Enfoque Steigleder 2

Page 1


ENFOQUE SÃO LEOPOLDO

A VIDA DE QUEM LUTA PELO BÁSICO

As dificuldades da rotina em meio à infraestrutura precária, à falta de acesso a direitos fundamentais e à ineficácia do Estado

EDIÇÃO DIGITAL

Histórias de quem não desiste de sonhar

Moradores da Steigleder contam como as metas da infância foram afetadas pelas dificuldades impostas pela vida

“Meu sonho sempre foi crescer na vida”, garante Adão de Oliveira, 72, que mesmo com idade de aposentado segue trabalhando com a reciclagem de produtos que encontra na rua. Ele é um dos vários personagens da vida cotidiana da Ocupação Steigleder que vive longe das condições ideais, mas não deixa de ser movido por sonhos e metas no seu dia a dia.

Quando ainda era pequeno, Adão foi abandonado pelos pais e acabou internado no Colégio da Cruz Vermelha, em São Leopoldo. “Como ninguém me visitava, fugi de lá aos 10 anos”, recorda. Desde então, nas sete décadas de vida, o leopoldense

já trabalhou com roça, granja, corte de mato, olaria, confecção de calçados, zeladoria de prédios e, por fim, reciclagem, onde continua até hoje.

Ao longo do caminho, Adão também viu sua família, formada por mulher e quatro filhos, se desmanchar. “A esposa me largou e alguns filhos a acompanharam levando minhas coisas junto. Por isso hoje estou aqui sozinho e atirado”, detalha. A única pessoa que move as batalhas diárias de Adão é o filho mais novo, Leonardo, com 25 anos atualmente. “Meu objetivo do momento é ajudar o filho que está sempre do meu lado. Já comprei bicicleta para ele trabalhar com a reciclagem. Também quero trocar de casa e dar essa aqui para ele”, projeta.

O SALÃO DAS

IRMÃS GARCIA

Sonhos familiares também movem a vida das irmãs Natalia

Garcia, 21, que atua em uma cooperativa de reciclagem, e Natasha Garcia, 19, educadora social das crianças da Ocupação. As duas juntas gostariam de abrir um salão de beleza, em que Natalia seria a cabeleireira e Natasha ficaria responsável pelos cílios e unhas. “Para isso teríamos que fazer um curso. Se não temos curso as pessoas não fazem o serviço com a gente”, explica Natasha.

O que as irmãs não querem é deixar a meta do salão de beleza para trás como ocorreu com outros sonhos passados. “Eu gostava de adrenalina quando era mais nova. Queria ser aquela policial de roupa preta que chega na casa pedindo para o vagabundo colocar a mão na cabeça”, exalta Natalia. A jovem até perguntou para um profissional da área o que era necessário para chegar lá. “Me disseram que eu precisava fazer um curso de

policial. Mas acabei parando de estudar por relaxamento no 1º ano do Ensino Médio. Parei de estudar e enterrei meu sonho”, aponta. Já a irmã mais nova também queria acabar com o crime, mas, nesse caso, como advogada. “Meu tio fazia muita coisa errada, então queria evitar que as pessoas fizessem coisas erradas”, explica. Natasha até chegou a concluir o Ensino Médio, mas não deu andamento ao curso de Direito. “As pessoas falavam que era quase impossível eu ser advogada”, recorda.

O CRAQUE DA CAMISA 10 Não poderia faltar um menino que sonhou em ser jogador de futebol. Eliezer Lima, 32, queria ser o craque que veste a “camisa 10” quando criança. Mas, acabou não dando certo. “A gente prova do sistema. Faltou elo

familiar”, avalia. Desde os 13 anos o morador trabalha com a construção civil. “Ainda era criança quando minha mãe se separou. Como ela tinha problemas de saúde, eu e meus irmãos tivemos que sustentar a casa”, relembra. Com grandes responsabilidades desde cedo, Eliezer precisou se especializar na profissão em busca de algo melhor para sua vida. “Eu perguntava como me aperfeiçoar nas diferentes funções da construção civil e sempre tinha um pedreiro de bom coração com tempo para ensinar”, conta. Ainda atuando na mesma área, atualmente Eliezer se vê impossibilitado de jogar futebol até de forma amadora. “Me acidentei de moto e não tenho mais como jogar”, lamenta.

DE MÃE

PARA FILHA

Franciele de Brito, 27, mãe de três meninas, queria ser professora dos anos iniciais, mas acabou desistindo pela falta de paciência com as crianças. “Mesmo hoje com as filhas ainda não tenho paciência”, brinca. Apesar da falta de calma com os pequenos, essa também é uma história de dificuldade na infância. “Logo cedo meu pai foi embora e só ficou eu e minha mãe. Precisei parar de estudar na 6ª série por falta de material escolar e dificuldade na alimentação”, detalha. Para a surpresa da dona de casa, a filha mais velha, Kemily, 10, diz querer trabalhar como motorista de aplicativo no futuro. “Quero ser Uber quando crescer. Andei de Uber e gostei. Quero conversar com os passageiros”, projeta. Apesar da surpreendente ideia da filha, desde cedo Franciele está orientando suas três meninas para que estudem bastante, mesmo que seja difícil. “Assim não vão depender do pai e da mãe para comprar o que quiserem”, garante. Além disso, a mãe também acredita que o estudo vai trazer melhores oportunidades às futuras adultas. “Oro para que sejam alguém na vida. Para que tenham emprego, salário e casa melhor do que temos hoje”, finaliza.

GUSTAVO BAYS JOÃO PEDRO BOCH
Aos 72 anos, Adão segue trabalhando: "Meu objetivo é ajudar meu filho"
"Mesmo com as filhas, eu ainda não tenho paciência", diz Franciele, que sonhava em ser professora
Representada por foto da infância, Natalia queria ser policial: "Eu gostava de adrenalina"
Eliezer deixou de lado o sonho de ser jogador de futebol. "Faltou elo familiar", lembra

“Foi por conta própria. Deus e força de vontade”

Maicon e Samara viveram na rua e foram dependentes químicos. Na ocupação, encontraram senso de comunidade e rede de apoio

Avida de Maicon de Lima Terres, 35 anos, e Samara Gomes, 34, foi, por muito tempo, definida pela dificuldade. Viveram na rua, encarando a instabilidade da dependência química e a ausência de esperança. Maicon, natural de Camaquã, conheceu Samara em um albergue na cidade de Esteio em 2015, onde ela também tinha refúgio. O encontro foi o primeiro passo para um desejo mútuo de mudança, que se tornou compromisso na chegada inesperada da primeira filha.

“Eu já estava a fim de parar com as porcarias, as coisas erradas”, relata Maicon, contando que moravam na rua quando Samara engravidou. Foi naquele momento extremo que o casal fez um juramento: “Não vamos usar mais nada, se nossa filha nascer sadia. Graças a Deus tá aí, bem saudável e, desde então, paramos com tudo.”

Sem qualquer auxílio externo, foi a força de vontade, isolada, que deu o primeiro passo rumo à recuperação do casal. "Era noite e dia, sem parar. Graças a Deus, hoje em dia nunca mais. Além da cachaça, éramos usuários de crack, mas no dia que conseguimos dizer ‘não’, nunca mais voltamos. Foi por conta própria mesmo, Deus e força de vontade", afirma Maicon, emocionado.

A CONQUISTA DO PRIMEIRO LAR

A primeira moradia segura foi um quarto alugado em Sapiranga. “Entramos só com a roupa do corpo e um colchão de solteiro para dormir no chão”, lembra Maicon. A ajuda veio de uma forma improvável: Maicon pediu uns trocados na rua e, ao explicar sua situação, recebeu R$ 30 de um desconhecido. O valor, somado aos R$ 80 do Bolsa Família que recebia na época e o que conseguiu juntar durante o dia, alcançou os R$ 400 necessários para pagar o aluguel do quarto.

