

Lupa

Um ano depois
Setor gastronômico aposta na criatividade para repor perdas financeiras / 6 e 7
Mercado Público resiste a marcas da cheia de 2024 / 8 e 9
Espaços culturais celebram retomada de visitas com a Bienal do Mercosul / 10 e 11
Ciclovia da Ipiranga e Pista de Skate da Orla ainda têm problemas de estrutura / 14 e 15
Porto Alegre | Junho de 2025 | Edição 19
Por que cobrimos efemérides
Por Taís Seibt | EDITORIAL |
Maio de 2025 inaugurou uma nova efeméride no jornalismo local: um ano da grande enchente de 2024, a maior da história do Rio Grande do Sul. Efeméride é como chamamos um fato relevante lembrado no mesmo dia todos os anos. A maior cheia do Guaíba foi logo ali, ano passado. As marcas ainda estão bastante presentes, inclusive visualmente, como os fotojornalistas desta edição registraram com suas lentes. Mas há marcas mais profundas e invisíveis, que nossos repórteres também buscaram traduzir em forma de texto. Cobrimos efemérides para não esquecer, e para não deixar que se esqueçam conforme os anos passam.
Fechar esta edição representa desafios múltiplos. Primeiro, porque cada um de nós carrega as próprias marcas da história recente. O trauma é coletivo, como problematiza uma das reportagens. Também porque mexer com essas memórias – as nossas e as de quem reportamos – impõe questionamentos éticos. Até onde podemos contar sem explorar o sofrimento alheio, sem vulnerabilizar ainda mais quem já está vulnerável? E ainda há o risco de uma cobertura fatalista, onde parece que só conseguimos mostrar como tudo continua sempre no caminho contrário da solução.
Precisamos cobrir efemérides para cobrar providências. Atualizar promessas e melhorias anunciadas no momento da tragédia. Relembrar
personagens importantes e lugares de destaque. Cobrir efemérides também é uma oportunidade de projetar o futuro. Buscar pessoas e lugares que encontraram soluções para desafios semelhantes. Mostrar os avanços científicos e tecnológicos que podem ajudar na prevenção de novos desastres. Trazer esperança, enfim.
É o que buscamos nesta edição especial do jornal Lupa. Do legado da ajuda internacional a pessoas deslocadas pela emergência climática à resiliência de empresários que precisaram recomeçar do zero e até trocar de ponto para reabrir seus negócios. De espaços culturais reativados no Centro Histórico ao Mercado Público, que sobreviveu a mais uma enchente, ainda maior do que a de 1941, sob a liderança
do presidente mais jovem da história da associação de permissionários. De planos de mobilidade sustentável inacabados, como a ciclovia da Ipiranga, à resistência de skatistas, que se mobilizaram para limpar a lama na pista da Orla para voltar à ativa.
E que informações nos faltam para construir um novo futuro? Também o debate realizado na Unisinos sobre dados abertos para a resiliência climática reverbera nesta edição, destacando entrevistas com especialistas e aprendizados compartilhados em uma experiência de participação comunitária realizada no campus. Uma edição que evoca lições e reflexões para quem produziu e para quem irá ler.
Boa leitura!
IMAGEM |

Lupa
(Leia Unisinos Porto Alegre) é uma publicação experimental produzida por alunos do curso de Jornalismo. REDAÇÃO – TexTos: alunos da disciplina de Reportagem em Jornal, sob orientação da professora Taís Seibt. FoTos: alunos da disciplina de Fotojornalismo, sob orientação da professora Beatriz Sallet. ARTE – Diagramação: Marcelo Garcia (Agência Experimental de Comunicação - Agexcom). IMPRESSÃO – Gráfica Uma.

