AMI Notícias nº 92

Page 1

Entrevista

AGORA TAMBÉM EM FORMATO DIGITAL N.º 92 Distribuição Gratuita 1.º trimestre de 2024 notícias GUARDIÃS DA TERRA E DO MAR Grande Reportagem OLENA UNE PORTUGAL E A UCRÂNIA
ALEXANDRA ALVES LUÍS Associação Mulheres Sem Fronteiras Reportagem

Guardiãs da terra e do mar

Entrevista, Alexandra Luís

“Agora parece que é démodé falar sobre feminismo”

Olena tem sete ofícios para unir a Ucrânia e Portugal

Rainhas da terra

ACEDA À VERSÃO DIGITAL DA AMI NOTÍCIAS

UTILIZE O LEITOR DE QR CODE DO SEU DISPOSITIVO MÓVEL E TENHA ACESSO A MAIS CONTEÚDOS.

TEM ACESSO ONLINE: 12

Medicina e partilha de conhecimento

Casar para fugir

Breves – Nacional, Internacional, Mecenato

Agenda AMI

Voluntariado

OS ÍCONES QUE ENCONTRA

NO FINAL DOS ARTIGOS INDICAM-LHE OS CONTEÚDOS EXTRA A QUE

LOJA ONLINE

DONATIVOS

FACEBOOK

Ficha Técnica

Este número da AMINotícias foi editado com o especial apoio da T RUST IN NEWS detentora dos títulos Visão e Visão Júnior (encarte), COMPANHIA DAS CORES LIDERGRAF e CTT - Correios de Portugal. Autorizada a reprodução de textos desde que citada a fonte.

Periodicidade Trimestral

Diretor Fernando Nobre Diretora Adjunta Luísa Nemésio Subdiretora Ana Luísa Ferreira

Editora Ana Martins Ventura Redação Ana Martins Ventura e e Ana Luísa Ferreira

Colunistas Isabel Fernandes, Catarina Neves, Fernando Nobre

Branded Content Sandra Leite Coordenador de Fotografia José Ferreira

Fotografia José Ferreira, Armando Redondo, Direitos Reservados

Grafismo Alexandre Fernandes Redes Sociais José Guimarães

Paginação Companhia das Cores - Ana Gil, Lúcia Antunes

Impressão LIDERGRAF

Editora, Redação e Administração AMI - Fundação de Assistência Médica Internacional, Rua José do Patrocínio 49, Marvila, 1959-003 Lisboa • T. 218 362 100 • E-mail: aminoticias@ami.org.pt Tiragem média 38.500 exemplares Distribuição Visão, Visão Júnior, AMI Registo ERC 127913 Depósito Legal DL378104/14

AMI
|
Foto © José Ferreira /
08
+ TEXTOS + VIDEOS
+ FOTOGRAFIAS
|
| 18 | 19 | 22 | 23 |
14 | 16
04 |

SEJAMOS TODOS FEMINISTAS!

Pediram-me para escrever o Editorial deste 92º número da AMINotícias à qual me dedico desde o seu número 0.

É uma honra embora também uma responsabilidade grande e sobretudo uma audácia pretender substituir Fernando Nobre, cujas ideias me habituei a partilhar e apenas limitei a “burilar” na forma para publicação.

Porquê este pedido e porque aceitei? Por ser um número dedicado às mulheres. No entanto, é um grande desafio para alguém que teve a sorte, reconheço que é sorte e sobretudo privilégio, de nascer numa Família com um nível intelectual e de educação em que a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres nunca foi questionada nem posta em causa. Só vim a sentir a diferença de tratamento fora de casa e, sobretudo, quando entrei na vida profissional e, mais ainda, na minha trajetória já longa na Ajuda Humanitária e devo dizer que, mais do que nunca, posso confirmar que a principal forma de alterar mentalidades é sem dúvida através da Educação.

E não, não é apenas cultural, coisa que é vulgar achar-se no Mundo “Ocidental”. Vi mulheres muitíssimo respeitadas e interventivas em todos os Continentes e muito machismo na Europa e Estados Unidos. Todas elas viviam em famílias em que a educação era importante e tiveram acesso ao conhecimento e lhes era permitido partilhar ideias. Algumas foram inclusivamente mais além e ousaram questionar de forma inteligente e lutar pelos seus direitos.

Hoje, ao navegar nas redes sociais, um hábito nem sempre saudável mas útil, se soubermos controlar o seu uso, dei com uma das cinco regras que a atriz Helen Mirren confidenciou a estudantes da Universidade de Tulane em Nova Orleans (Estados Unidos da América) para ter uma Vida Feliz, e revi-me completamente nela:

“... Tratem as pessoas apenas como pessoas. Lembrem-se que toda e qualquer pessoa merece o mesmo respeito e generosidade. Independentemente do vosso sexo, sejam feministas. Em todos os países e culturas que visitei, da Suécia ao Uganda, de Singapura ao Mali, ficou muito claro que quando são respeitadas as capacidades e liberdade de perseguir sonhos e ambições pessoais das mulheres, a vida melhora para todos. Eu não me definia como feminista até há muito pouco tempo, mas sempre vivi como uma feminista e sempre acreditei obviamente que as mulheres eram tão capazes, tão vigorosas e tão inspiradoras quanto os homens. Mas juntar-me a um movimento chamado “feminismo” parecia-me demasiado didático, demasiado político para mim. No entanto, acabei por compreender que o feminismo não é uma ideia abstrata, mas uma necessidade se queremos andar para a frente e não regredir para a ignorância e a inveja medrosa. Por isso, agora declaro-me feminista e encorajo-vos a sê-lo também...”

Socorrendo-me desta atriz britânica, termino reafirmando: O feminismo é uma necessidade imperiosa para uma Vida Feliz para todos.

SUMÁRIO + EDITORIAL | 03

GUARDIÃS DA TERRA E DO MAR

04 |
Sandra Lázaro (esq.) e Dina Santos (dir.) defendem o mar que traz o Ana Martins Ventura Fotografia José Ferreira

Nos bastidores ou na frente de batalha, com sonhos concretizados ou refletindo vitórias nas conquistas dos filhos, elas não têm tempo para sentir.

As guardiãs da educação, ambiente, sustentabilidade, história e cultura dobram o cansaço e provam que os direitos das mulheres estão vivos, em tempos de esquecimento.

Em Setúbal, uma comunidade está a mudar o seu futuro desde que as mulheres abraçaram, a missão de serem guardiãs. Representam a frente de uma causa ambiental, assumindo autoridade e saberes a bordo de embarcações governadas por homens, onde as mulheres até já foram “sinal de mau agouro”.

