e de grupos historicamente marginalizados, a governança da água poderá se tornar mais plural, democrática e alinhada aos desafios contemporâneos. Ao ampliar essas vozes, caminhamos para um modelo de governança que não apenas gerencia recursos hídricos, mas que produz justiça socioambiental e intergeracional.
Um modelo capaz de enfrentar a crise climática com legitimidade, democracia e resiliência.
P.
Mika Ribeiro transforma arte em linguagem de pertencimento e consciência, colorindo muros, ideias e futuros possíveis.
ARTE QUE FLORESCE NAS RUAS
Mika Ribeiro transforma os muros da bacia do Rio Pará em painéis de cor, afeto e consciência ambiental, com arte urbana acessível, inclusiva e cheia de propósito
Texto: Luiz Ribeiro
Fotos: Mariana Teixeira,
Bento Carlos Ramos e Mika Ribeiro
É em Itapecerica, cidade mineira entre serras, rios e memórias familiares, que Mika Ribeiro tem deixado sua marca — ou melhor, seus murais. Artista visual, muralista e facilitadora de oficinas de arte, Mika transforma as ruas em espaços de afeto, expressão e pertencimento. Seu trabalho, que começou a tomar forma após uma longa viagem de mochilão pelo Brasil, mistura cores vibrantes, formas geométricas, lettering e florais com uma proposta clara: levar arte para onde as pessoas estão.
Com uma estética contemporânea e bem-humorada — ou, como ela mesma define, “desenho com cara de desenho” —, Mika rejeita o realismo excessivo para abrir espaço ao lúdico e à imaginação. Seus murais espalhados por Itapecerica e outras muitas cidades funcionam como janelas para outros mundos possíveis. Além dos trabalhos voluntários no espaço urbano, ela também atua com quadros, arte digital e projetos comerciais, sempre com um olhar voltado à inclusão e ao impacto positivo.
A consciência ambiental atravessa toda a sua produção. Vegetariana e apaixonada pela fauna e flora locais, Mika utiliza tintas à base d’água e materiais reaproveitados em seus projetos e oficinas. Sua preocupação com o meio ambiente vai além da arte: ela também é integrante do Conselho Municipal de Defesa e Conservação do Meio Ambiente (CODEMA) de Itapecerica. A natureza é mais que inspiração — é parte viva de sua prática artística e de seu posicionamento no mundo.
Em suas criações, Mika também lança luz sobre vozes que, por muito tempo, foram silenciadas ou apagadas da história da arte. Mulheres, pessoas LGBTQIAPN+ e outras identidades minorizadas — que tantas vezes tiveram suas obras censuradas ou atribuídas a terceiros — aparecem em seus murais como protagonistas de uma nova narrativa. Seus murais, por onde passam, não apenas colorem a paisagem, mas despertam o senso de pertencimento, cuidado e liberdade criativa. Mika não pinta só muros — ela semeia outros futuros.
Painel ‘O Nascimento do Itapecerica, projeto Arte nas Águas de Minas’.
Mural ‘Nada permanece imutável’, homenagem a Joseph Rodrigues.
Mural do Abrigo de Idosos Frederico Correa, em Itapecerica.
Escola Municipal Joaquim Diogo, zona rural de Itapecerica.
Impactos cumulativos de atividades como a mineração reforçam a importância do licenciamento ambiental responsável e da fiscalização efetiva.
GESTÃO AMBIENTAL
LEI GERAL DO LICENCIAMENTO
AMBIENTAL: O QUE MUDA E IMPACTOS NA BACIA DO RIO PARÁ
Nova lei estabelece um marco regulatório nacional visando uniformizar, agilizar e desburocratizar o processo, mas gera debates sobre impactos e eficácia
Texto: Luiza Baggio
Fotos: João Alves, Bianca Aun e divulgação FIEMG | Sebastião Jacinto Júnior
Em 8 de agosto de 2025, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 15.190/2025, conhecida como Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Essa legislação representa um marco na regulamentação ambiental brasileira, estabelecendo normas gerais para o processo de licenciamento de atividades e empreendimentos que utilizam recursos ambientais, que são potencialmente poluidores ou capazes de causar degradação.
Para os membros e comunidades das bacias hidrográficas, como do Rio Pará, compreender essa lei é essencial, pois ela influencia diretamente a gestão de projetos que afetam os recursos hídricos e o equilíbrio ecológico das regiões.
Agricultura irrigada é uma das atividades que dependem do uso intensivo da água e estão diretamente ligadas ao licenciamento ambiental.
O licenciamento ambiental é um instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) que avalia os impactos de atividades humanas no ambiente antes de sua aprovação. Ele visa garantir que projetos, como construções de usinas hidrelétricas, agricultura em larga escala ou indústrias, sejam realizados de forma sustentável, minimizando danos à natureza e à sociedade. No contexto das bacias hidrográficas – áreas definidas pela drenagem natural das águas de um rio e seus afluentes –, o licenciamento é crucial para proteger a qualidade da água, a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, como o abastecimento e a prevenção de enchentes.
