EM FORMATO DIGITAL N.º 87 Distribuição Gratuita 4.º trimestre de 2022 MUNDO, UM HOSPITAL PARA FERNANDO NOBRE notícias Histórias de Vida FOME, A SOMBRA DAS FAMÍLIAS RUA, O MEDO DE VOLTAR Entrevista Neemias Queta
AGORA TAMBÉM
Entrevista – Neemias Queta
Há um hospital perdido no mato com o sonho de um homem
“Que a casa seja minha, para sempre” Numa vida preso, na outra ‘arquiteto’ da AMI
Solidariedade ajuda famílias portuguesas em 2023
“Marcadas, não derrotadas” “Para sempre, por agora” “Senti-me de África assim que cheguei a Moçambique”
AMI convida – Mussa Baió e Mamadú Sambú
“Conto” de Natal: O Tempo da menina descalça
Breves – Nacional, Internacional, Mecenato Agenda + Loja AMI Voluntariado
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Ficha Técnica Publicação Trimestral
Diretor Fernando Nobre Diretora Editorial Luísa Nemésio Edição Ana Ferreira Redação Ana Martins Ventura Fotografia AMI, Direitos Reservados Paginação Companhia das Cores – Ana Gil, Lúcia Antunes Tiragem 52.000 exemplares Depósito Legal DL378104/14
02 | AGORA TAMBÉM EM MUNDO, UM HOSPITAL PARA FERNANDO NOBRE notícias Histórias de Vida FOME, A SOMBRA DAS FAMÍLIAS RUA, O MEDO DE VOLTAR Entrevista Neemias Queta Foto © NBA Portugal DONATIVOS LOJA ONLINE FACEBOOK + FOTOGRAFIAS + TEXTOS + VIDEOS ACEDA À VERSÃO DIGITAL DA AMI NOTÍCIAS UTILIZE O LEITOR DE QR CODE DO SEU DISPOSITIVO MÓVEL E TENHA ACESSO A MAIS CONTEÚDOS. OS ÍCONES QUE ENCONTRA NO FINAL DOS ARTIGOS INDICAM-LHE OS CONTEÚDOS EXTRA A QUE TEM ACESSO ONLINE:
número da AMI Notícias foi editado com o especial apoio da revista VISÃO (Distribuição), COMPANHIA DAS CORES (Design), LIDERGRAF (Impressão e Acabamento) e CTT – Correios de Portugal
reprodução dos textos desde que citada a fonte.
Assistência Médica Internacional R. José
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NATAL: AMOR, COMPAIXÃO E GRATIDÃO!
Este texto é dedicado a uma época que nos deveria incentivar ainda mais a pensar no outro, sempre nosso Irmão: O Natal.
Pouco importa, se em tempos já imemoriais esta época fosse festejada como festa pagã que foi. O que hoje verdadeiramente me interessa, enquanto crente e cristão que sou, é o que o Natal me inspira: cuidar do outro. O Amor, a Compaixão e a Gratidão são as forças motoras que nos devem nortear a fim de transformarmos a nossa Humanidade, mantendo viva a Esperança, hoje mais do que nunca.
O medo, o desespero, a fome e a absoluta incerteza agravaram-se substancialmente nos últimos três anos devido ao total desnorte de uma desgovernação glo bal, distópica e desumana.
Perante o caos instalado importa continuarmos a for talecer com veemência, vigor e sem a mínima tibieza a Solidariedade entre todos nós, com particular tónica em relação aos mais fragilizados e desvalidos cujo número está num crescendo exponencial assustador tanto em Portugal como no Mundo!
Ou recentramos, com absoluta urgência, as priori dades da sociedade humana ou entraremos rapida mente numa espiral decadente a caminho do pre cipício!
Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse entraram desde já a galope e só falta que os seus cavalos mordam os freios e passem a um galope apavorado, desembes tado. A Doença, a Guerra, a Fome e a Morte toma rão conta do Mundo, se não lhes for posto um termo com caráter de extrema urgência, pondo em perigo a civilização atual.
Os freios a acionar nesta tragédia já em curso perante os nossos atónitos olhos, são:
Amor, Compaixão, Solidariedade, Responsabilidade, Exemplaridade... em suma, a primazia dos Valores Universais… a Luz!
Assim penso, assim creio. Possamos todos unir forças para este objetivo!
Se penso todos os dias nos meus Heróis, os mais vulne ráveis entre os vulneráveis que há muitas décadas me incentivam a continuar a lutar pela Humanidade e os Direitos Humanos, no Natal penso ainda muito mais. Sim, façamos um reinício do nosso Mundo sustentado no Amor, e na luta sem tréguas contra a ganância, a corrupção, a indiferença, a insensibilidade e a intole rância que os pretensos donos do Nosso Mundo estão a instalar e paremos já os Cavaleiros do Apocalipse!!
Que o Natal nos guie com muito Amor e Luz!
SUMÁRIO + EDITORIAL | 03
Fernando de La Vieter Nobre Presidente e Fundador da AMI
© Gabriela Nemésio Nobre
NEEMIAS QUETA
“QUANDO JOGO, LUTO CONTRA TODOS OS 'NÃOS' QUE JÁ OUVI”
De menino tímido num primeiro jogo de basquetebol de sandálias, a homem da NBA, aos 23 anos, Neemias Queta é uma grande promessa da liga mais famosa do mundo. Os seus singulares 2,13 m de altura, conjugados com trabalho duro, sonhos resilientes e a resistência ao ‘não’ levaram-no à posição de poste na equipa californiana Sacramento Kings.
De sandálias e quase por acaso. Fui acompanhar a minha irmã ao Barreirense [Futebol Club] e não sabia que havia lá uma equipa a treinar basquetebol. Quando cheguei, perguntaram se queria treinar, eu aceitei. Tinha onze anos, podia ter corrido tudo mal e eu ter preferido ficar na rua com a malta do bairro. No entanto, algo me empurrou para essa escolha, para fazer a escolha naquele momento e tenho a certeza de que foi a melhor que podia ter feito.
Sentiste que estavas no lugar certo?
Não fiquei muito confortável, talvez por estar de sandá lias, ou por ser um acaso. De qualquer forma, naquele momento, fiquei logo com um bichinho pelo basquetebol. Antes desse dia, tentei jogar futebol, mas resultou. Já era muito alto, o que me tornava também muito desengon çado em relação aos outros miúdos em campo. Depois, nos primeiros anos de basquetebol, os jogos eram mais uma diversão do que algo sério. Saía da escola, não tinha nada para fazer e pensava “vou jogar basquetebol”. Mantinha-me em forma, viajava pelo país, tinha os meus amigos no Barreirense. A irmandade que se cria numa equipa de basquetebol é muito forte.
Quando se formou a ideia de uma carreira no basquetebol?
Tinha 17 anos e o Bruno Regalo, que era o nosso treina dor no Barreirense, a certa altura sacudiu-me para a rea lidade. Disse que eu tinha todas as condições para fazer uma carreira no basquetebol. Do Barreirense também já tinham saído outros jogadores rumo aos EUA, assim como vieram alguns de lá, em intercâmbios. Então não era um objetivo descabido nem apenas um sonho. Podia ser real, podia ser concretizado, com muito trabalho, muito sacri fício, tal como foi e continua a ser todos os dias. A partir daí, comecei a jogar na Seleção Portuguesa de Basquetebol, depois apareceu a proposta para jogar no Benfica. Nesse dia estava com a seleção para o EuroBasket Sub-18.
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© NBA Portugal
Passar de um perfil amador para jogador profissional foi um grande salto para um jovem de 17 anos. Acho que esse foi o ponto de viragem de toda a minha vida. Percebi o que era preciso para ser profissional. Soube o quanto tinha de dar para chegar longe, o quanto tinha de trabalhar todos os dias. Ao mesmo tempo, acabar o 12.º ano para ser possível candidatar-me a uma bolsa de desporto universitária, no exterior, se um dia, hipoteti camente, surgisse essa oportunidade.
Como surgiu a hipotética bolsa universitária?
Foi na época do EuroBasket Sub-18. Após um jogo com Israel fui entrevistado e fizeram um vídeo comigo. Então, a Next Level Sports, que procura jovens atletas, contac tou-me para saber se estava interessado em tentar uma bolsa universitária. O meu nome também já começava a ser falado nos EUA entre os treinadores universitários. Uma prova de que mesmo quando achamos que nin guém está a ver, devemos dar o nosso melhor. Depois de tanto pensar e duvidar se era ou não capaz, por pouco não perdia tudo. O Europeu foi intenso e tive de fazer os exames nacionais em época especial, o que me deixou em suspenso até ao último minuto. Nos EUA, deparei-me com uma realidade completamente diferente, não só em ter mos de país, mas na relação do desporto com o ensino
Os jovens portugueses deviam apostar mais no desporto?