Filhas de pescadores, criadas na pesca, Dina Santos e Sandra Lázaro cresceram no tempo da liberdade a ouvir histórias de quando as mulheres não votavam, não estudavam, não comandavam. Hoje, sentem orgulho na liderança comunitária que conquistaram como representantes de um projeto da Ocean Alive, o “Mariscar Sem Lixo”, sobre a defesa das pradarias marinhas, pequenos campos relvados que cobrem o fundo do estuário do Sado, onde os peixes procuram abrigo para desovar. Ajudaram a mapear fundos, a catalogar espécies, a limpar ancoradouros e assumiram a educação ambiental da comunidade.

Sandra Lázaro chega ao cais conhecido como “Rampa das Baleias” em Setúbal, com um saco de enxarrocos. Frutos de uma manhã no mar a vigiar, guardar e salvaguardar, onde a sua alma aquariana não podia deixar de retirar algo do mar. Já em terra com Dina Santos, companheira nas voltas de guardiã do mar, deita olho a “umas ostras que já devem estar feitas” e vai apanhá-las “à babuja”.

É da “malta da borda d’água”, pescadora desde os dois anos, assim se considera desde que começou a andar num barco de pesca, com a mãe e o seu padrasto. Com 51 anos de faina na pele, confessa “tenho uma paixão pelo mar e pelo Sado que não sei explicar”.

Depois de oito anos de insistentes conversas entre amigos, vizinhos, família e companheiros de mar, sente-se orgulhosa porque “hoje, se falar com um idoso da borda d’água ele reconhece o conceito de pradarias marinhas, e o quanto elas representam para a sobrevivência da nossa comunidade”.

Desde sempre que os pescadores sabiam que as ervas do fundo do Sado eram importantes, porque o peixe procriava lá “então sempre procurámos proteger à nossa

maneira as pradarias marinhas, que conhecemos como sebas”. Como? A comunidade piscatória sabia que “quando a maré enchia, o peixe entrava nas sebas e quando a maré vazava saía e era aí que o apanhavam”. Agora, as sebas são conhecidas por serem não só um breçário, mas “o pulmão azul”, pois “três hectares de sebas produzem oxigénio para 182 pessoas”.

O que não estava ainda enraizado é que, na maré baixa, durante a mariscagem, arrancar as sebas para alcançar amêijoa mataria o futuro daqueles berçários de peixe. “Ao arrancar das sebas juntava-se o acumular de garrafas de plástico no fundo do Sado, utilizadas durante a mariscagem e depois abandonadas” e foi aí que a consciencialização mais custou, na gestão do lixo”, recorda Dina Santos. “Ao início foi muito complicado mudar hábitos, principalmente nas pessoas mais velhas. Elas acham que sabem tudo, porque vivem cá há muitos anos e sempre fizeram assim”, mas os saberes complementaram-se. “Hoje, somos acarinhadas pela comunidade piscatória e pela população em geral, não só de Setúbal, mas de todo o país, que nos procura para conhecer melhor o que é isto das pradarias e para participar nas ações de observação do Sado e recolha de lixo”, conta Dina que, aos 52 anos, é a terceira geração de uma família de pescadores e também ela, um dia, foi pescadora.

DO SADO PARA A RIA

Para Dina e Sandra, muito do que acontecia era culpa da falta de acesso a informação, comum nas comunidades onde as famílias têm menos escolaridade e mais dificuldades económicas, “não é uma questão só de género, é uma questão da pobreza profunda”. Este projeto da Ocean Alive, financiado pela AMI, através do No Planet B, para o mapeamento e proteção das pradarias marinhas mudou a região de Setúbal e seguiu por outras marés. Raquel Gaspar, bióloga, fundadora da Ocean Alive está a acompanhar “uma nova geração de guardiãs, na ria de Aveiro, a quem já foi colocado o nome de “guardiãs da ria” e que estão a ser inspiradas pelas guardiãs do mar”.

| 05 ABERTURA

Para Raquel Gaspar “as alavancas do projeto da Ocean

Alive em prol das pradarias marinhas são as mulheres”. E não podia ser de outra forma. Na raiz do projeto está uma mulher e “nós, mulheres, somos aquilo que fazemos”, defende. “As mulheres são o motor da sustentabilidade e queremos vê-las navegar”. Parece uma frase comum, mas foi o que levou Raquel Gaspar a pensar que “tinham que ser as mulheres a levar o projeto da Ocean Alive adiante”. Sobretudo porque elas estão dentro das comunidades piscatórias, vêm de famílias com gerações de pescadores. São filhas, mães, irmãs e esposas de pescadores. Elas próprias foram ou ainda são pescadoras e mariscadoras”.

Sandra Lázaro lamenta que haja poucas mulheres no mar. Os tempos são outros, mas dessa forma parece que se perdeu terreno.

“Antigamente havia mais mulheres a irem para o mar. As mulheres acompanhavam os maridos e criavam os filhos no barco. Entretanto, foi aparecendo indústria e a pesca tornou-se mais difícil, a vida mais cara, então tinha de

“As mulheres são o motor da sustentabilidade e queremos vê-las navegar.”

Raquel Gaspar, fundadora da Ocean Alive

haver alguém, em casa, com um ordenado certo”, assim aconteceu na família de Sandra. A mãe deixou a pesca para trabalhar numa fábrica e era difícil que assim não fosse, porque “não há homem nenhum que aceite uma mulher a governar um barco e ele a trabalhar em terra”. Como guardiã, sente que, de certa forma, encurtou a distância que existia entre as mulheres e o mar e algo mudou no futuro da comunidade.

Faltam ações para proteger os direitos das mulheres

Se os direitos que se têm conquistado não são fáceis de manter, não é por falta de esforço. “As mulheres são aguerridas nas lutas que travam”, assim defende Alexandra Alves Luís, da Associação Mulheres

Sem Fronteiras. Depois, “empurram as mulheres para os cantos, com formalidades políticas e legislativas que não se traduzem em ações reais, para mudar o seu quotidiano”.

O relatório “Igualdade de Género em Tempos de Crise”, publicado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) revela a discriminação baseada no género em instituições sociais em 179 países, incluindo Portugal que está classificado com um nível de discriminação muito baixo, face à média mundial.

Segundo o documento, é na esfera familiar que as discriminações são mais acentuadas, com as mulheres a dedicarem 2,6 vezes mais horas aos cuidados não remunerados e ao trabalho doméstico do que os homens. Também segundo este documento, quando ocorrem catástrofes, as mulheres e as crianças têm 14 vezes mais probabilidades de morrer do que os homens. Enfrentam também muitas ameaças, como a violência sexual e baseada no género, casamentos precoces e forçados, a perda de meios de subsistência e de acesso à educação.