A nova lei busca uniformizar esses procedimentos em todo o país, resolvendo ambiguidades que existiam na legislação anterior e promovendo maior eficiência. Ela não substitui as leis estaduais ou municipais, mas fornece diretrizes nacionais, respeitando a divisão de competências entre União, estados e municípios, conforme a Lei Complementar nº 140/2011.
Dos quase 400 dispositivos da lei que receberam aval no Legislativo, o presidente vetou 63, evitando a implementação da licença automática, reforçando a proteção de áreas sensíveis e garantindo a exigência de estudos de impacto ambiental para projetos prioritários.
Um dos pontos polêmicos é a proposta de nacionalizar a Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), uma prática já realizada nos estados. Nesse modelo, se um novo empreendimento é planejado sem desmatar vegetação nativa, o responsável encaminha pela internet a documentação necessária. Uma autorização é gerada, praticamente de forma automática. O procedimento vale para atividades de baixo impacto e fica dispensada a análise prévia do órgão ambiental, com o compromisso do empreendedor de cumprir as normas ambientais.
O Congresso aprovou conceder esse tipo de liberação mediante informações sobre características da área, condições de operação da nova atividade, impacto ambiental e medidas de controle ambiental. No entanto, um estudo do Observatório do Clima, realizado pelos professores Luís Sánchez, da Universidade de São Paulo (USP), e Alberto Fonseca, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), apontou o risco de uma “proliferação” da autodeclaração nos estados.
Para a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), o veto à nova Lei de Licenciamento Ambiental representa um retrocesso. “Os vetos enfraquecem um marco regulatório que, embora não tenha alterado parâmetros de proteção de áreas de preservação permanente, reservas legais, emissões atmosféricas e efluentes líquidos, trouxe celeridade, previsibilidade e segurança jurídica ao processo de licenciamento no Brasil — condição essencial para atrair investimentos, destravar obras públicas e gerar empregos”, disse Flávio Roscoe, presidente da federação.
A entidade afirmou que atuará pela derrubada das restrições junto aos parlamentares, como parte do movimento “Licenciar não é destruir”. “Eu acredito que os vetos são um retrocesso para o país. Infelizmente, nessa pauta ambiental, as pessoas não compreendem a função do licenciamento, que é fazer com que as empresas sigam a lei. E a nova lei do licenciamento não alterou nenhum parâmetro do que as empresas têm que fazer ou não do ponto de vista ambiental, ela só deu celeridade e segurança jurídica ao processo”, acrescentou Flávio Roscoe.
Presidente da FIEMG, Flávio Roscoe avalia vetos à nova Lei de Licenciamento Ambiental em Minas Gerais
ENTENDA O QUE MUDA COM VETOS AO PROJETO QUE
ENFRAQUECE REGRAS DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL:
Licença por Adesão e Compromisso (LAC) impede ampliação de licença simplificada para atividades de médio potencial poluidor, evitando que isso se aplique a empreendimentos de risco, como barragens de rejeitos.
Sem regionalização mantém padronização nacional sobre potencial poluidor e tipos de licenciamento. A medida foi tomada para evitar que estados e municípios criem regras mais frágeis para atrair investimentos. Mata Atlântica preserva regime especial de proteção, impedindo corte de floresta nativa.
Povos indígenas e quilombolas garante consulta ampla a órgãos competentes, incluindo comunidades em processo de reconhecimento.
Condicionantes ambientais permite exigência de medidas compensatórias também para impactos indiretos e sobre serviços públicos.
Cadastro Ambiental Rural (CAR) não haverá dispensa de licenciamento ambiental para produtores rurais com CAR ainda pendente de análise.
Unidades de Conservação segue obrigatória a análise técnica de órgãos gestores antes de licenciar obras em áreas ambientalmente sensíveis.
Licenciamento Ambiental Especial (LAE) foi vetado modelo monofásico (todas as licenças de uma vez) por risco jurídico e custo antecipado.
Instituições financeiras mantida obrigação de só financiar projetos com licenciamento ambiental aprovado.
As implicações da nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental para a bacia do Rio Pará incluem a descentralização da decisão do que é licenciado para estados e municípios, o que pode reduzir a fiscalização de atividades potencialmente degradadoras e a proteção de áreas sensíveis na bacia. A criação de licenças aceleradas, como a Licença Ambiental Única (LAU) e a Licença Ambiental Estratégica (LAE), e a flexibilização de critérios, podem aumentar a pressão sobre os recursos hídricos e a vegetação nativa, afetando a qualidade da água, a disponibilidade hídrica e a biodiversidade local.
Adriano Guimarães Parreira, membro do CBH Rio Pará, alerta para os riscos que a LAC pode trazer à bacia. “Sem dúvidas, a LAC e a isenção para atividades rurais podem aumentar o risco de impactos cumulativos, como o uso excessivo de agrotóxicos ou a degradação de matas ciliares, especialmente em bacias já fragilizadas. Além disso, a desvinculação das outorgas hídricas exige maior integração entre o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM) para evitar conflitos de uso da água, principalmente em regiões com escassez sazonal, como o Norte de Minas”, disse.