No interior do Mercado Público, ficaram as marcas nas paredes, rastros de destruição e silêncio
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Campus Porto Alegre: Av. Dr. Nilo Peçanha, 1600 - Boa Vista, Porto Alegre (RS) - 91330 002. TeleFone: (51) 3591 1122. e-mail: unisinos@unisinos.br. reiTor: Sergio Eduardo Mariucci. Vice-reiTor: Artur Eugênio Jacobus. Pró-reiTor acaDêmico e De relações inTernacionais: Guilherme Trez. Pró-reiTor De aDminisTração: Cristiano Richter. DireTora De graDuação: Paula Dal Bó Campagnolo. Decana Da escola Da inDúsTria criaTiVa: Laura Dalla Zen. coorDenaDor Do curso De Jornalismo: Felipe Boff.
VITÓRIA DORNELLES
| ENTREVISTA | Evaldo Rodrigues, diretor-geral da Defesa Civil de Porto Alegre
“Tem fases até chegar o alerta para que as pessoas se protejam”
Por Nathalia Santos
Coronel da Reserva do Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Sul e atual diretor-geral da Defesa Civil de Porto Alegre, coronel Evaldo Rodrigues de Oliveira Júnior foi um dos painelistas do Open Data Day Porto Alegre, sediado pela Unisinos em março. Na oportunidade, ele falou com o Lupa sobre as obrigações, ações futuras e medidas já implantadas pelo órgão, e destacou que o telefone de emergência 199 está disponível à população 24 horas. Confira os principais trechos da entrevista.
Lupa | Como Defesa Civil e Corpo de Bombeiros se alinham em cenários de desastre climático?
Evaldo | Estamos intimamente ligados, não por causa das atividades que eu exercia antes, mas porque é uma atribuição também dos bombeiros as atividades de defesa civil. No município de Porto Alegre, temos a Comissão Permanente de Atuação em Emergências (Copae), que inclui o Corpo de Bombeiros, junto de outros órgãos municipais e estaduais e até de nível federal. Temos reuniões sistemáticas, seja em tempos de normalidade ou anormalidade. Tanto na prevenção, na preparação das populações, quanto na resposta. É um trabalho diário. Temos sistemas de comunicação e eventos
| ENTREVISTA | Renata Netto, pesquisadora do PPG em Geologia da Unisinos
“Ciclos naturais continuam, mas estamos acelerando”
Por Andiara Marques
Também no Open
Data Day, Renata Netto, pesquisadora do Programa de Pósgraduação em Geologia da Unisinos, conversou com o Lupa sobre a preparação das cidades para novas enchentes.

Lupa | De que forma estudos de geologia podem contribuir para a prevenção de desastres?
Renata | Contribuição já existe, principalmente o IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas), vem trabalhando com um volume de dados relevante na caracterização não só das bacias hidrográficas, mas também em relação aos riscos geológicos. Há grupos que trabalham com gestão de território e sensoriamento remoto. Durante a enchente, ficou evidente a importância dos dados disponibilizados para minimizar riscos de deslizamentos de encostas. A Terra já passou por vários ciclos climáticos, o diferencial hoje é o ser humano como agente impulsionador desses processos, principalmente por meio da emissão de gases do efeito estufa e poluentes. Ciclos naturais continuam
unificados, preparação de equipes integrada. Isso é rotina para nós.
Lupa | A Defesa Civil costuma enviar mensagens avisando sobre possíveis tempestades, alagamentos e similares. O que mais a população pode esperar desse órgão?

Evaldo | Primeiro de tudo é o trabalho corpo a corpo das equipes, que independente do envio das mensagens, a gente distribui as equipes na cidade para fazer essas orientações ao vivo e a cores. Com orientações indicando locais de rota de fuga, locais de abrigamento,
orientando para deixar sua moradia quando estão em áreas de risco, orientando a ir para lugares seguros. As mensagens são a primeira orientação, até porque a gente tem fases até chegar o alerta, para que realmente as pessoas adotem postura de autoproteção, e esse atendimento presencial das equipes.
Lupa | Como é feito esse mapeamento?
Evaldo | Porto Alegre tem 142 áreas de risco, isso foi um trabalho realizado em 2012, depois foi revisitado em 2022 pela Defesa Civil de Porto Alegre e o Serviço Geológico do Brasil. Então tem critérios científicos definidos para fazer esse levantamento.
| ENTREVISTA | Juliana Coin, coordenadora da iniciativa Verifica RS
“Não basta falar sobre crise climática apenas quando a catástrofe acontece”
ocorrendo, mas estamos acelerando numa escala vertiginosa.
Lupa | Como tem sido o apoio para receber e aplicar os estudos?
Renata | Muito pequeno. Quando falamos em apoio, pensamos nos gestores ou nas pessoas com influência social e econômica. Infelizmente, a natureza não está sendo priorizada nesses planos. Se quisermos ser mais resilientes, talvez seja necessário investir em arquitetura sustentável ou formas de produção menos poluentes, reduzindo o uso de gases que geram efeito estufa. O agronegócio, por exemplo, é uma grande fonte de metano, o segundo gás mais impactante nas mudanças climáticas. Produzir gado em larga escala significa liberar grandes quantidades de metano. Precisamos pensar em estratégias para reduzir ou sequestrar esse gás, ou até mesmo explorar fontes alimentares alternativas à carne bovina. Precisamos de uma mudança no pensamento global, com o grande capital apoiando governantes comprometidos com a resiliência climática. Sem isso, nada vai mudar.
Por Andiara Marques
A iniciativa Verifica RS, que mobilizou influenciadores e voluntários para disseminar conteúdo verificado durante a crise de maio de 2024, foi destaque no Open Data Day. A jornalista Juliana Coin, coordenadora do projeto, conversou com o Lupa sobre o projeto.