Neste contexto, a OCDE recomenda que sejam promulgadas leis a favor da igualdade de género, ou que sejam alteradas as existentes; que se transformem normas sociais discriminatórias em normas equitativas, incluindo os homens na promoção da igualdade de género e financiando a igualdade de género a longo prazo.

Recomendações de ouro para um país que, mesmo tendo um baixo índice de discriminação, segundo Alexandra Alves Luís, “trata as mulheres como uma minoria, depreciando as suas causas quando querem debater sobre aquilo que afeta as suas vidas, quando, na verdade, as mulheres representam uma maioria”, 52% da população em Portugal.

06 |
| 07 ABERTURA

“AGORA PARECE QUE É DÉMODÉ FALAR SOBRE FEMINISMO”

Foi já adulta que conheceu o peso da palavra feminismo e “As novas cartas portuguesas”, assim como “As mulheres do meu país”, obras que gostava de ver presentes nas escolas, em vez de “colocadas num esquecimento histórico”. Alexandra Luís, cofundadora da Associação Mulheres Sem Fronteiras, teve pena que os direitos das mulheres em Portugal tenham sido um “não tema” durante a sua formação escolar e assim se mantenham.

Defensora das mulheres, até quando ditam o feminismo como “démodé”, a ativista afirma que elas ainda não são ouvidas nos fóruns onde se debatem e decidem as questões que envolvem as suas vidas e ativismo. Do trabalho à família, habitação, saúde, violência de género, parece que muito foi conquistado mas na verdade as mulheres são tratadas como uma minoria, num país onde 52% da população assina no feminino.

08 |

Olhamos para outros países quando queremos falar de direitos negados a mulheres, mas e em Portugal?

Em plena Lisboa, há pouco tempo, tínhamos casos de pobreza menstrual. Mulheres, raparigas, sem dinheiro para comprar absorventes, usavam sacos de plástico que recortavam para vestir, toalhas, ou não usavam nada. As crianças também não tinham fraldas para usar. No caso das crianças não é só uma questão de higiene, também não têm livros. Nem todas as crianças têm acesso a materiais lúdico-pedagógicos para brincar, pensar, conhecer os seus direitos.

As pessoas acham que só noutros continentes e contextos de guerra é que se vive assim, mas acontece em Lisboa.

Porque é tão difícil as mulheres fazerem valer os seus direitos?

As mulheres imigrantes, as mulheres refugiadas, as mulheres negras, as mulheres lésbicas, as mulheres com algum tipo de diversidade funcional (as pessoas costumam falar em deficiência, mas não gosto desse nome), nós somos auto-representantes, temos que estar no debate das temáticas que nos dizem respeito. Hoje em dia, é impensável debater acessibilidades sem que as pessoas que se deslocam em cadeira de rodas ou que são cegas, sejam ouvidas, porque elas têm a experiência na pele.

Enquanto mulheres também somos nós que vivemos na pele um conjunto de experiências que vão desde a saúde, à educação, às questões múltiplas da violência, da conciliação, do

“É difícil entender porque é que nas escolas os direitos das mulheres, a desigualdade, o feminismo, a violência machista, não estão sempre na agenda do dia.”

Alexandra Luís, cofundadora da Associação Mulheres Sem Fronteiras

cuidado, das artes, da investigação. Existem discriminações e formas de violência que nos afetam, simplesmente por sermos mulheres e, ainda por cima, não somos ouvidas nos fóruns onde se debatem estas temáticas.

Há um longo caminho a percorrer em Portugal, em nome das mulheres. Tratam-nos como se fôssemos uma minoria e se considerarmos as meninas, as raparigas e as mulheres, nós somos a maioria da população.

É difícil entender porque é que nas escolas os direitos das mulheres, a desigualdade, o feminismo, a violência machista (como dizem os espanhóis), não estão sempre na agenda do dia.

É cliché falar de feminismo, ou vivemos, de facto, num tempo em que são necessárias mais mulheres aguerridas?

Em Espanha há uma grande mobilização em que as mulheres se intitulam feministas, inclusive as raparigas. Em Portugal, agora parece que é démodé falar sobre feminismo e direitos das mulheres.

No fundo, o que é que o feminismo pretende? A igualdade entre homens e mulheres. “Ah elas agora

querem ser homens?” Não, nós não queremos ser homens. Queremos igualdade de direitos. E a igualdade de direitos não é só boa para as mulheres, também é boa para os homens.

Áreas ligadas ao cuidado das pessoas mais velhas, das crianças, à alimentação da família, têm de ser partilhadas com as mulheres, assim como os cargos de poder.

Na escola ninguém me falou de feminismo. Foi já adulta que soube quem foi Beatriz Ângelo. No programa da escola nunca me falaram das “Novas cartas portuguesas” de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Não sabia que o livro tinha sido proibido e que elas tinham sido perseguidas. Mas também nunca tinha ouvido falar de Maria Lamas e “As Mulheres do meu país”, de como ela percorreu Portugal para conhecer a condição das mulheres.

Há uma ocultação do que é a História das mulheres e acima de tudo uma falta de consciência de que nunca ninguém nos deu nada de mão beijada. Todos os direitos que temos, foram conquistados pela luta das mulheres ao longo dos séculos.

| 09 ENTREVISTA

UMA OMISSÃO SOCIAL

Enquanto cofundadora de uma associação de mulheres, com uma atividade muito dedicada à erradicação da mutilação genital feminina, tem os apoios necessários?

Em Portugal não há apoios para as associações de mulheres, não conheço nenhuma que tenha fundos para pagar salários a tempo inteiro. As mulheres são ativistas porque têm de ser, precisam de ser, caso contrário ninguém vai assumir as suas causas. Quando deixei a área da gestão para me dedicar ao projeto das Mulheres Sem Fronteiras passei vários anos sem receber nada. Primeiro foi preciso criar projetos, mostrar trabalho e só depois é que começaram a surgir as oportunidades de financiamento e mesmo assim apenas para uma parte das despesas.

Na área da prevenção e sensibilização sobre a mutilação genital feminina então está a ser feito um trabalho extraordinário, que não era possível sem as mulheres das comunidades onde essa problemática existe. Elas são as ativistas no terreno diariamente, são mediadoras, conselheiras, psicólogas e em troca de pouco.

De acordo com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género em 2023 registaram-se 22 homicídios voluntários em contexto de violência doméstica, 17 vítimas eram mulheres, duas crianças e três homens. As mulheres são as principais vítimas dos crimes violentos porque existe impunidade?

Continuamos a ser as vítimas porque o sistema patriarcal o permite.

“Quantas vezes abriste a boca para dizer: ontem assassinaram uma mulher, nós, homens, temos que acabar com isto?!”