Ele também destaca que a fiscalização é um dos pontos mais preocupantes da proposta. “No contexto da nova proposta de licenciamento ambiental em Minas Gerais, é imprescindível fortalecer a fiscalização. O processo de licenciamento não pode se restringir a uma formalidade burocrática. É fundamental garantir condições concretas de acompanhamento e monitoramento das atividades licenciadas, o que depende diretamente da estrutura e do corpo técnico dos órgãos responsáveis”, complementou o membro do CBH do Rio Pará.
Para Adriano, o cenário atual de escassez hídrica reforça a necessidade de atenção especial à gestão ambiental. “Momentos delicados como o atual — em que o IGAM declarou situação crítica de escassez hídrica no Rio Pará, com impactos diretos sobre a população e o setor produtivo —, mostram a urgência de reforçar a fiscalização. Sem isso, corremos o risco de agravar vulnerabilidades sociais, ambientais e econômicas. Por outro lado, vejo aspectos positivos: a exigência de maior transparência com os sistemas eletrônicos pode facilitar o acesso a informações e permitir que os comitês acompanhem as atividades rurais com mais precisão. Além disso, a isenção para pequenos produtores pode estimular a adesão ao CAR e incentivar práticas de conservação, como a recuperação de APPs, beneficiando diretamente a qualidade da água”, finalizou Adriano.
DISPENSA DE LICENCIAMENTO EM MG
Enquanto a nova lei nacional altera o licenciamento ambiental, Minas Gerais aprovou, em julho de 2025, alterações locais nas normas que regulam propriedades rurais, via Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam). A decisão permite a dispensa de licenciamento para propriedades rurais de até 1.000 hectares voltadas à pecuária extensiva e ao cultivo de lavouras anuais.
A dispensa de licenciamento beneficia, especialmente, o pequeno e médio produtor e se aplica somente nos casos que não precise fazer intervenção no ambiente, como um corte de árvore, por exemplo. José Dirino Arruda, produtor rural e representante do Sindicato dos Produtores Rurais de Martinho Campos no CBH do Rio Pará, destacou sua preocupação com os rumos do licenciamento ambiental em Minas Gerais. “Esse tipo de licenciamento, da forma como foi aprovado, representa alguns excessos. Sou contra excessos! Não adianta pagar por danos ambientais, porque o meio ambiente não quer saber de dinheiro: ele precisa ser preservado”, disse.
Para o produtor rural, é necessário mais bom senso. “O assoreamento dos rios é um exemplo claro do que acontece quando não há cuidado. Achei um absurdo a mudança proposta pelo governo Zema, que, na prática, beneficia mais os grandes produtores. Nós, pequenos produtores rurais, sabemos da importância de produzir, mas precisamos fazer isso mantendo o meio ambiente saudável, porque sem ele não existe produção sustentável”, finalizou José Arruda.
Produtor rural e membro do CBH do Rio Pará, José Arruda defende práticas sustentáveis no campo e critica mudanças que favorecem grandes empreendimentos.
Riqueza de cores, sons e símbolos: Reinado em Bom Despacho revela histórias de fé, ancestralidade e resistência.
CULTURA OS NEGRO CANTÔ PRA ELA
Patrimônio Cultural reconhecido pelo Iphan, Reinado de Bom Despacho ecoa a devoção mariana dos negros escravizados
Texto e fotos: Leonardo Ramos
Penumbra. Os primeiros raios de sol aparecem no horizonte, banhando os edifícios. São 6h, e, ao longe, se escutam batuques. O som grave dos tambores vai crescendo, parecendo acordar o sol. Da Cruz do Monte, em Bom Despacho, vão se aproximando pessoas com vestes coloridas, instrumentos de percussão e bandeiras. Pouco a pouco, as palavras vão se tornando compreensíveis, na mesma medida em que a luz solar transborda por cima dos telhados, inundando as paredes das casas. “Senhora do Rosário foi quem me trouxe aqui”, cantam.
Com calças adornadas, camisas coloridas e chapéus, os dançadores, como são chamados, aparecem. Um a um, eles tiram seus chapéus ao passarem diante da igreja. Assim que levantam os chapéus, o sol, já pleno, ilumina suas cabeças nuas, como se fosse o halo sobre a cabeça dos santos. Pandeiros, caixas e cantos anunciam a chegada dos cortes. É agosto, é tempo de louvar Nossa Senhora do Rosário em Minas Gerais. Por todo estado, populares se reúnem para manter viva a festa que nasceu nos tempos da escravidão. E, em Bom Despacho, que é um grande quilombo entre os rios Picão e Lambari, descendentes de reis e rainhas africanos batem os pés e os instrumentos de percussão em honra à Nossa Senhora do Rosário.
A espiritualidade do Reinado se manifesta no gesto íntimo de quem carrega a santa no peito.