Na ocasião, a família foi

ajudada por uma ONG, que doou botijão de gás, pia, cozinha e outros móveis. O mobiliário doado seguiu com Maicon e Samara até 2024, quando a enchente levou todos os pertences, exceto o botijão de gás, que Maicon afirma ter conseguido salvar.

O período em Sapiranga foi de recuperação, mas a falta de emprego estável os levou a perder o aluguel. Maicon possui uma deficiência congênita no braço, causada pelo encurtamento crônico de um nervo que torna o seu braço esquerdo menor e com mobilidade reduzida, realidade que além de lhe causar dores, afetava sua produtividade, fato que resultou na perda da função que exercia em uma esteira de produção.

O AMPARO E A SOBRIEDADE

A salvação veio no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo. “Não tinha onde morar, não tinha condições de pagar aluguel, estava desempregado”, lembra Maicon. Foi um conhecido que indicou a Ocupação Steigleder. “O Aldair [líder comunitário] falou para nós: ‘Olha, temos um lugarzinho aqui, vocês podem construir, nós ajudamos vocês’”, relembra.

A ocupação, um espaço de luta por moradia digna, mas também de intensa solidariedade, ofereceu a rede de apoio que nenhuma instituição ou suas famílias lhes haviam dado. “Nós não conhecíamos ninguém, mas fomos pegando o conhecimento com eles. Se não fosse a ocupação, hoje em dia, talvez nós estaríamos de volta na rua, passando trabalho”, reconhece Maicon. Vizinhos ajudaram a levantar a primeira casinha da família, e a rotina da Ocupação virou responsabilidade. O casal e as filhas – Vitória (que nasceu em Sapiranga e veio para a Ocupação com dois anos) e a então recém-nascida Ana Júlia – foram acolhidos pela comunidade, que se tornou sua família. Hoje, Maicon e Samara lutam para se manterem financeiramente. Maicon faz “bicos”, lidando com a dor em seu braço, enquanto busca auxílio via INSS. Samara, por sua vez, encontrou na confiança da comunidade uma fonte de renda,

Graças ao esforço dos pais, Vitória (à esquerda) e Ana Júlia sempre tiveram moradia segura

fazendo limpezas e cuidando de crianças da vizinhança.

A comunidade se tornou o alicerce para a dignidade das filhas. As meninas, Vitória (sete) e Ana Júlia (seis), estudam na mesma escola e possuem uma rotina feliz. A casa é simples, mas decorada com pulseiras coloridas e plantinhas cuidadas pelas irmãs, que dizem gostar de brincar de comidinha e assistir Minecraft. Quando questionadas sobre o futuro, ambas respondem que desejam ser “Doutoras de bichinhos”, talvez abrindo a própria clínica veterinária, juntas. A estabilidade de ter um lar permite a elas que sonhem com um futuro profissional.

A LUTA PELA

CASA PRÓPRIA

O maior sonho da família hoje é a concretização da casa própria, prometida pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no âmbito da regularização da Ocupação Steigleder. Ter a escritura e a segurança de que não serão mais obrigados a se mudar é a garantia que Maicon e Samara buscam para o futuro das filhas. “Hoje mesmo é esse nosso sonho, para quando mais lá na frente, não estivermos mais aqui, fica para as meninas, pra elas não passarem trabalho na

vida, sabe?”, diz Maicon. O sonho vai além da posse; é uma forma de garantir que as filhas não dependam de terceiros. “Eu quero que elas tenham a casinha, pra não depender de homem, porque tem muita gente ruim no mundo. Se elas tiverem o que é delas, não precisam ir para baixo do teto do marido, e se depois ele brigam e separam, elas não têm para onde ir? Não quero isso pra elas”, desabafa A esperança, contudo, é confrontada com a burocracia e a falta de datas concretas. “Só falam que ano que vem eles vão resolver, começar a fazer alguma coisa, mas nunca dão a data.”, lamenta o pai. A demora no processo de regularização passa por outro desafio: a dificuldade de comprovar que moravam na Steigleder quando a enchente atingiu sua casa. Samara revela que a prefeitura exige conta de água ou luz para a oficialização do cadastro no PAC, algo que é impossível numa ocupação não regularizada.

Embora a família possua outros documentos, como comprovantes do CadÚnico, o testemunho dos vizinhos e até o endereço registrado para retirada de remédios na UPA, que atestam sua moradia na Steigleder, Samara diz que os

responsáveis alegam que não é o suficiente para garantir a casa via PAC.

Além da luta por sua própria moradia, a família ainda lida com a dor do irmão de Samara, Aldair José Gomes (33 anos), que é epilético, tem surtos psicóticos e vive em situação de rua. O homem, que geralmente visitava o casal na Ocupação durante o inverno, desapareceu do abrigo na época da enchente e não foi mais visto desde 2024. Samara e Maicon já buscaram ajuda junto às autoridades, sem sucesso. O caso de Aldair é o contraponto, o outro lado do espelho daquilo que Samara e Maicon superaram: a dependência e a realidade de rua. O casal sabe que a chance de um recomeço sólido, longe da rua e da dependência, veio de sua força de vontade e, crucialmente, da mão estendida de uma comunidade que se auto-organiza. A Ocupação Steigleder, com seus desafios e incertezas, representa o lar, a sobriedade e a promessa de um futuro em que Vitória e Ana Júlia poderão, de fato, se tornar as “doutoras de bichinhos” que sonham ser, livres das dificuldades e incertezas que marcaram a juventude de seus pais.

THIELE REIS

LÉO PALMI

Ocupação também é lugar de empreender

Três histórias de moradores que transformaram a necessidade de renda em oportunidade de negócio

Aocupação Steigleder, localizada em São Leopoldo, não é apenas um espaço de residência para centenas de famílias. Alguns moradores fizeram da dificuldade uma alternativa de fonte de renda.

Três estabelecimentos exemplificam esse movimento: o Mercado e Açougue Tchê, o F.A. Acessórios e Ferragem e Agropecuária M&M. Os três ficam na Chácara dos Leões, na divisa com a Ocupação Steigleder.

Para entender como é o comércio dentro da Steigleder, visitamos alguns estabelecimentos. A principal motivação é mostrar, além do cotidiano econômico, como os comerciantes se reergueram depois da enchente que atingiu a região em 2024.

TRADIÇÃO E

VARIEDADE

O Mercado e Açougue Tchê existe há cerca de 12 anos. Nesse período, passou por algumas mudanças. Segundo o gerente, Anderson Lacerda, o espaço cresceu junto com a comunidade, ampliando a estrutura e o sortimento de produtos. Hoje, o Tchê oferece açougue, padaria e uma grande variedade de itens que atendem tanto moradores quanto clientes de outras cidades como Novo Hamburgo, Sapucaia do Sul, Portão e Porto Alegre. “O ponto forte é o açougue. A carne está cara, mas conseguimos manter um preço bom. E temos o diferencial das miudezas: coração, fígado, cabeça de porco… Isso atrai clientes de longe”, explica Anderson.O açougue é responsável por cerca de 50% das vendas mensais, que giram em torno de R$ 500 mil.

O público é diversificado: há quem busque produtos populares e, consequentemente, com valores mais em conta para encaixar na renda, e também quem prefira marcas reconhecidas com preços um pouco mais elevados. O abastecimento é garantido por cerca de 25 fornecedores, que fazem a entrega das

mercadorias semanalmente no estabelecimento. Todos os funcionários são moradores do entorno, inclusive aqueles que trabalham como freelancers durante os períodos de maior movimento, reforçando o vínculo entre comércio, geração de renda e oportunidade de trabalho.

CLIENTES FIÉIS E A ROTINA DE COMPRAS

Rosane Fátima Costa estava na fila do caixa, garantindo as compras do sábado. Ela é cliente do Mercado e Açougue Tchê há mais de 10 anos. Para Rosane, o local supre bem as necessidades do dia a dia. “Costumo comprar aqui praticamente todos os dias. Gosto principalmente das carnes, que são mais em conta. Mesmo comprando em outros mercados da comunidade, continuo comprando aqui no Tchê”, conta.