Acho que em Portugal os atletas deveriam ter mais pri vilégios, talvez assim os jovens pensassem mais no des porto como algo profissional ou, mesmo como amado res, que vejam o desporto de forma séria ao longo da vida escolar e académica. E, mesmo depois desse tempo, como fonte de saúde, bem-estar, espaço de amizade e de valorização, onde se criam competências também muito importantes para outras áreas profissionais, como trabalhar em equipa, resistência e resiliência.
Um conselho para quem luta por uma bolsa desportiva? Trabalhem muito quando ninguém está a ver para que, quando estiverem a ser observados, possam triunfar. Quando jogo, luto contra todos os 'nãos' que já ouvi. É essa mensagem que gosto de deixar a quem quer fazer um percurso no desporto, nas artes, no jornalismo, em qualquer paixão que tenham. Lutem todos os dias contra a negativa, contra a vontade de desistir, mesmo quando estiverem feridos, lesionados no físico como já estive, ou na alma.
Quando se cresce num bairro o maior medo são os ‘nãos’?
No bairro sonhamos tudo ou nada. Depende sempre do que nós próprios queremos tirar do presente e conse guir no futuro.
Claro que em casa, no café, no campo de jogos podes ouvir “isso é difícil conseguir” ou “estás a sonhar”. No Vale da Amoreira tens as histórias de vida mais terríveis a viver ao lado das mais belas, se for preciso. Há falta de dinheiro, famílias partidas entre os que ficaram em África e os que precisaram vir para Portugal. Solidão, fome, tudo isso. Mas, ali nunca ouvi alguém dizer “não tentes, não vale a pena”. Fora do Vale da Amoreira, ouvi, sim.
Jogar fora de Portugal sempre foi um sonho? Nunca coloquei essa opção ao longo da minha vida até àquele ponto do EuroBasket Sub-18 de 2017.
Como todos os jogadores de basquetebol, sonhava marcar um triplo no último segundo para ganhar uma final do March Madness, o campeonato de basquete bol universitário nos EUA. Ou fazer um triplo numa final da NBA.
São sonhos que todas as crianças e jovens devem acalentar, porque movem -nos. Sem darmos conta, os sonhos plantam a semente ou deixam o bichinho por alguma paixão de vida que temos. E quando menos espe ramos, esses sonhos concretizam-se porque trabalhamos e fomos movidos por eles.
Ouvir o teu nome no Draft da NBA, em 2021, quando trinta equipas estavam a recrutar jogadores para a liga, foi uma confirmação da máxima: lutar sempre contra os ‘nãos’.
Foi incrível. Queria correr. Gritar. A primeira coisa que fiz foi abraçar a minha mãe. Tinha de ser o primeiro ato, porque também era o nome dela que estava a ser dito naquele momento de entrada na NBA.
Nesse minuto, exorcizei muitas coisas que ainda arrastava dentro de mim. Principalmente as dúvidas que tive num determinado momento e até me levaram a questionar se devia seguir em frente ou parar.
Talvez essas dúvidas estivessem plantadas por causa do que ouvi fora do bairro. Nunca vou saber ao certo. Naquela noite desapareceram. Quando fiz o primeiro afundanço num jogo da NBA, quando ganhei um jogo, então foi uma explosão de con cretizações.
ENTREVISTA | 05
“No bairro sonhamos tudo ou nada. Depende sempre do que nós próprios queremos tirar do presente e conseguir no futuro.”
HÁ UM HOSPITAL PERDIDO NO MATO COM O SONHO DE UM HOMEM
Quando fundou a AMI “o mundo era mais fácil, apesar de haver menos comuni cações”. Hoje uma ONG não é tão pro tegida no terreno, mas Fernando Nobre não desiste de levar o humanismo onde é preciso.
Criou um hospital no mundo, capaz de se erguer nos luga res mais recônditos, mas ainda sonha com o seu pequeno hospital, perdido no mato, onde poderia ser mais do que um médico, “um homem com magia para curar os feridos e esquecidos, tal como fez Albert Schweitzer”.
Fernando Nobre viajou por 85 países, acompanhou 54 missões de emergência da AMI em 39 países, das quais 32 decorreram em cenário de guerra, 19 após catástrofes naturais e 5 em locais com surtos epidémicos. Foi grande a viagem e pelo tanto que o seu olhar se estende para lá da sala, onde uma imagem de Aristides Sousa Mendes lidera a luta contra a indiferença, haverá novas terras por descobrir e dores para apaziguar. No começo dos seus contos, ainda as cadeiras se arrastam e já nos está a levar em viagem pelo mundo, entre uma estrada picada de África e as montanhas da América Central.
Viu a democracia nascer e morrer na Guiné-Bissau com Nino Vieira. Jantou com Mário Soares, apertou a mão de Jacques Chirac e levou o primeiro governante português ao Sri Lanka.
“Já não há convites, as ideias próprias têm um preço”, mas não guarda mágoa do esquecimento, depois de ter sido deputado e candidato à presidência da República. Tem “pena, sim, de em 38 anos de existência a AMI nunca ter sido condecorada em Portugal”.
Assume-se como um “homem feliz e realista, de 70 anos, que conhece um pouco do mundo e do Homem”. Recentemente, descobriu, por acaso, que em 2003 foi indi cado para o Nobel da Paz. De qualquer forma, quando em 1999, os Médicos Sem Fronteiras foram distinguidos com o Nobel da Paz, sentiu que deu o seu “grão de areia”. “A vida é uma sucessão de acasos”, em que os Médicos Sem Fronteiras foram a razão da sua grande aventura.
“JOVEM CIRURGIÃO DE ORIGEM PORTUGUESA…”
Em 1981, Fernando Nobre partiu em missão com os Médicos Sem Fronteiras para o Chade, onde decorria a guerra entre o movimento rebelde e o Governo apoiado pela Líbia. Planeava entrar no país a partir da fronteira com o Sudão, onde se cruzou com um jornalista e um
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Fernando Nobre © Gabriela Nemésio Nobre
fotógrafo em apuros, da revista francesa L’Express e da agência Sigma. Num impulso, impôs uma vontade “ou pas sam todos ou não passa ninguém”. Não foi uma atitude inocente “sabia que eles precisavam dos Médicos Sem Fronteiras”. Depois de uma tarde intensa de negociações a fronteira abriu.
A L’Express publicou a reportagem sobre o Chade, com uma fotografia de Fernando Nobre a operar e a legenda “jovem cirurgião de origem portuguesa…”.
Em Portugal, o jornalista Rui Araújo, que trabalhava na equipa da Grande Reportagem da RTP, dirigida por Barata Feyo, leu a reportagem e pensou “quem será este português?”.
Às vezes, pensa sobre aquele momento na fronteira entre o Sudão e o Chade. “Se tivesse dito: vocês vão para um lugar e nós para outro. Se o Rui Araújo nunca tivesse visto a fotografia, o Barata Feyo nunca teria acompanhado uma missão em 1983 e feito a reportagem que levou o ministro da Saúde da altura, Maldonado Gonelha, a enviar-me um convite: se passar por Portugal, gostaria de o conhecer”. O convite e conversa que deram origem à AMI.
Nasceu em Luanda, dali passou para Bruxelas, onde estu dou Medicina. O primeiro contacto com Portugal, terra paterna, foi no verão quente de 1975, com 23 anos. “Um País ainda muito formal, influenciado por décadas de dita dura” e onde “as mulheres pareciam princesas, todas de vestido, sapato de salto e belos penteados”. Assim tudo lhe pareceu e assim o “encantou”, ao ponto de “amar a terra de imediato”. Oito anos depois regressava, para fundar a AMI, em dezembro de 1984.
“Na época, o mundo era mais fácil, apesar de haver menos comunicações”, afirma Fernando Nobre. “Agora, o risco para colocar uma equipa humanitária no terreno é muito maior. Somos corajosos, não suicidas”, afirma. Fundaria a AMI, uma e outra vez, mas sabe que “não pode ria fazer missões como a de 1998, na Guiné-Bissau, onde a AMI foi a primeira a entrar, durante o levantamento da Junta Militar”.
Nesse tempo, “as ONG entravam nos países como um tiro no escuro”. Na coluna humanitária da AMI, “o camião levava 20 toneladas de tudo o que se podia imaginar”. E, uma vez dentro da Guiné, ninguém sabia onde ficaria o centro de operações.