Quando crimes graves acontecem, eu digo aos homens do meu círculo “estes tipos que matam as mulheres são os teus amigos, são os teus colegas de trabalho”. A reação: “não digas isso porque eu não tenho amigos assim”. Então questiono “quantas vezes, na hora de almoço, quando estás com os teus amigos, abriste a boca para dizer: ontem, aqui no meu bairro assassinaram uma mulher, nós, homens, temos que acabar com isto?!”. Então respondem “achas que vamos falar disso?”. Pois, “é como se isso para ti fosse indiferente”.

Acho que os homens deviam estar muito preocupados em educar as novas gerações sobre o que é ser homem, sobre o respeito para com as mulheres, sobre o direito sexual das mulheres e contra a violação, contra a violência doméstica. Há aqui qualquer coisa de muito grave, quando numa sociedade e no mundo, se tolera que homens abusem de forma continuada de meninos e meninas, de outros homens e mulheres, sem que haja condenação e respostas para as sobreviventes.

Mas, a sociedade identifica um crime sexual e um crime de violência doméstica com o devido peso?

A sociedade toda devia envolver-se e dizer “não vamos permitir que isto aconteça”, é uma omissão o que temos. A participação cívica em Por-

tugal está muito aquém do que seria desejado.

As pessoas vão na rua, veem uma rapariga ser assediada por homens e fingem que não estão a perceber. E como os homens, quando vão na rua acompanhados de mulheres, não veem isso acontecer, pensam que esses problemas não existem.

FUTURO SEM “FALSA ILUSÃO”

Num futuro fictício, em que cuidar da família será uma profissão remunerada, quem a assumirá? Nós temos preocupações no quotidiano que não fazem parte do universo dos homens. E quando queremos levar essas questões para o espaço público, as pessoas dizem, são mesmo coisas de mulheres”. É verdade, são mesmo coisas de mulheres, mas os homens podem interessar-se por elas.

Depois temos outro inverso, os homens que assumem responsabilidades de forma igual, que respeitam a carreira das companheiras. Mas, estes homens, quando precisam de ajuda no dia-a-dia para resolver uma questão com os filhos na escola, para um conselho sobre alimentação, são marginalizados por quem questiona “onde está a tua mulher, isso são coisas dela”.

Estamos presos a papéis. Não tenho dúvida que se os desconstruíssemos agora, muitos homens e mulheres

10 |

abraçariam a profissão de cuidador da família. E escolheriam essa profissão não porque não há emprego para todos e alguém vai ter que ficar em casa, como os populismos agora apregoam, mas porvocação.

Como concretizar o plano traçado em 1909, quando se celebraram, pela primeira vez, os direitos da mulher?

Há uma falsa ilusão de que tudo está conquistado. Cada vez que falamos com pessoas que não estão no movi -

mento das mulheres, com amigos ou amigas, a primeira coisa que falam é “eu vi uma reportagem sobre as mulheres no Afeganistão, as meninas lá não vão à escola”. Então, mas vamos falar de Portugal, o que é que nos falta fazer aqui também? E temos logo a resposta, “aqui o que é que vocês querem mais?”. Percebemos que é uma luta que ninguém quer comprar. Não é algo que esteja na moda e pensam “lá vêm elas, é uma chatice”. E, de repente, os direitos das mulheres, a desigual -

dade, tornaram-se um “não tema”. Seria impossível e irreal dizer que nada foi feito em Portugal. É óbvio que sim, então neste ano em que celebramos os 50 anos do 25 de abril, revisitamos muitas coisas que mudaram. A questão é que, mesmo do ponto de vista legislativo e de políticas públicas, as coisas estão no papel, mas têm também que estar no quotidiano das mulheres.

| 11 ENTREVISTA
Alexandra Luís defende que as mulheres e os homens portugueses precisam ser mais conscientes e ativos sobre o feminismo

OLENA E OS SEUS SETE OFÍCIOS PARA UNIR UCRÂNIA

E PORTUGAL

Portugal é o refúgio de milhares de ucranianos que procuram segurança e paz fugindo à guerra. Olena Petryk assumiu como missão ajudar quem chega, tal como um dia, apreciou que a ajudassem.

De ruas antigas entrelaçadas com novas, “Coimbra é tão parecida com Lviv que é impossível não estar perto de casa, mesmo depois de tanto tempo longe da Ucrânia”. Olena Petryk pertence à comunidade de imigrantes ucranianos que adotaram Portugal como seu no início do milénio e cruzaram tradições, acreditando que “só aceitando a herança de cada um é possível renovar o ideal da Europa com espaço para todos”. Quando em 2022, eclodiu a guerra e milhares de ucranianos rumaram ao

país mais ocidental da Europa, Olena Petryk assumiu a missão de unir a Ucrânia e Portugal, transformando-se em mulher de sete ofícios.

A união de culturas apaixona Olena, desde que chegou a Portugal sempre guardou espaço para celebrar as datas comemorativas da Europa mais ocidental e da Europa mais oriental. “Em casa, havia Natal a 24 e 25 de dezembro e depois a 6 e 7 de janeiro, quando a Ucrânia celebrava nessas datas. Não faltava bacalhau com todos e bolo-rei, assim como

não faltava kutia e outras iguarias da Ucrânia”, como não podia deixar de ser, em casa de uma apaixonada por História.

Segundo o Observatório das Migrações, “o número de estrangeiros em 2022 em Portugal era de 800 mil, o dobro de há 10 anos”, e “foi atribuída nacionalidade a meio milhão nos últimos 15 anos”, sendo a comunidade ucraniana a quarta mais significativa em Portugal.

Para os ucranianos, “no início deste século, Portugal surgiu como um país que tinha muito trabalho e, ao

12 |
Olena sente que a sua missão é unir Portugal e a Ucrânia através da cultura e da amizade

mesmo tempo, algumas cidades lembravam zonas da Ucrânia. Era, sobretudo, amigável”. Olena está certa de que, vinte anos depois, essas condições são a causa para milhares de ucranianos escolherem Portugal novamente, “principalmente porque Portugal fica no outro extremo da Europa, longe o suficiente da guerra”. No início da guerra na Ucrânia, os dias de Olena transformaram-se num exercício dos tais sete ofícios. “Psicóloga, assistente social, motorista, cozinheira, treinadora, professora, conselheira assim fui durante meses”, sem parar um instante, para ajudar quem chegava, depois de uma travessia pela Europa, “com pânico de todos os barulhos e sem notícias da família que deixava para trás”. Ao fim do dia, o filho ligava-lhe e perguntava: “ó voluntária já estou com saudades tuas, ainda estás em Portugal, ou já estás na Ucrânia?”. É verdade que nos primeiros dias de guerra partiu com dois amigos rumo a Lviv para ir resgatar os pais. Mas, mais tarde, depois de a mãe regressar, Olena percebeu que, sem esquecer a Ucrânia, o seu lugar era em Portugal, onde há muito a fazer por quem chega.

