REFLEXÕES 1984 . CAMINHOS GUINÉ-BISSAU: O PAÍS FEITO DE ESPERANÇA
. FICHA TÉCNICA
Este número da AMINotícias foi editado com o especial apoio da TRUST IN NEWS , detentora dos títulos Visão e Visão Júnior (encarte), COMPANHIA DAS CORES , LIDERGRAF e CTT - Correios de Portugal.
Autorizada a reprodução de textos desde que citada a fonte.
PERIODICIDADE Trimestral
DIRETOR Fernando Nobre
DIRETORA ADJUNTA Luísa Nemésio
“A AMI TEM UMA OBRA QUE MARCOU PORTUGAL”
. ALÉM FRONTEIRAS
FIDJUS DI CANSERA: O SACRIFÍCIO DAS CRIANÇAS TALIBÉ . EM FOCO PORTUGAL HOJE
SUBDIRETORA Ana Luísa Ferreira
EDITORA Ana Martins Ventura
REDAÇÃO Ana Martins Ventura
FOTOGRAFIA José Ferreira, AMI e DR
ILUSTRAÇÃO Alexandre Fernandes
LAYOUT E PAGINAÇÃO
Companhia das Cores – Ana Gil
IMPRESSÃO Lidergraf
EDITORA, REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO AMI - Fundação de Assistência
Médica Internacional
Rua José do Patrocínio 49, Marvila 1959-003 Lisboa
T. +351 218 362 100
E-mail: aminoticias@ami.org.pt
TIRAGEM MÉDIA 35.000 exemplares
DISTRIBUIÇÃO Visão, Visão Júnior, AMI
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DEPÓSITO LEGAL DL378104/14
DE LA VIETER NOBRE PRESIDENTE E FUNDADOR DA AMI
AMI UM SONHO...
Sim, a AMI foi um sonho que se concretizou em nome da Humanidade e de Portugal!
É-me muito difícil falar de um sonho que comigo nasceu: ser médico um dia e cuidar dos mais necessitados no meu hospital no mato algures em África onde nasci. Fui médico, e sempre serei, com tudo o que tal implica ou deveria implicar (compaixão, empatia, ética e conhecimento holístico), mas acabei por nunca ter o meu hospital no mato salvo pontualmente em Lugadjole, no sector do Boé na Guiné-Bissau, onde operei em condições muito precárias, mas salvando vidas: foi aí que fui feliz!
Os 40 anos da AMI, que tenho o orgulho de ter fundado e a qual presido há 40 anos, estão sumariamente descritos nesta revista. Mais importante do que os números é o Amor com que todos os AMIs se entregaram à missão desta casa e os exemplos de coragem, resistência e resiliência recolhidos junto dos mais carenciados no Mundo, e em Portugal também.
Graças a eles todos, a AMI nunca desistiu da sua missão, da sua Ação contra a Indiferença. A Intolerância, a Indiferença, e hoje acrescento a Ganância, são as piores doenças que a Humanidade sempre enfrentou e continua a enfrentar… Até quando?
Com todos vós, que acreditastes, demonstrámos o que sempre acreditei: com Amor pelos outros e ética nas nossas ações, não há obstáculo inultrapassável, não há montanha inacessível e não há fortaleza inexpugnável!
Assim o demonstrou a Ação da AMI em todos os continentes e em mais de oito dezenas de países do nosso Mundo, Mundo esse que começa, penso eu, a vislumbrar enfim uma nova alvorada!
Estou seguro que a nova geração que se prepara para conduzir o destino da AMI, ainda que a AMI seja apenas uma gota de esperança, continuará a respeitar o seu legado tendo como pilar essencial o Amor pelo outro, sempre nosso semelhante!
Só assim, o sonho continuará e comandará o seu destino como contributo para um Mundo melhor.
Há 40 anos a AMI abria portas com a missão de lutar contra a pobreza, a exclusão social, o subdesenvolvimento, a fome e as sequelas da guerra, em lugares esquecidos. O mundo, em transformação, conflito e fome, precisava de mais empatia. A AMI abraçou a missão.
Era 1984, um Portugal em recessão, cotado como o país mais pobre da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), com uma inflação próxima a 30%, contrastava numa Europa de economia em crescimento, que acompanhava a tendência mundial dos países desenvolvidos. Mas, além do cenário vivido em Portugal, abaixo do limiar da pobreza, vivia metade do mundo afetado por conflitos políticos e bélicos e catástrofes naturais. Aproximava-se um novo milénio que exigia uma atuação mais humana entre povos, colocando à prova fé, empatia e solidariedade planetária.
No coração de Lisboa, a AMI abria portas, na Avenida Almirante Gago Coutinho. As duas salas ocupadas num edifício partilhado com outras organizações, por uma equipa de três elementos voluntários, liderada por Fernando Nobre, não faziam prever a estrutura que hoje apresenta, com perto de 240 colaboradores.
Nascida na Bélgica, a ideia para fundar a AMI desceu a Europa até Portugal, trazendo o ser humano no centro de todas as preocupações. O objetivo: lutar contra a pobreza, a exclusão social, o subdesenvolvimento, a fome e as sequelas da guerra, nos lugares mais esquecidos.
A AMI dava assim os primeiros passos em ano de profundas transformações mundiais e nacionais. Do outro lado do Atlântico, Ronald Reagan era reeleito Presidente dos Estados Unidos e a Apple lançava o computador Macintosh, que viria a revolucionar a história da computação e das novas profissões.
Pelo velho continente assistia-se ao EURO, sendo França a anfitriã. E as vibrações de Ayrton Sena impressionavam na sua estreia na Fórmula 1.
No mês em que emocionadamente evocavam-se dez anos do 25 de Abril, Portugal recebia a visita do primeiro-ministro da França, Pierre Mauroy, e da primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, símbolo do apoio definitivo para a entrada do país na Comunidade Económica Europeia que viria a ocorrer em 1986, já sob o signo da designação União Europeia. Nascia uma Era de democracia e profundo desenvolvimento social.
Dos Jogos Olímpicos, realizados em Los Angeles, Carlos Lopes trazia o ouro, conquistado ao vencer a maratona com recorde mundial. Rosa Mota e António Leitão regressavam também eles, com medalhas de bronze. Ano de conquistas políticas e sociais, 1984 ficou também na história nacional pela perda de grandes vultos. Morreu o poeta da Desfolhada Portuguesa. Ary dos Santos partia aos 47 anos, depois de acordar o país dizendo “Não me digam mais nada senão morro / aqui neste lugar dentro de mim / a terra de onde venho é onde moro / o lugar de que sou é estar aqui”. No mesmo ano, Portugal perdia o reconhecido ciclista, Joaquim Agostinho e Nuno Rodrigues dos Santos, histórico democrata português.
Um Médio Oriente em conflito envolvia o mundo, com aquelas que viriam a ser conhecidas como a Primeira Guerra do Líbano, a guerra Irão-Iraque e a guerra civil do Afeganistão. Na Ásia, a Índia perdia a voz da primeira-ministra Indira Gandhi.
No continente africano, a grande fome na Etiópia, provocada pela seca, afetaria oito milhões de pessoas levando à morte mais de um milhão. Primeira crise humanitária mediatizada, através de reportagens da BBC que, de forma histórica e determinante contribuiriam para uma mobilização mundial, em 1985, que levaria ao envolvimento do Reino Unido, Alemanha, Polónia, EUA e Rússia, aos quais se uniram donativos de milhões de pessoas através do concerto Live-Aid, realizado em Londres.
Na Nigéria caía o regime democrático, um exemplo para outros países africanos, sendo ainda hoje, uma das maio-
Atenta às crises sociais e humanitárias, a AMI planeou a sua atuação em missões disruptivas e projetos desenvolvidos em parceria com organizações locais.
res democracias do mundo com 200 milhões de habitantes. O Chade enfrentava uma guerra civil, enquanto o Brunei se tornava um país independente e o Alto Volta mudava o nome para Burkina Faso.
Atenta às crises sociais e humanitárias, a AMI planeou a sua atuação em missões disruptivas e projetos desenvolvidos em parceria com organizações locais que influenciaram gerações na Guiné-Bissau, Cabo Verde, Índia, São Tomé e Príncipe, Jordânia, Afeganistão, Angola, Ruanda, Moçambique, Timor-Leste, Sri Lanka, Haiti, Ucrânia, Marrocos, Síria, Palestina e em Portugal.
O bom plano, que Fernando Nobre nunca pensou que crescesse tanto. Sem nada perder dos valores fundadores, muito seria conquistado para concretizar o idealizado mundo da empatia, ao longo de 40 anos e depois de 15 equipamento e respostas sociais em Portugal, mais de 66 missões de emergência e 460 projetos em 82 países. .
Primeira missão AMI – Guiné Bissau.
Primeira missão de Emergência da AMI – São Tomé e Príncipe.
Fatumata Baldé recorda a chegada da AMI a Bolama num tempo em que as ONG internacionais ainda estavam longe, daquela ilha.
GUINÉ—
TEXTO ANA MARTINS VENTURA FOTOGRAFIAS JOSÉ FERREIRA / AMI
O PAÍS FEITO DE ESPERANÇA BISSAU
A AMI e a Guiné-Bissau seguem um caminho de união que perdura há 38 anos. Do trabalho conjunto resultou um precioso conhecimento sobre cooperação para o desenvolvimento que, a cada ano, permite conquistas na saúde, educação, ambiente e cultura.
Fatumata, João e Mustafá representam mais do que memórias da AMI, representam uma geração que não desistiu do seu país e de o reconstruir com esperança. Viram familiares e amigos perecerem e a resiliência esculpiu-lhes o perfil.
Fatumata Baldé e João Mané são a alma da AMI em Bolama, no lugar onde continua a mais antiga missão da fundação na Guiné-Bissau: o compromisso para que nunca falte a entreajuda e a defesa dos direitos humanos. Zeladores, acompanharam a corrente de projetos da AMI em Bolama e receberam “equipas de médicos e enfermeiros e de voluntários da Aventura Solidária, sem os quais teria sido impossível manter postos de saúde e escolas”, em cerca de 20 missões. Comerciante, Fatumata Baldé já vivia em Bolama quando a primeira equipa da fundação ali chegou em 2000, mas naquela época a antiga casa recebia a Associação Cabaz Garandi e já poucos guardavam a memória de ali ter funcionado a Câmara Municipal de Bolama. Eram tempos difíceis para a região, “ainda nenhuma ONG internacional se tinha estabelecido em Bolama e havia muitas doenças que a população não conseguia controlar, as famílias tinham muitas dificuldades”. João Mané chegou em 2009, depois de em S. João, na região de Quinara, ter trabalhado com a AMI a “organizar a população num projeto de hortas comunitárias que emancipou mulheres, numa época em que queriam fazer mais, mas nem ferramentas tinham”. Hoje, o ancião guarda quem passa pela missão da AMI. Também Mustafá Sambú faz parte desta história que a sul do país desenvolveu laços de irmandade. Acompanhou todos os passos da AMI, desde a sua chegada às regiões de Bolama e Quinara, e ajudou a contruir postos de saúde no Uato Fula, Madina, Casabopa, Gã-Bacar, Bercolom, Ilha das Galinhas,
Ametite, Ambancana, Ancano. A partir da sua tabanca no Uato Fula, em Bolama, conseguiu medir as urgências do mundo. “O mais importante é cuidarmos uns dos outros e é com esse lema e o trabalho de organizações como a AMI que tem sido possível recuperar a Guiné-Bissau”. Eles contam parte de uma história que continua a ser escrita, mas começou muito antes, em Lugadjole, no setor no Boé. Lugar de mística onde a alma coletiva da AMI cresceu, a partir de um hospital que fez a diferença onde nunca ninguém se atrevia ir.
A saúde de norte a sul Em 1987, as populações das áreas mais distantes de Bissau continuavam isoladas e sem acesso a cuidados de saúde. No setor do Boé a situação era ainda mais alarmante. Confiante na equipa que havia reunido três anos antes para fundar a AMI, Fernando Nobre colocou no terreno a primeira missão na Guiné-Bissau. Alguns dias depois, “começaram a chegar cada vez mais doentes a Lugadjole, terra em tempos indicada para capital da Guiné-Bissau. As pessoas vinham dos mais diferentes pontos do país, mas também da Guiné-Conacri e do Senegal”, recorda o presidente da AMI. O destino e a ousadia uniram a Guiné-Bissau e a AMI numa missão com 38 anos e 25 projetos desenvolvidos em Gabú, Bafatá, Bissau, Quinara, Tombali e Bolama, a partir dos quais já resultaram mais de 30 missões e um investimento de cerca de 8 milhões de euros.
PROJETOS DESENVOLVIDOS
PELA AMI NA GUINÉ-BISSAU, RESULTARAM EM MAIS DE
MISSÕES
A Lugadjole seguiu-se, em 1998, a missão de emergência em Gabú para prestar socorro às vítimas e deslocados da guerra civil, tendo a AMI sido a primeira ONG humanitária internacional a entrar no país através do posto de fronteira em Pirada, na fronteira com o Senegal.
António Nunes desempenhou funções como adido do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua (Camões, I.P.) na Guiné-Bissau e acompanhou o trabalho desenvolvido em parceria com a AMI.
“Quando as ONGD têm uma certa maturidade percebem que o enfoque em países como a Guiné-Bissau não pode ser de assistencialismo, mas de desenvolvimento. A AMI percebeu essa dinâmica e trabalha numa ótica de parceria, junto das comunidades e das instituições do Governo e leva ainda muito conhecimento para Portugal”, afirma o ex-adido para a Cooperação.
Depois de Lugadjole, Gabú e Bissau, mantendo o lema de ir onde mais ninguém consegue ir e trabalhar em proximidade com as comunidades, no iní-
questão de sensibilização para algo de mau que possa acontecer e que aos poucos vai mudando nas comunidades”.
A ilha destemida
O trabalho da AMI em Bolama começou nas tabancas, com cuidados básicos de saúde, em particular na saúde materna e infantil, nutrição e sensibilização sobre cuidados para a contenção de surtos de paludismo.
cio dos anos 2000 a AMI chegou às regiões de Bolama e Quinara, com o plano de criar infraestruturas, prestar assistência médica e medicamentosa e de enfermagem, formar recursos humanos e promover a saúde através da educação cívica e associativismo. Em 2014, o projeto Guiné-Bissau: Criação e manutenção da rede de Agentes de Saúde Comunitária (ASC) na educação para a redução da mortalidade materno-infantil, surge em Quinara depois do governo da Guiné-Bissau ter definido como prioritárias as intervenções comunitárias, para diminuir a mortalidade materna e infantil. Uma meta possível de concretizar a partir da parceria entre a UNICEF e a AMI, com o objetivo de aumentar a literacia em saúde, através da sensibilização sobre vacinação de crianças e consultas pré-natal. Em 2018, renova-se o trabalho em saúde comunitária, através do projeto Intervenções de Alto Impacto: Saúde Comunitária na região de Quinara, desenvolvido em parceria com a UNICEF e inserido no Plano Operacional de Passagem à Escala Nacional, com o objetivo de promover o acesso à saúde por parte de mulheres grávidas, crianças menores de cinco anos e jovens.