Lupa | Como o Verifica RS conseguiu se destacar em meio às informações falsas?
Juliana | Por mais que a gente foque bastante em conteúdo checado, nosso objetivo não está vinculado apenas ao conteúdo, mas ao alcance. Queremos estimular que cada vez mais pessoas tenham acesso à verificação. Para isso, trabalhamos com educação midiática e conhecimento sobre a dinâmica das redes sociais. Temos formatos mais acessíveis, que visam atingir todo tipo de público.
Lupa | Na sua opinião, qual é o papel do jornalismo diante de grandes catástrofes?
PEDRO
CURI
Juliana | Na minha visão, o jornalismo precisa fazer três trabalhos simultâneos. Primeiro, informar de forma clássica: contar o que aconteceu, onde aconteceu e quantas pessoas foram atingidas. Depois, vem o papel de cobrar o poder público: perguntar o que a prefeitura e o governo do estado estão fazendo para que isso não volte a ocorrer e como estão lidando com as consequências. Por fim, há também o papel educacional. Não basta falar sobre crise climática apenas quando a catástrofe acontece, precisa manter a cobrança contínua.
Lupa | Quais serão os próximos passos do Verifica RS?
Juliana | Temos estratégias para melhorar a operação e alcançar mais pessoas, incluindo parcerias com instituições e universidades. Além disso, estamos estudando a possibilidade de usar tráfego pago para segmentar ainda mais o público, especialmente em áreas de risco.
GUILHERME
Evento avaliou informações sobre alertas de enchentes
Painel na Unisinos debateu participação cidadã na geração de dados para a resiliência climática com base em canais da Defesa Civil de Porto Alegre e do Estado, além do Verifica RS
Por Bianca Moraes, Giovani Baltezan e Raquel Losekann*
Aedição 2025 do Open Data Day POA, o Dia dos Dados Abertos de Porto Alegre, reuniu representantes do poder público, da academia e da comunidade para discutir a disponibilidade e a qualidade das informações públicas para o enfrentamento das mudanças climáticas em Porto Alegre. O evento, realizado na Unisinos Porto Alegre em 15 de março, destacou a importância de dados acessíveis e confiáveis para a prevenção de eventos extremos, a partir do tema “Geração cidadã de dados e mudanças
climáticas: criando pontes entre poder público, academia e comunidade por uma cidade mais resiliente”.
A programação teve início com painel mediado pela jornalista Karine Dalla Valle, trazendo reflexões sobre a importância dos dados abertos para a resiliência climática. A pesquisadora Renata Netto, do Programa de PósGraduação em Geologia da Unisinos, abriu o debate reforçando a necessidade de reavaliar o conceito de resiliência climática, que vai além da capacidade de resistência a desastres. “Resiliência não é só suportar eventos extremos, mas adaptar-se para evitar que eles causem tanto impacto”, explicou. Netto também criticou a falta de financiamento para pesquisas voltadas à prevenção de desastres no Brasil, alertando que, sem um volume adequado de dados, as decisões continuam sendo tomadas de forma deficiente.
O padre Vicente Palotti Zorzo, coordenador do Centro Social de Educação e Cultura Farrapos, trouxe a perspectiva
comunitária sobre a gestão de informações e a tomada de decisões em situações de crise. “A gente esquece a história e não aprende com a história”, disse, referindo-se às previsões de enchentes feitas em 2023 que poderiam ter
Não faltava informação, faltava transformar esses dados em políticas efetivas para proteger a população”
Iporã Possantti, hidrólogo
ajudado a mitigar os danos da tragédia de 2024. O padre também alertou para a disseminação de “fake news” e a falta de lideranças capacitadas para gerir crises ambientais.
Em um relato emocionado, José Mathias Bins Martins, engenheiro agrônomo e presidente da Cooperativa Arrozeira Palmares, relembrou enchentes em plantações de sua família desde a infância e os aprendizados acumulados em décadas de experiência no campo. No caso das enchentes de 2024, José Mathias lembrou que as águas atingiram a zona sul do Estado dias após o colapso em Porto Alegre, permitindo planejar a proteção da colheita de arroz, que estava armazenada na cooperativa. “Eu soube dos alertas do IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas) pela rádio e fui me informar, mas ninguém acreditava que a água poderia chegar na cooperativa. Foi um desafio mobilizar a comunidade, mas nós conseguimos salvar a produção”, relatou, contendo lágrimas.