Não fosse a amizade com Olena, tudo teria sido ainda mais difícil para Iryna Smekhno. Fotógrafa, fixando-se em Portugal, salvou o filho de ir para a guerra, mas nunca mais conseguiu trabalhar na sua área. “Em Portugal, as pessoas tiram elas mesmas as suas fotografias e não há tantos pedidos de sessões fotográficas como na Ucrânia”.

No outro extremo da Europa está o marido, em risco de ser levado à força para a frente de guerra. “Agora na Ucrânia é comum pararem carros no meio da rua e levarem homens

“Psicóloga, assistente social, motorista, cozinheira, treinadora, professora, conselheira, assim fui durante meses”

para irem combater obrigados”. Sem trabalho e com uma parte da família distante, Iryna acompanha o filho em Portugal que, em setembro, entrou na Universidade de Coimbra. O remédio para o seu coração dividido é o “apoio incansável de Olena que tem sempre tempo para organizar um convívio na comunidade ucraniana, ajudar com o português, aconselhar e acalmar o pânico”. Olena sente que pode ajudar o país onde nasceu, acolhendo quem chega a Portugal “para que se sintam protegidos”. Na sua missão está “a defesa das mulheres que não têm respostas rápidas da sociedade e que, com ou sem guerra, ficam desprotegidas”, tal como sentiu nos primeiros anos como imigrante.

SOBREVIVENTE

Olena chegou a Portugal em 2004, para se juntar ao namorado e com o plano de se licenciar em Economia. A barreira linguística levou ao adiamento do plano de estudos, que ainda é guardado na lista de sonhos. Os anos passaram sem falta de trabalho e sentia-se realizada por ter o seu dinheiro, o suficiente para ser financeiramente independente. E foi a independência financeira que a salvou, junto com o filho, quando o alcoolismo do ex-marido destruiu o casamento.

Cada vez que o ex-marido chegava a casa embriagado, a violência escalava de gritos para murros no rosto,

braços e barriga de Olena. “Quando a polícia chegava e ele já não estava, perguntava por testemunhas”, Olena respondia “só se for o gato, o meu rosto não chega?”. Então a agressão era registada como “divergências”. Mulher, imigrante, vítima, Olena sentiu que lhe foi sonegado o apoio que deveria ter recebido do Estado e da sociedade civil. “As respostas demoram quando as mulheres precisam de apoio imediato”. Não foram raras as vezes em que perguntou às forças de segurança: “vão agir quando eu for um cadáver, para lamentar a morte de mais uma mulher?”.

Segundo a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), em 2023, Portugal registou 22 homicídios voluntários só em contexto de violência doméstica (17 mulheres, 2 crianças e 3 homens). Em 2022, no mesmo contexto, ocorreram 28 homicídios dos quais 24 mulheres e 4 crianças. Para Olena, os números são muito mais do que uma frase escrita, afinal “vidas não se podem medir com números, o mundo certo será aquele em que nenhuma mulher morrerá vítima de violência doméstica, crime sexual ou homicídio às mãos de um psicopata”.

| 13 REPORTAGEM

RAINHAS DA TERRA

Mulheres de uma geração que guarda os segredos de Bolama, Maria Eugénia e Fatumata veem nas tradições e no empreendedorismo uma “recuperação da alma da terra”.

Texto Ana Martins Ventura

Esculpidas pela alma de Bolama, Maria Eugénia Melo e Fatumata Waldé querem que a ilha guineense recupere “pelo menos um pouco do antigo esplendor”, de quando foi a primeira capital da Guiné-Bissau. Guardiãs da comunidade, elas apostam no empreendedorismo e no reviver de tradições, no lugar onde ficou esquecida a História partilhada com Portugal, Itália, Inglaterra e Estados Unidos da América.

Ao rimo da Tina ou dominando os segredos da gastronomia guineense, o segredo de Fatumata é “nunca parar, nem deixar os “nãos” travarem os sonhos. Dominando a gastronomia gui-

neense e com cinco filhos a passarem pela universidade, Fatumata contradiz a desigualdade, numa terra onde “as mulheres sempre foram pilares da comunidade, mas nos bastidores”. Maria Eugénia, também rainha da Tina, é uma eterna professora, com coragem para, nem mesmo depois de reformada, deixar a profissão. Ensinou Educação Visual, mais tarde Caligrafia e, depois da reforma, “Prática Pedagógica para ensinar as novas gerações de professores a darem aulas”. Reconhece que foi uma privilegiada por conseguir trabalhar no que escolheu. “Em Bolama, é difícil as mulheres terem uma profissão.

Empreendedoras são, afinal é isso que lhes resta: com pouco fazer muito”. As mulheres criam o seu próprio emprego vendendo produtos, mas, nem aí o conseguem fazer com as condições certas, porque “não existe um centro comercial ou mercado coberto, então reúnem-se na rua com as suas bancadas improvisadas de legumes, amendoim, óleo de amendoim, peixe”.

Se em 1976, quando Maria Eugénia começou a dar aulas, uma mulher afirmar-se como professora era extraordinário, hoje, o Fundo das Nações Unidas para a População indica que “a taxa de analfabetismo

14 |
Maria Eugénia é ‘Rainha da Tina’, tradição secular de música sobre histórias do quotidiano. © Armando Redondo

continua a ser elevada entre a população do sexo feminino”, a mesma população onde 52,1% das mulheres casam, pela primeira vez, aos 15 anos.

MIL TALENTOS

É preciso conhecer a terra e o que se pode fazer com ela, dominar diferentes artes, da pesca à agricultura. “Muitas mulheres assumiram o sustento total das famílias depois dos homens serem mortos [na guerra civil] ou emigrarem” e nunca mais Bolama foi a mesma para Maria Eugénia que recorda o tanto de pessoas que iam e vinham e, hoje, são cada vez menos. Os homens que partiram, “o fecho da escola de enfermagem e do hospital e, em consequência, de tantos negócios que deles dependiam, não ajudaram a terra”.

Na Bolama de hoje, Maria Eugénia vê as crianças terminarem a escola e partirem para a cidade ou além-fronteiras. E até a tradição milenar da Tina pouco a pouco se recolheu a um silêncio que apenas há uns anos começou a ser quebrado. Com um projeto promovido pela AMI em parceria com a Associação Pro-Bolama e financiado pelo CamõesInstituto da Cooperação e da Língua, “em 2022 começaram a unir-se diferentes grupos de Tina, elegeram-se rainhas e a tradição renasceu”.

“Em Bolama é difícil as mulheres terem uma profissão. Empreendedoras são, afinal, é isso que lhes resta: com pouco fazer muito.”