A moradora percebe variação de preços entre os estabelecimentos da região, mas ressalta os valores como fator para a fidelidade.

RESILIÊNCIA

APÓS A ENCHENTE

O F.A. Acessórios também reflete a capacidade de superação da comunidade. Fábio Assunção conta que ainda está se reerguendo dos efeitos da enchente de maio de 2024. É visível nos olhos do empreendedor a tristeza em contar a variedade de produtos que perdeu na tragédia climática, incluindo pijamas, tapetes e outros itens. Ele conta que não acreditou na possibilidade da chuva atingir a loja, o que, infelizmente, se confirmou.

“Perdi tudo: estoque, móveis, computadores… A água chegou ao segundo piso da minha casa. Foi um desânimo enorme, mas não tinha outra saída se não recomeçar, sem contar outras dificuldades que passei em viagens buscando produtos, incluindo assalto”, relata. Após o desastre, ele está reconstruindo o bazar e ampliou a venda de bebidas, adquirindo freezers e reorganizando o estoque. Parte do sucesso se deu também por conta de viagens para Uruguai e Paraguai, de onde traz os produtos sob encomenda. Aos poucos ele investe na reorganização do bazar, que tem boa

parte das vendas on-line. Apesar dos desafios, Fábio mantém uma clientela fiel e vê na reinvenção do negócio uma oportunidade de crescimento. “Hoje minha maior clientela é de fora da comunidade, incluindo o bazar, de forma online. As bebidas atraem as pessoas e me permitem oferecer outros produtos”, explica. Marcelo Pereira, 50 anos, possui a Ferragem e Agropecuária M&M há cinco anos. O empreendedor relata que a maior parte de seus clientes é do bairro, e o que mais vende são produtos básicos, como fita isolante, luvas e cola de cano. Aqueles materiais que surgem como necessidade no dia a dia e que, muitas vezes, as pessoas não têm em casa. “Fui totalmente afetado pela enchente, na época tinha cerca de 3 mil quilos de ração e hoje tenho meia-dúzia de sacos”, destaca o comerciante, mostrando a marca das águas daquele maio que ficará para sempre na memória dele e da esposa, Josiane Pereira. Ambos falam com entusiasmo em dias melhores para ao comércio, principalmente com a execução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – Periferia Viva que visa à construção de casas e também à resolução de problemas antigos como saneamento básico e moradia digna, o que, consequentemente deve atrair clientela para os empreendedores da localidade.

EMPREENDEDORISMO QUE FORTALECE

Os casos do Mercado e Açougue Tchê, do F.A. Acessórios e da Ferragem M&M mostram como o empreendedorismo na Steigleder não é apenas uma forma de sustento, mas também um fator de fortalecimento da comunidade. Negócios locais geram empregos, movimentam a economia e criam vínculos com os moradores. A recuperação após a enchente, ainda que a passos lentos, demonstra resiliência e criatividade para quem acredita em dias melhores. Para Anderson e Fábio, a chave está em entender a necessidade do público e manter a variedade de produtos, mesmo em tempos de crise.

AMANDA FERRARI VICENZO WALBER
Há 12 anos, Mercado e Açougue Tchê atende a clientes de dentro e de fora da comunidade
O F.A. Acessórios, de Fábio Assunção, ainda está se reerguendo depois do trauma da enchente de 2024
Localizada na divisa da Steigleder com Chácara dos Leões, Ferragem M&M é uma das maiores da região

Trabalho .5

O que para muitos é lixo para eles é sustento

A atividade de coleta de recicláveis é uma das mais comuns entre os moradores da Steigleder

No interior da Steigleder, o trabalho informal surge, muitas vezes, como uma solução honesta adotada por moradores desassistidos que procuram sustentar-se. Dentro dessa realidade, a coleta de recicláveis desponta como um dos exemplos em maior abundância. Procurando pela comunidade, não é difícil encontrar indivíduos que dependem dessa atividade para subsistirem. “É um serviço pouco remunerado e muito mal olhado pelas pessoas, mas, na maioria das vezes, representa uma falta de oportunidade e de alguém para dar uma auto-estima”, cita Aldair José da Silva, ex-catador que exerce atualmente uma posição de liderança na ocupação.

LUTA DIÁRIA E SOBREVIVÊNCIA

Ângela Ferreira Nobre tem 31 anos de idade. Natural de Vicente Dutra, município gaúcho que faz fronteira com Santa Catarina, ela cita que chegou ao Vale dos Sinos por questões familiares. “A minha família toda mora pra cá, então a minha mãe acabou vindo também”, relembra. Antes de se mudar para Steigleder, ela residia no Morro do Paula, localidade de São Leopoldo conhecida por sua infraestrutura deficiente e pela degradação ambiental causada pela mineração irregular.

Sobre a coleta de recicláveis, Ângela conta que surgiu como uma alternativa em um momento delicado de sua vida. “Meu esposo tinha perdido o emprego e a minha guriazinha ficou ruim no hospital, internada. Aí ganhamos a carretinha [de reciclagem] em uma doação para poder trabalhar”, recorda. Atualmente puérpera, ela se encontra momentaneamente afastada do serviço, mas garante que fazia o recolhimento todos os dias. “Por enquanto, eu dei uma paradinha porque acabei de ganhar bebê, então tenho que me recuperar bem primeiro. Mas eu trabalhava de domingo a domingo. Sempre de manhã e de tardezinha”, alega. Além da recém nascida Lavínia, Ângela também tem outros cinco filhos: Matheus Samuel (15), Bryan Guilherme (12), Marya

Para Ângela, a reciclagem surgiu como alternativa em um momento delicado da vida

Mikaely (11), Yuri Rafael (cinco) e Kemmilly (dois).

A rotina no ofício é complicada. De forma sincera, Ângela relata que, mesmo com a extensa carga de trabalho, ela tem dificuldades para custear seu humilde padrão de vida. “Não [dá para se sustentar] bem, né?

Mas a gente leva, não adianta”, desabafa. “Nunca que dá para viver só disso”, complementa. Ela ainda menciona que, hoje em dia, seu respiro financeiro vem de um auxílio governamental. “Agora eu comecei a receber uma bolsa. Eles estão descontando do empréstimo, então não vem muito. Mas é ali que eu consigo me manter com as crianças”, explica. Para a catadora, o principal desafio do serviço é puxar a carretinha quando está cheia de material. Pensando em seu futuro, Ângela declara: “Por enquanto, só isso, mas depois que a minha nenê crescer bem eu quero trabalhar. Vender umas balas,

coisas assim, como sempre fiz, pra ver se melhora um pouco”, aponta. Segundo ela, o leite das crianças é o item que mais pesa no orçamento mensal. Quando perguntada sobre qual é o seu maior desejo, responde sem pensar duas vezes: “O meu sonho é poder dar estudo para todos os meus filhos. E poder dar tudo pra eles, né? Tudo o que eles me pedem”.

UMA PÁGINA

VIRADA

No quintal da casa de Erick Valentim – que também trabalha coletando recicláveis – estava Janaína Fraga, 37 anos, que já não exerce mais esse ofício. Natural de Novo Hamburgo, ela conta que já morou em muitos lugares diferentes, incluindo a própria ocupação. Atualmente, ela reside no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo, porém segue visitando a Steigleder com certa frequência. “Eu venho pegar doações, participo das festinhas e trago as minhas crianças aqui”, comenta, bem-humorada.