SENHORA DOS HOMENS PRETOS
Originários de uma espiritualidade que não conhece o maniqueísmo do bem e do mal, os africanos escravizados no Brasil foram forçados a aderir a uma religiosidade que não lhes era própria. No entanto, encontraram ali, na mistura entre suas espiritualidades e o catolicismo, uma acolhida mútua.
Conta a história, transmitida por gerações e com várias versões, que os senhores de engenho construíram uma capela repleta de ouro dedicada à Nossa Senhora, que havia sido avistada flutuando sobre o mar. Eles a levaram para a igreja, mas Ela se recusava a permanecer ali. Carregada pelos brancos até a capela à noite, voltava para o mar na manhã seguinte. Quando os negros escravizados foram até Ela
e cantaram, Nossa Senhora os seguiu. Por isso, construíram uma igreja para Ela. Essa é a versão litorânea. Na versão montanhosa de Minas Gerais, porém, ao invés do mar, Nossa Senhora estava numa gruta, no meio da floresta.
Os escravocratas, contudo, proibiam africanos e indígenas de entrar em suas igrejas. Assim, era comum que eles construíssem suas próprias igrejas – e, como no Congo a devoção à Nossa Senhora do Rosário era popular, isso também se repetiu aqui. Em Ouro Preto, por exemplo, no século XVIII, foi construída a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, devoção que se espalhou por outros lugares do país – inclusive Bom Despacho.
CONGO E MOÇAMBIQUE
Galanga, africano da região do Congo, foi sequestrado naquele continente junto com seu clã, do qual era rei. Ao fim da travessia forçada pelo Atlântico, apenas ele e seu filho haviam sobrevivido. Já nestas terras, recebeu o nome Francisco, imposto pelos portugueses. Galanga, agora apelidado de Chico, comprou a alforria de seu filho e de outros africanos que vieram com ele no navio para as terras de Vila Rica. Eles também o consideravam rei. Assim, em tempos de festividades do Rosário, Chico Rei, junto com sua rainha, precediam a corte do Congo nas procissões em louvor à Nossa Senhora.
Na história sobre a aparição de Nossa Senhora do Rosário, a corte do Congo foi na frente buscar Nossa Senhora, cantando e dançando, enquanto a guarda de Moçambique os seguia, com passo mais lento, tocando candombes (tambores) e gungas (latas cheias de grãos que ficam amarradas no tornozelo). Nossa Senhora, então, voltou pairando sobre a guarda de Moçambique, atrás da corte do Congo, que abria caminho. Essa ordem se reflete ainda hoje: os cortes (esse nome vem das cortes) do Congo, com seus reis e rainhas, seguem à frente das guardas de Moçambique, que carregam, em quatro andores, as imagens de Nossa Senhora das Mercês, São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário
MOÇAMBIQUE
Ô Massambique, ô lá nas mata, ê!
Ô Massambique, ô lá nas mata, ô!
Nossa Senhora lá nas mata, Numa gruta de pedra.
Mas os negro cantô pra ela: Eu vim buscá a Senhora!
Enquanto cantava esses versos, Holdry Oliveira, do Quilombo Carrapatos da Tabatinga, tinha o olhar fixo no vazio, mas parecia que via alguém. No espaço do terreiro, várias figuras, de santos, de orixás, de parentes. Só se ouvia sua voz, mas ela não cantava sozinha. Depois, evocou a memória da avó dela, Sebastiana Geralda Ribeiro da Silva, figura muito conhecida em Bom Despacho como Tiana, que lhe ensinou essa música.
Em silêncio e devoção, a fé pulsa entre mãos firmes e memórias profundas.
Capitã do Moçambique de São Benedito, Holdry conta ainda que Dona Tiana sofreu com o preconceito pelo fato de ser mulher e umbandista. “Quando ela veio para cá, ela dançava em outro Moçambique, que era o de Nossa Senhora do Rosário. Mas eles falavam que mulher só podia ser princesa, que é a responsável por carregar a bandeira. Aí ela falou: ‘Não, eu não sou obrigada a ficar aqui. Então, eu vou dar meu jeito’.” Dona Tiana, então, fundou sua própria guarda, e, em Nova Serrana, tornou-se Capitã de Moçambique, função proibida para mulheres em Bom Despacho.
Mas havia ainda a barreira religiosa. “Ela era uma mulher negra, uma mulher quilombola, uma mulher pobre, uma mulher espírita. Porque, sim, ela tinha essa dupla religiosidade, nós temos essa dupla religiosidade. Era um conflito muito grande”, diz Holdry. E continua: “Então, por um tempo, o Moçambique saía nas ruas, mas não tinha nenhum direito de participar das atividades que os associados da Associação dos Reinadeiros tinham. O Moçambique dela não podia entrar na igreja, levantar mastro, participar da procissão, não podia fazer basicamente nada…, mas eles não podiam impedi-la de sair na rua”, afirma com orgulho.