“Bolama Ka Pudi Pirdi Tina” (na tradução do crioulo guineense para português “Bolama não pode perder a Tina”), trouxe de novo o som da Tina às ruas.

Para a cozinheira, mestre dos sabores que contam a história da antiga capital da Guiné-Bissau, “não é só na música que se deve fazer reviver a força da terra, a gastronomia também precisa ser apoiada”. Antes de trabalhar como cozinheira, Fatumata plantava legumes que vendia no mercado, fazia óleo de amendoim para vender e, quando podia, plantava amendoim e caju também para vender.

Quando o marido morreu, Fatumata criou sozinha cinco filhos, hoje três professores, um enfermeiro e um futuro engenheiro ambiental a terminar o curso em Lisboa. Depois, os filhos começaram a sair de casa, rumo a Bissau e Lisboa e Fatumata preencheu os seus dias cuidando de outras crianças que precisavam de uma ama. Ao mesmo tempo, mantinha as vendas no mercado e, mais tarde, a cozinha.

Dessa forma, Fatumata conseguiu dar aos filhos “a oportunidade de terem uma vida diferente, melhor” e contrariar os índices de pobreza, que colocam as mulheres da Guiné-Bissau como as mais afetadas pela situação de carência.

Num país onde 69% das mulheres não tem acesso à terra, Fatumata foi privilegiada. A lei prevê acesso igual à propriedade, no entanto, segundo a Associação Para a Cooperação Entre os Povos, existem tradições e costumes que impedem uma concretização real da legalidade. Tradicionalmente, as mulheres não têm direito a herança e posse da terra, apenas ao seu uso.

O que em tempos colheu da terra é hoje o segredo da sua cozinha. “A culinária da Guiné-Bissau é o mais natural possível e esse é o nosso segredo, claro que há sempre algo mais, o amor tem que estar sempre presente na cozinha”. E a maior recompensa é quando “as pessoas ficam felizes com a comida”.

Fatumata e Maria Eugénia refletem em si a alma da terra. Guardiãs das suas raízes, empreendedoras, tal como milhares de mulheres guineenses, elas não desistem de contrariar os números que colocam as mulheres como grupo mais desfavorecido da sociedade guineense.

Um estudo da Associação Para a Cooperação Entre os Povos, Mulheres da Guiné “No Lanta”, Liga Guineense dos Direitos Humanos, Associação das Mulheres Profissionais de Comunicação Social e Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, indica que 23% das famílias guineenses são chefiadas por mulheres, mas a pobreza ainda incide sobre cerca de 69% das mulheres do país porque elas exercem atividades económicas que geram menos rendimentos.

| 15 INTERNACIONAL
Reservados
Fatumata mudou a vida dos cinco filhos, com a oportunidade de frequentarem a universidade.

MEDICINA E PARTILHA DE CONHECIMENTO

Seja na formação de profissionais ou na gestão de um projeto sobre literacia em saúde e mudança de práticas nefastas para jovens mulheres e crianças, Sofia e Teresa já deixaram Portugal várias vezes para cuidar de comunidades em diferentes pontos do mundo.

Sofia Grilo, em missão em Madagáscar e Teresa Mota, na Guiné-Bissau, não imaginam a medicina sem a partilha de conhecimento, para que todos, em qualquer parte do mundo, um dia possam ter acesso a cuidados de saúde. Acreditam que, "apenas com a partilha a medicina faz sentido” e dessa forma defendem as comunidades que temporariamente abraçam como suas, colocando a saúde infantil em primeiro lugar. Sofia sempre acreditou no poder que o conhecimento tem, para transformar a vida de pessoas, e quando escolheu a medicina como profissão queria concretizar esse ideal.

“O que encontramos nas missões é muito diferente do que imaginamos e do que temos em Portugal, mas representa a oportunidade de levar algo mais onde há tão pouco”, afirma Sofia Grilo.

Antes de Ampefy-Andasibe, em Madagáscar, onde está a dar formação a profissionais de saúde no Centro Médico-cirúrgico Saint Paul, no âmbito do projeto promovido pela AMI em parceria com a organização Change Onlus, a pediatra de 28 anos passou pela Grécia e Moçambique. Em Ampefy, a realidade é muito diferente da rotina enquanto médica a fazer internato no Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca. Naquela região de Madagáscar “não é raro ver uma carroça fazer de ambulância”, especialmente para transportar mulheres em trabalho de parto.

O acesso a cuidados médicos é difícil. Quando chove, apenas com recurso a uma mota se conseguem entregar medicamentos porta a porta. “A distância de cinco quilómetros, para acesso a cuidados de saúde, recomendada pela Organiza -

ção Mundial de Saúde, não é garantida”, por isso, quinzenalmente, “o Centro Médico-cirúrgico de Saint Paul organiza clínicas móveis, com consulta e medicação gratuitas, incluindo na equipa um médico, uma enfermeira e uma parteira”.

Na chegada às localidades, a equipa presta cuidados médicos, ações de sensibilização sobre o uso de medicamentos, desidratação, as causas de diarreias, doenças respiratórias e alimentação saudável, mantendo como foco principal a saúde infantil e as elevadas taxas de malnutrição. Segundo o Banco Africano de Desenvolvimento “pelo menos 216 milhões de crianças em África sofrem de atraso de crescimento e de subnutrição”, sendo a malnutrição “principal causa de morte entre as crianças com menos de cinco anos na África Subsariana, a seguir à malária”.

16 |
© José
/ AMI
Sofia Grilo dá formação a profissionais de saúde em Madagáscar.

216

milhões de crianças em África sofrem de subnutrição

Em Ampefy, 57,4% das crianças têm desnutrição crónica. Todos os meses são feitos rastreios a 1000 crianças. E, “por ano, 200 crianças recebem tratamento nutricional, o que implica que, semanalmente, sejam dados alimentos terapêuticos, no Centro Médico-cirúrgico Saint Paul e em outros pontos de distribuição”.

Nas comunidades mais isoladas, a clínica representa, sobretudo, mais cuidados para as crianças, porque um dos maiores problemas das comunidades é a troca da medicina por tratamentos alternativos, xamânicos. Recentemente, “um menino com 18 meses apresentava malnutrição severa, tendo apenas quatro quilos, depois de regressar da casa de um familiar, onde esteve a receber tratamento alternativo, sem que o mesmo fosse interligado com tratamento médico. Além da malnutrição, tinha tuberculose”.

Após alguns tratamentos no Centro-Cirúrgico Saint Paul perdeu-se o contacto com a criança e quando a equipa da clínica móvel se dirigiu à morada indicada pelos pais, soube que estava novamente sob os cuidados do xamã. Quando a criança regressou ao centro, “a sua condição tinha agravado ao ponto de não ter qualquer apetite”, necessitando de um tipo de leite que o Saint Paul não tem de momento.