Para o ex-adido da Cooperação portuguesa na Guiné-Bissau, os resultados que vierem a ser conquistados com o Programa de Saúde Comunitária estão relacionados com “não aplicar receitas que podem resultar num bairro de Lisboa, mas não resultam numa comunidade da Guiné-Bissau”. António Nunes está confiante no caminho que as ONGD estão a percorrer na Guiné-Bissau. No percurso da AMI destaca sobretudo a saúde comunitária e o projeto Papia Ku Mi desenvolvido em Bolama. Projetos que incidem sobre “uma questão de sofrimento que se quer debelar e uma
Um plano desenvolvido de 2000 a 2013, após a assinatura de um protocolo com o Ministério da Saúde, para a intervenção humanitária em Bolama. Foram contruídos postos de saúde, recuperadas antigas instalações militares convertidas no Hospital Regional de Bolama (hoje Hospital Solidariedade de Bolama) e ao abrigo dos projetos Saúde em Ação, Saúde em Rede e Higiene em Ação, foi dada formação a profissionais de saúde e líderes comunitários sobre cuidados de saúde e higiene, gestão de resíduos, cidadania e direitos humanos.
Com o Hospital Solidariedade de Bolama é mantida até hoje uma colaboração constante, sendo aquele o único equipamento de saúde avançada numa região constituída por 88 ilhas, das quais 20 são habitadas pelos cerca de 33 mil habitantes da região.
João Mané ajudou a emancipar mulheres através da agricultura.
Celeste Mendonça assumiu a missão de lutar contra tabus ao lado dos mais jovens.
Malan Fati, administrador regional de saúde de Bolama destaca, “o projeto de recuperação da canalização do Hospital Solidariedade de Bolama, realizado pela AMI, com o apoio do Camões, I.P. que proporcionou mais condições de higiene e salubridade”. Antes do projeto não havia água, “os pacientes, ou os seus familiares tinham de trazer a água para consumo, higiene e tratamentos de saúde”, algo impensável num equipamento hospitalar.
Mantendo o foco na saúde materna e infanto-juvenil, em 2021 a AMI lançou em Bolama o projeto Papia Ku Mi (Fala Comigo, na tradução do crioulo guineense para português), sobre saúde sexual e reprodutiva. O projeto surgiu após dados preocupantes serem veículados através do Plano Nacional de Desenvolvimento da Saúde (PNDS). Em 2017, a taxa de mortalidade materna na Guiné-Bissau era de 900 por cada 10.000 nados vivos, devido a causas relacionadas com a reprodução, como a mutilação genital, sexualidade, gravidez e parto.
Desenvolvido em parceria com a Direção Regional de Educação, a Direção Regional de Saúde de Bolama e a Rádio Pro-Bolama, o projeto contou com apoio e financiamento do Camões, I.P. e do Fundo das Nações Unidas para a População e com o trabalho de 22 ativistas, chegou aos mais de 5 mil habitantes da ilha de Bolama. Além das conversas que traduziam a essência do projeto desde o seu nome até à execução, o Papia Ku Mi permitiu aos jovens acesso a métodos contracetivos.
A enfermeira Celeste Mendonça teve uma participação estratégica no Papia Ku Mi como conselheira e formadora de professores, ativistas e amigos informados, jovens que organizavam sessões nas comunidades e nas escolas.
Depois do Papia Ku Mi garante Celeste Mendonça que “registaram-se grandes mudanças nos jovens de Bolama, porque a maior parte dos comportamentos errados eram fruto da falta de conhecimento e havia muito constrangimento em falar sobre estes temas”. Outros temas estavam também envoltos em grande tabu, como “a mutilação genital feminina e a violência contra as mulheres”.
Celeste Mendonça gostava que “a AMI continuasse com o Papia Ku Mi”, e recorda histórias como a de “um imame de S. João que, depois de uma sessão dos ativistas sobre mutilação genital feminina na sua comunidade, garantiu que, o costume herdado dos avós ia terminar na sua geração”.
Sana Cassamá faz da Esperança de Bolama o eco do ativismo. É diretor de informação desta rádio comunitária, fundada em 2017 com apoio da Associação Pro-Bolama e da AMI, onde transmitiu muitos programas do Papia Ku Mi lado-a-lado com Celeste Mendonça.
“O sucesso do Papia Ku Mi foi inquestionável”, afirma Sana Cassamá que viu crescer um movimento com “impacto na consciência sobre a gravidez precoce, sobretudo” e para quem “a AMI é parceria incontornável da Associação Para o Desenvolvimento de Bolama (Pró-Bolama)”.
É o historiador e associativista Flaviano Monteiro quem guarda a memória da união que começou em 2015. “O projeto Crescer com Futuro, para a recuperação do parque infantil de Bolama e concretizado em 2016 foi o primeiro da associação a ser realizado com apoio da AMI”, mas Flaviano destaca ainda a “formação para os radialistas da Rádio Esperança de Bolama e a recuperação da casa onde hoje funciona a rádio”.
Atualmente, o projeto IMPACT-GB (Informação e Mobilização para Proteção e Ação pelas Crianças Talibé na Guiné-Bissau) representa o novo horizonte da AMI no país. Até 2027, está centrado no ativismo sobre a exploração de crianças em condições de vida vulneráveis nas regiões de Gabú, Bafatá e Bissau. .
Sana Cassamá e Flaviano Monteiro mantêm de portas abertas a Associação Pro-Bolama e a Rádio Esperança de Bolama.
A MISSÃO DA SAÚDE NA GUINÉ-BISSAU DE ENFERMEIROS
JOSÉ FERREIRA / AMI
TEXTO
ANA MARTINS VENTURA FOTOGRAFIAS
A Guiné-Bissau ainda terá um longo caminho a percorrer rumo à sua autonomização nos cuidados de saúde. As distâncias entre as comunidades e centros de saúde ou hospitais continuam a ser intransponíveis para grávidas e crianças e a medicação disponível não é suficiente para tratar surtos de paludismo e a incidência de HIV e tuberculose. Mas o Governo da Guiné-Bissau, AMI e UNICEF uniram esforços num Programa de Saúde Comunitária, cuja força maior são voluntários.
CORAÇÃO
Sem formação em saúde, mas conhecedores das gentes das suas comunidades, 1.470 Agentes de Saúde Comunitária, homens e mulheres, patrulham a Guiné-Bissau como enfermeiros de coração, no âmbito do Programa de Saúde Comunitária. Implementado no país através das direções regionais de saúde, Ministério da Saúde Pública, UNICEF e AMI, o programa tem como missão melhorar o acesso a cuidados de saúde por parte de grávidas e crianças menores de cinco anos, através de serviços de proximidade, essenciais num país com apenas seis hospitais públicos. A rede de tabancas monitorizadas é extensa, entre as regiões de Bafatá, Gabú, Quinara, Tombali e Bolama cobre uma área superior a 24.000 km2 a que as direções regionais de saúde não conseguiriam chegar sem o financiamento que a UNICEF, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Ministério da Saúde Pública recebem do Fundo Mundial de Combate à SIDA, Tuberculose e Malária, em diferentes fases do Programa de Saúde Comunitária. Atualmente, a UNICEF gere a aquisição de medicamentos, ficando a cargo da AMI o investimento na gestão de pagamentos aos Agentes de Saúde
Comunitária, realização de reuniões de coordenação e melhoria na gestão de stocks de medicamentos e equipamentos de saúde.
A enfermeira Cunna Mendes, delegada adjunta regional de saúde de Bolama, trabalha diretamente com a AMI no âmbito do Programa de Saúde Comunitária da Guiné-Bissau. Cabe ao organismo que representa coordenar a implementação de todas as atividades do programa, inclusive as dos Agentes de Saúde Comunitária. Na ilha que já foi capital da Guiné-Bissau e onde, hoje, a história se apaga entre património em ruínas e gerações à espera que o país desperte e cresça, “os agentes de saúde comunitária representam a melhor forma de
prevenção de doenças. Só na região de Bolama, acompanham o estado de saúde de 6.325 crianças”.
A pé ou de mota, os enfermeiros de coração vão muitas vezes além do impossível, para chegar às tabancas mais isoladas por estradas que transformam 10 quilómetros em 50. Chegam de pasta na mão e com um ‘bom dia’ de esperança para quem a cura estaria à distância de um simples paracetamol que teima em não chegar.
A atuação ao nível da saúde comunitária foi crescendo traçando-se assim a história do que levou ao atual Programa de Saúde Comunitária em que trabalham 50 responsáveis de área sanitária (RAS); 58 técnicos de saúde (TS/SOT); cinco pontos focais de saúde comunitária; 1470 agentes de saúde comunitária (ASC) e cinco responsáveis do Centro de Compra de Medicamento (CECOME).
Para a enfermeira Cunna Mendes não há dúvidas, nos últimos anos, “na saúde materna, os resultados são particularmente destacáveis. Com o trabalho de mapeamento da saúde nas comunidades, feito pelos agentes, as gravidezes acompanhadas começaram a ser cada vez mais”. Atualmente, 98% das grávidas de Bolama fazem o parto no centro de saúde.
53,8% DOS PARTOS NA GUINÉ-BISSAU SÃO ASSISTIDOS POR UMA PESSOA TREINADA APENAS
Mamadu Baldé, Agente de Saúde Comunitária, afirma que o difícil acesso aos centros de saúde deixa as grávidas em risco de vida.
Com uma organização hierárquica complexa, mas de bons resultados, Cunna Mendes destaca que, uma das grandes prioridades atuais do Programa de Saúde Comunitária é a vacinação. Em Bolama, região sobre a qual tem conhecimento, a enfermeira destaca “o programa de vacinação para o sarampo e rubéola com um só antigénio a ser aplicado pela primeira vez em 6.325 crianças”. Uma campanha de vacinação inédita, que exigirá um trabalho intenso na identificação, registo e monitorização das crianças a vacinar, pois, habitualmente, “os 20 agentes de saúde comunitária da região de Bolama acompanham cerca de 2.500 crianças e mantêm ainda outras profissões e ocupações nas comunidades, assim como o cuidado às suas famílias”.
Estratégias
além dos hospitais
Para levar a bom porto a sua missão, os agentes de saúde comunitária devem levar sempre nas suas maletas um pacote curativo e um pacote preventivo. “Os pacotes preventivos permitem fazer a sensibilização das comunidades sobre a prevenção de doenças”, explica a enfermeira Cunna Mendes.
Na saúde materna, os resultados são particularmente
destacáveis, com o trabalho de mapeamento da saúde nas comunidades, feito pelos agentes, as gravidezes acompanhadas começaram a ser cada vez mais.
Enquanto “os pacotes curativos permitem-lhes fazer o Teste de Diagnóstico Rápido do paludismo a crianças menores e maiores de cinco anos”. Desde 2020 que a direção regional de saúde de Bolama também tem reforçado a sua atuação na erradicação do paludismo. Com a aplicação de profilaxia preventiva a crianças menores de cinco anos confirmou-se a “redução acentuada dos casos de paludismo nas crianças menores de cinco anos”. Atualmente, a direção regional de saúde está a investir num programa de erradicação do paludismo mais alargado, que inclui crianças dos três meses aos 10 anos”. Para monitorizar os níveis de nutrição nas crianças, “os Agentes de Saúde Comunitária também transportam sempre consigo um Pacote de Nutrição, que permite verificar se
existe desnutrição moderada, através da medição do braço com a fita MUAC [Circunferência Braquial]”, que tem três níveis (verde corresponde a uma boa nutrição, amarelo ao início de desnutrição e vermelho a desnutrição grave.
O difícil acesso a uma alimentação completa e cuidados de saúde para administração de suplementos alimentares, reflete-se nos indicadores de saúde infantil da Guiné-Bissau. No Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário 2023-2028 da Guiné-Bissau faltam indicadores sobre a prevalência de desnutrição crónica em menores de cinco anos, assim como não existe valor apurado sobre a percentagem de peso à nascença.
A enfermeira Cunna Mendes destaca a vacinação como uma prioridade da Saúde Comunitária.
ENF. CUNNA MENDES
A jovem mãe Mariama Djaló vive distante do Hospital Regional de Buba, por isso vigia a saúde dos filhos nas visitas do Agente de Saúde Comunitária.
A aposta no aconselhamento a nível alimentar também tem sido elevada, “mas sabemos que a situação económica das famílias impede que sigam uma boa alimentação”, assume Cunna Mendes.
De frente para a ilha de Bolama, em Buba, Mariama Djaló recebe “com grande felicidade” a visita do Agente de Saúde Comunitária Mamadu Baldé que vem verificar como está a saúde das crianças da tabanca Mãe de dois meninos, um com cinco anos e outro com seis meses, “nas gestações o Agente de Saúde Comu-
nitária ajudou muito a manter o contacto com o hospital e estar mais acompanhada pelo médico”. Sozinha nunca conseguiria aceder a cuidados de saúde materna, “o Hospital Regional de Buba fica a 20 quilómetros, não tenho como lá chegar sozinha”, queixa-se a jovem mãe. O rácio de mortalidade materna na Guiné-Bissau é de 746 por 100.000 nados vivos. Até 2028, o Ministério da Saúde Pública tem a meta de baixar as perdas de vida para 500 por 100.00 nados vivos, mas “o difícil acesso a centros de saúde e hospitais coloca
muitas grávidas em risco de morte”, refere Mamadu Baldé. Distâncias que conduzem a outros números muito preocupantes na saúde materna, pois na Guiné-Bissau apenas 53,8% dos partos são assistidos por uma pessoa treinada.
Mamadu Baldé acompanha 55 famílias desde 2014, em cinco tabancas da região de Buba, incluindo a de Mariama e, garante, “uma das maiores dificuldades dos agentes de saúde comunitária tem sido proporcionar medicação aos pacientes que sinalizam para acompanhamento, seja num centro de saúde, hospital ou em casa”. O agente destaca “a medicação para o tratamento de pneumonia, por exemplo, que os centros de saúde costumam enviar pelos agentes e está a faltar desde 2023”. Com tabancas a 20 quilómetros de distância de um centro de saúde (a região de Quinara não tem hospital) “percorrer um longo caminho a pé e com febre é quase impossível”, lamenta Mamadu Baldé. A leste de Buba, em Gabú, os desafios da saúde comunitária agravam-se com a elevada incidência de HIV e tuberculose e muitas mulheres com gestações não sinalizadas e acompanhadas. Ucacaru da Silva, responsável do Centro Materno Infantil (CMI) de Gabú, gere a atuação de 100 Agentes de Saúde Comunitária dedicados apenas à saúde materna e infantil, com “uma vasta importância, porque têm sido eles o ponto de contacto com as comunidades mais distantes”. No segundo melhor CMI do país, são garantidos serviços de vacinação, consultas de pré-natal e pediátricas, há um departamento de planeamento familiar, um serviço para tratamento de doentes HIV, uma farmácia e um laboratório. Ali todos os dias são atendidas cerca de 60 grávidas, mas Ucacaru da Silva assume que “o CMI
Medir o nível de nutrição das crianças com a fita MUAC é uma das funções dos Agentes de Saúde Comunitária.
UATO FULA, A TERRA ONDE A SAÚDE É UMA
QUESTÃO COMUNITÁRIA
Mustafá Sambú foi ao lado de Fernando Nobre um dos precursores da atuação da AMI em saúde comunitária na Guiné-Bissau, como voluntário e como beneficiário. “Agarrou a oportunidade que a AMI lhe apresentou e mudou a vida e o futuro dos seus filhos”, recorda o presidente da AMI.
de Gabú teria capacidade para mais atendimentos se mais consultórios estivessem equipados”, para já tem uma equipa de nove enfermeiros, seis parteiras e três médicos.