Direto das mãos de Lázaro Antônio Felipe, seu avô, Holdry recebeu o bastão de Capitã do Moçambique de São Benedito durante o velório da dona Tiana. Ela conta que sentiu o peso da responsabilidade, mas que abraçou a missão com a ajuda do avô. “Eu recebi o bastão, cantei para ela, ao lado do caixão, e ali eu entendi tudo: estava começando uma missão. A primeira vez que eu cheguei na porta da igreja, eu pedi força, porque espiritualmente é muito pesado”, lembra. “Porque minha avó era fora de série, né? E eu não… eu não sou minha avó. O que me dá segurança é ter meu avô aqui comigo”, encerra.
Holdry Oliveira, Capitã do Moçambique de São Benedito, e seu avô, Lázaro Antônio Felipe, mantêm viva em Bom Despacho a tradição do Reinado
“Era quase uma brincadeira. Latinhas de goiabada, de marmelada viravam pandeiro, lata de óleo virava caixa, o reco-reco nós fazíamos também… Naquela época, as crianças não podiam participar com os grandes. Então, quando acabava o Reinado, a gente fazia um corte nosso de criança”. A criança de então, que fala agora, é Vital Libério Guimarães, ou apenas Vital, como é chamado. Ele é líder de um dos cortes de Congo mais tradicionais de Bom Despacho: o corte Vital Macota, que completou, em 2025, 60 anos de fundação.
Vital Macota, antigo congadeiro falecido em 1984, decidiu lutar pela inclusão das crianças no Reinado. Seus filhos e netos eram as crianças que “brincavam” de Reinado. Como aliado, Macota tinha o Capitão Dunga, uma das personalidades bom-despachenses mais conhecidas – especialmente nas festividades do Rosário. Sozinho, Macota não conseguiu convencer o pároco de então a permitir um corte apenas de crianças. “Um dia o meu avô resolveu fazer um corte de criança, só de criança. Foi até o padre e conversou com ele – era o padre Ivo na época. Ele resistiu um pouco, mas com a interferência do Dunga, ele acabou liberando. Assim, nós fizemos, em 1965, a primeira saída oficial” conta Vital, neto do Macota.
Os meninos de então, que faziam seus próprios instrumentos foram crescendo, tornando-se adolescentes e adultos. Mas, mesmo após um intervalo de alguns anos devido ao falecimento do Macota, o corte de mesmo nome de seu fundador conserva, em sua corte, crianças dançadoras. “Estamos sempre nos renovando com as crianças, com a juventude. E, de certa forma, existia, antigamente, algum preconceito com o Reinado. Hoje não. Hoje dança rico, dança pobre”, celebra Vital.
Como congadeiro desde pequeno, Vital entende o encanto que as crianças têm pelo Reinado e a importância de tê-las nos cortes. “Quando você é menino e vê o Reinado chegando, você fica doido, encantado. E comigo não foi diferente. Da mesma forma, todo mundo gosta de ver as crianças no Reinado”, conclui.
PATRIMÔNIO IMATERIAL DE BOM DESPACHO
“Eu não consigo me ver fora, sabe? É algo, que, para mim, vai além do aspecto religioso. Fico emocionada, porque eu sou muito grata ao meu pai por ter entrado no Reinado e levado essa cultura para minha casa.” Com os olhos marejados, a historiadora Bárbara Freitas conta que iniciou no Reinado com menos de cinco anos, levada pelo pai. Hoje Secretária de Cultura e Turismo de Bom Despacho, ela entende, por experiência e por profissão, que a história da cidade se confunde com a da festa do Rosário.
Registrado como Patrimônio Cultural Imaterial do município, o Reinado é, com certeza, mais antigo do que Bom Despacho, que foi instalado em junho de 1912. “Em 2019, quando eu entrei na secretaria, eu fiz alguns levantamentos históricos sobre a cidade. E aí, o Reinado – embora não haja comprovações de fontes históricas –, é certo, está aqui desde o século XIX.” Nesse sentido, é difícil falar de Bom Despacho sem o Reinado.
Por isso, hoje, a cidade já conta com mais de 30 cortes registrados na Associação de Reinadeiros. É um número impressionante. Segundo a instituição, estima-se que cerca de 2.600 pessoas dançam Reinado em Bom Despacho – o que representa cerca de 5% da população. Além de patrimônio, a festa é uma atração turística. “O Reinado é o maior atrativo turístico da cidade. O pessoal vem de outras cidades para ver, a cidade enche com a festa. Inclusive, cortes de outros locais ficam aqui e almoçam na casa de fiéis”, comemora Bárbara.
Em 2024, Minas Gerais registrou os Reinados e Congados como Patrimônio Cultural Imaterial do estado. Este ano, a União, através do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), fez o mesmo. Bom Despacho já os havia reconhecido dez anos antes. Talvez porque, ao reconhecer o Reinado, Bom Despacho busca reconhecer a própria história e a de seus cidadãos – descendentes de um povo com quem Nossa Senhora do Rosário escolheu cantar e dançar para sempre.