Embora a malnutrição seja o grande problema local, o que mais motivou a missão de Sofia foram as formações

para profissionais de saúde. Sofia sempre pensou, um dia, colocar o conhecimento que viesse a adquirir à disposição de outros colegas de profissão ou de pessoas em situação de vulnerabilidade, “o conhecimento só vale a pena se for partilhado para criar algo, para uso comum”, considera.

SAÚDE COMUNITÁRIA, UMA SOLUÇÃO

Atravessando o continente africano, em direção a Bolama, na Guiné-Bissau, a médica Teresa Mota está pronta para abraçar a gestão do projeto de saúde comunitária da AMI, que há cerca de 20 anos apoia a população local com cuidados de saúde, distribuição de medicamentos, realizando ações de sensibilização sobre saúde materno-infantil, alimentação saudável e prevenção sobre malária, doenças respiratórias e diarreicas.

“Depois de estar em missão junto das comunidades indígenas da Guatemala, a cerca de dois mil metros de altitude, num local onde da saúde à alimentação diária, tudo era um

desafio”, Teresa dará continuidade ao trabalho da AMI na Guiné-Bissau, que representou para gerações o acesso a cuidados de saúde e informação que, de outra forma não seriam possíveis.

Na bagagem leva formação em Medicina de Catástrofe e experiência em saúde da criança e do adolescente, saúde sexual e reprodutiva, intervenção comunitária, vacinação e educação para a saúde. Mas vai enfrentar um grande desafio. Pela primeira vez, Teresa vai trocar um pouco da prática clínica pela organização e supervisão, ficando “mais ligada à gestão do projeto de saúde comunitária, organização de equipas”, mas, está certa de que encontrará tempo e meios para “manter os cuidados médicos à comunidade”.

“Ainda há muito trabalho a fazer pelos grupos mais vulneráveis”, afirma Teresa, que mantém nos seus planos continuar a “participar em missões humanitárias para garantir bens essenciais e cuidados de saúde que deveriam estar acessíveis a todos, em toda a parte do mundo, e que, infelizmente, ainda não estão”.

| 17
Na GuinéTeresa Mota é responsável por um projeto de saúde comunitária na Guiné-Bissau. © José Ferreira / AMI

CASAR PARA FUGIR

Nos Camarões, 52% das raparigas com menos de 18 anos estão sujeitas a casamento infantil. A situação de pobreza das famílias empurra-as para relações desiguais, com elevado risco de violência doméstica.

Um amor, um filho, uma casa. Yvette Sawnzy pensou que seriam a melhor estratégia para sair da casa dos pais, onde não faltavam “regras e punições”. Libertou-se de uma violência para outra, no casamento. Salvou-se. Estudou. Agora é inspiração para a irmã e outras jovens da comunidade sujeitas a violência, em relações com homens mais velhos.

Aos 17 anos, decidiu engravidar do namorado, um professor de 22 anos. Não via a relação como sendo desigual, pela idade do namorado ou por este estar numa situação de poder. “Ele era atencioso e dizia que ia cuidar de mim, isso era tudo o que importava”, recorda Yvette Swanzy. Quando a jovem anunciou a sua gravidez à família foi rejeitada. “A partir do momento em que o apoio da família acabou, ele sentiu-se à vontade para ser agressivo”, até sair de casa sozinha era proibido para Yvette. Sem ter a quem pedir ajuda, a sua libertação apenas foi possível através dos cursos vocacionais da SUSTAIN Cameroon, organização parceira da AMI, para 50 jovens raparigas noivas, que se queriam emancipar de situações de vulnerabilidade, apoiando ainda a abertura de pequenos negócios e encaminhando-as para abrigo temporário.

Segura, com a filha a seu lado, para quem sonha “um futuro muito diferente”, Yvette conseguiu fazer um curso de estética, depois veio a oportunidade de trabalhar em

outra cidade, quebrando definitivamente os laços com o ex-companheiro. Etali Akwaji, representante da SUSTAIN Cameroon, esclarece que “nos Camarões a taxa de casamentos precoces é elevada, considerando que casamento precoce ou infantil é todo aquele que acontece abaixo dos 18 anos”. Entre as jovens “o casamento é visto como uma forma de emancipação”, mas, raramente resulta, levando-as a trocar situações de carência, por outras, com violência doméstica e até exploração sexual”. Sem rede familiar, dificilmente conseguem escapar. Yvette é uma das poucas exceções, mas agora tem que enfrentar outros obstáculos que a sociedade impõe. O curso de estética está a ajudá-la a emancipar-se, mas “sempre quis fazer um curso de informática”. Inscreveu-se e a escola não deu resposta ao pedido de bolsa, o que leva Yvette a sentir que limitam as raparigas a cursos de estética e assim elas não chegam a outros, guardados para os rapazes”.

18 |
© Direitos Reservados

Consignação do IRS Doar sem Custos

A consignação do IRS permite doar a uma instituição à sua escolha 0,5% do IRS Liquidado (imposto que reverteria a favor do Estado), não tendo qualquer custo para o contribuinte.

De 1 de abril a 30 de junho, com a entrega do IRS, a seleção da entidade pode ser efetuada no IRS Automático ou na declaração de rendimentos (Modelo 3, quadro 11). Em ambos os casos é necessário indicar o tipo de entidade a apoiar, o NIPC, o tipo de consignação: “IRS” ou “IVA” ou ambas. No IRS Automático, a consignação é efetuada na área “Pré liquidação”.

Ao selecionar a Fundação de Assistência Médica Internacional (AMI) – NIPC 502744910, estará a contribuir para as missões da AMI.

28.ª Campanha de Radiografias

Se tiver radiografias antigas em casa, entregue-as numa das farmácias aderentes à 28.ª Campanha de Reciclagem de Radiografias da AMI, de 22 de abril a 13 de maio.

Desde a sua primeira edição, realizada em 1996, até ao presente, a Campanha de Reciclagem de Radiografias da AMI já permitiu a recolha de cerca 1.700 toneladas de radiografias em farmácias e hospitais.

A recuperação da prata contida nas radiografias permite evitar a deposição destes resíduos em aterro sanitário e reduzir a sua extração na natureza, assim como eliminar as nefastas consequências que resultam dessa atividade, muitas vezes realizada em países em desenvolvimento, destruindo áreas naturais e explorando as populações locais.

Linka-te aos Outros promove cidadania nas escolas

A 13.ª Edição do Linka-te aos Outros aprovou 5 projetos, com um total de 7.870 euros. As candidaturas selecionadas evidenciam-se pela promoção de atividades de voluntariado nas áreas de sustentabilidade ambiental, voluntariado e inclusão social e foram apresentadas por escolas de Aveiro, do Barreiro, de Lisboa e de Odivelas.