Em proximidade com Ucacaru da Silva, o enfermeiro Eliseu Pereira trabalha como técnico regional de saúde de Gabú, no âmbito do Programa de Saúde Comunitária. Das suas funções faz parte a gestão da totalidade dos 533 agentes de saúde comunitária da região, que “assumiram um papel muito importante onde se registava elevada mortalidade materno infantil e incidência de HIV”.
Para que estes objetivos fossem alcançados com sucesso, “os Agentes de Saúde Comunitária da região de Gabú foram segmentados nas categorias generalista, responsável pela monitorização da saúde nas comunidades e diferenciado, que realiza o seguimento de HIV e tuberculose”, explica Eliseu Pereira. Anos depois do Programa de Saúde Comunitária chegar ao terreno, o enfermeiro não tem palavras para descrever o que se verifica no terreno, “os índices de gravidez não acompanhada e a incidência de HIV também começam a diminuir”. .
Para o eterno voluntário, a AMI mudou muito mais do que o futuro dos seus filhos, “mudou o futuro de uma geração inteira, com o acesso a tratamentos de saúde, a alimentação adequada e mais educação”. Um plano que levou anos a ficar operacional. É na sua tabanca, no Uato Fula, na ilha de Bolama que Mustafá Sambú a todos recebe de sorriso rasgado, andar descontraído de largas passadas, não fosse ele um herdeiro da altura e majestade da etnia biafada. Traz a t-shirt da AMI vestida como se preciso fosse colocar o voluntário em ação sempre e a qualquer momento. Rodeado pela família e vizinhos, Mustafá afirma: “o que a AMI representou no Uato Fula, no tempo em que
se morria por beber água e por não beber”. Mustafá vai apontando para o poço, para a escola, para a casinha onde costumava funcionar o posto de saúde e para a casa onde irá formar uma nova associação para agricultores. “Tudo aqui no Uato melhorou com a presença da AMI, a saúde, a frequência das crianças na escola, a alimentação com plantações mais diversas, com cenouras, tomate, nabiças, mais frutas”. Mas, “vamos à história” conduz Mustafá.
Entre os muitos ofícios que tem, pedreiro é uma das artes aprendidas por Mustafá Sambú: “numa terra com tantas dificuldades temos que ser diplomados em vários ofícios”.
NA ROTA DA SAÚDE COMUNITÁRIA
GUINÉ-BISSAU
BISSAU
LEGENDA
Hospital Regional
Centro Materno Infantil
Centros de Saúde Tipo A : Centros de saúde avançados, semelhantes a estrutura hospitalar
Centros de Saúde Tipo B: Centros de saúde com equipas de médicos, enfermeiros e secretários clínicos
Centros de Saúde Tipo C: Centros de saúde apenas com enfermeiros
ASC – Agentes de Saúde Comunitária
Famílias
Além do ofício que o levou a construir postos de saúde e escolas, da sua vida faz parte a arte de plantar, não fosse ele um agricultor de arroz e lavouras de amendoim, depois vem a pesca e a caça. Não faltou ainda tempo para ser o professor e voluntário que, em Bolama, ajudou a levar conhecimento sobre saúde a várias tabancas. “Andava por Buba a construir um posto de saúde quando um homem se aproximou e perguntou o que estava a fazer, era o presidente da AMI”. Mustafá explicou que “o posto de saúde em Buba era o ponto para que enfermeiros ali pudessem prestar cuidados de saúde básicos”.
Impulsionado pela dedicação de Mustafá às comunidades, Fernando Nobre propôs: “e se construísse mais seis postos de saúde?”. O desafio foi aceite e surgiram postos em Uato Fula, Madina, Casabopa, Gã-Bacar, Bercolom, Ilha das Galinhas, Ametite, Ambancana, Ancano.
Postos de saúde construídos, começou a sensibilização nas comunidades para a identificação de surtos epidémicos e estratégias para os evitar, ou conter. E Mustafá Sambú transformou-se em agente de saúde comunitária. .
Fonte: AMI/ Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário da Guiné-Bissau 2023-2028
Teresa Mota, médica da AMI na Guiné-Bissau, é apaixonada pela prática clínica em proximidade com as famílias, mas não nega a sua veia de gestora e criadora de projetos que a levou a aceitar o desafio de gerir o Programa de Saúde Comunitária nas regiões de Bolama, Quinara, Tombali, Bafatá e Gabú. A ação humanitária sempre esteve nos seus planos de vida e na fundação encontrou a oportunidade para se dedicar à causa que defende: o direito à saúde.
SEM A
DAINTERVENÇÃO AMI E UNICEF NA SAÚDE A
GUINÉ-BISSAU NÃO TERIA RECURSOS
Como se reflete a influência do Programa de Saúde Comunitária nas comunidades?
Devido à falta de recursos humanos na Saúde, às distâncias e ao difícil acesso das populações aos centros de saúde, já nem falo do acesso a hospitais, houve uma necessidade de criar um sistema de saúde mais próximo da população - o Programa de saúde Comunitária - formando líderes reconhecidos dentro das comunidades para atuarem como agentes de saúde comunitária.
Do trabalho dos agentes faz parte a monitorização de pacientes com paludismo, registando os seus sintomas e encaminhando-os para um centro de saúde, ou para o Hospital Simão Mendes, em Bissau.
Dessa forma, fazendo uma primeira abordagem com um kit de cuidados médicos, os Agentes de Saúde Comunitária contribuem para conter problemas mais graves que podem surgir se os doentes não forem tratados atempadamente de sintomas simples a início, para os quais um paracetamol pode fazer a diferença e tantas vezes não está disponível.
Que desafios enfrenta a gestão de um programa do qual dependem milhares de pessoas para o acesso a cuidados de saúde?
A AMI neste momento gere o Leste e o sul da Guiné-Bissau dentro do Programa de Saúde Comunitária. Tem um papel de apoio à gestão das direções regionais de saúde, sendo responsável por gerir uma equipa de sete técnicos distribuídos pelas regiões e que, por sua vez, gerem os Agentes de Saúde Comunitária e a informação que estes recolhem nas comunidades que monitorizam. São poucos recursos, mas eles têm feito um trabalho do qual me orgulho muito. Porque fazemos algo muito difícil com pouco.
Sem a intervenção da AMI, UNICEF e Associazione Italiana Amici di Raoul
Por mais que trabalhemos nos programas da saúde,se não trabalharmos na educação, infraestruturas e segurança, de nada vai adiantar.
Follereau (AIFO) na saúde, a Guiné-Bissau não teria recursos suficientes para manter um programa de saúde comunitária com esta dimensão.
Das direções regionais de saúde que informação chega sobre o estado da saúde na Guiné-Bissau?
A gestão do stock de medicamentos que depois são distribuídos para as áreas sanitárias é onde o Programa de Saúde Comunitária tem registado maiores dificuldades.
Sobre o acesso a cuidados de saúde nas regiões, a informação que nos tem chegado é que não tem sido fácil a vacinação, porque o acesso a centros de saúde é difícil.
Existem também muitos partos em casa e não referenciados nos centros de saúde. E nessas situações o papel dos Agentes de Saúde Comunitária é fundamental, para explicar às famílias a importância de um parto acompanhado por profissionais qualificados para o fazer. Mas, claro, não podemos esquecer as distâncias a que as comunidades mais remotas estão dos hospitais. Temos como exemplo as regiões de Gabú e Bafatá onde se registam distâncias de 40 a 50 quilómetros que nos podem parecer ultrapassáveis, mas não o são quando não existem estradas adequadas, nem meios para os pacientes se deslocarem. Temos também um país com várias etnias e diferentes religiões, onde
muitas decisões que afetam a saúde têm a ver com as crenças que têm de ser trabalhadas e é possível fazê-lo.
Os desafios da Guiné-Bissau são muito grandes ao nível da saúde e em muitas áreas a ela ligadas, como a educação e o ambiente, que caminho está a ser percorrido rumo à autonomização do país?
Na Guiné-Bissau há vários pilares fundamentais que estão danificados, vamos dizer assim. Portanto, se eles não estão a funcionar é como a construção de uma casa, vai ruir. É preciso trabalhar todos os pilares e não só a saúde. Por mais que trabalhemos nos programas da saúde, se não trabalharmos nos outros programas da Guiné-Bissau - educação, melhores infraestruturas, segurança - de nada - vai adiantar, a saúde nunca vai estar da forma como gostaríamos. Não podemos esquecer que estamos num país com um dos índices de desenvolvimento mais baixos do mundo e por mais que as organizações façam um bom trabalho, quando se retiram é sempre complicado mantê-lo. No caso da saúde ela é maioritariamente financiada por agentes internacionais. Era importante haver uma força maior da Guiné-Bissau para que consiga definir metas e um dia concretize a autonomização. .
A AMI tem uma obra que marcou Portugal
FERNANDO NOBRE
Fernando Nobre assume-se como um médico humanitário que tinha apenas o sonho de levar Portugal ao mundo. E depois de 40 anos de AMI no mundo, ainda traz na mão a bandeira da verdade, olhos nos olhos, e da democracia, “papoila frágil que todos devemos proteger”. Lutou e continua a lutar pela AMI que, mais do que um conjunto de estatutos ou um escritório, é “uma alma coletiva” que mudou a vida de milhares de pessoas. As memórias do cirurgião que se dedicou de corpo e alma às missões realizadas em mais de 80 países, entrelaçam-se com a história da AMI. E pensar que tudo começou com uma reportagem... Esse episódio, tantas vezes recordado, continua a representar um dos seus lemas, “tudo na vida é consequência de pequenos gestos, puxados por fios que se desfiam uns atrás dos outros”.
É impossível separar a AMI do que foi e é o seu percurso. Alcançou o que idealizou em 1984? Queria que os médicos portugueses fossem para o mundo e isso concretizámos. O que não podia supor era que a AMI se ia desenvolver como desenvolveu e eu teria de abandonar a minha atividade como cirurgião. Costumo dizer que tenho quatro filhos biológicos e um ideológico, a AMI, que a determinado momento precisou de mim a tempo inteiro.
Quando me formei em medicina queria voltar para Angola, onde passei parte da minha vida, para ali construir um hospital, mas, depois da independência, percebi que seria difícil. Então inscrevi-me nos Médicos Sem Fronteiras, em França, e fui também cofundador dos Médicos Sem Fronteiras na Bélgica, realizando missões nas guerras Irão-Iraque, Beirute, Chade-Líbia. Lembro-me perfeitamente do episódio que tudo mudou. Aconteceu em 1981. Após três dias de espera na fronteira entre o Sudão e o Chade, os militares não queriam deixar passar uma dupla de jornalistas, só autorizando a passagem dos Médicos Sem Fronteiras. Pareceu-me injusto e disse que ou entrávamos todos ou não entrava nenhum. Na sequência disso, a reportagem realizada pela dupla é publicada na revista L’Express com uma fotografia minha a operar e uma legenda: “Fernando, jovem cirurgião de origem portuguesa…”.
TEXTO ANA MARTINS VENTURA FOTOGRAFIA JOSÉ FERREIRA / AMI
Tudo na vida é consequência de pequenos gestos, puxado por fios que se desfiam uns atrás dos outros e a AMI foi criada assim.
Em Portugal, o jornalista José Manuel Barata Feyo, grande repórter da RTP, leu esse número da revista L’Express e decidiu fazer uma reportagem sobre a atuação dos Médicos Sem Fronteiras no Chade, na qual me entrevistou. Depois de ver essa reportagem, o então ministro da Saúde português, Maldonado Gonelha, convidou-me para vir a Portugal. Aceitei o convite e, de visita ao país das minhas raízes paternas, o ministro propôs-me lançar os Médicos Sem Fronteiras em Portugal. Disse-lhe que lançaria algo semelhante, adaptado ao país e, de facto, 10 anos depois da fundação da AMI
abrimos o primeiro Centro Porta Amiga, nas Olaias, ao qual se sucederam mais oito centros – Porto, Vila Nova de Gaia, Coimbra, Chelas, Cascais, Almada, Funchal e Angra do Heroísmo. Houve altos e baixos, mas, no geral, posso afirmar que a AMI tem uma obra que marcou Portugal, mudámos a vida de milhares de pessoas.
Ficou mais próximo do modelo Médicos Sem Fronteiras ou da adaptação ao contexto português?
Gosto de pensar que conseguimos alcançar um bonito equilíbrio entre a atuação internacional e aquilo que Portugal precisava e precisa em termos de ação social.
Além da provisão das necessidades mais básicas a que todo o ser humano tem direito – a alimentação, a higiene, a ponte para o acesso a cuidados de saúde – vamos mais além. Escutamos as pessoas, os seus anseios, as suas dores e conquistas, apoiamos todos os dias quem nos procura, para que consiga alcançar uma vida melhor. Essa presença em tantas áreas diferentes da vida das pessoas com um sentido humano, de ligação próxima, fez-nos diferentes.
Através dos Centros Porta Amiga conseguimos muito mais do que prestar cuidados de saúde primários, acesso a medicação ou consultas de enfermagem e psicologia. Aliás, hoje, a nossa prestação de serviços nas Portas Amigas está muito centrada na resposta caso a caso, seja com apoio alimentar, apoio à educação, com espaços de tempos livres ou com a doação de material escolar a mais de três mil crianças e jovens anualmente. Também trabalhamos ativamente na inserção no mercado de trabalho de pessoas em situação de desemprego e no apoio domiciliário prestado à população sénior.
Em Portugal, o trabalho da AMI é reconhecido?
Acho que, sem tricas políticas, as pessoas entendem que a AMI valeu a pena. Eu também acho que valeu a pena.
Se a AMI nasceu para intervenções como as que eu fazia com os Médicos Sem Fronteiras, dez anos depois da sua fundação tudo mudou, quando abrimos a ação social em Portugal. Volvida outra década, em 2004, abrimos o Departamento de Ambiente.
Eu tenho dúvidas, muitas vezes. Mas, depois, penso em figuras humanas que nunca mais vou esquecer, seja na Geórgia, no Uganda, no Bangladesh, no Zimbabué, na Guiné-Bissau ou em Portugal. Sim, valeu a pena, por cada gota nossa que mudou uma vida.
Em 2017 abrimos o Departamento de Sustentabilidade.
Mas, muitas vezes, as pessoas desconhecem o que é manter uma casa com mais de 240 pessoas em Portugal, mais o pessoal expatriado e contratado localmente. Isto representa um orçamento mensal de cerca de 800 mil euros.
Porque há que perceber que as instituições sem fins lucrativos não sobrevivem apenas com voluntários. Hoje, a AMI é composta por um quadro de pessoal qualificado nas mais diversas áreas, desde a saúde, ao ambiente, comunicação, jurídico e financeiro, assistência social.
Quem são os beneficiários da AMI em Portugal?
Os beneficiários da AMI são pessoas com as quais nos cruzamos todos os dias, no nosso bairro, no nosso local de trabalho. Os apoios que as pessoas em Portugal precisam são tão diversificados como transversais à maioria das classes, se quisermos ainda utilizar esse termo.