A guerrilha de Ansumane Mané (chefe da Junta Militar levantada pelo PAIGC - Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), descontrolada e sem o conhe cimento dele, chegou a invadir a missão da AMI e rou bar três jipes.
Depois de uns telefonemas, Fernando Nobre acabou a falar com o próprio Ansumane. “Senhor brigadeiro, os seus homens roubaram os jipes da AMI e a equipa está ater rorizada”. Horas depois, Ansumane aterrou de helicóptero na missão e ordenou: “quero os jipes da AMI aqui”. Nesse momento “todos ficaram a saber que a AMI era intocável”.
nos países
A primeira missão que fez com AMI foi na Guiné-Bissau, em Lugadjole, região do Boé, “onde ninguém se atrevia a ir”. Terra de homens grandes onde, num tempo não muito distante, se pensou fazer a capital do país, a Lugadjole chegavam pessoas de vários pontos da Guiné-Bissau, do Senegal e da Guiné-Conacri. Uma noite apareceu um homem com uma hérnia estrangulada. “Coloquei uma panela de pressão na fogueira para esterilizar compres sas e um afastador, feito com duas colheres, anestesiei-o da cintura para baixo e operei. No dia seguinte, o homem estava de pé. Essa é a lição que estes povos nos dão”.
MULHERES E HOMENS DE VIDAS INCRÍVEIS
No Chade, pediram a Fernando Nobre para “ir ver uma velha senhora que tinha tantos trapos e sangue sobre o peito, que nem se percebia de que eram as feridas”. Era necessário operar rápido e ali mesmo, na cabana dela. Ao redor do cirurgião, cinco homens colocaram-se em sentido, de lança na mão. Então perguntou ao seu assistente chadiano “tu explicaste bem que a senhora pode morrer lá dentro? Expliquei, expliquei!”, respondeu o homem. No dia seguinte, a mulher estava de pé, à volta da fogueira.
Já no Uganda, um homem com HIV e três filhos ao seu cuidado, ganhava a vida a cozer tijolos de barro e palha. “Agarrou uma oportunidade e tornou-se um herói”, para Fernando Nobre.
A AMI ajudou-o a desenvolver mais o fabrico de tijolos. Ele comprou uma rede mosquiteira, depois uma bici cleta. A seguir porcos, galinhas, uma vaca. Por fim, um terreno, onde cultivou milho e, “a última vez que nos encontrámos, estava a começar a construir uma casa, com os tijolos que cozia”.
No Bangladesh, conheceu um pai de cinco filhos que tra balhava a pedalar um rickshaw (tuc-tuc) desde as 5h00 às 23h00, para ganhar um dólar. “As pessoas sabem o que é viver com um dólar por dia?”, questiona Fernando Nobre. Nesses países, quando o custo de vida aumenta 40% e o dólar daquele homem passa a valer 0,60 cên timos, “só resta a revolta”.
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“As ONG entravam
como um tiro no escuro.”
Paulo, Fernando, Antero e António estarão sempre em risco de viver na rua, se não tiverem habitação com renda acessível.
“QUE A CASA SEJA MINHA, PARA SEMPRE”
Órfãos, meninos de rua nos bandos dos anos 70 e 80, explorados por traficantes de droga, escravizados em falsas oportunidades de emprego, não aceitam a rua como destino final e lutam pela casa própria.
Comandante de um canto partilhado com dois compa nheiros de rua, Paulo adia planos de vida “enquanto não tiverem todos lugar para ir, talvez para casas”. De descaso, “basta a indiferença de quem passa pelas tendas”, alinhadas à beira da estrada. Há alguns meses, Paulo “tinha mil pessoas à frente, na lista de acesso à habitação social, agora tenho 400”. Enquanto vigia a panela com o almoço ao lume iro niza: “subi uns lugares”. Vale a pena esperar, porque “a vida encareceu, os quartos alugados são sol de pouca dura e quando sair da rua, que a casa seja minha para sempre”. Com 52 anos, Paulo carrega quarenta de rua, albergues e abrigos, quartos alugados e regressos à rua. Ciclo repetido entre fugas de “casas de correção” e o trabalho na cons trução civil.
Trabalhou “em tudo” e garante que só não sabe “fazer dinheiro”, mas, o pouco que consegue é partilhado na comunidade, para comprar comida, cigarros e, às vezes, uma bebida. Outras drogas não são aceites na comuni
dade e “quem chega com ‘branca’, pastilhas, o que for, aprende logo qual é o lugar das drogas, atiradas para debaixo dos carros”. Assume-se “um revoltado contra a burrice alheia”. Cresceu sem família, mas, “não fossem os vícios, a vida seria dife rente, que ninguém está na rua porque gosta, está-se na rua porque não há lugar onde se caiba”. Os abrigos da AMI, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Cáritas ou Exército de Salvação não aceitam o consumo de drogas nas instala ções. Apenas o Centro de Acolhimento Sem-Abrigo Quartel de Santa Bárbara aceita o consumo assistido.
Flávia Ricardo, assistente social da equipa de rua da AMI, reconhece que “o abrigo de Santa Bárbara dá oportu nidade a quem só podia ficar na rua. Mas pode deixar constrangido quem não consome”. Em Santa Bárbara há também uma camarata masculina e outra feminina, assim como um espaço apenas para casais e aceitam-se ani mais de companhia.
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Fotografias
© AMI
Recentemente, Filipe Anacoreta Correia, vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, destacou que a capaci dade de acolhimento para pessoas sem-abrigo aumen tou de 760, em 2020, para 977, em 2022. A previsão para 2023, é de 1.146 lugares.
Entre a rua e o tempo contado que se pode permanecer num albergue ou na camarata de um abrigo, “lutar pela casa própria e emprego continua a ser o objetivo máximo de quem quer sair da rua”, garante Flávia Ricardo. Entre 2020 e 2021, as equipas sociais da AMI do Abrigo da Graça, Abrigo do Porto e Casa do Lago ajudaram 59 pessoas a sair da rua, a maioria para a solução “quarto alugado”, conseguido através do contacto direto entre a AMI e arrendatários. Apenas três beneficiários obtiveram acesso a habitação social e dois ao programa de habita ção apoiada “Housing First”, gerido pela Segurança Social..
NA SONHADA CASA COM MEDO DA RENDA
Com drogas nos bolsos e várias tentativas de realojamento, Fernando conhece bem o caminho da rua. Conquistou a casa própria nas vésperas dos 60 anos, através da ajuda da Santa Casa da Misericórdia, da AMI e da CRESCER –Associação de Intervenção Comunitária. O passado está gravado num livro, onde conta quando e como chega o momento de dizer basta à rua. O presente é vivido entre os acordes da guitarra e o canto do rock, de onde tira algum sustento. Do futuro, gosta “do facto de ter um”, sem negar que, “o maior medo é quando o pro grama de apoio à habitação acabar, ter de voltar à rua, porque ninguém pode pagar uma renda de 700,00 euros”. Por agora, Fernando tem casa certa e é entre as suas paredes que apazigua as memórias do tempo como miúdo de bando, nas ruas de Setúbal e Lisboa. Aos oito anos vivia com o pai, uma tia e os avós, numa barraca de madeira e chapa, cenário que descreve como “comum em Portugal, no final dos anos 60”. Quando o pai e os avós morreram foi destinado à Casa do Gaiato até fugir. Andou “perdido pelas ruas de Setúbal” e aos doze anos decidiu partir para Lisboa, onde foi acolhido por outro bando de meninos de rua. Passou a infância e a adoles cência entre a rua e instituições, como a antiga Tutoria de Menores, em Lisboa, e o Reformatório de São Fiel, em Castelo Branco. Tornou-se mestre de furtos, usado no trá fico e empurrado para o consumo de droga, numa vida onde os amigos eram traficantes e prostitutas. Adulto, cumpriu o serviço militar e trabalhou em feiras, onde conheceu a esposa. Chegou a ter “uma vida con fortável”, mas as drogas deitaram tudo a perder. “Depois de vinte e tal anos a consumir todas as substâncias possí veis é difícil mudar”, conta Fernando, assumindo que “ado rava drogas”. Elas davam-lhe “um bom discurso e muitos amigos”. Uma ilusão: “quando chegava a noite os amigos regressavam a casa, eu ficava na rua, sozinho”.
Da rua, Antero também garante que “não se guardam amigos, só interesses, quando há dinheiro e droga no bolso”.