Vital Guimarães lidera uma das cortes de Congo mais tradicionais de Bom Despacho, mantendo viva a presença das crianças no Reinado desde 1965.
CONSERVAÇÃO AGRICULTURA E NATUREZA LADO A LADO
Como os Sistemas Agroflorestais aliam produção e preservação ambiental de forma sustentável
Texto: Henrique Ribeiro
Fotos: Udner Rios
Na comunidade de Olhos d’Água, em Carmo do Cajuru, região do Médio Rio Pará, o produtor rural Marciano Camargos vive uma realidade que muitos agricultores consideram ideal: cultivar alimentos de forma sustentável, sem agredir a natureza, e ainda garantir renda para sustentar a família. A pequena propriedade, localizada às margens do Córrego Sapé, possui um terreno íngreme — o que sempre trouxe desafios ao plantio. Mas, hoje, esse mesmo terreno é exemplo de uso consciente da terra, graças à implantação de um Sistema Agroflorestal (SAF).
Há cerca de dez anos, quando comprou o terreno de aproximadamente 3.200 m², Marciano começou a cultivar hortaliças, frutas e legumes. As dificuldades com o relevo limitavam a expansão da lavoura e, por consequência, o aumento da renda. A virada veio quando o CBH do Rio Pará implementou o Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água na microbacia do Córrego Sapé. Marciano foi um dos agricultores contemplados com a implantação de um SAF em sua propriedade. “Eu sempre tive cuidado com o meio ambiente. Nunca usei veneno na minha plantação. Quando conheci o projeto, vi que era possível produzir mais sem destruir a terra. Agora sei que estou deixando algo melhor para os meus filhos”, conta.
O QUE SÃO OS SAFS?
Os Sistemas Agroflorestais são formas de uso e manejo da terra em que espécies agrícolas e florestais são cultivadas de forma integrada, em um arranjo que busca imitar a lógica dos ecossistemas naturais. Ou seja, é como se a lavoura e a floresta trabalhassem juntas, promovendo equilíbrio ecológico, recuperação do solo e produção contínua de alimentos.
Diferente do modelo tradicional de monocultura, que desgasta o solo e demanda grandes quantidades de insumos químicos, os SAFs são sistemas biodiversos, que combinam espécies florestais (como árvores nativas, frutíferas ou madeireiras), culturas agrícolas (hortaliças, raízes, grãos), plantas perenes e arbustivas (como banana, café, mamão, ervas medicinais) e, em alguns casos, até animais, em sistemas integrados.
A combinação das espécies é feita de forma estratégica, considerando aspectos como o ciclo de vida de cada planta (curto, médio e longo prazo), a altura e cobertura das copas, as necessidades e funções ecológicas (sombreamento, fixação de nitrogênio, adubação verde) e o impacto no solo, na água e na biodiversidade local.
Produtor rural Marciano Camargos colhe os frutos de uma agricultura mais consciente: com o SAF, ele alia renda, sustentabilidade e preservação do solo às margens do Córrego Sapé.
COMO FUNCIONAM NA PRÁTICA
Na propriedade de Marciano, o SAF implantado incluiu o plantio de cerca de 300 mudas, entre oliveiras, bananeiras, mamoeiros e outras espécies adaptadas ao clima local. A área escolhida fica próxima ao Córrego Sapé, uma Área de Preservação Permanente (APP). Com o SAF, ele conseguiu tornar esse espaço produtivo e, ao mesmo tempo, cumprir a legislação ambiental.
A implantação do sistema contou com estudo do terreno, clima e histórico de uso do solo; escolha das espécies, com base no perfil produtivo e na função ecológica de cada planta; planejamento dos consórcios, ou seja, quais culturas seriam plantadas juntas e em que espaçamento; implantação em etapas, com acompanhamento técnico; e manejo contínuo, envolvendo podas, adubação orgânica e colheita planejada.
A lógica dos SAFs prevê que, enquanto colheitas de curto prazo (como hortaliças e frutas) garantem renda rápida, as espécies de crescimento mais lento (como árvores frutíferas e madeireiras) vão se desenvolvendo e oferecendo benefícios a médio e longo prazo — tanto ecológicos quanto econômicos. “A microbacia do Ribeirão
Colheita com raízes profundas: SAF permite produzir alimentos saudáveis e valorizar o trabalho no campo.
do Sapé já passou por momentos críticos de escassez hídrica, consequência do desmatamento e do uso inadequado do solo. A implantação do SAF vem para reverter esse cenário, pois alia a produção agrícola à preservação ambiental. Com a recuperação da cobertura vegetal, aumenta-se a infiltração da água no solo, reduzindo a erosão e favorecendo a recarga dos mananciais. Além disso, o sistema agroflorestal contribui para a proteção das nascentes, melhora a qualidade da água e garante mais sustentabilidade para os agricultores da região. É uma estratégia que ajuda a cuidar do meio ambiente e, ao mesmo tempo, fortalece a economia local”, comenta Jéssica Bolina, superintendente de Meio Ambiente de Carmo do Cajuru e conselheira do CBH do Rio Pará.