Em Portugal há pessoas licenciadas no desemprego, mas, proporcionalmente, a maioria dos beneficiários da AMI tem o ensino básico, está em idade ativa e trabalha, mas mesmo assim não consegue ter recursos suficientes para se manter. Claro que também temos beneficiários com o ensino superior, essa percentagem tem aliás aumentado entre os beneficiários da AMI, mas no geral, as pessoas que têm mais acesso à educação tendem a ter mais recursos para responder às adversidades.
De Portugal para o mundo
Ir onde mais ninguém quer ir e criar novas narrativas ainda é possível num mundo onde se instiga a intolerância?
Infelizmente aumentou o ódio onde não se soube destrinçar o essencial, que é criar relações inter-povos aceitáveis, já não digo paradisíacas, mas aceitáveis.
Em certos países existe uma rejeição brutal ao Ocidente, mas há sempre surpresas. No Afeganistão, por exemplo, quando a AMI lá construiu um centro de saúde e uma escola, reuni com quarenta chefes pashtuns e senti-me muito bem-recebido. Falei uma linguagem de verdade, olhos nos olhos, expliquei porque a AMI estava ali. Seis meses depois, foi inaugurada uma escola e com acesso das meninas às aulas. A AMI é uma gota de água, mas somando a outras gotas de água podemos fazer com que esta humanidade siga outro caminho, diferente daquele que lhe está a ser imposto. Recordo também a rede de contactos que formámos no Líbano e que em 1991 nos permitiu resgatar os portugueses detidos por Saddam Hussein, no Iraque. E não posso deixar de falar da Palestina, porque estive lá algumas vezes, assim como em Israel. Ali está o cancro primitivo do nosso mundo: o choque entre o Ocidente e o Médio Oriente, seja com países islamizados ou não. Sim, porque as pessoas esquecem que nos países ditos islamizados ou arabizados vivem também cristãos e judeus.
A guerra Rússia-Ucrânia é, dentro da Europa, o mais grave foco de intolerância que nos abala a todos. Ali, uma vez mais, teremos as perdas de toda uma geração, não só fisicamente, mas nas relações de confiança entre russos e ucranianos que levarão muito tempo até serem recuperadas. Por isso considero que a democracia é como uma papoila frágil que depende de todos nós.
Na Guiné-Bissau a continuidade da AMI e o sucesso dos projetos ali desenvolvidos devem-se ao saber firmar parcerias com organizações locais. Como é, hoje, a relação da AMI com a Guiné-Bissau, onde realizou a primeira missão e mantém um legado?
Nasci em África e sempre estive muito ligado a ela, principalmente a Angola. A ligação à Guiné-Bissau surgiu quando lá realizei a primeira missão com a AMI, em 1987, no setor mais distante de Bissau, o Boé, concretamente em Lugadjole.
Depois, quando houve o levantamento militar de Ansumane Mané, em 1998, deu-se uma profunda crise em Bissau com muitos refugiados a deslocarem-se para a região este, mais precisamente para Gabú. Nesse tempo, a AMI foi a primeira instituição a entrar na Guiné-Bissau. Tão forte foi essa missão que surgiu a ideia de procurarmos outro espaço onde pudéssemos continuar. Na mesma época, recebemos um pedido de ajuda da Cabaz Garandi – Associação dos Filhos e Amigos das Ilhas de Bolama. A população de Bolama enfrentava um surto de paludismo e outras graves questões relacionadas com águas contaminadas e má nutrição. Embora
Bolama tivesse história como antiga capital da Guiné-Bissau, no final da década de ‘90 ainda era um local de difícil acesso e sempre foi premissa da AMI ir onde ninguém queria ou conseguia ir.
Atualmente, continuamos em Bolama, onde o coração da nossa missão na Guiné-Bissau pulsa há várias décadas e onde desenvolvemos a construção de escolas, postos de saúde, projetos voltados para a nutrição, saúde materno-infantil e saúde sexual e reprodutiva.
Mas, temos também uma equipa em Bissau e atuações em diferentes pontos do país, em parceria com instituições guineenses.
A saúde tem sido um dos grandes focos da AMI na Guiné-Bissau, o trabalho que desenvolvemos em saúde comunitária passou também por Gabú, Bafatá e Buba. Através de consórcios com parceiros como a UNICEF, contribuímos para a formação de centenas de agentes de saúde comunitária que hoje são o ponto de comunicação entre as comunidades locais e os hospitais, para que seja possível fazer o diagnóstico de surtos epidé-
Missão da AMI em Angola, 1993.
micos, ou o registo e seguimento clínico de mulheres grávidas. Mas, ajudámos também a construir pequenas escolas, onde a rede de ensino ainda não tinha chegado.
Na Guiné-Bissau, 2024 foi também o ano para iniciarmos um projeto de sensibilização às comunidades para o tráfico de crianças talibé, que estudam o Corão em escolas com regime de internato, prevenindo situações de risco da Guiné-Bissau para o Senegal. Ainda não chegou o momento de sair da Guiné-Bissau. Espero que chegue um dia, porque será um ótimo sinal. Por agora, é necessário que a Guiné-Bissau estabilize a nível político, para que depois possa continuar o seu caminho sem apoio externo.
Assistência médica, uma ponte
para tudo
Em que momento percebeu a necessidade de atuar para além da assistência médica?
Há 40 anos, a saúde centrava-se no físico e mental. Hoje, o conceito de saúde é transversal a todas as áreas da nossa vida, nas questões sociais e ambientais. Na sequência da alteração
de políticas de saúde na Guiné-Bissau, a AMI avançou para outras áreas de intervenção, mais viradas para a prevenção, como o acesso a água potável, a requalificação e construção de escolas e a criação de hortas comunitárias num projeto que apostou muito na educação para a nutrição e através do qual mudámos muitos hábitos alimentares. Não havia razão para que a AMI, solicitada pela UNICEF a partipar em projetos financiados pela União Europeia, não alargasse o leque da sua intervenção. Em diferentes pontos do mundo, houve pessoas que souberam agarrar a oportunidade.
Quando um condutor de riquexó em Jessore, no Bangladesh, começa a pedalar às 5h e termina às 23h para ganhar o equivalente a um dólar, como pode ele criar cinco filhos numa aldeia que é um enorme lamaçal, sem saneamento básico algum. Nessas circunstâncias é muito difícil um homem erguer-se sozinho, mas este conseguiu fazê-lo com a ajuda que obteve porque permitiu-lhe educar os filhos e a educação é o primeiro passo para quebrar o ciclo de pobreza.
Do Zimbabué também nunca vou esquecer uma mulher que estava cega
e era ela quem cuidava dos netos, depois de ter perdido os filhos para o HIV. A AMI decidiu apoiar a sua operação às cataratas e quando voltámos ao Zimbabué ela havia retomado a produção artesanal de vasos de barro graças à qual sustentava a educação dos netos.
O mesmo aconteceu em Portugal, com o objetivo de chegarmos a mais áreas de apoio social. Em 2011 lançámos o projeto Ecoética para contribuir para a reflorestação de terrenos devolutos e em 2017 direcionámos o projeto para a reabilitação de grandes áreas perdidas para os incêndios florestais. Já em 2015 lançámos o Fundo Universitário, para dar bolsas a estudantes de licenciatura ou mestrado. Damos o nosso contributo, por pequenino que seja, para o mundo com que todos sonhamos (penso eu), um mundo de preocupação, de empatia, de amor para com o outro, esteja ele onde estiver.
Como é que a fundação se está a reinventar para garantir a sua sustentabilidade?
Em Portugal, os pedidos de apoio alimentar por parte da população em idade ativa e empregada são particularmente alarmantes, assim como o aumento constante das pessoas em situação de sem-abrigo. Por outro lado, os donativos estão a diminuir. No fim de contas, as classes média e média baixa, as que mais doam, são, precisamente, as que enfrentam a crise maior. Tudo isto numa situação instável do ponto de vista político-militar e não sabemos qual será o futuro da Europa.
Portanto, ou éramos completamente irresponsáveis para com os colaboradores que trabalham connosco e os milhares de pessoas que apoiamos e fechávamos em dois anos, ou reinventávamos o futuro.
Fernando Nobre em consulta no Sri Lanka, em 2005.
Os beneficiários da AMI em Portugal são pessoas com as quais nos cruzamos todos os dias, no
nosso bairro, no nosso trabalho.
Para se ter uma pequena ideia, só em refeições dispensadas nos Centros Porta Amiga temos uma despesa mensal de 60 mil euros. Outros 16 mil euros são necessários para manter as arcas congeladoras onde armazenamos os bens alimentares. São também 20 as viaturas da AMI que circulam para toda a logística necessária ao apoio social que fazemos. Assim, lançámos o Departamento de Sustentabilidade em 2017 e nos anos seguintes definimos uma estratégia para salvaguardar a AMI por mais 10 ou 20 anos (não sei se será por
mais 40 anos): a rede de alojamentos Change The World, que inclui atualmente quatro hostels, em Coimbra, Porto, Ponta Delgada e no Estoril; um turismo rural, na Herdade Monte do Peral e um turismo de habitação, no Solar de Alvega. As receitas geradas são utilizadas para o financiamento direto dos projetos nacionais e internacionais da AMI. Temos feito um trabalho de planeamento e sustentabilidade muito transparente. Por isso, no quadro do Centro Português de Fundações a AMI faz parte das 5 maiores fundações do país.
Uma vida de causas
A AMI tem sido muito resiliente?
A AMI tem sido resiliente, tem sido também muito persistente. Não são muitas as instituições criadas do zero que perduram durante tanto tempo e atuando em tantos cenários diferentes. A AMI não abdica de ir à luta por valores e é isso que nos mantém vivos, porque no dia em que nos acomodarmos a AMI começará a morrer. Gosto de acreditar que não há montanha inacessível, obstáculo inultrapassável ou fortaleza inexpugnável. Com vontade, determinação e clarividência é possível fazermos coisas impensáveis.
Aconchega-se nas memórias daquilo que viveu nos quatro cantos do mundo?
Digo muitas vezes que a AMI é uma alma coletiva. Também gosto de dizer algo que pode parecer uma frase feita, mas, para mim, é uma verdade absoluta: “Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce”.
Demorou tempo para chegar aqui. Acredito que alguém superior me fez sonhar e a muitos outros por esse mundo fora que sonham com um mundo mais humano. Quando me questiono, porque me questiono muito: será que essa solidão em que vivi muitas vezes, valeu a pena?
Quem não tem dúvidas? Eu tenho dúvidas, muitas vezes. Mas, depois, penso em figuras humanas que nunca mais vou esquecer, seja na Geórgia, no Uganda, no Bangladesh, no Zimbabué, na Guiné-Bissau ou em Portugal. Sim, valeu a pena, por cada gota nossa que mudou uma vida. .
Alunas da escola construída pela AMI no Afeganistão, em 2006.
HUMANIDADE,
NEUTRALIDADE, IMPARCIALIDADE, INDEPENDÊNCIA.
Ao longo de quatro décadas, a AMI desenvolveu centenas de missões humanitárias em 82 países do mundo e um trabalho de apoio social ao longo de 30 anos em Portugal, projetos inovadores de proteção ambiental e de uma cidadania global solidária alicerçada na preocupação de alertar consciências para problemas urgentes da Humanidade.
equipamentoS e respostas sociais em Portugal 15
MILHÕES DE EUROS Investimento em projetos de ação social em Portugal
BENEFICIÁRIOS apoiados EM PORTUGAL 80.000
COLABORADORES
VOLUNTÁRIOS QUE NOS ACOMPANHAM, SEM O APOIO DE PARCEIROS , PÚBLICOS E PRIVADOS, QUE ACREDITAM NA
Conheça estes e outros testemunhos sobre o percurso da AMI
TIME—
1984
5 DEZEMBRO
Criação da AMI
1987
Primeira Missão de Desenvolvimento: Guiné-Bissau
1988
Missão de Desenvolvimento em Cabo Verde
1990
Primeira Missão em cenário de guerra: Jordânia
1992
Missão de Emergência em Angola (guerra civil)
1996
Campanha de Reciclagem de Radiografias: Primeiro Projeto Ambiental
1998
Primeira Missão de Emergência em cenário de catástrofe natural: Honduras
1999
Primeira ONG do mundo a entrar em Timor-Leste com ajuda humanitária
1989
• Primeiro Projeto Internacional em parceria com uma Organização Local: Índia
• Primeira Missão de Emergência: São Tomé e Príncipe
1994
• Abertura do primeiro dos 9 Centros Porta Amiga nas Olaias – Lisboa e mais tarde em Almada, Chelas, Cascais, Coimbra, Porto, Gaia, Funchal e Angra do Heroísmo
• Emergência Ruanda (refugiados na RDC)
• Emergência Moçambique (apoio a desmobilizados da Renamo)
2001
Início do Projeto “Equipa de Rua” em Lisboa e mais tarde Porto e Gaia
2003
Primeira e única ONG portuguesa a prestar assistência médica e humanitária às vítimas da guerra no Iraque.
2004
Emergência Sri Lanka (tsunami)
2009
Emergência Moçambique (ciclone)
2010
Emergência Haiti (terramoto)
2011
Primeiro Projeto de reflorestação: Ecoética
2015
Lançamento do Fundo Universitário AMI
2017
Lançamento do Projeto de Sustentabilidade “Change the World”
2022
Emergência Ucrânia – refugiados na Hungria, Moldávia, Roménia e Portugal; e vítimas da guerra na Ucrânia
AMI assinala 40 Anos
A AMI vai continuar a passar fronteiras para levar ajuda humanitária e desenvolvimento aos quatro cantos do mundo e combater a pobreza e a exclusão social em Portugal. Preparada para os próximos 40 anos, o maior sonho da AMI é, um dia, celebrar o facto de já não ser necessária, porque significará que foi possível alcançar um mundo justo, empático, digno e feliz para todos.
O SACRÍFICIO
DAS CRIANÇAS TALIBÉ CANSERA FIDJUS DI
Estima-se que na Guiné-Bissau cerca de 10 mil crianças e jovens estudem em escolas corânicas informais. Sem acesso a outra oferta educativa esta é a sua única esperança de aceder a algum conhecimento. Os estudantes são muitos mais do que os mestres podem sustentar, se seguirem o dogma islâmico de a todos receber sem nada cobrar. Através do projeto IMPACT-GB, a AMI sensibiliza e capacita as comunidades para mudanças urgentes, com o objetivo de conter a fome nas escolas e proteger as crianças das redes de tráfico humano que se aproveitam das suas carências.
TEXTO ANA MARTINS VENTURA FOTOGRAFIAS JOSÉ FERREIRA / AMI
Em grupo pelas ruas da cidade de Gabú, crianças talibé caminham abraçadas a velhas latas vazias que esperam encher com arroz. Estudam o Corão em escolas de portas abertas para acolher todos os fidjus que buscam o conhecimento para estes filhos de crença que os mestres corânicos recebem nas suas escolas, a cansera faz parte dos seus caminhos, com tarefas que devem cumprir. A mendicidade é uma delas, quando as escolas não têm recursos, para alimentar as crianças, dizem os mestres corânicos. Mas, há falsas escolas corânicas que usam a mendicidade para explorar crianças talibé, através de redes de tráfico humano que operam entre a Guiné-Bissau e o Senegal.