ESCRAVOS SOB AS BANCAS DE FEIRA
A morte da filha, num acidente ferroviário, trouxe Antero de volta a Portugal, em 2007, depois de décadas emi grado em Espanha. Com 49 anos, sem trabalho, sem casa e de laços familiares rompidos, só pensava “vim para Portugal para viver na rua”.
Uma proposta de trabalho fez Antero acreditar que tinha conseguido uma casa. “Nas pistas [de carrinhos de cho que] tínhamos onde dormir e comer, mas o trabalho era quase escravo”, recorda. “Na feira, só pagavam ao fim da temporada, os empregados eram mantidos com dor mida, comida e gorjetas”. No fim do verão de 2007, Antero deixou a feira no sul, para rumar ao Porto e cruzou cami nhos com a AMI.
Há seis anos que Antero aluga um quarto por 200,00 euros, com uma pensão de 400,00 euros e medo, porque “chegará o dia em que o senhorio vai aumentar a renda ou dizer que é preciso sair”.
A fuga do trabalho escravo rumo à AMI também foi vivida por António. “Mesmo sem ler, nem escrever”, considerava -se “sabido”, criado na ribeira do Porto. Em 2012, caiu “na rede das feiras” depois de se divorciar, e de ter perdido a casa e a empresa de turismo para o álcool.
Na rua, um amigo apresentou-lhe “a patroa”. Nos primei ros tempos de feira “recebia 30,00 euros por dia e tinha dormida e comida garantidas”. Depois, “a patroa” come çou a pagar só 10,00 euros, até deixar de pagar. António “trabalhava a troco de comida e dormida, muitas vezes debaixo da banca”. Andava por Viana do Castelo quando fugiu. De regresso ao Porto, ora alugava um quarto nas pensões da D. Glorinha, na Rua do Sol, ora dormia na rua, até a filha o levar à AMI.
Nos últimos cinco anos, o abrigo do Porto da AMI tornou -se a casa, que partilha com mais 26 homens. Aos 60 anos é responsável pela limpeza e manutenção de uma institui ção também dedicada à reinserção social e, dentro de pouco tempo, terá a sua própria casa, com uma renda de 300,00 a 400,00 euros por mês. António será “nova mente independente e feliz”, ainda assim, com o medo de voltar à rua porque “a renda é alta e a habitação social demora a chegar”, desabafa.
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“Ninguém está na rua porque gosta, está-se na rua porque não há lugar onde se caiba.”
NUMA VIDA PRESO, NA OUTRA ‘ARQUITETO’ DA AMI
Houvesse mais materiais para reparar o velho edifício do Centro Porta Amiga do Porto e Paulo já o teria “revirado do avesso”. Descobriu o talento depois de passar meia vida na rua.
Se em Lisboa, o Paulo “comandante” tem uma longa lista de espera até à casa própria, no Porto, o Paulo, “arquiteto”, sem nunca ter estudado o ofício, está para deixar o quarto alugado rumo a uma casa inteira. A Câmara Municipal do Porto confirmou-lhe que falta um ano para ter habitação social. Com uma casa que pode pagar e trabalho, Paulo tem a certeza de que nunca mais volta à rua e será “arqui teto da sua própria vida”. Teve consciência do caminho sem retorno depois de dezas seis anos de prisão e outros tantos de rua. Chegou ao tempo de paz e trabalho no Centro Amiga do Porto, aos 52 anos, depois de ter estado do outro lado, como benefi ciário. Durante muito tempo, pensou que estava marcado para ser sempre sem-abrigo e toxicodependente. “Consumi todos os tipos de drogas que existiam nas ruas do Porto. Não aceitei os conselhos da minha irmã. Roubei e fui preso, por duas vezes, com penas de oito anos”, recorda Paulo. Tempo inscrito nas tatuagens que lhe marcam mãos e bra ços. Umas contam dor, outras lealdade aos companhei ros de prisão, algumas, vitórias. Quando saiu em liberdade, decidiu que “não podia continuar dominado pela cocaína, mas contra a vontade ninguém se reabilita”. O plano durou um mês, “era impossível viver entre robots, sem vontade pró pria, dominados por medicação”.
No regresso, Paulo encontrou no Abrigo Noturno da AMI, no Porto, um lugar onde cabia. Chegou em 2016 e ali, de vontade própria, lutou para “ficar limpo” porque, “de outra forma, não podia ficar no abrigo”. Depois de cinco anos, entre o Porto e o Algarve, onde trabalhava às temporadas na construção civil, alugou finalmente um quarto. Em 2020, recebeu uma proposta inesperada para trabalhar no Centro Porta Amigo do Porto. Jéssica Silva, diretora-adjunta do centro, está certa de que “sem o Paulo, o edifício não seria o mesmo. Jeito e criativi dade não lhe faltam para, com pouco, fazer muito”. Regressar ao lugar onde lutou contra a droga e a rua não o assustou, porque “as noites repetidas a vender cocaína para ter dinheiro para consumir nunca mais voltam”.
Depois de entrar no Centro Porta Amiga do Porto como auxi liar, um roupeiro velho transformou-se nas novas prateleiras da Loja Solidária, paredes velhas ganharam cor, o cartão transformou-se em castelos e desenhos e algumas paredes perderam as antigas manchas de humidade.
“As ideias de como isto ou aquilo deve ser feito surgem como se tivesse nascido para criar, mesmo sem ter estudado” e, adianta, “há muito para fazer e, não faltassem os materiais, o centro ficaria como novo”. Paulo ainda não perdeu a espe rança de ver “todos os projetos concretizados”.
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© AMI
“Não podia continuar dominado pela cocaína, mas contra vontade, ninguém se reabilita.”
SOLIDARIEDADE AJUDA FAMÍLIAS PORTUGUESAS EM 2023
As doações que chegam à AMI entre setembro e o fim de dezembro salvam muito mais do que o Natal de milhares de famílias, combatem a fome e a indiferença, ao longo de todo o ano, nos Centros Porta Amiga.
A doação de cabazes de Natal, no valor de 30,00 euros, assegura a ceia de Natal às famílias apoiadas pela AMI e permite o seu acompanhamento social em 2023. Com os donativos de particulares e de empresas, a AMI proporcionará a 2.081 famílias (5.433 pessoas no total) a oferta de um cabaz de bens alimentares típicos da qua dra natalícia, como bacalhau e azeite, além de roupa ou brinquedos e uma parte do acompanhamento social ao longo de todo o ano.
Entre os parceiros que tornam possível esta “magia de Natal” estão, até à data de fecho desta edição, a Auchan Retail; Creative Minds; CCVO Beyond Optical Care; Condi; Delta Cafés; Finerge; Fundação Ageas Agir Com Coração; Gavex; Indasa; Maxdata; Mundiarroz; Nobre; Ópticas Portugal; Parras Wine; MEO; Rar Refinarias Açúcar Reunidas S.A.; Serviroad; Sovena Portugal; TAP; Teifil e Turbomar. Ana Nascimento e Ana Ramalho, diretoras do Departamento de Ação Social da AMI afirmam que “toda a ajuda, todas as doações, são essenciais neste Natal, sobretudo, para que em 2023 ninguém fique em lista de espera, porque os alimentos do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas que chegam
à AMI já não são suficientes para responder a todos os pedidos de ajuda”.
A Missão Natal AMI continua com a oferta de um pre sente a crianças e idosos. Este apoio permite entregar um brinquedo, livro, ou mesmo novas peças de vestuá rio a pelo menos 470 crianças e jovens, dos 0 aos 16 anos, assim como oferecer bens de higiene e saúde a 450 adultos beneficiários dos Centros Porta Amiga e Espaços de Prevenção à Exclusão Social de Chelas, Vila Nova de Gaia, Porto, Coimbra, Almada, Olaias, Angra do Heroísmo, Funchal e Cascais.
Além-fronteiras, a Missão Natal também permite apoiar os projetos da AMI em vários países do mundo, como o Bangladesh, os Camarões, a Guiné-Bissau, entre outros. É também possível participar nesta missão pelo serviço “Ser Solidário – SIBS”, através da rede multibanco ou da aplicação MBWAY, em qualquer momento do ano e com valor livre. A Altice incentiva a troca de pontos MEOS por donativos para a AMI. E o “Taleigo AMIgo”, cos turado por voluntários em todo o país, representa uma alternativa sustentável enquanto presente ou embrulho. O saco de pano tem um valor de 7,50 euros que reverte para a Missão Natal AMI.
Já na loja online da AMI, o envolvimento na Missão Natal faz-se adquirindo presentes solidários para oferecer nesta época..