BENEFÍCIOS PARA QUEM PLANTA E PARA O PLANETA
Durante a implantação do projeto, o biólogo Igor Madeira, da empresa Embaúba Ambiental, contratada pelo Comitê para execução das intervenções em Carmo do Cajuru, explicou à comunidade que os SAFs são uma ferramenta poderosa de transição ecológica. “Os Sistemas Agroflorestais são modelos produtivos alinhados com o Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica. Eles permitem o desenvolvimento econômico com responsabilidade ambiental. É uma alternativa
sustentável, assim como a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF). O mais importante é buscar equilíbrio: produzir alimentos e gerar renda sem abrir mão da conservação dos recursos naturais.”
Além dos benefícios econômicos — como produção diversificada e renda o ano todo — os SAFs também:
• Recuperam o solo, aumentando sua fertilidade natural;
• Protegem as nascentes e evitam o assoreamento de rios;
• Estimulam o retorno da fauna e flora locais;
• Reduzem a necessidade de insumos químicos;
• Contribuem para a captura de carbono, ajudando no combate às mudanças climáticas.
O FUTURO DA AGRICULTURA SUSTENTÁVEL
Com os SAFs, os agricultores podem produzir com mais segurança e estabilidade, mesmo em áreas de difícil manejo, como encostas e APPs. O sistema promove resiliência agrícola, pois, ao diversificar a produção, reduz-se o risco de perda total em caso de pragas, seca ou mudanças bruscas no mercado.
Para Marciano, os benefícios já são visíveis. “Hoje, tenho mais variedade de alimentos para vender e também para consumo da família. E o mais importante: vejo a natureza se recuperando ao meu redor.”
Em um cenário de crescente preocupação com o meio ambiente e com a segurança alimentar, os Sistemas Agroflorestais representam uma alternativa concreta e eficaz para aliar produção e conservação. Em Carmo do Cajuru, essa união já dá frutos — e inspira outras comunidades a seguirem o mesmo caminho.
Intervenções como o cercamento de nascentes e APPs ajudam a proteger os recursos hídricos e criam as condições ideais para a recuperação da vegetação nativa na bacia do Rio Pará.
TERRITÓRIOS
HISTÓRIA PRESERVADA
Pitangui: o berço histórico e cultural tricentenário da bacia do Rio Pará
Texto: Henrique Ribeiro
Fotos: Israel Almeida
Subindo as ladeiras de pedra e andando pelos casarões centenários, quem circula por Pitangui viaja no tempo. O município do Baixo Rio Pará, a cerca de 150 km de Belo Horizonte, é um dos mais antigos da região Centro-Oeste do estado. Rodeada de montanhas e belas paisagens, Pitangui guarda histórias da época dos bandeirantes e encanta moradores e visitantes.
Registros históricos apontam que as primeiras explorações de bandeiras paulistas a esta parte de Minas começaram ainda em 1601. O Rio Pará e o Rio São João tiveram uma importância inestimável no desenvolvimento da região, com hidrografia privilegiada, permitindo a exploração mineradora em busca de ouro e metais preciosos, ramificando o comércio e favorecendo a criação de atividades agrícolas.
Casarões históricos no Largo de São Francisco, atual Praça Isaura Epifânio: o traçado urbano de Pitangui guarda viva a arquitetura colonial e a memória de seus mais de 300 anos de história
Pitangui chegou a ser conhecida como Sétima Vila do Ouro de Minas Gerais, tamanha era a importância da mineração por lá. O número de bandeirantes e mineradores foi crescendo com o passar do tempo, até que em 1715 o arraial foi elevado à categoria de vila, recebendo o nome de Vila de Nossa Senhora da Piedade de Pitangui, passando a ter a própria administração. “Pitangui, por vezes chamada de Mãe do Centro-Oeste mineiro, recebe esse título devido às notórias atividades de explorações das bandeiras paulistas datadas desde 1601 nesta áurea região e ainda os levantes armados, evocados por grandes personalidades de nossa memória”, explica Israel Almeida, historiador, agente cultural e arquivista do Instituto Histórico de Pitangui.
Ele explica que, após a criação da Vila de Nossa Senhora da Piedade de Pitangui, a região se expandiu ainda mais. Tanto é que, anos depois, o vasto território original deu origem a diversos municípios importantes, como Pará de Minas, Nova Serrana, Martinho Campos e Conceição do Pará. A fragmentação começou principalmente a partir do século XIX, à medida que novos povoados se consolidavam e conquistavam autonomia política.
Israel Almeida, historiador e agente cultural, é um dos guardiões da memória de Pitangui. Atua no Instituto Histórico da cidade, referência na preservação do patrimônio documental da região.