Aos dezoito anos, Ussumani Baldé leva uma a duas horas para percorrer os sete quilómetros que separam a sua casa, na tabanca de Madina Aladje, da escola, em Gabú. Um percurso feito a pé ou de bicicleta, numa estrada de terra batida, com pedras e covas, que se agigantam na época das chuvas, quando a aldeia fica muito isolada. Por isso, cedo, o seu pai, Adulai Baldé, começou a pensar que a única alternativa seria colocá-lo a estudar numa escola corânica com internato. Ele também havia estudado assim.
Ussumani acabou por seguir uma proposta diferente, em direção ao Senegal. O que parecia uma oportunidade de estudar rapidamente revelou-se um golpe de uma rede de tráfico humano.
Hoje, Ussumani quer que a sua história seja um exemplo. Ao lado do pai, recebe a equipa do projeto IMPACT-GB em Madina Aladje, expectante sobre o trabalho que será desenvolvido para ajudar as crianças e jovens talibé.
Meninos talibé mendigam por arroz nas ruas de Gabú, a maior cidade na região leste da Guiné-Bissau, próxima à fronteira com o Senegal.
Ussumani Baldé foi traficado para uma escola corânica no Senegal onde as crianças só comiam se mendigassem.
Com financiamento da União Europeia, o projeto IMPACT-GB, desenvolvido e liderado pela AMI, num consórcio que reúne o Instituto da Mulher e da Criança, a Associação Guineense de Luta Contra Migração Irregular, Tráfico de Seres Humanos e Proteção da Criança e a Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo, está a desenvolver estratégias junto das comunidades, para a proteção das crianças talibé que são submetidas a situações de violência e exploração, incluindo o tráfico humano. O primeiro passo é registar as experiências de crianças e jovens talibé, das suas famílias e dos mestres corânicos e sensibilizar para a urgência de uma mudança cultural. Seguir-se-á a capacitação de jovens e mulheres das comunidades, para que, junto com as organizações da sociedade civil se tornem mediadores da causa.
Na pequena tabanca tudo o que de novo acontece é motivo para quebrar a rotina e as pessoas vão-se reunindo para ouvir a história que pai e filho vão partilhar com a comitiva visitante. É Inussa Jaló, mestre da escola corânica Lenquerin, nos arredores de Gabú, quem liga o discurso do dialeto fula para o português, para que a história não fique esquecida. Há dois anos foi um dos salvadores de Ussumani. “Um amigo disse-me que podia ir com ele para o Senegal estudar o Corão e trabalhar”, a condição para ir era o segredo, o resto ele tratava, inclusive de “alguns pagamentos para o caminho”.
Como o amigo conseguiu o dinheiro para a viagem dos dois e que pagamentos pelo caminho eram esses, Ussumani não sabe, recorda apenas que disse para não se preocupar “os mestres do Senegal tinham-lhe confiado a missão de reunir amigos na Guiné-Bissau”.
Cerca de 50 quilómetros separam Gabú da fronteira com o Senegal. Os caminhos abertos são dezenas e muito alternativos, impossíveis de vigiar. Mesmo no posto de fonteira de Pirada, onde a Guiné-Bissau e o Senegal se mesclam em tabancas parti-
lhadas, a única alternativa diária para milhares de pessoas é a livre circulação, estabelecida segundo os acordos dos países que integram a União Africana. Enquanto brincam, estudam ou trabalham, com simples passos, adultos e crianças circulam entre a Guiné-Bissau e o Senegal.
Uma semana após a chegada à escola corânica, em Dakar, o amigo de Ussumani desapareceu, “disseram que ele foi trabalhar para outro lugar”. Ao aluno recém-chegado também foi dada uma missão: “todos os dias, depois das orações da manhã, tinha de fazer peditório nas ruas para angariar mil francos, se conseguisse cedo, podia voltar para a escola às 14h, caso contrário tinha de ficar na rua até às 18h”. O regresso à escola dependia sempre do sucesso da cansera , “quando não conseguia o dinheiro levava porrada e foram muitas as vezes em que isso aconteceu, por isso preferia dormir na rua”. Nunca soube o que o mestre fazia com o dinheiro. Na escola, nada mais tinha do que chão para dormir e poucos ensinamentos do Corão, “a comida era a que os alunos conseguiam, uma vez por dia, a pedir os restos de arroz aos vizinhos”.
Passou um ano e, acaso ou destino, uma comitiva de mestres corânicos de Gabú, que o mestre Inussa Djaló
Os mestres corânicos Inussa Djaló (esq.) e Saico Baldé (dir.) formam comitivas para resgatar crianças talibé no Senegal.
integrava, foi a Dakar resgatar crianças e jovens. Inussa Djaló explica que, “quando uma comitiva chega a Dakar faz sempre uma pergunta secreta, de estratégia, em crioulo ou fula”. Alguns meninos fogem, com medo, outros escutam como Ussumani que “estava na rua perdido e quando nos aproximámos e falámos para ele, compreendeu-nos e respondeu. Queria voltar para casa, mas tinha medo de que o pai o castigasse. Estava envergonhado”, conta o mestre.
No regresso, o estado de espírito era diferente, “estava muito contente por voltar a casa, qualquer medo da reação do pai era menor do que o sofrimento passado”.
Adulai Baldé tem mais um filho e teme que passe pelo mesmo. No dia em que anoiteceu e Ussumani não regressou a casa percebeu o que tinha acontecido, “ele andava muito cansado do caminho difícil para chegar à escola e quando os meninos andam assim, vão para o Senegal, eu também estudei lá, mas a minha experiência foi diferente, noutro tempo”.
Ainda faltam a Ussumani palavras para classificar o que o amigo fez. Não entende que foi propositadamente
AUSÊNCIA DE REGISTO DE NASCIMENTO AFETA
69%
DAS CRIANÇAS EM GABÚ
62%
DAS CRIANÇAS EM BAFATÁ
Fonte: Relatório dos Direitos Humanos GB
levado para uma situação de isolamento e exploração. Passa-lhe longe o significado de ‘traficado’. Agora toda a sua energia está reunida na vontade de ser “professor, ou outra profissão através da qual também possa ajudar crianças e jovens com dificuldades”. Se pelo caminho se formar mestre corânico, “será mais uma bênção”. Dita a lei islâmica que “grande é a honra de uma família e comunidade que tem um mestre corânico”. Assim é, de facto, “uma honra, quando o estudo é respeitado e as canseras são trabalho para enobrecer a alma e a escola, não um negócio para enriquecer donos de escolas”, conta o mestre corânico Inussa Djaló.
Crianças talibé trabalham na lavoura de batata, após a lição corânica da manhã.
Aos outros meninos que sonham ir para o Senegal, mestre e aluno deixam um conselho: “estudem na Guiné-Bissau e fiquem perto das vossas famílias” e pedem apoio para que “seja possível estudar com mais condições”.
Arroz do dia
Terra batida por velhos chinelos, o centro de Gabú é o único recreio que os fidjus di cansera conhecem, em busca do arroz que será o único alimento do dia. Depois das orações da manhã a mendicidade faz parte do sacrifício para estudar o Corão e, quem sabe, um dia, honrarem as suas famílias como mestres corânicos. Inussa Jaló e Saico Baldé passaram pelas canseras para estudar o Corão até ao nível que os fez mestres, mas têm a sua opinião sobre o que consideram um sacrifício suportável e o
que coloca os pequenos estudantes em situações tão vulneráveis que ficam à mercê de abusos. Numa mesquita de Gabú recebem a equipa do IMPACT-GB, estão a acompanhar de perto o trabalho de sensibilização que é feito através do projeto da AMI junto das comunidades e da União Nacional de Imames da Guiné-Bissau. Saico Baldé abre o encontro informal. Agradece a visita, o trabalho do IMPACT-GB e sentado no chão, ao lado dos seus curiosos aprendizes, reclama. “O que é bom para os meninos é que estudem durante a semana e no fim de semana vão a casa visitar os pais, que tenham alimentação suficiente e vestuário. Esses são os direitos de todas as crianças. Castigar as crianças, não dar roupas e comida, obrigar a ir à rua pedir são sacrifícios que a religião muçulmana condena”. Com a proibição da mendicidade infantil legislada desde 2013, mas sem sucesso na aplicabilidade, a 26 de março de 2023, o Presidente da República, Sissoco Embaló, ordenou,
com efeitos imediatos, a punição de pais e mestres corânicos das crianças encontradas nas ruas a mendigar. A ordem era clara: todas as crianças deveriam ser imediatamente retiradas das ruas. No contacto permanente com as comunidades, Dautarin da Costa, coordenador do projeto IMPACT-GB, tem verificado que, “a falta de leis mais restritivas permite a desculpabilização da mendicidade e a perpetuação da prática, uma situação agravada pela falta de números reais sobre quantas crianças talibé estão em escolas corânicas informais na Guiné-Bissau e quantas escolas existem”. Na Guiné-Bissau, 54% das crianças não são registadas. Nas regiões de Bafatá e Gabú a ausência de registo afeta 62% e 69% das crianças, respetivamente, segundo dados do último Relatório dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau. A ausência de registos não permite regular a mobilidade das crianças talibé na Guiné-Bissau, dando oportunidade a que sejam ilegalmente movimentadas para fora do país.
Atualmente Gabú tem um problema porque as escolas corânicas estão com grandes dificuldades, sem comida suficiente para os
alunos.
Saico Baldé tem à sua responsabilidade cerca de 60 meninos e meninas numa escola de Gabú e concorda com Dautarin da Costa, “muitos são os mestres que utilizam as crianças talibé para fazerem dinheiro e pouco ensinam do Corão”. No decorrer dos dias de exaustão e abusos, “a fome leva a que muitas crianças cheguem mesmo a roubar para comer”. A solução seria simples e iria além da legislação e do recenseamento das escolas, mestres e crianças talibé. “ Cansera justa é aquela que inclui uma tarefa que ajuda o aluno, a escola e os seus colegas, como o trabalho na lavoura de onde sai o arroz para todos comerem”.
Como se conseguiria criar esta sociedade sustentada pela agricultura? “Bastava as escolas terem alfaias agrícolas, para fazermos o trabalho de meses em dias e conseguirmos plantar em grandes quantidades”. Concretizando esse plano, “os meninos já não fariam trabalho tão pesado, ajudavam apenas na colheita e ficavam com mais tempo para estudar”, interfere o companheiro de mesquita, Inussa Jaló. Em épocas de escassez, se houvesse necessidade, “a mendicidade devia ser feita nos vizinhos, para trazer algum arroz para a escola, mas sem violência, sem roubo, aceitando apenas a solidariedade de quem quer ajudar”. Mas, então porque não se generaliza uma solução tão ‘simples’? Saico Baldé tem a certeza de que é proposi-
tado, porque “muitos mestres de hoje, na infância partiram da Guiné-Bissau para as escolas do Senegal, Guiné-Conacri e Mali, onde foram sujeitos à mendicidade e à violência”. Pouco a pouco “as canseras dos talibé foram sendo transformadas num negócio lucrativo”. E os mestres de hoje repetem o mesmo, por considerarem que tudo faz parte do caminho das crianças talibé.
Apesar das tradições deformadas em prol do interesse, Saico Baldé e Inussa Djaló pedem uma avaliação justa, para que a exploração das crianças não coloque todos os mestres no mesmo patamar, pois “as escolas corânicas enfrentam uma grande crise com demasiados alunos e poucos recursos”.
Os mestres fazem os possíveis para quebrar o ciclo atual da mendicidade e os riscos de proveito próprio, mas até eles falham num meio tão precário.
José Saico Embaló (ao centro), régulo da cidade de Gabú, aposta na agricultura para a subsistência das escolas corânicas.
JOSÉ SAICO EMBALÓ, RÉGULO CENTRAL DE GABÚ
As meninas talibé não mendigam, ajudam a preparar a comida, a tratar da roupa e da lavoura. O seu único destino é o casamento.
Plantar futuros
A lavoura de Inussa Jaló é grande e poucas as horas em que o sol, ainda que intenso, permite trabalhar sem sucumbir. Plantar futuros à mão é cada vez mais difícil. Cansera quase impossível. Na Escola Lenquerin de Inussa Jaló, feitas as orações e estudos da manhã, pelas 8h come-se e os meninos seguem para a lavoura, até às 12h. De tarde e até o calor abrandar, são retomadas as aulas.
Inussa Djaló não quer ninguém a mendigar, prefere que trabalhem, mas sabe que os meninos, quando vão à cidade, pedem. Oferece o que pode, “mas os problemas começam precisamente quando a comida é pouca e as crianças têm fome, porque ninguém as consegue impedir, ou ninguém tem coragem de as impedir de mendigar para comerem”.
A maior parte dos alunos que estudam o Corão não vão à escola.
Sob uma sagrada e antiga árvore, o régulo central de Gabú, José Saico Embaló, observa a cidade, tudo o que ali acontece chega ao seu conhecimento e a visita do projeto IMPACT-GB não foi exceção.
Aos 85 anos, José Saico Embaló senta-se no mesmo bantabá onde há séculos se reúnem régulos de Gabú para tomar decisões sobre a cidade e os seus habitantes. Para o homem sábio, “atualmente Gabú tem um problema que é uma grande dor de cabeça, porque as escolas corânicas estão com grandes dificuldades, sem comida suficiente para os alunos, e os donos das crianças”, modo como assume quem angaria crianças talibé, “estão a levar as crianças para o Senegal para as explorarem a mendigar”. O régulo recorda a imagem que gravou quando recentemente esteve no Senegal e se cruzou com “alunos a andar a pé para passarem a fronteira e regressarem à Guiné-Bissau”. Crian-
ças entre os 7 e os 9 anos “não tinham sapatos e as camisas estavam muito sujas e rasgadas, diziam que não queriam voltar a estudar o Corão, o que é grave pois a exploração suja as tradições”.
No momento, fez o que podia, comprou sapatos e roupa e ajudou a encaminhar os meninos para a Associação dos Amigos da Criança na Guiné-Bissau, que tem como missão devolver as crianças talibé traficadas às famílias, o que nem sempre é possível. “As famílias vão mandá-los de volta para o Senegal, Guiné-Conacri ou para qualquer outro ponto da Guiné-Bissau porque não têm condições. Aliás, as famílias acham que os mestres têm tudo para dar aos alunos, para os sustentar, mas não têm”, desabafa José Saico Embaló.
O Instituto da Mulher e da Criança, enquanto representante do Estado no projeto IMPACT-GB, trabalha em proximidade com as famílias para proteger os direitos das crianças e assume haver dificuldades de atuação oficial além das fronteiras da Guiné-Bissau, enquanto cresce o número de crianças e jovens talibé traficados, em situações muito delicadas no Senegal.
SAICO BALDÉ, MESTRE CORÂNICO EM GABÚ
Em Bafatá, meninos talibé começam o estudo do Corão antes do nascer do sol.
O régulo considera que fala por todos aqueles que estão interessados em dar melhores condições de vida aos talibé quando afirma que “a ajuda deve ser procurada, seja junto das Nações Unidas ou de outras organizações”.
Quando José Saico Embaló começou a estudar o Corão ainda criança “os professores tinham terreno para a lavoura de arroz, milho e mancara e não se pedia esmola”.
Da Guiné-Bissau partiu depois para o Mali onde aprofundou o conhecimento do Corão num sistema idêntico de “trabalho na lavoura e estudo”. No regresso ficou em Bissau para tirar um curso de agricultura, ao qual depois acumulou outros sempre na mesma área, e não tem dúvidas de que “a maior solução para as escolas corânicas e para os seus alunos será a agricultura”, mas falta, por enquanto, máquinas e reservas de água.