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A Missão Natal AMI de 2022 representa uma bolsa de doações essencial para enfrentar um ano de crise social e económica. Os pedidos de ajuda aumentam nos Centros Porta Amiga e a resposta depende da solidariedade de hoje.
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“Os alimentos do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas que chegam à AMI já não são suficientes.”
“MARCADAS, NÃO DERROTADAS”
Quando a fome chegou à casa de Mariana e Patrícia, há 16 anos, “Portugal estava igual a hoje, em crise”. Agora acreditam que será pior para milhares de pessoas a viver no Porto e em Lisboa, com menos do que o Salário Mínimo Nacional.
O medo da fome é o molde da depressão e o segredo de Mariana e Patrícia. De rosto escondido, choram por que “pedir ajuda para comer e vestir-se dói tanto como não ter nada”. Nunca conseguiram recuperar parte da vida depois da grande crise económica e social de 2006 e têm a certeza de que, “a de 2022 é muito pior”. Estão “marcadas, não derrotadas”, em lados opostos do país e com famílias que não podiam ser mais diferentes, sobrevivem com a ajuda das equipas sociais da AMI, que as acompanham com apoio psicológico e alimentar. No Porto, Mariana ainda combate a sombra da fome, em Lisboa, Patrícia foge aos ecos da violência doméstica.
O Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas e o acesso a material escolar doado per mitiram-lhes, pelo menos nos últimos anos, manter os
filhos a salvo. Fazem parte das cerca de 80.000 pessoas apoiadas em Portugal por este programa alimentar, sem o qual, admitem, “não conseguiriam comer”. E entram nos números do EUROSTAT – Gabinete de Estatísticas da União Europeia que referenciou dois milhões e trezentos mil portugueses na pobreza. Numa vida que “parece ter pertencido a outra pessoa”, Mariana foi fisioterapeuta e o marido empregado de alfân dega. Ficaram sem trabalho em 2004, considerados desa tualizados e demasiado “velhos” para abraçar outra pro fissão. Ela dedicou os dias aos filhos, um deles com 95% de incapacidade. Ele tentou trabalhar como agente imobiliário. A primeira ajuda que a ex-fisioterapeuta recebeu no Centro Porta Amiga do Porto foi psicológica e “estava tão devas tada que nem tinha a noção do que precisava”, recorda.
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“Recolher o primeiro cabaz alimentar foi uma tortura e ao mesmo tempo uma salvação”. Mariana diz que “há quem faça dos apoios sociais um modo de vida e há quem veja um cabaz alimentar ou o Rendimento Social de Inserção como sinal de ter perdido tudo pelo qual trabalharam. O casal combinou esconder a situação da família. Para todos os efeitos, continuavam a sobreviver com os subsídios de desemprego e a ajuda extra de uma conta poupança. A filha descobriu o que estava a acontecer quando, um dia, viu a mãe “chegar das compras” e perguntou “se a mãe e o pai não têm trabalho, como compram as coisas?”. Mariana não pôde esconder mais. Tentaram “o Rendimento Social de Inserção a que não têm direito, devido à casa própria, contada como património suficiente”. Quando em 2013, Mariana aceitou a possibili dade de emigrarem, o marido teve dois AVC. Durante meses “o único dinheiro que entrava em casa era o abono dos filhos, ou o que era dado pelos pais”. Depois vieram os apoios para ser cuidadora, as pensões de inclu são e invalidez e “o pesadelo de ser ‘subsidiodependente’ confirmou-se”.
A entrada da filha na universidade trouxe a Mariana “orgu lho e preocupação”. Propinas e transportes são pagos com uma bolsa, os livros conseguidos com doações. E de lancheira ao ombro, a sua viagem Porto-Braga-Porto começa às 6h para terminar às 22h. Segue com um obje tivo na mala: “ser professora e lutar por um ensino especial de qualidade, depois de ver o irmão terminar o 12.º ano sem saber ler nem escrever”.
“QUEM SERÃO OS NOSSOS FILHOS AMANHÃ?”
Com uma filha invisual e autista, a frequentar o curso de Artes no ensino secundário, Patrícia conhece os desafios do “ensino especial pouco adaptado e, não raras vezes, dado a conta gotas, e que, ainda assim, se luta para manter”. Sente a sua luta “mais do que justa”. Depois da pobreza e violência doméstica, quer um futuro melhor para a filha, “se possível longe de instituições onde se encerra a defi ciência sem estimular o contributo que cada um pode dar à sociedade”, caso contrário, “que será dos nossos filhos amanhã, quando morrermos?”.
Também ela tem uma deficiência visual, que a faz “neces sitar de ajuda constante”.
Ajudada pela AMI, Câmara de Lisboa e da Segurança Social conseguiu uma casa com renda acessível que, “che gou com buracos nas paredes, infiltrações e ratos”. Pediu transferência e aguarda a mudança. São “pequenos obs táculos, depois da fome e da violência doméstica” que venceu.
Para a ex-cozinheira “as piores marcas são aquelas que a violência deixa na mente. No corpo quase tudo passa”. Os gritos do padrasto continuam na sua cabeça e roubam -lhe a paz das noites. Por muito mal que ele tenha feito, Patrícia não o conseguiu abandonar à sorte na velhice e tornou-se sua cuidadora.
Da fome, guarda a lição de “nunca deitar fora” e “parti lhar” se tiver a mais. Sabe o que é “querer comer e não ter e andar a ‘chapinhar’ nos caixotes do lixo”. A avó, com quem viveu durante grande parte da infância, só tinha dinheiro para a renda de casa.
Em 2012, Patrícia ficou reformada por invalidez. Com 299,00 euros de rendimento, mais o abono da filha, e uma renda de casa de 400,00 euros, pensou que “ia vol tar a passar pelo mesmo da infância e adolescência”. Foi quando se candidatou a habitação social na Câmara Municipal de Lisboa. “Viver com metade do valor do Salário Mínimo Nacional parece uma coisa absurda, mas não é novidade para milhares de lisboetas”, afirma.
“No escalão mínimo pagam-se 5,00 euros de renda na habitação municipal, um pouco de água e gás, o pior é a eletricidade”. Com o abono da filha “pagam-se os passes para os transportes públicos e compram-se extras. A ali mentação é feita com o apoio do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas e o material esco lar vem da AMI. “Será uma vida muito diferente de quem ganha 1.000,00 euros e paga 700,00 euros de renda?”, questiona.
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“Recolher o primeiro cabaz alimentar foi uma tortura e ao mesmo tempo uma salvação.”
“PARA SEMPRE, POR AGORA”
A Ucrânia está sempre no pensamento, mas voltar ainda não é uma opção. Em Kyiv e Kharkiv a terra continua a ser arrasada e as pessoas continuam a desaparecer. Portugal está longe e seguro.
Um novo pedido de casamento feito a quatro mil qui lómetros da Ucrânia reescreve uma história interrom pida? Dmytro Kashkin e Alina Posokhova casariam a 24 de fevereiro de 2022, em Kharkiv. Quando acorda ram estavam em guerra. No dia em que começariam um novo capítulo de vida, começou um novo capítulo da História que descrevem como “infâmia do século XXI” e durante o qual temem que o caminho de cada ucra niano seja apagado.
Divididos entre o ódio e o reconhecimento de uma guerra injusta para os dois lados da fronteira, fazem parte dos mais de 10 mil refugiados ucranianos que estão em Portugal, “para sempre, por agora”.
Defendem a autodeterminação do seu país e duvidam que voltar ao modelo da União Soviética reflita a vontade dos ucranianos. “A cultura e História ucranianas estão mais vivas do que nunca”, afirma Dmytro. Numa segunda vida em Portugal, descobriram na pala vra “saudade” a “Zhurba” da Ucrânia. A primeira vez que ouviram português “parecia uma confusão de schschsch impossível de distinguir e conseguir falar”.
De casa, as notícias vão chegando. “Kharkiv não está bem, fim da história”, apressa-se Dmytro. É difícil falar sobre a família que ficou numa das cidades mais atacadas na fronteira com a Rússia.
O jovem casal não viu as bombas caírem na Ucrânia. Com as primeiras explosões a família decidiu que partiriam de autocarro, rumo a Luhansk e dali atravessariam a fron teira para a Rússia, onde “as pessoas não percebiam o que estava a acontecer e diziam para voltarmos para casa, porque tudo terminaria em alguns dias”. As notícias sobre os bombardeamentos e as mortes de civis espalharam -se, de mensagem em mensagem. Perceberam que não voltariam para trás.
No que pareceu ao casal “um piscar de olhos”, a viagem rumo a Portugal tinha começado. Partiram da Rússia para a Lituânia, até chegarem a Portugal, onde Coimbra foi o destino.