Papagaios
Ri o P i cã o
Martinho Campos
Bom Despacho
Sede Limite Municipal Principais Cursos D’água
Leandro Ferreira
Nova Serrana
Maravilhas
Conceição do Pará Onça de Pitangui
Pará de Minas
Pompéu
Pequi
O historiador Israel Almeida explica que o nome da cidade tem origem na língua tupi-guarani e carrega o significado ‘O rio das crianças’ (pitanga = criança, y = rio/água). O Rio Pará, que passa a alguns quilômetros do centro urbano, faz parte das belezas que o visitante pode conhecer. Na divisa com Conceição do Pará, município vizinho, existe a Estação Velho do Taipa, antiga construção da ferrovia, que hoje funciona como museu.
Ao perambular pelas ruas do centro, o contraste entre o novo e o antigo. Pitangui hoje é uma cidade desenvolvida, com muitas empresas e economia forte. Mas em meio à modernidade, o passado sempre se realça, com construções que permitem uma viagem no tempo. São muitos casarões coloniais, construções com estilos ecléticos e um verdadeiro museu a céu aberto que encanta os amantes da arquitetura.
“O marco zero de nossa cidade é a Praça dos Bandeirantes, onde se encontra a Capela de Nossa Senhora da Penha de Pitangui, no bairro Penha. Construída em 1715 a mando de Antônio Rodrigues Velho –o Velho da Taipa – e José de Campos Bicudo, ela exibe arquitetura
barroca romana e evoca a devoção à primeira Santa de nosso arraial, no mesmo período em que nos tornamos Vila de Nossa Senhora da Piedade de Pitangui”, explica entusiasmadamente Israel.
As igrejas históricas compõem a paisagem de Pitangui. A Igreja do Senhor Bom Jesus é a mais antiga do perímetro urbano, construída em 1748, guardando uma riqueza arquitetônica e religiosa inestimável. Na praça Getúlio Vargas, também conhecida como Largo da Matriz, a Igreja de Nossa Senhora do Pilar se destaca. É a quarta matriz erguida no local e substituiu a antiga que foi destruída por um incêndio anos atrás. Nas escadarias em frente à Matriz estão sepultados os restos mortais de Padre Belchior Pinheiro de Oliveira, figura emblemática na história de Pitangui e de Minas Gerais. Ele foi conselheiro pessoal de Dom Pedro I e confidente legal do imperador.
Outro ponto importante é o Instituto Histórico de Pitangui, que fica em um casarão imponente na região central da cidade. O local foi fundado em 1960 e é responsável pela salvaguarda do maior acervo bibliográfico do Centro-Oeste mineiro, com documentos datados desde o início do século XVIII.
Fazenda Ponte Alta, símbolo da história rural de Pitangui. O imóvel pertenceu a Maria Tangará, uma das mulheres mais emblemáticas da tradição local.
LUGAR QUE ENCANTA
Ao chegar a Pitangui não é difícil encontrar alguém que convide o visitante para um café e uma conversa sobre a história da cidade. Quem vive por lá costuma ser apaixonado pela herança que o passado deixou. “É uma cidade linda, com casarões históricos, igrejas centenárias. Uma cidade com características barrocas, com casas ao redor das igrejas, ladeiras e ruas íngremes e centenárias. E um povo acolhedor”, fala Maria José Valério, de 78 anos, nascida e criada em Pitangui.
Maria José foi professora, além de secretária de cultura e educação de Pitangui. Ela faz questão de destacar a importância de personagens marcantes da história da cidade. “Destaco nossas duas matriarcas, que é a Joaquina de Pompéu e a Maria Tangará. A fazenda da Joaquina estava dentro dos limites de Pitangui. Aqui temos muitos casos, temos o nosso folclore e muita coisa para contar e mostrar a quem nos visita”.
Prefeita de Pitangui, Maria Lúcia Cardoso, durante passagem da Expedição promovida pelo Comitê ao município, em 2023.
Hoje, um dos maiores desafios de Pitangui é preservar o passado olhando para o futuro, cuidando do patrimônio histórico sem renunciar ao desenvolvimento da cidade. “Pitangui tem um compromisso profundo com suas raízes e com a natureza que nos cerca. Nosso desafio diário é equilibrar o respeito pela história de 310 anos, preservando casarões, igrejas e tradições culturais, com a necessidade de preparar a cidade para o futuro – e isso também significa proteger os córregos que cortam o município”, conta Maria Lúcia Cardoso, prefeita de Pitangui.
Ainda segundo ela, um passo importante foi a construção da primeira Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) do município, que hoje atende cerca de 600 famílias e garante o tratamento de 80% do esgoto gerado. “Estamos ainda trabalhando em um projeto para extinguir o lixão da cidade e avançar em uma política de saneamento básico que leve o tratamento de esgoto a todo o município”, finaliza a prefeita.
Imagem de Nossa Senhora das Dores, ícone da fé pitanguiense, preservada após o incêndio que destruiu a antiga matriz em 1914. Hoje, é um símbolo de resistência e devoção da comunidade.
A imponente Matriz de Nossa Senhora do Pilar domina a paisagem do Largo da Matriz. Erguida após o incêndio da antiga igreja, mescla elementos neoclássicos e neogóticos em sua arquitetura.