Tendo estudado somente até a terceira série primária, Janaína cita que, ao longo de

Janaína atuou como catadora durante a pandemia. "Fiz isso para poder comprar mais coisas"

sua trajetória, já trabalhou em diversas áreas. “Quando meus filhos eram pequenos, trabalhei numa firma de sapatos em Novo Hamburgo. Saí porque fui morar em Venâncio Aires. Por lá, eu trabalhava com fumo e carvão”, rememora. Em determinado momento da vida, porém, ela também precisou puxar seu carrinho de reciclagem pelas ruas da região. “Foi na época da pandemia. Fiz isso para poder comprar mais coisas, porque só o salário na época não dava”, admite. Atualmente desempregada, Janaína relembra como era o cotidiano coletando materiais, tarefa esta que ela praticava em grupo. “A gente ia com a carrocinha e deixava ela lá em cima. Aí um ficava cuidando da carreta e a gente saía por aí, pegando papelão e essas coisas”, detalha. Em relação à parte mais difícil do trabalho, ela é bem objetiva: “Pegar [materiais] em dia de chuva”, pontua. Questionada a respeito do motivo pelo qual não deu sequência à atividade, Janaína foi direta na resposta. “Comecei a receber bastante doações”, afirma.

Hoje em dia, ela diz depender de donativos para conseguir arcar com os custos da criação de seus cinco filhos.

ESPERANÇA DE TRANSFORMAÇÃO

O líder comunitário Aldair reconhece a grande quantidade de moradores que trabalham coletando recicláveis, porém ratifica que existe um anseio em reverter esta situação. “A gente ainda tem os que optam em puxar carrocinha, mas queremos mudar esse quadro através de projetos, trazendo mais dignidade para essas famílias. É um serviço digno? É. Mas podemos melhorar”, assegura. Sobre os movimentos que já estão sendo feitos nesse sentido, ele explica: “Quando começarem as obras do Minha Casa Minha Vida, que estamos projetando para o final deste ano, vamos iniciar um empreendimento de 96 casinhas. Através disso, queremos trazer trabalho para o nosso povo, seja na pintura, na elétrica, na construção… E assim por diante”, reforça.

LUÍS HENRIQUE GUARNIERI VITOR BRANDÃO

6. Representatividade

Éimpossível contar a história do desenvolvimento da ocupação Steigleder sem mencionar o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM). Nascido em 1990, num contexto de êxodo rural desordenado em todo o Brasil, a entidade surgiu como uma maneira de articular diferentes atores e organizações para pleitear melhores condições às comunidades que se formaram às margens dos centros metropolitanos. A falta de políticas públicas para garantir o acesso à moradia regular a essas famílias ao longo dos anos 1970 e 1980 foi gerando, pouco a pouco, um barril de pólvora que eclodiu com uma fagulha: a miséria.

Na Steigleder, que só se estabeleceu enquanto uma ocupação organizada décadas depois, nos anos 2010, o MNLM chega através do intermédio da prefeitura de São Leopoldo. À época comandada por Ary Vanazzi, do PT, a gestão municipal tinha um histórico de boa relação com o movimento e indicou às lideranças da ocupação que procurassem os dirigentes do MNLM para um assessoramento na luta contra a reintegração de posse, ação judicial que despejaria os moradores do território.

É neste contexto que emerge Cristiano Schumacher, dirigente nacional do MLNM e uma das principais referências da comunidade da Steigleder na luta pelo direito à moradia regular. Nascido e criado em Santa Maria, ingressou no movimento em 1996, após se mudar para a Nova Santa Marta, uma das maiores ocupações do Rio Grande do Sul à época, localizada na região oeste da cidade.

“O movimento tem o papel político da organização das pessoas, da formação, da construção de consciência e da ordenação das reivindicações do povo na luta pela garantia dos seus direitos. Essa é a trajetória do MNLM. Construir poder popular diretamente, interferindo na disputa política e na construção de políticas públicas estrategicamente”, define Cristiano.

Quando chegou à Região Metropolitana, Cristiano trabalhava na campanha de despejo zero. A Steigleder, segundo ele, vivia numa condição muito vulnerável, com várias famílias em situações precárias, o que levou o movimento a adicioná-la em suas ações cotidianas. “Atuamos na garantia do não despejo, da segurança alimentar com cozinhas comunitárias, no contraturno escolar para as crianças, com cursos de formação, na instalação do galpão.

A comunidade em movimento

A atuação do Movimento Nacional de Luta por Moradia na Steigleder

Assim o movimento foi desenvolvendo um vínculo com as famílias deste território e conquistando vitórias importantes”, conta.

As conquistas referidas por Cristiano começam desde o cadastramento das famílias, como uma demonstração de organização institucional, que resultou na inclusão da ocupação no PAC do governo federal, com moradia para centenas de famílias via construção de unidades habitacionais e reassentamentos, além da infraestrutura urbana prevista no projeto. Sobre as críticas ao MNLM e a rotulação de “invasores”, Cristiano é taxativo. “Quem diz isso não conhece a realidade. Um país que foi colonizado, teve seus indígenas dizimados num genocídio extraordinário,

diversas populações exploradas, e nunca lhes foi dado o direito à cidade”, protesta, destacando que a luta dessas pessoas é por necessidade. “É urgente que o país faça essa reflexão”, conclui.

RESULTADOS NA PRÁTICA

As conquistas citadas por Cristiano são resultantes da luta da comunidade. Porém, mais do que isso, o esforço pela inserção do debate político na Steigleder é a base de sustentação para o avanço da ocupação. Morador do local, Alessandro Macha é a demonstração prática disso. “Quando eu entrei no movimento, abri meus olhos para muita coisa. Entendi o que era válido pela lei e o que não era. O que os governos falavam que

movimento é uma esperança, uma luz que ainda existe”, afirma Alessandro. “Eles que falam por nós, nos representam, são nosso braço direito indo na prefeitura, fazendo nossas demandas se concretizarem. Quanto mais força, melhor para o nosso lado”, explana Santos Roberto, vizinho de Alessandro na Steigleder.

REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Com 2.263 votos, Karina Camillo foi eleita vereadora em São Leopoldo pelo PT em 2024. Nascida em Santo Augusto, no noroeste gaúcho, foi para a Região Metropolitana em busca de melhores oportunidades. Desde então, morou em ocupação e passou a integrar o Movimento Nacional de Luta por Moradia, após ler sobre a organização e se identificar instantaneamente. “Mesmo sem muita coordenação, sempre nos reuníamos para decidir o que fazer e como se defender. Comecei lutando por mim, pelas mulheres do meu entorno, mas nem sabia que estava fazendo política e representando tanta gente”, recorda Karina sobre os primeiros anos na cidade.

era mentira e o que era verdade. Quem estava do nosso lado e quem não estava”, conta. Ainda assim, a comunidade tem muitos moradores, e a tarefa de conscientização política é dura. “A maioria não tem [consciência política]. O governo da cidade hoje é contra nós, contra o pessoal que luta pela moradia. E muita gente daqui votou”, reflete Alessandro, que atribui parte da dificuldade do diálogo à burocracia do estado. “Se eles pedirem um papel para nós, conseguimos em cinco dias. Eles demoram 30 dias para responder e ainda acham defeito”, desabafa. No entanto, sob um aspecto mais amplo, o MNLM conquistou o respeito da comunidade. “Se não fosse o movimento não sairia o PAC. Para quem está ameaçado de despejo, o

Com a bandeira do MNLM e o apoio das ocupações, Karina não chegou à vereança sem antes liderar uma série de processos, como a presidência das ocupações, o trabalho de assistência social durante a pandemia e o período como secretária de habitação do município. “Tudo o que eu aprendi no movimento, especialmente no desenvolvimento de projetos, me serviu como bagagem para ter condições de assumir essa responsabilidade gigante”, garante a vereadora. Além da bagagem obtida através da organização política do movimento, o principal norte de Karina para estabelecer o senso da responsabilidade que carrega é a vivência prática. “As pessoas não sentiram na pele como é a vida numa ocupação. A noite é escura, tem fumaça, é quente ou fria demais, não tem água na torneira para lavar louça, equipamentos eletrônicos queimam porque a energia é precária e irregular. Muitas vezes é preciso enfrentar os desafios de conviver com as consequências do tráfico, com mulheres sendo agredidas. As pessoas vão morar nesses locais não porque querem, mas por não ter condições de financiar nada, sem estudo, sem trabalho. O início das ocupações é sempre através das pessoas mais sofridas, que estão lutando para sobreviver”, declara.