Debatedores apresentaram perspectivas do setor público e privado, além de pesquisas acadêmicas e experiências de atendimento comunitário
Atividade prática provocou participantes a avaliar dados disponíveis e sugerir melhorias nos canais de comunicação com o cidadão

Dados e desinformação
O hidrólogo Iporã Possantti, doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estava no IPH durante as enchentes de 2024, abordou os desafios da previsão e gestão de riscos hídricos. Mapas produzidos por pesquisadores já haviam sido divulgados antes da enchente, mas muitas decisões políticas acabaram ignorando esses dados. “Não faltava informação, faltava transformar esses dados em políticas efetivas para proteger a população”, ressaltou. Possantti também comentou sobre a viabilidade de investimentos em muros e diques, questionando se esses sistemas seriam suficientes diante de eventos mais extremos do que os previstos, ou se a adaptação deveria alcançar o planejamento urbano de forma mais ampla, por exemplo, criando áreas verdes no lugar de construções.
A jornalista Juliana Coin, coordenadora da iniciativa Verifica RS, destacou como a desinformação durante a enchente de 2024 no Rio Grande do Sul dificultou o acesso da população a informações corretas e essenciais para a segurança. Segundo ela, a principal fonte de informação da população afetada era o WhatsApp, onde circulavam tanto dados úteis sobre resgates e abrigos quanto boatos. “A gente precisa se preparar para garantir que a informação verdadeira chegue às pessoas certas, principalmente em momentos de crise”, afirmou Coin. O Verifica RS mobilizou uma rede de voluntários e influenciadores digitais, criando um fluxo rápido de verificação e divulgação de fatos confiáveis. Agora, a iniciativa se desdobra em novas frentes de educação midiática contra a desinformação climática. Por fim, o coronel Evaldo Rodrigues de Oliveira Júnior, diretor-geral da Defesa Civil de Porto Alegre, enfatizou a necessidade de combater a desinformação e melhorar
a percepção de risco nas diversas regiões da cidade: “Temos um mar de informações, mas precisamos saber quais dados são confiáveis e quais ações tomar a partir deles”. Ao fazer o balanço dos aprendizados da tragédia do ano passado, Evaldo
celebrou novos investimentos, como a instalação de um totem na Vila Farrapos, uma das mais atingidas, com sistema de alerta sonoro e visual interligado à Defesa Civil. Ainda, aproveitou a oportunidade para convidar, publicamente, o padre