Dmytro é advogado e tem oportunidade de fazer um mestrado para obter equivalências académicas. Meta em que as aulas de português no Centro Porta Amiga de Coimbra da AMI são essenciais para “entender a lei
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Fotografias
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cultura e história ucranianas estão mais
portuguesa ao pé da letra”, diz em português, pensando nas palavras uma a uma. Já folheou o código civil portu guês e percebeu que “a Ucrânia e Portugal têm leis que derivam do mesmo pensamento jurídico”.
Para Alina, não é só o coração que está na Ucrânia. Lá ficaram os seus alunos, e a escola onde dava aulas, que “provavelmente já nem existe”. Em Portugal será difícil vol tar a lecionar, “as crianças ucranianas que chegaram já estão integradas na escola e a aprender o portu guês, não podem ficar paradas, à espera que a guerra acabe”. O futuro passa por “ultrapassar as dificuldades com o português”.
O ÓDIO QUE NINGUÉM QUER SENTIR
Iryna Smekhno, artista de alma e coração, tem dado alguns passos profissionais em Portugal e “saber algumas frases em português tem ajudado”. Durante quatro meses integrou a residência artística criada no Teatro Nacional S. João, no Porto, para apoiar artistas ucranianos refugiados em Portugal. Acredita que voltará a ser fotógrafa e ilustradora, como era na Orquestra Sinfónica de “Kyiv”. Faz questão de relembrar a grafia e fonética reavivada na Ucrânia em 2014, para defender a identidade nacional quando a Rússia tomou a Crimeia.
Quando o trabalho acabou no Porto mudou-se para Coimbra com o filho adolescente, Tymofii Drohin, onde seria mais fácil alugar casa e, “com o apoio do Centro Porta Amiga, não só aprender português, como fazer con tactos para novas oportunidades de trabalho”. Tymofii tem 17 anos e já está na universidade “pronto para seguir a área de IT [Tecnologias da informação]”. Tem a certeza de que “Portugal é um país de oportuni dades para o presente e futuro”. A Ucrânia está sempre no pensamento, mas voltar, para já, não é uma hipótese, “as memórias dos bombardeamentos são paralisadoras: até há pouco tempo, fogo de artifício ou sirenes ainda nos deixavam em pânico”.
O Pai permanece em Kyiv. Já não o deixaram sair. Então juntou-se à resistência contra a Rússia. Iryna teme o que possa acontecer. “Ele abriu uma empresa de tec nologias porque as economias ucranianas e russas con tinuam com grande movimento e podiam estar a for mar-se dois grandes países no lugar de estarem a destruir-se”, conta. O ódio, no entanto, é o maior fosso entre os dois países.
A fotógrafa assume: “odeio a Rússia como está e não acre dito que seja capaz de algo bom comandada por pes soas de má índole, porque a seguir a Putin virá sempre outro igual”. Em português pede “ajudem a Ucrânia”.
Aprender português com a AMI
O Centro Porta Amiga de Coimbra mantém 130 famílias ucranianas refugiadas em Portugal “em apoio simultâneo”, destaca Paulo Pereira, diretor daquela valência da AMI. Um grupo que corresponde, à data de fecho desta edição, a cerca de 300 pessoas, das quais 83 estão a aprender português.
Desde junho, a equipa social do Centro Porta Amiga de Coimbra abriu quatro turmas de ensino de língua portuguesa, “que têm permi tido aos ucranianos perceber melhor o acesso aos serviços que necessitam”.
Paulo Pereira recorda que “uma das maiores barreiras para o grupo, foi, desde o primeiro momento, a língua”. Havia quem falasse inglês de um lado e de outro. Mas, “não era o sufi ciente para se integrarem no mercado de tra balho, discutir um contrato de arrendamento de uma casa ou frequentar formação”.
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“A
vivas do que nunca.”
“SENTI-ME DE ÁFRICA ASSIM QUE CHEGUEI A MOÇAMBIQUE”
Aprendeu crioulo guineense em tempo record e transformou a saudade num livro, Isabel Fernandes sempre soube que “nasceu para regressar a África e ajudar todas as pessoas que conseguisse”.
Desde criança, Isabel Fernandes estava determinada a ser voluntária humanitária. Esperou dezoito anos para come çar a sua jornada em África e nunca mais esqueceu o pri meiro minuto: “quando saí do avião, o calor, as cores, o cheiro, era tudo familiar, senti-me de África assim que che guei a Moçambique”. Ao longo de uma década de expe riências, escreveu um livro nas margens do Grande Rio Buba, foi reconhecida como “Melhor Voluntária” da Europa, apai xonou-se pela Guiné-Bissau e abraçou um Moçambique devastado pelo Idai.
O sonho “sem fim”, mas, “nada doce” começou em 2009, na localidade de Chimundo, província de Gaza, em Moçambique, onde fez voluntariado num centro de ocu pação de tempos livres dedicado a crianças e adolescen tes, implementado pela AIDGLOBAL - Ação e Integração para o Desenvolvimento Global.
Regressou a Chimundo em 2019, na mesma época em que Moçambique foi atingido pelo ciclone Idai. Reencontrava as crianças de outrora, agora homens e mulheres, quando recebeu a proposta para coordenar a missão de emergên cia da AMI na Beira. Recorda “um cenário de filme, com um ritmo imparável de caixas descarregadas no aeroporto, centenas de organizações não governamentais [ONG] e helicópteros em voos constantes. Reerguiam-se casas e as mulheres vendiam fruta pelas ruas”. A cólera e a malária espalharam-se rápido.
Experiente nas missões de desenvolvimento, aprendiz na emergência humanitária, Isabel acompanhou a instalação da base da AMI no Centro de Saúde de Manga Nhaconjo. E assistiu à importação de um hospital de campanha da AMI. A palavra sobre o que havia em Manga Nhaconjo voou entre os moçambicanos e, em poucas semanas, eram atendidos mais de 100 casos por dia.
AMOR À GUINÉ-BISSAU E A PERGUNTA MILAGRE
Enfrentar a devastação deixada pelo Idai só foi possível porque, entre Chimundo e a Beira, outras experiências em África firmaram a resiliência de Isabel.
Com a ATACA – Associação de Tutores e Amigos da Criança Africana regressou a Moçambique, em 2011, para coorde nar o projeto “Tutor à Distância”.
Numa época em que “percorria vários quilómetros de bici cleta para chegar ao cibercafé onde podia enviar um e-mail à família”.
“Tudo valeu a pena”, para levar a centenas de famílias uma pergunta-milagre: “se fosses dormir e durante a noite acon tecesse um milagre, como querias que fosse a tua vida? Os rostos iluminaram-se. Sonhavam com uma porta para casa. No lugar de uma esteira, um colchão para dormir. Queriam eletricidade ou uma televisão”.
Época de entrega total, o trabalho com a ATACA valeu a Isabel o prémio de “Melhor Voluntária”, atribuído pela Active Citizens of Europe em 2012.
Em 2016, teve o primeiro contacto com a AMI, selecionada para coordenar um projeto de saúde materno-infantil na Guiné-Bissau. A única época em que sentiu um choque cul tural, pois “pensava que ia falar português, mas nas peque nas comunidades da região de Bolama e de Buba só se fala crioulo guineense”.
A disposição para aprender crioulo em tempo record tor nou-se o espelho do “amor pelas pessoas, clima e natureza virgem da Guiné-Bissau, onde os conflitos não refletem 1% da riqueza do país”. O berço onde, até 2018, embalou as “Histórias da Tia Que Vive Na Selva”, dedicadas ao sobrinho e transformadas em livro. O valor das vendas reverteu para a construção de uma escola em Gã-Bacar, outro projeto da AMI na região de Bolama.
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Mamadú Sambú, com 60 anos (esq.) e Mussa Baió, com 46 anos (dir.) recebem muitos telefonemas de mulheres que precisam "saber coisas" sobre menstruação ou gravidez.
“QUASE ENFERMEIROS” NAS TERRAS DOS DEZ CENTROS DE SAÚDE
Mamadú Sambú não viajou pelo mundo, como desejava aos quinze anos, e Mussa Baió não foi para a universidade em Portugal. “A vida muda os sonhos dos jovens”, dizem os dois guineenses que, “por acaso”, se tornaram “quase enfer meiros”. Título conquistado na luta contra maldições, silêncios forçados, violações e HIV. Mussa começou a trabalhar com a AMI em 2014, como agente de saúde comunitária. De tabanca em tabanca levou informação sobre saúde sexual e reprodutiva e reco lheu testemunhos. Hoje, é um dos elos da AMI, entre Bolama e Lisboa, coordenador local do projeto “Papia Ku Mi”. Ao seu lado, na sede da instituição, em Bolama, Mamadú, representa a primeira geração da missão internacional, “orgulhoso dos dez centros de saúde que abriram o caminho”.