DENER PEDRO NATHÁLIA RODRIGUES

O dirigente municipal do MNLM Aldair José da Silva

Os desafios que a chuva traz para a ocupação

Moradia, luz e circulação ficam afetados tanto nas precipitações quanto nos dias posteriores

Era um sábado ensolarado quando a reportagem de Jornalismo Comunitário chegou para a segunda visita a comunidade Steigleder em São Leopoldo. Uma diferença já era perceptível assim que chegamos ao local: as possas d'água e lama espalhadas já na entrada de acesso a comunidade.

Ao desembarcar do ônibus que nos levou até o local, ficou claro que um dos problemas que a chuva traz é a mobilidade dentro da ocupação. Era possível ver o barro, a lama e a água empoçada pelos espaços da comunidade. Se para a equipe de reportagem já seria um desafio circular pelo local sem escorregar, imagine a situação para pessoas que convivem com a situação toda vez que chove. Uma comunidade que já

Cenas de um sábado de sol, depois de uma semana chuvosa na Steigleder

enfrenta desafios para conseguir moradia, luz e saneamento básico acaba tendo sua rotina ainda mais desestabilizada pelas águas. Pois os problemas acabam evoluindo para dentro das moradias, sem contar a dificuldade de chegar ao local de trabalho e a escola. O morador Luis dos Santos, 70 anos, detalha como as chuvas acabam afetando sua rotina, principalmente em situações como se deslocar pela Steigleder ou ir até o supermercado: “As ruas são ruins, péssimas”. Luis também destaca o problema envolvendo as casas, relatando que a chuva "entra no imóvel, principalmente pelo telhado”. Além disso, ele já precisou deixar sua casa em virtude das chuvas. “Sim, já tive de sair.” Não só porque a água invadiu o imóvel, mas também em razão de ficarmos ilhados. Outro morador que também enumera os problemas que a chuva traz é Vanderlei Roque de Lorena, 45 anos. Ele explica

como os transtornos afetam o dia a dia. “Trabalhar, né? Fica complicado, essa rua é muito barro.” O residente da ocupação reforça que o deslocamento para chegar até a faixa e, por consequência, ir ao local de trabalho é um dos pontos que mais ficam prejudicados na sua rotina quando chove. Vanderlei também lembra que as chuvas trazem mosquitos, o que dificulta que os moradores consigam dormir à noite. “Quando dá chuva, vem muito mosquito, aí é ruim até para dormir”. Os moradores apontam que a chuva ainda afeta a eletricidade da comunidade, pois muitas vezes a luz cai. “Dentro da casa falta muita luz”, relata Vanderlei.

O líder comunitário, Aldair José da Silva, também fala sobre a situação. Ele salienta como as condições dificultam a vida de mães que precisam levar seus filhos à escola: “Imagina uma mãe levar a criança no colégio. Vamos

dizer que tenha três filhos, um no carrinho, outra com dois anos e outra com sete ou oito anos, tendo de andar no meio do barro”.

Aldair também aponta que a mudança de gestão do governo municipal, após a eleição de 2024, também afetou a organização da comunidade. Isso porque a comunidade trabalhava com melhorias a partir de duas opções, as casas de passagem (para cuidar da área até que se iniciassem as obras) ou o aluguel social. Porém, a nova administração optou por não fazer nenhuma das duas.

Justamente por essa situação a comunidade tem enfrentado dificuldades envolvendo luz e água. “Não legalizaram a luz, e há dificuldade também de não terminarem de instalar a água. Ficaram só duas quadras com água, e as outras duas sem.”

Os moradores também optaram por não fazer melhorias ou ajustes necessários em suas residências justamente pela

indefinição do que vai ocorrer no futuro. “O pessoal não quis mais fazer puxadinho”, relata o líder comunitário.

A Secretaria de Habitação de São Leopoldo respondeu que o plano inicial, de construir casas passagem, foi cancelado devido à falta de recursos. “O investimento para a aquisição dos materiais de construção para as 60 casas era de R$ 1,077 mil, valor que não incluía a construção das residências”, explica em nota. Em relação ao aluguel social, a prefeitura informa que, “atualmente, o município aguarda a aprovação, pelo Ministério das Cidades, do projeto do sistema de esgotamento sanitário da Bacia Hidrossanitária Santos Dumont. Após a liberação para o início das obras, os moradores do loteamento provisório serão encaminhados para o aluguel social”.

VITOR WESTHAUSER

PEDRO SCHLEICH

A solidariedade e a união que movem a comunidade

Projetos sociais e a cooperação entre os moradores garantem dignidade e esperança às famílias da ocupação

Em comunidades carentes e vulneráveis, o acesso a necessidades básicas como água potável, alimentação e lazer pode ser limitado devido à precariedade dos recursos. Essa é a realidade de comunidades como a Steigleder, às margens do Rio dos Sinos. A ocupação, que já completa mais de 10 anos, é construída pela força de seus moradores e pela solidariedade daqueles que sabem que uma doação faz muita diferença na vida de quem ali reside.

Além da forte solidariedade que existe entre os próprios moradores que se apoiam mutuamente nas mais diversas necessidades, seja compartilhando itens de higiene, alimentos ou oferecendo ajuda braçal nas tarefas do dia a dia dentro da ocupação, a comunidade também conta com o apoio de organizações e voluntários que estendem a mão em momentos importantes.

Um exemplo é o projeto Marmitas do Bem, que desempenha um papel essencial no fortalecimento da segurança alimentar das famílias da localidade. Todos os sábados pela manhã, os voluntários do projeto visitam a comunidade, em dois pontos de apoio, levando marmitas de almoço e litros de leite, garantindo uma refeição digna e nutritiva para os moradores.

Em datas especiais, como o Dia das Crianças, o grupo também promove ações solidárias com a distribuição de brinquedos, doces e momentos de lazer que tornam o dia mais leve e festivo. Essas iniciativas não apenas suprem necessidades básicas, mas também fortalecem os laços de afeto e esperança dentro da ocupação.

Para Ângela Biehl, coordenadora do projeto, o trabalho vai muito além de entregar refeições, é sobre levar dignidade e esperança. “Eles esperam por essa marmita no sábado. Para muitas famílias, é a única refeição completa da semana. As crianças, quando recebem, mal conseguem esperar, já abrem ali mesmo, sentam-se no chão e começam a comer. É algo que mostra o quanto essa

ajuda faz diferença”, completa a voluntária.

A coordenadora lembra que o Marmitas do Bem também oferece apoio a gestantes da comunidade. Quando há alguma grávida em situação de vulnerabilidade, o grupo prepara e entrega kits de enxoval, contendo itens essenciais para o bebê e a mãe, ajudando a tornar esse momento especial um pouco mais tranquilo e acolhedor. Ângela ainda explica que todo o trabalho do grupo é feito de forma voluntária, contando com apoio de doações.

Para Vanderlei Nunes, morador da Steigleder e coordenador da casa de acolhimento para dependentes químicos Lírios dos Vales, toda ajuda é sempre essencial e muito bem-vinda dentro da comunidade.

“Aqui é uma comunidade muito unida, a gente faz um trabalho solidário todas as terças-feiras. Como temos a nossa igreja aqui na Casa de Acolhimento, realizamos os períodos devocionais, e a comunidade vem participar. Durante esses encontros, a gente prepara marmitas e distribui para as famílias carentes que precisam de ajuda. Também fazemos doações de roupas, brinquedos”, explica Vanderlei.