José Saico Embaló até já expôs a sua proposta junto do Presidente
da República, mas até hoje os apoios para a região nunca chegaram. Como tem por princípio “não pedir duas vezes”, espera concretizar o sonho de uma cooperativa agrícola, formada por mestres corânicos, imames e régulos com o apoio de ONG.
Também defende o “recenseamento dos professores que ensinam a lei corânica, porque assim podem ter mensalmente direito a algumas coisas, como medicamentos, roupas e comida, porque as crianças precisam de mais cuidados”.
Com o Instituto da Mulher e da Criança a trabalhar em proximidade com as crianças em regime de internato nas escolas corânicas e as suas famílias, Abulai Sonco, responsável administrativo do IMC, admite que “apesar de existir uma política nacional para a proteção das crianças e, em particular, das crianças talibé, falta a contribuição das regiões para que as metas sejam alcançadas”. Sem esta complementaridade, “o Governo não
tem recursos suficientes para agir, são milhares de crianças e é impossível conseguirmos soluções para todas”. Ao longo do caminho, ainda há conquistas que não deixam a esperança desvanecer. Em comunidades de grande tradição religiosa “algumas famílias com condições retiraram as crianças do regime de internato das escolas corânicas”. Resultados que Abulai Sonco apresenta com ponderação, porque “não existem dados sobre o índice de pobreza das crianças talibé e suas famílias, mas é certamente muito elevado”. E mesmo as poucas famílias com meios para mudar também pedem contrapartidas: “querem que as crianças tenham uma ocupação para não mendigarem”. Uma resposta complementar que o IMC não consegue dar.
Mamadu Djaló tem a seu cuidado 58 crianças e jovens talibé, a maioria chegou à sua escola corânica aos quatro anos, porque as famílias não tinham como os sustentar.
Uma honra para chegar a Deus e à escola
Abubacar Baldé começa o dia a levantar as primeiras orações para um céu ainda forrado a estrelas. A tábua que segura tem gravados segredos do Corão que o imame e mestre corânico Mamadu Djaló lhe desvendou desde que o recebeu há quatro anos, na sua escola, no bairro de Sintchã Mamadu, em Bafatá.
A oração é repetida pelos seus companheiros frente a uma alta fogueira de sonhos, com cheiro a amendoim torrado e palha. Quem sabe, se as suas orações forem fortes o suficiente, um dia alcançam a honra de representar Deus na Terra. Por ora calcam repetidamente o caminho entre a escola, o trabalho e o centro da cidade, onde pedem um pouco de arroz. Os pais de Abubacar esperam que um dia ele seja mestre na sua tabanca. Mas, o sonho de Abubacar é “ser professor para ajudar o país”. Em compa-
ração com a maior parte dos 57 colegas ele tem alguns privilégios. É chefe dos alunos e braço direito do mestre, vive numa casa da escola corânica e, após as orações da manhã, vai à escola pública. Com apoio dos pais de Abubacar, o mestre consegue pagar a matrícula e outras despesas escolares, mas nunca conseguiria assumir a mesma despesa para todos os alunos. Mamadu Djaló fez as contas há muito tempo, “a matrícula na escola pública são mais de 30 euros, mais material escolar, a comida da escola, se multiplicar isto por mais 57 crianças é impossível manter”.
Apesar das oportunidades Abubacar não esconde que, tal como os colegas, passou pelas canseras. “O mestre tem lavoura de milho, mandioca, batata e amendoim, mas não chega” e por isso “quando saía à rua pedia”. Hoje, “a maior parte dos alunos que estudam o Corão não vão à escola e quando saem para a rua também vão pedir”.
Na escola da fogueira alta, Mamadou Djaló, também membro da União Nacional de Imames, cria meninos e
meninas em árabe e na lei corânica, “alguns estudantes foram entregues à escola logo que deixaram de mamar, os mais velhos têm entre 15 e 16 anos”. Os ensinamentos têm um ritmo exigente, divididos em vários momentos, “começam pelas 4h e terminam depois das 22h”. É preciso tempo para as orações, para as aulas dos que frequentam a escola pública e para as tarefas na lavoura.
Para regular o ensino corânico, em Bafatá e demonstrar publicamente a rotina das escolas e qual o seu impacto nas comunidades, Mamadu Djaló já conseguiu reunir 93 mestres, numa associação local, a Associação Nacional de Mestres e Crianças, “para que se comecem a registar escolas corânicas e crianças e, por fim, se reconstrua um sistema de cooperativas agrícolas”.
Tal como os outros mestres, sabe que não deveria ter tantos alunos à sua responsabilidade, mas “a lei do Corão diz que um mestre deve ter a porta aberta para todos, não se pode recusar a ninguém a oportunidade de estudar e conhecer a palavra de Deus, mas alguma coisa tem de ser feita, porque temos alunos a mais, há fome, há riscos, todos os dias crianças são levadas para o Senegal e Guiné-Conacri, para outras escolas”, que o mestre faz questão de distinguir da sua. Então o mestre questiona: “serei mau porque acolho os meninos, ensino-os, alimento-os, mas deixo-os mendigar? Posso ser julgado assim?”.
Suleimane Embaló, presidente da Associação Guineense de Luta Con-
Mamadu Camará, técnico da Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo da Guiné-Bissau foi criança talibé e quer usar a sua experiência para mudar o futuro de outras crianças.
tra Migração Irregular, Tráfico de Seres Humanos e Proteção da Criança (AGLUCOMI-TSH) escuta atento o discurso de Mamadu Djaló, não só porque é intérprete no projeto IMPACT-GB, mas porque quer conhecer em detalhe os motivos que levam os mestres corânicos a deixar os seus aprendizes mendigarem pelas ruas de Gabú.
Assumiu uma missão da qual parece depender todo o seu propósito de vida. Pequeno, com perfil de um menino, mas alto na sua sabedoria, Suleimane quer que o mundo conheça quem são as crianças talibé na Guiné-Bissau e ajudem o país e os mestres corânicos a encontrar e redesenhar o futuro delas. Foi talibé e passou pela cansera de um modo diferente, com dignidade, “não há nada de grandioso em passar fome, frio e doença para alcançar a sabedoria de Deus”.
Quando Suleimane Embaló era estudante corânico não havia mendicidade, “o Corão era aprendido de dia e de noite os estudantes voltavam para casa”. E havia outras tarefas. “Quarta-feira e quinta-feira, os dias em que não se lê, íamos à mata pegar lenha e trazer para o mestre corânico e ajudávamos na lavoura”, recorda o intérprete. Mas, “depois do “7 de Junho”, [a guerra civil de 1998] tudo mudou, não havia lavouras e as crianças começaram a andar nas ruas”.
Suleimane Embaló começou a trabalhar com os mestres corânicos e as crianças talibé há cinco anos, num “percurso difícil, porque muitas pessoas tinham medo de falar e sofrer represálias”. Hoje, orgulha-se de ter sido “a primeira pessoa a conseguir falar com o Presidente da República para que o Estado acabasse com a mendicidade forçada”.
Conhecer o povo guineense
Em Bissau, a Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo (ADPP) foi convidada a integrar o projeto IMPACT-GB pela sua experiência em projetos nas áreas da agricultura, energias renováveis, nutrição e educação, que incentivam a autonomização do país. A organização está empenhada em desenhar um projeto de agricultura sustentável para as escolas corânicas da região leste, “restam depois as escolas corânicas de Bissau, para as quais essa não será a melhor solução”. Mas, por agora, o foco é sensibilizar as famílias das crianças talibé. Mamadou Camará formou-se como técnico agrícola com a ADPP, depois de ter vivido parte da vida numa escola corânica, no Senegal, hoje quer fazer parte da solução para as crianças talibé, utilizando a sua experiência pessoal. Foi colocado na escola corâ-
Suleimane Embaló, presidente da Associação Guineense de Luta Contra Migração Irregular, Tráfico de Seres Humanos e Proteção da Criança recorda que, antes da guerra civil, as condições das escolas corânicas eram melhores.
nica ainda bebé e lá ficou até aos 14 anos. A sua vida foi como a de milhares de crianças, “passada entre lições sobre o Corão, trabalhos na lavoura e dias a pedir nas ruas”.
Estudar sempre esteve nos planos de Mamadu, por isso não desistiu e entrou pela primeira vez numa escola aos 15 anos, já depois da família ter regressado à Guiné-Bissau. Primeiro foi tempo de “aprender a profissão de alfaiate, para ajudar a minha mãe a sustentar os estudos e isso foi a salvação”. Depois veio a oportunidade de se formar em agropecuária.
Quando vê “tantas crianças talibé a pedir pelas ruas de Bissau, perdidas, sem um apoio para as tirarem dali”, pensa muito sobre “o trabalho que precisa ser feito junto das famílias”. Com esse propósito o próximo passo é “sensibilizar a comunidade e os pais, sobretudo as mães que lutam sempre para proporcionar melhores condições aos filhos”. .
NÃO EXISTEM NÚMEROS OFICIAIS SOBRE AS CRIANÇAS TALIBÉGUINÉNA-BISSAU
Seja como político, professor, sociólogo, investigador ou ativista, são os direitos da criança que movem Dautarin Monteiro da Costa, coordenador do projeto IMPACT-GB, desenvolvido pela AMI na Guiné-Bissau. Pelas suas mãos já passou o Ministério da Educação, entre 2019 e 2020, no terceiro Governo formado por Aristides Gomes, época em que começou a traçar o perfil das crianças talibé na Guiné-Bissau. Verificando situações de extrema vulnerabilidade, sobre as quais leis e direitos não surtem efeito, Dautarin Monteiro da Costa definiu a missão, hoje, concretizada ao lado da AMI: promover o registo das crianças e das escolas corânicas, alargar a rede oficial de ensino público e criar um programa alimentar sustentável para as famílias e para as escolas corânicas.
DAUTARIN MONTEIRO DA COSTA, COORDENADOR DO PROJETO IMPACT-GB
A Guiné-Bissau conhece a realidade das crianças talibé?
Uma parte importante do projeto IMPACT-GB centra-se em desmistificar preconceitos. O principal está relacionado com o termo talibé. Talibé significa estudante do Corão, mas, para a maioria das pessoas, quando falamos de crianças talibé, falamos de crianças na mendicidade. Quando o que existe são algumas crianças colocadas numa situação de mendicidade forçada e é a partir daí que se cria um preconceito.
A maioria da população não conhece quem são estas crianças, quantas são, de onde vêm. As próprias instituições do Estado têm dificuldades porque, sem registos, não existem números oficiais sobre as crianças talibé na Guiné-Bissau, o que coloca estas crianças completamente à margem da lei e da sociedade, sem acesso a quaisquer direitos, da Educação à Saúde.
Quando será possível quantificar o fenómeno talibé?
Essa meta não está oficialmente definida por nenhuma instituição. Mas, o trabalho de levantamento de dados sobre as escolas corânicas existentes e o número de alunos tem sido feito
com o apoio de organizações internacionais, como a União Europeia, as Nações Unidas, a UNICEF, PNUD. E ONG como a AMI e AMIC. Os primeiros passos que a equipa do IMPACT-GB tem dado são no sentido da sensibilização sobre as condições de vida das crianças talibé, sobre a questão da mendicidade. Esta sensibilização está a ser realizada junto das comunidades, de representantes regionais e locais e da União Nacional de Imames da Guiné-Bissau. Esta tem registados cerca de 24 mil imames, que são, por inerência, mestres corânicos.
Porque a mendicidade das crianças talibé é tão permissiva, socialmente?
Estamos a falar de um país onde há escassez, dois terços da população estão numa situação de pobreza multidimensional. Outro problema é a falta de ofertas educativas. Nas zonas mais remotas do país a única oferta educativa é a escola corânica, o que gera grande pressão sobre essas escolas e menos condições para os professores corânicos manterem cada vez mais crianças, seja em regime de internato ou não. Por isso, é urgente encontrar soluções junto das famílias.
MIL IMAMES ESTÃO REGISTADOS NA UNIÃO NACIONAL DE IMAMES DA GUINÉ-BISSAU
-la num outro país deixará a criança sempre mais vulnerável a situações de exploração e abuso e é isso que as falsas escolas exploram. Sob o pretexto de estarem a cumprir tradições, exigem às crianças que mendiguem para pagar a estadia na escola. As crianças nunca chegam a usufruir desse dinheiro angariado, digamos assim, porque nunca reverte para a escola, mas sim para o lucro pessoal de quem tem as escolas.
Os mestres corânicos da GuinéBissau defendem um plano agrícola, para dar melhores condições às escolas e travar o trânsito de crianças para o Senegal. Um plano agrícola é moroso, até à sua concretização como se podem reter as crianças?
60 CRIANÇAS É O NÚMERO MÉDIO DE ESTUDANTES EM CADA ESCOLA CORÂNICA
Com centenas de escolas corânicas na Guiné-Bissau, porque são valorizadas as escolas do Senegal?
As escolas do Senegal têm uma grande tradição na formação de mestres corânicos, por isso são muito idealizadas pelas famílias e pelos próprios talibé.
Nos últimos anos, o trânsito para o Senegal tornou-se um grande problema para as crianças e jovens talibé, porque ele vem associado a situações de tráfico humano feito por falsas escolas corânicas.
Retirar uma criança do seu contexto familiar que ela conhece e colocá-
O melhor trabalho que podemos fazer agora é o da sensibilização, pode parecer algo muito simplista, mas o facto é que sem mudar os comportamentos das famílias e dos mestres corânicos para com as crianças, de nada adiantarão os planos, sejam agrícolas ou de outra ordem. As crianças precisam ser valorizadas, pela sua individualidade, pelos seus sonhos, não como uma força de trabalho. E o Estado precisa garantir que são protegidas e que todas têm acesso à escola pública e a cuidados de saúde. Essas mudanças são conseguidas através das palavras certas, junto das pessoas certas. .
O Centro Porta Amiga das Olaias é o equipamento social mais antigo da AM em Portugal.
HOJE PORTUGAL
TEXTO ANA MARTINS VENTURA FOTOGRAFIAS JOSÉ FERREIRA / AMI
O desafio foi lançado no início da década de 1980, para que a AMI dedicasse parte da sua intervenção a cuidar da população portuguesa mais distante dos centros urbanos. Depois de uma década dedicada à intervenção internacional com 21 missões realizadas, abriu o primeiro equipamento social em Portugal, transformando até hoje a vida de milhares de beneficiários, dos 0 aos 99 anos.
A AMI abriu a sua primeira Porta Amiga em Portugal há trinta anos e nunca mais a fechou, recebendo a todos, num país onde, segundo a Fundação Francisco Manuel dos Santos, 1,76 milhões de pessoas ainda vivem abaixo do limiar da pobreza, apenas menos 510 mil pessoas em relação a 1994.