Mamadú “fazia voluntariado numa obra, quando o presi dente da AMI apareceu e perguntou o que estava a cons truir”. Era um centro de saúde. Depois de Buba, o homem do tempo infindável foi desafiado a seguir para Wato, Fula, Madina, Casabopa, Gã-Bacar, Bercolom, Ilha das Galinhas, Amitite, Ambancana, Ancano, “numa aventura que durou até 2008”.
Nos centros de saúde, a equipa médica identificou focos epidémicos de diarreia, paludismo e doenças sexualmente transmissíveis. Além dos casos de mutilação genital, violação e gravidez precoce, dando-se os primeiros passos para criar o projeto “Papia Ku Mi”. Intermediário entre as tabancas e a AMI, Mamadú denunciou "os homens que prometiam às meninas vinho de palmeira na floresta ou na praia, para depois as violarem".
No combate ao paludismo limpou lixo de terrenos e cons
truiu poços. Com o que aprendeu, criou onze filhos que, “quando tiverem acabado a universidade vão formar uma equipa igual à que a AMI enviou para Bolama em 2005, com médico, enfermeiro, sociólogo e agricultor”, sonha Mamadú. “Chegar aqui foi uma grande conquista”. Recorda o dia em que “os homens grandes da terra chegaram e disseram: tu és o primeiro filho e tens de tomar conta da família”. Chorou, quis fugir. Ficou. “Tinha medo da macumba que os homens faziam”.
Mais do que maldições, agora teme a partida definitiva da AMI, pois “nesse dia Bolama voltará a viver como antes”. De 2014 a 2022, Mussa assistiu a essa “grande mudança de Bolama, com o Papia Ku Mi”, e também teme “ver tudo perdido”.
De agente de saúde, passou a coordenador local do pro jeto. É “quase um enfermeiro”, diz entre sorrisos. “Muitas mulhe res telefonam a perguntar coisas sobre menstrução ou gravi dez, em terras onde ainda são isoladas quando estão nessas condições".
O envolvimento de Mussa com a defesa dos direitos das mulheres e crianças, começou em 1997, como secretário da associação “Mulheres em Quimera”. Na época, tinha desis tido de estudar arquitetura em Portugal, porque “o curso era caro para as possibilidades da família”.
O sonho ficou atrás do rasto que deixava entre Buba e Bissau, a fazer transporte de pessoas e mercadorias. “Começou a nascer outra vida, que queria dedicar a ajudar as pessoas”, só não sabia como conseguir, até conhecer a AMI.
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"Conto" de Natal
O TEMPO DA MENINA DESCALÇA
No tempo da menina descalça, a II Guerra Mundial tinha chegado ao fim e Portugal só dava conta à distância. A fome e o frio cobriam a vista sobre as fronteiras e o que ia além delas.
Trocava-se milho por novelos de lã que não chegava para tantos xailes. A farda parca de Aurélia, criada de pés descalços no tempo dos campos lavrados e da car tilha “Deus, Pátria, Família”, que ninguém precisava saber ler para conhecer.
Perto do Natal, chegou de Lisboa um convite da irmã. Deixou os pais e os seis irmãos nas montanhas de Coimbra, sentou-se no comboio por dois tostões e desabriu terra fora, pela primeira vez.
Quando chegou, uma multidão de cinquenta, as buzi nas de três carros e um elétrico desorganizavam o Rossio. Nos seus olhos, Lisboa era um gigante deitado! A 39 anos de distância da fundação da AMI e a 53 anos da Expo’98, sem Ponte 25 de Abril, nem Metro, com trânsito contado em meia dúzia de autocarros, elétricos e carros de mulas, de casitas salpicadas entre fantásticos prédios de cinco andares.
Viu jeito de o elétrico não chegar a S. Bento e pela pri meira vez, escondeu os pés nus, envergonhada pelos olhos esbugalhados de um velho com botas gastas e de uma mulher com chapéu e luvas.
- Uns sapatos calhavam-te bem, que a senhora do major não te deixa andar assim em casa!
- Oh Margarida, vim eu para trabalhar ou para comprar sapatos? A tosse da mãe piorou. Compra lã.
- Levas os meus.
Dois quilómetros bem medidos a pé, a casa do major ficava à Estefânia. Bateu à porta, calçou os sapatos e esperou.
Aurélia, que só comia sopa e broa, aprendeu a servir ‘à francesa’ o peru com batatinhas assadas e o pudim flan do almoço de Natal. Viu a cozinheira assar, fatiar e bater e fez contas ao fim do mês. Jurou que havia de ganhar mais do que uns tostões.
- Passou-te o cheiro pelos beiços e já sabes tudo! Aurelita, compra os sapatos, um casaco e fica-te pela senhora do major!
- Ai! Verás! Ganho mais ao dia em duas casas ou três. Vieram os agitados anos 60, os seus 34 anos e, de repente, era Natal outra vez. Saiu do Metro nos Restauradores e na Baixa ficou de olhos perdidos numa montra com relógios.
Desejava um presente que não podia comprar e levar para Coimbra: o Tempo. Senhora de si, vivia sozinha. Fitou os sapatos e o casaco de lã. Nunca percebeu se o dinheiro que chegou à aldeia fez mais jeito do que as suas mãos lá. Desceu até ao Cais do Sodré e entrou no comboio. Ao lado, sentou-se o moço do costume, de paletó e calças muito engomadas, também empregado no Estoril.
- Bonitos sapatos menina Aurélia.
- Trocava-os pelo Tempo, Sr. Carlos. - O Tempo não se troca. Vive-se e passa. - E se não vivi o meu?
- Deu-lhe para a dúvida? Encostou o pé ao dela, deu-lhe uma pisadela. Aurélia sentiu -se feliz. Não podia ser dona de todos os destinos, só do seu. Casou e o Carlos levou-a para uma casita na Quinta da Bela Vista. Depois dos sapatos de solteira precisava de uma casa de casada. Atravessava a cozinha para chegar ao quarto. Casa de banho, só teve depois do 25 de Abril. Na viragem do milénio, antes do fim do mundo, Aurélia e Carlos mudaram-se para um prédio de oito andares, em Chelas.
- Lisboa está outra, já ninguém se conhece. Entre a Ajuda e o Parque das Nações vivem 547 mil pessoas e todos os dias vão e vêm mais 425 mil. Há meio milhão de carros, 56 estações de Metro, e duas pontes sobre o Tejo.
- A vista daqui ainda é desafogada. Só tem é uma pes soa à janela.
Carlos morreu de uma pneumonia implacável, que nem a deixou despedir-se.
Aos 96 anos, dezembro chega sempre muito só, com pequenos intervalos de companhia, nas horas do apoio domiciliário da AMI.
- Ainda comprava o Tempo se pudesse, para reviver a sen sação dos primeiros sapatos, da vida com o Carlos e da primeira vez que entrámos nesta casa. Nunca aprendi a ler, nem a escrever. Aprendi que o Tempo traz o que pre cisamos no momento certo, se nos distraímos, leva-nos sem darmos conta.
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Pingo Doce distingue Serviço de Apoio Domiciliário da AMI
O projeto “Cuidar de quem nos cuidou” do Serviço de Apoio Domiciliário da AMI, venceu o programa Bairro Feliz do Pingo Doce, na loja da Avenida Paris, em Lisboa, pelo segundo ano consecutivo. O prémio, no valor de mil euros, contribuirá para a con tinuidade deste projeto que leva produtos de higiene e produtos ortopédicos às pessoas, para assegurar a satisfação das necessidades básicas com eficácia e segurança.
Recolha alimentar nas
Está a decorrer nos Centros Porta Amiga do Porto, Vila Nova de Gaia e Coimbra a 2ª edição do projeto “Agir Sem Desperdício Alimentar (#AgirSemDesperdício), dedicado à educação alimentar e sustentabilidade. Financiado pela Fundação AGEAS em 30.000 euros, implementado pela Associação Vitamimos, e apoiado pela Equal Foods. Em 2022, o projeto inclui ainda algumas sessões a realizar em dezembro, tendo o Natal como tema. Durante os workshops são apresentadas “receitas que permitem explorar todas as possibilidades dos alimentos, desde a casca à polpa, no caso das frutas e legumes. Ou desde a peça inteira a uma quiche, no caso do frango”, explica Carolina Ribeiro, nutricionista da Vitamimos. O objetivo é “demonstrar que alimentos recebidos em grande quantidade também podem ser utilizados de diferentes formas, sem qualquer desperdício”.