Os projetos solidários desenvolvidos dentro da comunidade têm um papel fundamental, servindo como ponto de apoio e esperança para os moradores em situação de vulnerabilidade. Para Carla da Silva Cavalheira, moradora da Steigleder, toda forma de ajuda é bem-vinda, já que muitas famílias enfrentam dificuldades financeiras diariamente e dependem dessas iniciativas para suprir suas necessidades mais básicas. No fim das contas, essas iniciativas mostram que a solidariedade é o que mantém a comunidade unida. A força coletiva da comunidade, somada ao trabalho de projetos como o Marmitas do Bem, mostra que a solidariedade não é apenas um gesto momentâneo, mas um compromisso diário de cuidado. Cada marmita, cada kit de enxoval e cada gesto de ajuda faz diferença no dia a dia das famílias que ali residem e enfrentam já suas próprias lutas diárias.

HEMELLY MARQUES
GABRIELA PANASSAL
Moradores recebem donativos do projeto Marmitas do Bem. Acima, Vanderlei Nunes

Um lugar de recuperação e acolhimento na Steigleder

Casa de apoio já recebeu mais de 240 pessoas em três anos e baseia seu trabalho na espiritualidade, disciplina e inclusão

Na Ocupação Steigleder, um espaço simples, mas cheio de significado, vem se tornando um refúgio para pessoas em situação de vulnerabilidade e dependência química. O Lírios dos Vales, casa de acolhimento e recuperação, é hoje um local onde histórias marcadas pela dor e pelo vício encontram a possibilidade de recomeço.

Atualmente, 12 pessoas vivem no local, mas ao longo de três anos mais de 240 homens já passaram pela casa. O espaço funciona com base em uma regra essencial: a adesão é voluntária. Ou seja, para iniciar o processo de recuperação, é preciso que o acolhido demonstre o desejo real de mudar de vida.“Aqui ninguém é obrigado a nada. O primeiro passo tem que partir de quem chega”, explica o coordenador Vanderlei Nunes.

FÉ QUE

TRANSFORMA

A ideia de criar o Lírios dos Vales surgiu a partir da trajetória de vida do pastor Renê Leite, que também enfrentou o mundo das drogas. Antes de se tornar líder religioso, Renê foi dependente químico e chegou a cometer delitos, sendo posteriormente preso. Foi durante esse período que conheceu a palavra de Deus, iniciou seu processo de recuperação e despertou em si a vontade de ajudar outras pessoas a saírem desse mesmo ciclo.

O trabalho desenvolvido na casa se baseia em três pilares principais: atividades práticas inclusivas, disciplina e espiritualidade, alinhando os 12 passos do Alcoólicos Anônimos (AA) com os 12 passos cristãos. Todas as manhãs começam com um momento de devoção e espiritualidade, quando os acolhidos se reúnem para orar e refletir. Além disso, sempre às terças-feiras ocorre um culto público aberto à comunidade, seguido da distribuição de marmitas para famílias da região, fortalecendo o vínculo com o entorno e oferecendo apoio também a quem vive nas redondezas.

RECUPERAÇÃO POR

QUEM JÁ ESTEVE LÁ

Vanderlei Nunes conhece profundamente os desafios da dependência química – não apenas pela convivência com acolhidos, mas por experiência própria. Ele também enfrentou um longo período de uso de drogas e álcool antes de conseguir reconstruir sua vida. Para Vanderlei, ter vivido o que seus acolhidos vivem hoje é uma ferramenta poderosa no processo de recuperação:

“Eu sei exatamente o que eles sentem, porque um dia eu estive no mesmo lugar. Tenho algumas histórias de pessoas que, com a minha ajuda, alcançaram a recuperação ao longo desses três anos. Ontem mesmo recebi mensagem de um ex-paciente me agradecendo por cada conselho e palavra durante o processo. Hoje ele é coordenador de uma comunidade em Gravataí. Isso mostra que é possível mudar”, relata, emocionado.

CAMINHOS DIFERENTES

Entre os acolhidos está Charles Wiles Maciel, de 40 anos. Durante três anos, ele viveu nas ruas, após uma trajetória de queda que começou de forma aparentemente inofensiva. “Foi numa festa de família, um convite do meu cunhado… Ali comecei a usar. Depois, comecei a pegar coisas dentro de casa [para vender], até que chegou um momento em que eu já não conseguia sustentar o vício”, lembra.

A situação se agravou, e Charles passou a roubar nas ruas. O momento decisivo ocorreu quando foi sequestrado e ameaçado de morte por criminosos. “Me colocaram dentro de um carro e disseram que iam acabar comigo. Naquele momento, falei com Deus. Pedi para Ele me poupar e prometi que, se saísse dali com vida, procuraria ajuda.” Charles sobreviveu, mas foi brutalmente espancado, sofrendo fraturas – inclusive em uma das pernas, que hoje é uma de suas maiores limitações físicas. Ele conheceu o Lírios dos Vales por acaso, ao passar em frente à casa enquanto vagava pelas ruas. Desde então, encontrou no local uma nova rotina marcada por oração,

apoio mútuo e atividades que o ajudam a reconstruir a autoestima.

Outro acolhido, Alisson da Rosa da Silva, havia chegado há apenas três dias quando falou com a reportagem. Sua trajetória também é marcada por desafios desde a infância. Ele relata ter crescido em um ambiente onde os pais eram rígidos em relação ao uso de drogas e álcool. No entanto, ao completar 18 anos e conquistar mais liberdade, passou a frequentar um bar que, na verdade, funcionava como um ponto de tráfico.

Nesse ambiente, começou ajudando jovens mulheres que vendiam drogas, pegando o dinheiro dos clientes. Com o tempo, ganhou confiança e passou a fazer o trabalho no lugar delas – usando drogas para se manter acordado e

Espaço recebe pessoas com dependência química. Abaixo, à direita, Charles, e à esquerda, Alisson

ativo. “Chegou um momento em que meu vício começou a causar prejuízo. O chefe não gostou nada e me obrigou a trabalhar e apanhar para pagar a dívida”, relata.

Após fugir de uma clínica de recuperação dias antes, Alisson chegou ao Lírios dos Vales de maneira inesperada: “Eu estava sob efeito de drogas, andando sem rumo, e simplesmente caí aqui. Pedi uma Bíblia, e desde então não saí mais”. Hoje, ele sonha com um futuro diferente: “Quero me recuperar, arrumar um trabalho e um dia poder dar à minha mãe algo que ela precisa, com o dinheiro do meu esforço".

DE RESISTÊNCIA COMUNITÁRIA

Em meio às dificuldades da vida na ocupação, o Lírios dos Vales se tornou um ponto

de referência para dezenas de pessoas que buscam reconstruir a vida longe da dependência química. A casa funciona com poucos recursos, dependendo de doações e da solidariedade de voluntários, mas se mantém firme graças ao comprometimento de sua equipe e da fé que move seus coordenadores e acolhidos. Mais do que um abrigo, o espaço representa uma segunda chance, onde histórias que pareciam fadadas à tragédia se transformam em exemplos de superação. Cada devocional, cada palavra de incentivo e cada pequena conquista diária reafirmam que, com apoio, espiritualidade e vontade, a recuperação é possível.

MATEUS GRECHI RAFAEL VALDUGA

Projeto ajuda famílias com arte e criatividade

Crianças pintam tênis que são vendidos para arrecadar recursos e manter oficinas na comunidade

ASteingleder é regada pela solidariedade, tanto de quem vive na ocupação quanto de quem vem de fora. E isso fica evidente nos finais de semana, quando o galpão da comunidade ganha vida com ações promovidas por grupos voluntários, quase sempre voltadas às crianças. Uma dessas iniciativas vai além da arte, ela gera renda, autoestima e esperança. É o projeto Miçangô, que transforma tênis brancos em telas coloridas e os lucros das vendas em doações para famílias atingidas pela enchente que devastou a região da Vila Brás, no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo.