A maior parte da sua intervenção social é dedicada às famílias que lutam por um futuro que não conseguem alcançar, procurando elevar sempre as oportunidades educativas para as crianças construírem futuros disruptivos dos ciclos de pobreza. Também lado-a-lado com as pessoas em situação de sem-
-abrigo, a AMI combate o preconceito e exclusão social e defende a dignidade humana e a empatia. Ao primeiro Centro Porta Amiga, nas Olaias, instalado no coração do bairro Portugal Novo, em Lisboa, a AMI somou as Portas Amigas de Vila Nova de Gaia, Porto, Coimbra, Cascais, Chelas, Almada, Funchal e Angra do Heroísmo, o Abrigo da Graça e o Abrigo do Porto, os Espaços de Prevenção da Exclusão Social – Sénior e Júnior, os Serviços de Apoio Domiciliário, as Equipas de Rua de Lisboa e Porto e a Residência Social de Ponta Delgada. Mais de 80.000 pessoas foram apoiadas, das quais cerca de 14.200 estavam em situação sem-abrigo e foram distribuídas mais de 4.880.000 refeições.
Hoje, “a pobreza em Portugal é uma questão complexa que, apesar dos esforços contínuos para a sua mitigação, afeta uma parte significativa da população”, afirma Ana Martins, uma das diretoras nacionais da Ação Social na AMI.
A análise da AMI sobre o contexto atual é alarmante. “Entre 2022-2024 verificou-se o aumento da população acompanhada”. Garante Ana Martins que “as políticas habitacionais e os baixos salários são dois dos grandes motores de produção e de manutenção dos elevados números relacionados com a pobreza”.
Se em 1995, com apenas um equipamento social em Portugal, a AMI contabilizava cerca de 1.500 beneficiários, em 2024, a AMI acompanhou cerca de 11.000 casos de apoio social, dos quais perto de 2.500 eram novos.
Do total dos atuais mais de 11.000 beneficiários acompanhados em 2024, 64% representam população ativa, com idades compreendidas entre os 30 e os 59 anos. As crianças e jovens, com menos de 16 anos, também representam uma percentagem significativa da população acompanhada, 28%, bem como os adultos com menos de 30 anos que representam 19% dos beneficiários.
Famílias com dificuldade em quebrar ciclos de pobreza
Margarida Mendes dirige o Centro Porta Amiga das Olaias, onde trabalha praticamente desde a sua inauguração, e traça uma perspetiva sobre a população acompanhada.
“As famílias são a população que prevalece nos equipamentos sociais da AMI”, cerca de 76%. E, a par deste número preocupante, atualmente o apoio alimentar já representa 65% da intervenção social nos Centros Porta Amiga (CPA), seguindo-se o vestuário (46%), abrigo (8%) e higiene pessoal (9%). Também as necessidades de emprego (28%), apoio financeiro (19%), medicamentos (19%) e consultas médicas (15%) são uma realidade da população acompanhada.
As políticas habitacionais e baixos salários
são grandes motores dos elevados números relacionados com a pobreza.
ANA
MARTINS, DEPARTAMENTO DE AÇÃO SOCIAL DA AMI
A maioria da população que a AMI acompanha está numa situação financeira muito vulnerável, “o seu vencimento é o salário mínimo e com isso apenas sobrevivem até determinada altura, porque basta alguém adoecer e ocorrerem despesas extra, para tudo correr mal”.
A norte, Jéssica Silva, diretora do Centro Porta Amiga do Porto descreve que “aumentaram os pedidos de ajuda, quer para a integração no Programa Pessoas 2030 (entrega de cabazes alimentares que ocorre mensalmente), quer para o restaurante social do Porto, onde são servidas 200 refeições diariamente”.
A situação de grave carência que as pessoas estão a atravessar divide-se em dois contextos, “as oportunidades de quem está integrado numa família e, devido a uma fase complexa, precisar de apoios sociais do Estado ou de uma instituição; e as oportunidades de quem não tem rede familiar, habitação digna, ou habitação sequer, situação ainda mais vulnerável para um imigrante”.
Falta de habitação é caso grave de dignidade humana
Susana Reis, diretora do Centro Porta Amiga de Vila Nova de Gaia que abriu atividade há vinte anos, destaca que, entre 2004 e 2024, muito mudou em
Vila Nova de Gaia, assim como no resto do país, no que diz respeito à intervenção social. “Se em 2004 poucas eram as instituições a trabalhar com a abrangência da AMI, desde o apoio alimentar, aos cuidados de saúde, consultas de psicologia, apoio com documentação e conclusão de processos junto da Segurança Social, hoje existem mais instituições com resposta polivalente”.
Do mesmo modo, a oferta de serviços sociais da AMI acompanhou as necessidades da sua população beneficiária, com serviços como o Espaço de Prevenção da Exclusão Social - Júnior no CPA de Vila Nova de Gaia, que recebe diariamente mais de 20 crianças. “Uma aposta clara na promoção das oportunidades educativas que tem sido premissa da AMI também com outros projetos como a Campanha Solidária AMI/AUCHAN, que permite entregar material escolar a mais de 3.400 crianças e jovens dos 3 aos 18 anos e o Fundo Universitário que permite a estudantes de licenciatura e mestrado o acesso a uma bolsa de estudo para pagamento de propinas”, destaca Susana Reis.
A diretora do CPA de Vila Nova de Gaia tem verificado que, “retornaram aos serviços sociais pessoas que já estavam autonomizadas. A questão habitacional é o maior obstáculo, as pessoas precisam de condições de vida para se sentirem seguras e abrigadas”. .
PORTUGAL HOJE
SAÚDE ALÉM DO PRECONCEITO
pensava que teria a sua família, “a violência sofrida ao longo de 13 anos foi devastadora”.
Mais do que apoio alimentar e de saúde, Anabela Gonçalves procura na AMI o escape à solidão. Canta no grupo Sons da Rua, que integra o projeto Liga para a Inclusão Social, no qual a AMI é uma das entidades parceiras.
Poetisa, cantora e ativista social, Anabela Gonçalves faz dos momentos mais difíceis que viveu a sua bandeira na luta por um mundo melhor, mais empático e fraterno. Conheceu a AMI quando, depois de 13 anos de violência doméstica, “chegou o dia da coragem”. Com dois filhos a seu cargo e a saúde física e mental fragilizada, procurou apoio no Centro Porta Amiga do Porto, para que a ajudassem a completar as despesas com medicação, para ter apoio psicológico e material escolar para os filhos.
Confiante, hoje Anabela Gonçalves empenha os seus dias a derrubar preconceitos, “qualquer pessoa pode precisar de apoio social e deve recorrer a ele num momento mais frágil da sua vida”. O seu caso e aqueles que conhece, fazem parte dos cerca de três milhões de pessoas diagnosticadas com algum tipo de sintoma de doença mental, aproximadamente um terço da população, segundo o Perfil de Saúde traçado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e o Observatório Europeu de Sistemas e Políticas de Saúde.
Anabela perdeu a mãe ainda criança e foi institucionalizada. Um dia fugiu para encontrar os irmãos, mas acabou por ficar na rua onde conheceu o pai dos seus filhos. Quando
A paixão por cantar e escrever entraram na vida de Anabela desde muito nova. “Dizem que um poeta tem alma de sofredor e tem mesmo, pensava que alguém, em algum lugar, se ia identificar com o que colocava nos cadernos, depois nos livros”.
Escreveu três livros: “Uma vida de lágrimas”, “Dedicatória” e “Entre o amor e a paixão”. Mas, para contar a sua vida escolhe um poema do irmão, “da história dele e de outros irmãos”.
“De calção roto, camisa suja Olhar maroto e fugindo à rusga Rouba o que vê
O que sabe tirar.
Ai não escreve e não sabe ler,
Não sabe chorar.
Miúdo da rua, sem eira nem beira
Com teto de lua, sem cama nem esteira.
Miúdo da rua, nascido do vento, Verdade tão crua, reduto do tempo.
De olhar traquina, descalço e só Senta-se à esquina e até mete dó.
Não teve um carinho de um pai de uma mãe, Ai bebe copos de vinho e sente-se alguém.”
A terapia da Arte
Também António Manuel transformou a arte em terapia, através da poesia e da pintura. Cresceu numa família com “pai alcoólico e mãe endurecida pela vida” aos quais ele e cinco irmãos sobreviviam. Recorda “uma casa sempre toda partida” e os gritos, quando “o pai chegava de madrugada e colocava todos na rua”.
Aos 13 anos deixou a escola para trabalhar na construção civil, “onde o medo que trazia desde a infância cresceu”.
Teve vários internamentos psiquiátricos e reformou-se cedo, por isso, em 1995, começou a ser acompanhado pelo Centro Porta Amiga do Porto, recebido como beneficiário da AMI, no mesmo lugar onde, na adolescência, tinha sido operário, quando o edifício era uma fábrica.
É no atelier do Centro Porta Amiga do Porto que dá forma ao que imagina com poemas ou pintura: “nos momentos de criação artística é como se estivesse a libertar-me dos fantasmas que tenho constantemente a assombrar-me”.
A saúde em família
O crescente impacto da saúde mental nas famílias e em pessoas em situação de isolamento social é um dos principais focos de prevenção por parte dos equipamentos sociais da AMI. A saúde, não só mental, como física também, é a principal razão de procura dos equipamentos da AMI por 33% dos beneficiários, existindo ainda casos de saúde mental que não estão diagnosticados.
Maria e Pedro representam uma geração de beneficiários da AMI que seria,
talvez, inesperada no âmbito do apoio médico e social. Maria licenciou-se em Turismo e fixou a sua vida profissional no Algarve. À medida que a saúde se começou a degradar, teve de abandonar as suas conquistas e regressar a casa dos pais.
Tudo começou aos 31 anos, com vertigens, dores nos joelhos e quedas, cansaço extremo e a sensação de estar mais lenta. Mas, a fibromialgia apenas surgiu como diagnóstico após uma queda grave em casa. Lamenta que depois de adoecer a família não tenha aceitado a sua condição.
A fisioterapia transformou-se em rotina e os valores elevados de todas as terapias e medicação assumiram um grande peso para os seus pais. “Os 306 euros da Pensão Social para a Inclusão não são suficientes, os medicamentos são caros e não comparticipados”.
Chegou à AMI depois de uma pesquisa online , para ter algum apoio quando já não conseguia pagar a medicação e porque começava a assumir o papel de cuidadora dos pais. No Centro Porta Amiga de Vila Nova de Gaia encontrou um “apoio que ainda
não tinha sido possível encontrar em outro lugar, com compreensão, atenção e cuidados de saúde”. O mesmo “apoio singular e adaptado” que Pedro encontrou do outro lado do Douro, no Abrigo do Porto.
Pedro cruzou a sua vida com os serviços da AMI depois de uma pesquisa online porque a sua saúde mental começava a ser motivo de confronto no ambiente familiar, “por não entenderem os sintomas e o acompanhamento que ia necessitar”.
Concluiu a licenciatura e ainda tentou o mestrado e desenvolver o percurso profissional para o qual estudou, “mas a saúde mental já tinha quebrado”. A primeira crise ocorreu em 2012, na universidade, quando ficou pela primeira vez três dias sem dormir, “não conseguia desligar o cérebro”.
Passados 13 anos da primeira insónia, na tentativa de se estabilizar psicologicamente pediu apoio à AMI e foi acolhido no Abrigo do Porto. Fica com esperança por perceber que na sua geração “a saúde mental está a deixar de ser uma questão que envolve vergonha e preconceito social para ser um direito pleno”. .
Escrever é a bandeira de Anabela Gonçalves contra o abandono social depois de sobreviver a 13 anos de violência.
Uma vida de violência deixou marcas profundas na saúde de António Manuel, mas na pintura esquece os seus fantasmas.
PORTUGAL HOJE
EDUCAÇÃO
UMA
OPORTUNIDADE SEM TEMPO CERTO
Dos Espaços de Prevenção à Exclusão
Social, à angariação de material escolar e ao projeto Fundo Universitário, a AMI apoia, todos os anos, o percurso escolar de cerca de 4.000 crianças e jovens.
Unidos ao redor de uma mesa de estudo ou de uma brincadeira no espaço de jogos, no Espaço de Prevenção à Exclusão Social (EPES) – Júnior, em Vila Nova de Gaia, pequenos beneficiários AMI sonham com o futuro em que vão ser polícias, professores, astronautas, médicos, youtubers, atores ou advogados. O mundo não se lhes apresenta fácil, as suas famílias muito enfrentam para que o seu futuro seja diferente, mas não deixam cair a leveza e a esperança para, através de mais oportunidades educativas, quebrarem ciclos. Após as aulas, no EPES Júnior têm a oportunidade de estudar de forma acompanhada e desenvolver atividades desportivas, que vão desde o basquetebol, ao ténis de mesa, skate e surf.
Para José Tiago o melhor que o EPES entrega é “a ajuda para fazer os trabalhos de casa e as brincadeiras depois do estudo”.
Soraia também aproveita o máximo de tempo no estudo acompanhado que o EPES proporciona. António pratica a leitura e a escrita, mas confessa que não gosta muito de estudar e Guilherme gosta de tudo, só tem pena de “ser o último ano no EPES” – com 15 anos, está na idade máxima que o serviço acompanha, aproxima-se o tempo da autonomia. Inês, além de estudar, também gosta de “ajudar as professoras”, não fosse a sua paixão ser, também ela, um dia, professora.
Amigos inseparáveis, Leonardo e Bernardo confessam que estão no EPES pela companhia um do outro. Daniel, se fosse para casa depois da escola ficaria “sem nada para fazer”, por isso o EPES representa “companhia”. Rui e Gabriel não gostam de estudar, mas é por isso mesmo que não deixariam o EPES, porque naquele espaço têm “apoio ao estudo, amizade, companhia depois das aulas” – de outra forma também ficariam horas desacompanhados depois das aulas e acabariam por passar muito tempo na rua.
Tendo em 2024 acompanhado um total de 55 crianças e jovens, os EPES Júnior dos Centros Porta Amiga de Vila Nova de Gaia e Cascais representam uma componente essencial no quotidiano das famílias, com o objetivo de prevenir situações de exclusão social e marginalização. Trata-se de uma população que apresenta, muitas vezes, níveis elevados de insucesso escolar, sendo essa a principal causa para a aposta no desenvolvimento de competências pessoais e sociais, para que as crianças e jovens acompanhados se sintam motivados, confiantes e determinados.
A mochila mágica
Sendo as necessidades educativas dos agregados familiares uma das prioridades identificadas no acompanhamento psicossocial da AMI aos seus beneficiários, a fundação garante também o acesso a material escolar desde 2009 através da Campanha Solidária que desenvolve em parceria com a Auchan. Em dezasseis anos foram entregues a crianças e jovens entre os 3 e os 18 anos, mais de 53.670 mochilas com material escolar com valor superior a 2.510.800 euros.
No Espaço de Prevenção à Exclusão Social de Gaia crianças e jovens têm acesso a estudo acompanhado e atividades lúdico-desportivas.
No Centro Porta Amiga de Chelas, Margarida, Cidália e Melissa recebem todos anos em setembro, mochilas com material escolar que, para os seus netos e filhos são quase mágicas.