O prémio “Linka-te aos Outros” é uma iniciativa da AMI dirigida a todos os jovens a frequentar a escola entre o 7º e o 12º ano de escolaridade, que consiste na apresentação de propostas para resolução de problemas locais.

Desde o seu lançamento, em 2010, esta iniciativa já financiou 46 projetos num total de mais de 66 mil euros.

BREVES | 19 Nacional_
© José Ferreira / AMI

Guiné-Bissau_

Violência contra crianças talibé

De abril de 2024 a março de 2027, o projeto “Informação e Mobilização para Proteção e Ação pelas Crianças Talibé” decorre na Guiné-Bissau, para prevenir a violência contra crianças e jovens talibé, obrigadas a mendigar por falsos mestres corânicos. Embora a definição “talibé” designe crianças e jovens que estudam o Corão numa escola corânica, é recorrente observar crianças talibé obrigadas a mendigar nas ruas, quer na Guiné-Bissau, quer no Senegal, com o objetivo de angariar dinheiro para o mestre. A ONU considera esta prática análoga à escravatura.

O consórcio, liderado pela AMI, envolve os parceiros Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo Guiné-Bissau, o Instituto da Mulher e Criança e a Associação Guineense de Luta Contra Migração Irregular, Tráfico de Seres Humanos e Proteção das Crianças.

Este projeto é cofinanciado pela União Europeia.

Não há Planeta B

Decorre a segunda edição do projeto No Planet B, que promove o sentido de corresponsabilidade entre os cidadãos da União Europeia para enfrentar a crise ecológica, fomentando ações por parte das Organizações da Sociedade Civil e compromissos políticos.

O projeto “No Planet B: Bridging science and society to foster inclusive transition strategy” é desenvolvido em consórcio, liderado pela Fondazione Punto.Sud (Itália) e envolvendo os parceiros de Portugal (AMI – Fundação de Assistência Médica Internacional), Hungria (Hungarian Bast Aid ), Roménia ( Asociatia Servicul Apel ), Espanha (Fondo Andaluz de Municipios para la Solidaridad Internacional ), Alemanha (FINEP), França (ACTED) e Estónia (Mondo). Com uma duração de 48 meses, o projeto conta com um orçamento total de 6.225.516€ dos quais 767.967€ são aplicados à intervenção em Portugal. Uma ação cofinanciada pela União Europeia, no âmbito do programa DEAR (Development Education and Awareness Raising).

Ucrânia

Dois anos de guerra

Desde o início da guerra na Ucrânia, há 2 anos, a AMI fez a diferença na vida de mais de 43 mil pessoas, com um total de 252 mil euros.

Na Ucrânia, em Uzhhorod, apoiou a Clínica de Ambulatório nº 7, em parceria com a farmácia Stella Patika, da Hungria, assegurando medicamentos para 34.000 pessoas. Em Khmelnitsky, com a ZAKHYST, financiou unidades móveis com médico, psicólogo, advogado e assistente social, que beneficiaram 7.600 pessoas. Na Moldávia, com a Charity Centre for Refugees in Moldova, a AMI entregou medicamentos e kits de higiene, além de vouchers para farmácias. E na Roménia, em parceria com a Children’s Safety Service, apoiou 430 famílias ucranianas ao nível do alojamento, emprego, educação, saúde e com aulas de romeno. Em Portugal, o Centro Porta Amiga de Coimbra acompanhou 326 refugiados também a estes níveis e com aulas de português.

20 | © AMI Internacional_
© José Ferreira/AM © José Ferreira/AM

Recolha de Géneros

A recolha alimentar realizada pela AMI em março, no ALDI, permitiu angariar mais de 7 toneladas de alimentos e artigos de higiene que a instituição vai distribuir pelas famílias que apoia em Portugal.

São 11.000 produtos, organizados com a colaboração de 223 voluntários, que já estão disponíveis para colmatar as necessidades dos beneficiários da AMI. Um apoio ao qual sem estes alimentos seria difícil dar continuidade ao trabalho de intervenção social da AMI.

MEOS Solidários

Através da campanha dos MEOS do Grupo Altice Portugal, a AMI angariou, 96.338,00 euros, em 2023, para as missões de emergência na Turquia e Síria e em Marrocos, para projetos na área da saúde mental, luta contra a pobreza em Portugal e Missão Natal.

Os pontos MEO representam um importante financiamento para as instituições, sem qualquer custo para os doadores, que apenas precisam oferecer os seus pontos MEO a uma causa.

SIBS Ser Solidário

Em 2023, o SIBS Ser Solidário permitiu à AMI angariar 1.045 donativos no total de 27.021,00 euros.

O Ser Solidário pode ser acedido através da aplicação MB WAY e selecionando uma instituição. No multibanco basta selecionar ”Transferências e Débitos Diretos”, depois “Ser Solidário” e por fim a instituição beneficiária do donativo com indicação do valor a doar. O Sibs Ser Solidário é um mecanismo de doação criado pela Sibs que convida, anualmente, 20 associações a usufruírem de donativos através da rede multibanco e do MB WAY Ser Solidário.

BREVES | 21
Mecenato_
© Direitos
© José Ferreira/AMI
Reservados

AGENDA AMI

1 ABR A 30 JUN

Entrega do IRS de 2023

22 ABR A 13 MAI

28.ª Campanha de Reciclagem de Radiografias

AVENTURAS SOLIDÁRIAS 2024

• 27 OUT A 2 NOV Açores

• 26 NOV A 5 DEZ Guiné-Bissau

22 |

VOLUNTARIADO

Nacional

Lisboa

Psicólogo(a) e Enfermeiro(a) - Apoio Domiciliário

Centro Porta Amiga de Chelas Professor(a) de Canto

Centro Porta Amiga das Olaias Enfermeiro(a), Técnico(a) de Farmácia e Advogado/a

Centro Porta Amiga de Cascais

Voluntários para Acompanhamento - Férias de Crianças

Centro Porta Amiga de Vila Nova de Gaia Enfermeiro(a)

Abrigo do Porto Psiquiatra e Enfermeiro(a)

Porto

Entrega de cabazes alimentares: 18 a 22 de março; 15 a 19 de abril; 20 a 24 de maio

Oeiras

Voluntários Mercado Solidário: 2 e 13 de abril

Lisboa

Triagem de Radiografias

À Distância

Confeção de Taleigos Amigos

Teambuilding Empresarial

Peddy Paper Objectivos Desenvolvimento Sustentável

Para apresentação de propostas, por favor, contacte-nos através do e-mail: voluntariado@ami.org.pt

INFORMAÇÕES | 23 [FICHA DE CANDIDATURA ONLINE]
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.