ALDI ultrapassa 8 toneladas
lojas
A AMI angariou 8,5 toneladas de alimentos e bens de primeira necessidade na campanha realizada em lojas ALDI do Porto, Vila Nova de Gaia, Coimbra, Lisboa, Cascais, Almada e Setúbal.
Um resultado “muito acima das expectativas, num ano marcado pela inflação e consequente subida de pre ços dos bens alimentares mais essenciais”, segundo o balanço da AMI, que ressalva ainda “a importân cia desta campanha para as famílias apoiadas nos Centros Porta Amiga onde os pedidos de apoio ali mentar aumentaram”.
Segundo Isabelle Romão, diretora do departamento de Marketing e Cidadania, “250 voluntários contribuí ram para o sucesso desta ação, doando, no total, 982 horas do seu tempo livre, entre a recolha nas lojas e a logística”.
A primeira edição do projeto incluiu 30 workshops, durante os quais foram confecionadas 25 receitas e doados 99 cabazes alimentares aos beneficiários participantes.
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AMI combate desperdício com receitas saudáveis
Ucrânia_
Cuidados de saúde financiados
A AMI mantém o apoio mensal à Clínica n.º 7 de Uzhhorod, na Ucrânia, com a entrega mensal de medicamentos no valor de 1.500,00 euros. Os medicamentos são adqui ridos através da farmácia Stella Patika, sediada em Vásárosnámeny, na Hungria, que pretende incluir insulina nas encomendas mensais, sendo uma prioridade referida pela direção da Clínica n.º 7, devido a dificuldades de aquisição e logística de transporte, a partir de Kiev. Segundo os diretores da Clínica n.º 7, “a parceria com a AMI e a Stella Patika tem sido determinante para o acesso a medicamentos suficientes e de forma gratuita”. Antes da guerra, a clínica atendia 17.000 pacientes por dia, agora chega aos 30.000. A maioria são famílias sem capacidade económica para tratamentos médicos, estando dependentes de um subsídio mensal de cerca de 80,00 euros que recebem do governo ucraniano. Com a permanência de muitas famílias ucranianas em Oradea, na Roménia, a International Children’s Safety Service identificou que apenas 10% das crianças estão a frequentar o ensino oficial romeno, a maioria mantém -se em aulas online com escolas da Ucrânia. Através de
um projeto que se estende por seis meses e um finan ciamento estimado de 5.000,00 euros, a AMI planeia apoiar a organização na contratação de professores de romeno, além do apoio que já mantém, para a fixação de residência de famílias refugiadas.
Academia de Inovação e Diálogo ‘abre portas’ em janeiro
AMI forma voluntários internacionais
Devido à importância crescente da ação humanitária e da cooperação para o desenvolvimento no contexto internacional, este ano, a AMI formou 14 voluntários inter nacionais.
O plano de formação contempla temáticas como “Assimetrias Mundiais”, “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” e “Introdução à Gestão de Ciclo de Projeto”, direcionadas para pessoas com interesse em trabalhar no terreno com organizações humanitárias, ao nível da saúde, alimentação, higiene e educação.
No dia 16 de janeiro de 2023, a AMI lança a Academia de Inovação e Diálogo, criada para aproximar orga nizações de países de língua oficial portuguesa, com projetos na área da Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos.
A Academia tem como objetivo capacitar, integrar, dar ferramentas, acesso a financiamento e incenti var a partilha de experiência e conhecimento entre as organizações. Disponibiliza ainda o acesso à Plataforma da Academia, através da qual é possível aceder a uma biblioteca de recursos, formações e webinars sobre Gestão de Ciclo de Projetos, Inovação Social ou Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos. As organizações podem obter mais informações através do e-mail academia@ami.org.pt.
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Dez mil novas árvores para a floresta portuguesa
Até fevereiro de 2023 a AMI quer plantar 10 mil árvo res, para travar a desflorestação em Portugal. As árvo res podem crescer em qualquer ponto do país, onde a AMI seja chamada a intervir.
Os gestos para fazer renascer a floresta portuguesa são simples. A recuperação de 1 m² de terreno custa apro ximadamente 1,00 euro e com 10,00 euros é possível plantar uma árvore e fazer a sua manutenção durante os primeiros cinco anos de vida.
A ação da AMI começa com a limpeza de mato, árvo res ardidas e cinza, que depois são cortados, triturados e incorporados no solo, de forma a renovar os níveis de matéria orgânica. Chega então o momento de escolher e plantar árvores de espécies autóctones. Assim como arbustos e herbáceas, igualmente adequados ao solo e clima da região, de forma a reconstruir a cobertura do solo e diminuir o risco de incêndio.
Nos cinco anos seguintes, a AMI monitoriza a jovem flo resta, substituindo as árvores que não sobrevivem e asse gurando o sucesso da reflorestação. Mais informações sobre o projeto Ecoética podem ser consultadas em ami.org.pt.
AMI promove cuidados de saúde para famílias
O Cartão de Saúde AMI proporciona um conjunto de vantagens aos seus aderentes em medicina dentária, exames médicos, cirurgia geral ou esté tica e assistência de ambulatório no parto. E, independentemente, do número de pessoas agregadas ao cartão, o valor é sempre o mesmo, sendo possível escolher a modalidade trimestral de 53,25 euros, 100,50 euros semestrais ou a anuidade de 189,00 euros. A adesão ao Cartão Saúde AMI pode ser realizada através do formulário dis ponível em ami.org.pt ou com a ficha de inscrição, que pode ser digitalizada e enviada para o e-mail cartao.ami@estige.pt ou enviada por correio para a referência AMI – Remessa Livre n.º 11273 Ec. 5 de Outubro, 1059-962 Lisboa.
“Os AMIgos nunca são demais”
Mais do que outras fontes de financiamento, os Amigos da AMI permitem financiar as missões da fundação. Além de contribuir para um mundo mais solidário e justo, os AMIgos rece bem a revista AMINotícias e têm a oportunidade de ser envolvidos em pro jetos e iniciativas realizadas pela AMI. Se pretenderem subscrever o Cartão Saúde AMI têm 20% de desconto na primeira anuidade, assim como 37,5% de desconto no Curso de Socorrismo da AMI. Sendo o INATEL parceiro da AMI, os AMIgos podem usufruir de campos de férias; parques de campismo; termas e infraestruturas desportivas. Na cul tura, bilhetes para espetáculos no Teatro da Trindade e no Parque de Jogos 1º de Maio, usufruem de preços idênticos aos dos sócios da INATEL.
BREVES | 21 Mecenato_
AGENDA AMI
13 A 23 DEZ
JAN 2023
02 JAN 2023
A 11 FEV 2023
LOJA AMI
A Loja AMI dispõe de vários artigos que podem ser adquiridos no site ami.org.pt/loja Ao comprar qualquer um dos artigos da loja AMI estará a contribuir para a realização dos nossos projetos e missões. Pode também fazer a sua escolha, preencher e enviar-nos o cupão abaixo, junto com o cheque no valor total dos artigos acrescido das despesas de envio indicadas
PORTES DE ENVIO
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Encomenda 90€ 90€ Portugal Continental 5€ Grátis Portugal Ilhas 25€ 20€ Europa 30€ 15€ Resto Mundo 35€ 17,50€
[MAIS ARTIGOS EM AMI.ORG.PT]
Entrega de Cabazes de Natal nos Centros Porta Amiga
Inscrições abertas para Aventura Solidária Brasil, Senegal, Açores e Guiné-Bissau
FAÇA JÁ O SEU DONATIVO
Lançamento Academia Inovação e Diálogo
Ação de
no Pinhal de Leiria Taleigo Amigo 7.50€ " Um conto de Natal " Livro 12€ "Toda a Esperança do Mundo" Livro 39.90€
16
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Reflorestação
NECESSIDADES ATUAIS DE VOLUNTARIADO
Voluntariado Nacional
Abrigo da Graça Psiquiatra
CPA Olaias Médico(a) de Clínica Geral Fisioterapeuta
CPA Porto Advogado/a
Voluntariado Internacional
Madagáscar Médico(a) especialista em Ginecologia e Obstetrícia
Para apresentação de propostas, por favor, contacte-nos através do e-mail voluntariado@ami.org.pt
INFORMAÇÕES | 23 [FICHA DE CANDIDATURA ONLINE]