O Miçangô nasceu dentro da Mover Voluntários, grupo que há anos atua na comunidade com oficinas e atividades educativas. “Somos uma extensão do nosso trabalho. Temos o mesmo propósito: transformar a vida através da arte e da educação”, explica Suelen Catarina, uma das fundadoras do projeto.

Segundo ela, a ideia surgiu do desejo de unir “expressão, criatividade e oportunidade”, oferecendo às crianças um espaço de liberdade. “Elas podem mostrar seus sentimentos e talentos de forma leve e significativa, sem cobrança, onde tudo é brincadeira”, conta.

Com o apoio de empresas parceiras como Ramarim e Fillon, os voluntários levaram 68 pares de tênis brancos para as oficinas. Alguns foram doados, outros comprados com recursos dos próprios participantes. As crianças pintaram cada par com cores, traços e histórias únicas, e os produtos foram vendidos na feira Loucura por Sapatos, em Novo Hamburgo, por R$ 150 cada. Todo o valor arrecadado será revertido para a manutenção das oficinas e a compra de novos materiais.

“Como nós não temos nenhum incentivo fiscal e todo o material usado nas oficinas é custeado pelos próprios voluntários, esse valor arrecadado será revertido para fortalecer as nossas ações, garantindo novas oficinas, materiais e a compra de produtos como tênis e camisetas”, explica Suelen.

O tênis, segundo ela, foi escolhido por carregar um simbolismo especial. “Ele representa o caminho, o passo, o movimento. Nós queríamos algo que simbolizasse o avanço, a esperança. O tênis branco se tornou uma tela para as crianças contarem suas histórias. Cada par é único, cheio de cores, emoções e sonhos.”

Atualmente, o projeto atende cerca de 60 crianças todos os sábados. Para muitas delas, as oficinas são o momento mais esperado da semana. “Eles se envolvem com alegria, com dedicação. Não faltam nenhum sábado. Estão aprendendo a trabalhar em equipe, acreditando que o que criam tem valor para alguém. Isso ajuda muito, reflete na escola, em casa. É um espaço seguro para sonhar e se expressar sem medo de serem eles mesmos”, conta Suelen. São ações como essa que fazem com que os moradores da Steingleder queiram permanecer na comunidade. O sentimento de pertencimento e acolhimento é o que transforma o espaço em um verdadeiro lar coletivo. Um exemplo é o de Ana Paula Camargo, 34 anos. Nascida em São Leopoldo, ela chegou a morar em Porto Alegre por alguns anos, mas

decidiu voltar para o Vale dos Sinos para ficar perto da mãe. Pouco tempo depois, perdeu a mãe e, junto com ela, o apoio familiar que tinha. Sem ter para onde ir, acabou encontrando na Ocupação Steingleder uma chance de recomeçar. Hoje, Ana mora no local com o marido e os quatro filhos. A família vive em uma das casas simples erguidas pelos próprios moradores, onde a rotina é

marcada pelo esforço coletivo para manter tudo funcionando. Aos sábados, o dia é reservado para as oficinas do galpão comunitário — momento em que as crianças participam das atividades da Miçangô e os pais se reúnem para conversar, trocar experiências e ajudar no que for preciso. Ana diz que o envolvimento da comunidade faz diferença no dia a dia. “Aqui, um ajuda o

outro. Se alguém precisa de comida, roupa ou de qualquer tipo de apoio, sempre tem alguém disposto. Isso é o que mais me faz querer ficar aqui”, conta. Sem apoio financeiro estável, o Miçangô sobrevive graças à solidariedade dos voluntários e amigos da comunidade, mas o desejo é seguir crescendo.

BÁRBARA CEZIMBRA MÔNICA LIMA
O tênis é uma tela em branco para crianças da comunidade exercitarem sua criatividade

“Um dia de cada vez”: a maternidade atípica

A força de Cristiane Otero para criar dois filhos autistas e manter vivo o sonho de ser confeiteira

Entre formas de bolo, forminhas coloridas e brinquedos espalhados pelo chão, a vida de Cristiane Otero, 37 anos, é feita de urgências, afetos e sobrevivência. Mãe solo de dois filhos autistas, Cristiano, de 21 anos, não verbal e com grau severo; e Maria, de seis anos, com autismo leve e epilepsia, ela vive na Ocupação Steigleder, onde tenta reconstruir a vida após perder a casa nas enchentes que atingiram a cidade.

A rotina é exaustiva. Cristiane dedica-se integralmente aos cuidados dos filhos, que dependem dela para tudo, da higiene ao acompanhamento médico. Sem rede de apoio e sem poder trabalhar fora, encontrou na confeitaria uma forma de garantir o sustento e, ao mesmo tempo, de alimentar um sonho antigo: o de viver da doçura que cria com as próprias mãos. “Foi por causa da minha filha que comecei a fazer bolo. Eu era cuidadora de idosos, mas não podia mais sair pra trabalhar. Comecei fazendo kits festa, e hoje faço bolos decorados de aniversário”, conta.

O negócio começou pequeno, com kits de R$ 100, um bolo simples, salgadinhos e docinhos, preparados na casa da mãe, onde há um pouco mais de estrutura. Na Ocupação, a casa onde mora não suporta a estrutura necessária para realizar sua produção. “Aqui eu não consigo preparar os kits. A gente vive com o essencial, mas é o que dá pra fazer.”

A vida de Cristiane já tinha suas dificuldades, mas a enchente foi um ponto de virada. Ela perdeu tudo quando a antiga casa, no Beco do Polenta, foi levada pela água. Desde então, tenta reerguer-se. Pós não conseguir entrar para o Aluguel Social, comprou sua atual casa na ocupação, onde segue pagando prestações mensais que comprometem quase toda a renda. “Recebo o benefício dos dois, mas o dinheiro mal dá pra cobrir os remédios e a comida. Ainda tenho a dívida da casa”, explica.

"Eu não tenho vida social, mas qualquer passo que dou já é uma grande coisa", diz Cristiane (na foto com a filha Maria)

Apesar da sobrecarga, Cristiane não fala de si com tristeza. Fala com lucidez sobre o que é ser mãe atípica e o quanto a sociedade ainda invisibiliza esse papel. “Hoje em dia dão suporte pros autistas, mas quem precisa de suporte é a mãe. Ninguém quer saber o que a mãe sente, o que ela perde em torno dos filhos”, desabafa. A rotina de consultas, crises, remédios e noites sem sono é constante. “A minha vida é 24 horas com eles. Eu não tenho vida social, mas qualquer passo que eu dou já é uma grande coisa.”

A filha mais nova, Maria, enfrenta desafios adicionais com as crises epilépticas. O acesso ao tratamento é precário. Desde o diagnóstico, há três anos, Cristiane conseguiu

apenas duas consultas com neurologista pelo SUS. “O remédio eu consegui em Canoas, com ajuda de uma médica da UPA. Ela fez uma receita de urgência, senão eu não tinha como tratar.” O medicamento estabilizou as crises, mas a menina ainda sofre com a falta de acompanhamento e o preconceito na escola. “Ela vai um dia e no outro já fica doente. As outras crianças não entendem. E não tem cuidadora fixa. Chegaram até a me ameaçar com o Conselho Tutelar.”

Entre idas à UPA e fornadas de bolo, Cristiane também carrega um olhar generoso sobre a própria história. Fala com carinho do filho mais velho, Cristiano, que aprendeu a conviver com a irmã pequena e,

quando pode, ajuda a cuidar dela também. “No começo ele não aceitava, mas agora ele se acostumou. Ele entende o barulho dela, o jeito dela. Ele até me ajuda a cuidar.”

A família de Cristiane tem um histórico de autismo e epilepsia, o que ela descobriu tardiamente, depois dos diagnósticos dos filhos. “A gente foi ver que era genético. Meu pai é autista funcional, minhas irmãs também têm filhos autistas. Antigamente ninguém sabia o que era isso”, explica. A descoberta trouxe compreensão, mas também uma certeza: “A gente precisa falar mais sobre isso, pra que outras mães não passem o que eu passei”.