Sem o impulso da Campanha Escolar Solidária AMI/Auchan no início do ano letivo “seria impossível dar à minha neta tudo o que precisa para estar bem na escola”, afirma Margarida. Para Cidália, com dois netos a seu cargo na escola, as mochilas com material angariado através das lojas Auchan, com recurso a vales, representam “uma questão de igualdade de oportunidades, pois, desta forma as crianças têm acesso ao mesmo material que outras crianças com mais recursos têm, o que faz muito pela sua autoestima e confiança nas oportunidades de estudar”. Melissa está certa de que “para comprar material escolar ficaria com sérias dificuldades financeiras durante alguns meses”. Priyal Vassaramo está a frequentar o mestrado, meta quase máxima de um percurso académico que não teria sido possível sem apoio financeiro e em material escolar. Foi beneficiária da Campanha Solidária AMI/Auchan,
do 1º ao 3º ciclo, o que representou a oportunidade de desenvolver o seu talento. Priyal recorda que “o material escolar recebido permitiu praticar mais o desenho, um interesse que depois foi convertido numa licenciatura em Artes Visuais e Tecnologias”. Um sonho que teria sido difícil concretizar sem o apoio extraordinário de uma bolsa de estudo atribuída no âmbito do projeto Fundo Universitário, através do qual desde 2015 a AMI atribuiu cerca de 500 bolsas de estudo.
Um sonho sem limites
Sílvia não chegou à universidade na juventude, mas estudar é um sonho do qual nunca desistiu e foi pela sua
perseverança que, depois de entrar no mercado de trabalho, realizou formação em cursos de horário pós-laboral, para equivalência ao 9.º e 12.º ano. “Em casa éramos oito e os nossos pais não conseguiam manter a despesa de uma frequência universitária”. Foi para “ajudar em casa” que, aos dezasseis anos decidiu começar a trabalhar, com um compromisso assumido consigo mesma: “o interregno nos estudos seria sempre temporário”. Hoje, a trabalhar na área da vigilância que sempre havia ambicionado e para a qual realizou formação, quer que o seu filho concretize todos os sonhos que ela não pôde concretizar “pelo menos até hoje, porque o futuro ainda pode trazer surpresas”.
O apoio da AMI surgiu na sua vida quando se separou e o filho mais novo precisou de ocupação de tempos livres que começou a frequentar no EPES Júnior do Centro Porta Amiga de Vila Nova de Gaia, contando também com material escolar. Em 2024, surgiu um novo apoio, o filho teve acesso a uma bolsa de estudo atribuída pelo Fundo Universitário da AMI.
O seu caso é representativo dos 16% de um total de mais de 11.000 beneficiários da AMI que, mesmo tendo rendimentos provenientes de um salário fixo, não conseguem fazer face a todas as despesas do agregado familiar, inclusive aquelas relacionadas com a educação. .
PRIYAL VASSARAMO
PORTUGAL HOJE
HABITAÇÃO CASA, UM DIREITO CADA
VEZ
MAIS RARO
Antónia Mimoso tem no Centro Porta Amiga de Vila Nova de Gaia uma segunda casa, desde que os filhos ali frequentavam o Espaço de Prevenção à Exclusão Social –EPES Júnior depois da escola, enquanto ela trabalhava. Também a partir da Porta Amiga de Gaia os seus filhos recebiam material escolar. Desde que se divorciou, o seu plano de intervenção social incluiu apoio jurídico-legal na procura por habitação com valor acessível, além de apoio alimentar e psicológico. A sul, no espaço +Comunidade, serviço dedicado à comunidade sénior no Centro Porta Amiga das Olaias, Cristina Machado é um dos rostos que ajudou a fundar o bairro Portugal Novo, numa época em que os bairros de lata marcavam a paisagem de Lisboa. As duas beneficiárias da AMI sonharam com uma casa que compensaria todos os sacrifícios da meninice passada a trabalhar. Conquistaram o que lhes foi possível, para mudar as oportunidades de vida dos seus filhos e quebrar o ciclo de pobreza. Das mais de 7.600 pessoas acompanhadas pela AMI em 2024 e a residir em casas, quase metade (4.079), tinham como solução habitacional casa arrendada, mais de 2.700
tinham habitação social e apenas cerca de 780 mantinham casa própria. A par desta análise, a AMI verificou que, entre as mais de 1.350 pessoas em situação sem-abrigo acompanhadas, na categoria sem-casa inserem-se cerca de 180, que se encontram a residir em alojamento temporário, de emergência ou destinado a vítimas de violência doméstica. Além disso mais de 100 beneficiários em situação sem-habitação utilizam barracas e construções clandestinas como soluções habitacionais. Como principais motivos da situação sem-abrigo e consequentemente de acompanhamento na AMI, 29% desta população refere a insuficiência financeira e 12% despejo ou desalojamento, sendo a perda de habitação atualmente uma das preocupações centrais dos Serviços de Ação Social.
Orçamento negativo
Quando Antónia ganhou coragem para procurar apoio no Centro Porta Amiga de Vila Nova de Gaia tentava, sem sucesso, alugar uma casa com um valor que fosse acessível para o seu pequeno orçamento familiar. “Foi já com a ajuda da Porta Amiga de Gaia que a solução surgiu” explica Antónia, recordando que teve de aceitar a única casa que podia pagar, “enquanto não aparece uma oportunidade melhor”.
A casa está longe da habitação que idealizou um dia proporcionar aos filhos, “com dois quartos muito pequenos, cozinha e casa de banho pegadas, alugada por 300 euros”, o mesmo valor da sua pensão de invalidez que, em breve, será ultrapassado, com o aumento de 29 euros previsto para a renda.
Segundo o INE, no 3.º trimestre de 2024 o valor dos 23.684 novos contratos de arrendamento realizados em Portugal cresceu 10,7%. As rendas mais elevadas registaram-se na grande Lisboa, Região Autónoma da Madeira, península de Setúbal, Área Metropolitana do Porto e Algarve.
A subsistência da família de Antónia só é garantida porque, à pensão de invalidez, une o abono dos filhos e o Rendimento Social de Inserção. No total, recebe cerca de 700 euros por mês, para uma família de três. “Podia ser pior” lamenta, “após o divórcio pagava 400 euros por um quarto”. Antónia Mimoso deixou cedo a escola e ainda na sua infância a mãe organizou o necessário para que tivesse uma pensão de invalidez, “devido a problemas graves de saúde”. Tal não impediu a mãe de a colocar a trabalhar aos doze anos na dura rotina das vinhas. Quando a sua irmã mais velha foi trabalhar para o Porto, após algum tempo, Antónia seguiu-a. A condição financeira das duas irmãs era razoável e chegaram a alugar um apartamento. Depois, a irmã casou e Antónia ficou a morar sozinha, num quarto alugado. Nessa época frequentava aulas à noite, para fazer o 4.º ano de escolaridade, onde conheceu o pai dos seus filhos.
O casal comprou um apartamento, mas devido a dificuldades financeiras entregaram a casa ao banco. Desde então, Antónia nunca mais conseguiu ter uma morada fixa a longo prazo e teme que, um dia, as dificuldades na habitação deixem a família na rua.
O bairro, um sonho
Ter uma habitação digna para a família também foi sempre uma das grandes precupações de Cristina Machado. Tal como Antónia Mimoso, cedo deixou a sua terra natal rumo a uma grande cidade, no seu caso Lisboa, onde começou a trabalhar a “servir na casa de uma família”.
Viveu em quartos alugados em pensões enquanto esteve solteira e mesmo depois de casada e já com uma filha.
“A habitação como hoje a conhecemos foi algo que muitas pessoas da minha geração, agora nos seus setenta e muitos anos, só conheceram na vida adulta e depois de casar. Fosse porque viemos das aldeias no interior do país, onde as casas eram muito humildes, não tinham água canalizada, nem eletricidade, ou porque vivíamos nas cidades, mas em casas precárias”, conta Cristina sobre um tempo em que “vivia-se muito em pensões, quartos alugados, barracas”.
Cristina Machado (à direita) com os seus companheiros do espaço +Comunidade, projeto da AMI dedicado à inclusão da população sénior.
Cristina Machado chegou às Olaias há 41 anos, ainda o Centro Porta Amiga das Olaias não existia nem o bairro Portugal Novo, que o seu marido ajudou a criar.
“Primeiro vivemos numa casa de madeira”, recorda Cristina Machado sobre as Olaias. Em 1994, o casal estreou as casas do bairro Portugal Novo, o que representou uma oportunidade de muitas famílias quebrarem a pobreza, porque saíram das barracas em que viviam e conquistaram uma casa digna para os seus filhos, que só por isso tiveram outras oportunidades de vida”.
No Portugal Novo, Cristina criou os filhos e assistiu à abertura do Centro Porta Amiga das Olaias onde é hoje beneficiária do espaço +Comunidade. .
Antónia Mimoso sempre sonhou com uma casa, que seria o seu presente e o futuro dos seus filhos.
PORTUGAL HOJE
EMPO— DERAMENTO
(RE)VIVER
ALÉM DO ESTIGMA SEM-ABRIGO
E I NC LU
Se os elevados valores da habitação são hoje um obstáculo quase intransponível na reinserção social de quem vive em situação sem-abrigo, no passado, o que definiu a situação sem-abrigo de Carlos Gonçalves foi “a perda do cuidado familiar”.
Carlos Gonçalves e Joaquim Alves viveram em situação de sem-abrigo durante mais de trinta anos, um nas ruas de Lisboa, outro nas ruas do Porto, depois de perderem os cuidados da família.
As suas vidas são representativas das mais de 14.200 pessoas em situação sem-abrigo que a AMI acompanhou ao longo de 30 anos de intervenção social em Portugal. Hoje, a população em situação sem-abrigo e que se enquadra na tipologia definida pela Federação Europeia das Organizações que Trabalham com a População Sem-Abrigo (FEANTSA) representa 12% da população total acompanhada pela AMI, seja através dos serviços disponíveis nos Centros Porta Amiga, de interações com as Equipas de Rua ou de inserção no Abrigo do Porto. Só em 2024, foram acompanhadas nos serviços da AMI mais de 1.300 pessoas em situação de sem-abrigo.
Criado no bairro da Urmeira, em Lisboa, Carlos Gonçalves foi entregue com seis meses aos avós, que lhe deram “uma infância muito feliz”. Aos catorze anos, depois dos avós morrerem, foi viver com a mãe, mas o que encontrou “não era aquilo que tinha perdido”, por isso decidiu viver na rua.
Hoje considera que “há mais possibilidades de uma pessoa sem-abrigo mover-se, escolher sair da rua e autonomizar-se”. Mas, “há mais de quarenta anos havia poucas instituições a apoiar as pessoas sem-abrigo e era raro ver jovens a viver nas ruas”.
O que mais o magoa é ver que, “às vezes, o sem-abrigo não é acolhido pelas pessoas que por ele passam na rua e fica num estado de grande isolamento social”. O mesmo isolamento que tantas vezes levou Carlos a comentar com as equipas de rua das instituições, “não é só o comer que sabe bem, superior ao comer é um olhar, um sorriso, um aperto de mão, um conselho”.
A AMI entrou na sua vida em 1994, através de um amigo e companheiro de rua, que lhe falou de “uma instituição nova perto do Centro Comercial das Olaias”. Gostou da “dignidade na forma como recebiam no Centro Porta Amiga das Olaias quem ali chegava” e ele precisava de algo tão simples como “um banho quente, uma refeição, uma palavra amiga”.
A caminhada foi grand e , com muitos altos e baixos até conseguir sair da rua.
CARLOS GONÇALVES
SÃO
Foi no Centro Porta Amiga das Olaias que conheceu a mãe da sua filha. Carlos queria ter há uns anos o que tem hoje, casa e trabalho fixo, porque fez falta para dar melhores condições de vida à família.
Com dificuldades financeiras, o casal viveu de pensão em pensão até ser alertado: se continuassem assim, perderiam a guarda da filha. Decidiram seguir caminhos separados. “A minha esposa foi para a casa de familiares, com a minha filha e eu segui o mesmo rumo de antes, a rua”.
A sua relação com a AMI mantém-se até hoje, “a caminhada foi grande, com muitos altos e baixos até conseguir sair da rua”. Logo que a sua vida mudou, com uma oportunidade profissional numa empresa de higiene urbana, começou a dedicar uma parte do seu tempo a ajudar quem passa pelo mesmo que passou, “se tiver 100 euros no bolso e alguém precisar, entrego”. Para Carlos, “o mais importante é ter usado aquele dinheiro para ajudar alguém que está com dificuldades”.
Um sonho profissional interrompido
Joaquim Alves, nascido e criado no Porto, no Bairro dos Francos, teve algumas oportunidades de formação escolar e profissional
Depois dos avós, seus cuidadores, morrerem, Carlos Gonçalves começou a viver na rua e assim ficou 30 anos.
Institucionalizado aos 14 anos, Joaquim Alves sentiu que a sua vida foi boicotada.
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE SEM-ABRIGO
REPRESENTA 12% DOS BENEFICIÁRIOS DA AMI
79% Homens
14.229
pessoas em situação de sem-abrigo
que interrompeu. Faz parte dos 20% da população em situação sem-abrigo acompanhada pela AMI, que tem o 2.º ciclo de escolaridade. Apesar das dificuldades da família, os avós começaram a dar-lhe oportunidades desde a primeira infância e antes de entrar no 1.º ano já sabia ler e escrever.
Ainda criança “costumava ajudar um tio que tinha uma banca de jornais”. Vendia nos bancos e na rotunda da Boavista onde apregoava, “Olha a Bola. Olha o Porto é campeão” e a partir daí surgiu a maior inclinação pelo trabalho.
Na adolescência foi colocado num curso de metalomecânica pelos avós, mas a sua paixão sempre foi a hotelaria e a restauração. Para seguir o seu sonho deixou o curso e começou a trabalhar numa pastelaria com apenas catorze anos. “Deixar o curso e chegar a casa teve um preço alto”, a sua mãe
22% 40 a 49 anos
20% 50 a 59 anos
71% Solteiros/divorciados/viúvos
9% Casados/união de facto
60% Portugueses
27% Imigrantes
16% 1.º ciclo de escolaridade
20% 2.º ciclo de escolaridade
9% Ensino secundário
4% Ensino superior
fez queixa às autoridades e Joaquim foi institucionalizado até aos dezoito anos. Quando recorda o momento em que saiu para a liberdade sente grande frustração, pois “estava marcado, já tinha começado a consumir drogas”. A AMI apareceu na sua vida depois de sair de uma unidade terapêutica para a toxicodependência. Sem casa, Joaquim procurou o amigo Sérgio, que era acompanhado pelo Centro Porta Amiga do Porto e, além de lhe dar abrigo, levou-o a um atendimento social.
Quando Sérgio morreu, Joaquim viu-se obrigado a voltar à rua, porque “a casa era do bairro [municipal]”. Sobreviveu a muitas situações de humilhação e preconceito na rua. “Uma noite, enquanto dormia, uns miúdos aproximaram-se, despejaram whisky nos cobertores e pegaram fogo a tudo”, Joaquim acordou a tempo de não ser
incendiado. Foi acolhido num abrigo, mas como ia começar a receber Pensão Social de Inclusão (PSI) planeava alugar um quarto. O problema foram os elevados valores cobrados que os 270 euros da PSI não conseguiram acompanhar. Voltou à rua e apesar das dificuldades tentou sempre manter um trabalho. Foi para se apresentar no trabalho “em condições” que regressou ao Centro Porta Amiga do Porto, “para fazer as refeições e a higiene”. A trabalhar num reconhecido restaurante do Porto acredita que a sua vida teria sido diferente se não tivesse sido institucionalizado, mas não guarda mágoas, “a vida segue e muitas coisas ainda vão ser conquistadas”. .
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