Mesmo cercada por desafios, Cristiane se permite sonhar. Quer expandir a

produção dos bolos e investir em ser confeiteira. “Agora tô conseguindo conciliar a maternidade com o sonho de ser confeiteira. Tá difícil, mas um dia é um dia. A gente vai crescendo aos pouquinhos.”

Enquanto fala, Maria brinca e faz pose para as fotos e Cristiano observa calado, atento aos movimentos da mãe. É ali em torno dos filhos, entre o peso e a doçura da vida, que Cristiane segue firme como mulher, mãe, trabalhadora e sonhadora. Como ela mesma diz: “A gente vai se dividindo. E, mesmo assim, eu sigo um dia de cada vez e faço tudo isso por eles”.

GABRIELE RECH NÍCOLAS SUPPELSA

As vozes esquecidas

Jornalismo comunitário dá espaço para moradores contarem suas histórias e desafios

Era uma manhã de sábado ensolarada, um alívio depois de dias consecutivos de chuva, quando chegamos à Ocupação Steingleder. Não era a nossa primeira visita, mas a realidade do lugar continuava a nos impactar. Duas turmas de jornalismo de uma universidade privada – instituição que, embora receba alunos de diferentes contextos sociais, ainda mantém mensalidades elevadas – estavam presentes. Pessoas que vivem em um mundo e, de repente, se deparam com outro completamente diferente.

A missão dada pelos professores era a mesma da primeira visita: encontrar histórias e pautas diversas para dar voz a quem muitas vezes não é ouvido – uma das principais características do jornalismo comunitário. Cada aluno deveria abordar um tema diferente, o que não era difícil em uma comunidade formada por centenas de moradores, cada um com uma trajetória marcada por luta e resistência.

Na visita anterior, minha pauta havia tratado das casas de passagem – construções erguidas em terreno elevado para abrigar famílias afetadas pela enchente de 2024. Elas surgiram como uma medida emergencial para garantir segurança e evitar novos alagamentos, mas com o avanço das obras de saneamento do Serviço Municipal de Água e Esgoto (Semae), essas moradias serão demolidas.

Dessa vez, eu buscava uma nova pauta. Cheguei decidida a não falar mais sobre a enchente, mas bastaram alguns minutos de conversa com os moradores para perceber que isso seria impossível. O desastre ainda estava em tudo: nas falas,

nas casas improvisadas, e nas memórias. Foi então que o líder comunitário me indicou Ana. “Conversa com ela”, disse. “Tu vai entender o que é viver aqui.”

Ana me recebeu com um sorriso cansado, mas acolhedor. Tem 34 anos, traços indígenas e uma serenidade que contrasta com as dificuldades que enfrenta. Mora na Ocupação Steingleder há quatro anos com o marido e os três filhos. Nascida em São Leopoldo, chegou a viver um tempo em Porto Alegre, mas voltou para ficar perto da família. Desde então, tenta reconstruir a vida.

Antes da enchente, a casa que haviam levantado com as

O Enfoque São Leopoldo - Comunidade Steigleder é um jornal-laboratório dirigido à comunidade Steigleder, localizada em São Leopoldo (RS). A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do curso de Jornalismo da Unisinos (campus São Leopoldo).

enfoquesaoleopoldo@gmail.com

Ana e os filhos moram em uma casa construída pelo marido depois que a moradia anterior foi destruída pela enchente de 2024

próprias mãos era simples, mas era o que bastava. “Era o meu cantinho”, contou. “Não tinha luxo, mas era minha casa.” Em maio de 2024, a chuva levou tudo, móveis, roupas, memórias. A família passou por abrigos e casas de parentes até conseguir um pedaço de terreno onde hoje estão as casas de passagem. Ali, o marido de Ana ergueu uma nova moradia. Pequena, de madeira fina, sem banheiro nem geladeira. Os colchões ficam no chão. “Tô precisando de roupa, cobertas, móveis dentro de casa, que eu não tenho”, disse. “E os guris precisam de calçados. O menor tem intolerância à lactose, o leite dele é caro, e o governo

não dá. Quer dizer... Ainda não consegui.”

Durante toda a entrevista, Ana repetiu um desejo simples, mas profundo: “Meu sonho é ter minha casa. Minha casa pros meus filhos”. Ela dizia isso com firmeza, como quem fala mais com o coração do que com a voz. “Porque, tipo assim, aqui eu tenho que sair. Tudo bem, a vida adulta é assim. Mas eu quero sair daqui fazendo uma casa, né? Pra ter um lugar meu, pra ficar. Que eu saiba que tô ali segura. E que meus filhos também estão”, disse, antes de se calar por um instante. “O lugar da gente é a casa

| REDAÇÃO | REPORTAGENS – Disciplina: Jornalismo Comunitário. Orientação: Daniel Feix (danielfeix@unisinos.br). Repórteres: Amanda Ferrari, Bárbara Cezimbra, Dener Pedro, Gabriele Rech, Gustavo Bays, Hemmely Marques, Luís Henrique Guarnieri, Mateus Grechi, Thiele Reis e Vitor Weshauer. IMAGENS – Disciplina: Fotografia no Jornalismo. Orientação: Flávio Fontana Dutra (flavdutra@unisinos.br). Fotógrafos: Gabriela Panassal, João Pedro Boch, Leo Palmi, Mônica Lima, Nathália Rodrigues, Nicolas Suppelsa, Pedro Schleich, Rafael Valduga, Vicenzo Walber e Vitor Brandão. | ARTE | Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e artefinalização: Marcelo Garcia. | IMPRESSÃO | Gráfica UMA / Grupo RBS.

da gente. Eu quero um lugar pra deixar pros meus filhos.” A realidade, porém, é dura. Assim como as outras casas do terreno, a de Ana será demolida para dar lugar às obras do Semae. A prefeitura prometeu pagar o aluguel social até que as famílias consigam outro local, mas o benefício foi adiado tantas vezes que ela já perdeu as esperanças. E esse não é o único direito que não chegou. Mesmo um ano após a enchente, Ana ainda não recebeu o auxílio emergencial de R$ 5,1 mil prometido a todos os atingidos. O cadastro dela segue “em análise”, como aparece no aplicativo. “Eu sempre olho, mas nunca vem. Diz que tá em análise... Sempre em análise”, contou.

Ao final da conversa, enquanto os filhos brincavam do lado de fora, Ana olhou para o barraco de madeira e repetiu, quase num sussurro: “Eu só queria um lugar meu. Pra deixar pros meus filhos”.

Bastou eu conversar com a Ana para entender ainda mais sobre o que é o jornalismo comunitário. Quem faz a pauta não somos nós, jornalistas –são os moradores. São eles que nos mostram o que precisa ser contado, o que realmente importa. No final da entrevista, quando eu já nem estava mais gravando, Ana fez um último pedido. Disse que não gosta de pedir, mas precisa – por ela e pelos filhos. E é justamente isso que o jornalismo comunitário faz, dá voz a quem, muitas vezes, só quer ser ouvido. Hoje, Ana e as outras famílias da Ocupação Steingleder vivem na incerteza. A cada conferida no aplicativo em que busca informações sobre o auxílio emergencial, em que percebe que nada mudou desde a olhada anterior, é mais um lembrete de que elas continuam esquecidas.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Campus de São Leopoldo (RS): Av. Unisinos, 950, bairro Cristo Rei (CEP 93022 750). Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@unisinos.br. Reitor: Sergio Mariucci. Vice-reitor: Artur Jacobus. Pró-reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Gustavo Borba. Pró-reitora de Administração: Silvana Model. Diretor da Unidade de Graduação: Paula Dal Bó Campagnolo. Coordenador do Curso de Jornalismo: Daniel Feix.

BÁRBARA CEZIMBRA MÔNICA LIMA

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.
Enfoque Steigleder 2 by Agexcom - Issuu