Sugestões foram resumidas em cartazes, e foram entregues à assessoria da Defesa Civil do RS como contribuição do evento
Vicente Zorzo a colaborar para a criação de uma unidade local da Defesa Civil com a participação da comunidade no bairro, historicamente flagelado por cheias na capital gaúcha.
“A possibilidade de conectar interesses comuns entre agentes que nem sempre estão nos mesmos espaços de discussão é uma das riquezas deste encontro”, comentou a professora Taís Seibt, que organiza o capítulo porto-alegrense da mobilização internacional na Unisinos desde 2019, como embaixadora de inovação cívica da Open Knowledge Brasil. “Estamos fortalecendo esse espaço de construção coletiva em prol de melhores informações públicas e contribuindo para uma cultura de conhecimento aberto com a realização anual do Open Data Day Porto Alegre”, concluiu.
Análise crítica
Na segunda parte do evento, as professoras da Unisinos Taís Flores da Motta e Cybeli Almeida Moraes propuseram uma discussão em grupos para analisar site e rede sociais, bem como alertas via WhatsApp e SMS das Defesas Civil de Porto Alegre e do Estado do Rio Grande do Sul, e o perfil do projeto VerificaRS no Instagram. “Desde a enchente do ano passado, a gente vem desenvolvendo conhecimento sobre como trabalhar a disseminação dos dados, isto é, como a gente transforma esses dados em uma informação que vai desenvolver um bom processo de comunicação”, comentou a professora Taís Motta.
A atividade foi dividida em três momentos. O primeiro deles foi a introdução da temática, por meio da qual as professoras introduziram os conceitos de “crise” e “emergência” e apresentaram a problemática a ser trabalhada pelos participantes: “de que dados precisamos para mitigar e evitar novos desastres ambientais?”. A partir deste questionamento, os grupos passaram ao segundo momento: discutir e pensar não apenas na falta dos dados, mas também na sua comunicação, acessibilidade e motivação pela qual estes dados são apresentados. Já no terceiro momento, os grupos deveriam apresentar as suas conclusões. “Como sou desenvolvedor, tendo a focar na manutenção dos sites. Então o que mais me chamou a atenção foi a questão da usabilidade e da forma como as pessoas olham para a informação que aquele site dá”, comentou o participante Tiago Daitx. Para a professora Taís Motta, o principal objetivo da análise crítica provocada pelo workshop é fazer com que os atores envolvidos no processo pensem sobre como disseminam a informação nos seus canais, de maneira a qualificá-la ainda mais para o uso da sociedade. Os resultados do workshop foram entregues, ao final do encontro, para a equipe de comunicação da Defesa Civil de Porto Alegre, como forma de contribuição para discussões internas sobre seus sistemas e linguagens de comunicação com os cidadãos.
(*) Colaboraram Andiara Marques, João Pedro Mendoza, Nathalia Santos e Valentina Lopardo
Bares e restaurantes da capital ainda sofrem com impactos
Proprietários relatam desafios que seguem enfrentando um ano após as inundações terem forçado a paralisação de suas atividades
Por Nathalia Santos
Em Porto Alegre, as realidades sonhadas seguem espelhando uma força quase ancestral. Griô Burger, Hamburgueria Afrocentrada, é mais do que um espaço para ouvir música e comer um lanche: é a materialização de um projeto de um ano no campo das ideias e quatro de existência, segundo Luiz Roberto Sampaio, idealizador do local. Um lugar cultural e comercial, que estimula o crescimento, sensação de pertencimento e identidade negra.
Hoje localizado na zona boêmia da capital gaúcha, no bairro Cidade Baixa, a hamburgueria começou sua jornada no Estádio Beira-Rio. Com a enchente, que invadiu os gramados e impossibilitou os jogos, a mudança foi necessária. “O espaço que estávamos era muito caro e não havia uma previsão de retorno imediato”, lembra. O primeiro passo foi sair do estádio, mas o futuro era incerto. “A gente não sabia para onde iria, nem como iria fazer para reerguer o negócio”, revela.
A perda de equipamentos essenciais e o estoque de alimentos foi outro obstáculo. “A primeira fase de endividamento foi perder tudo, ficar cinco meses fechado, ter ido ao sistema bancário e ter encontrado apenas respostas negativas”, relata. Segundo o proprietário, outros espaços de empreendedores negros também tiveram os empréstimos negados. Chegou a levar a questão até o então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, quando ele esteve na capital. “Falei em nome dos afroempreendedores que não estavam sendo amparados pelas linhas de crédito. E de fato, não fomos”, lamenta.
A segunda fase de endividamento veio com a reabertura do Griô, que contou com um único auxílio do Sebrae, que, segundo Luiz, foi de uma quantia pequena.
Um ano após a tragédia e com uma dívida estimada em mais de R$ 100 mil, o entrevistado garante que, antes de pensar em crescimento, precisa de estabilidade: “A gente tem um propósito, então tem que seguir”.
Reconstruindo sonhos
A perseverança e a fé foram motores tão necessários quanto os recursos financeiros. Como o quadro de Nossa




Dono da Griô Burguer, Luiz Sampaio precisou mudar de endereço devido aos estragos das enchentes na antiga sede do restaurante, no Beira-Rio
RAFAEL RENKOVSKI
Senhora do Monte Carlo, padroeira da Polônia, que se manteve intacto dentro do FDS, bar comandado por Carlos Kolesny. Fato metafórico para ilustrar aquilo que insiste em continuar de pé. FDS, segundo Carlos, foi pensado como Fábrica de Sonhos. O local, na Avenida Cairú, Quarto Distrito da capital, mescla elementos industriais e consciência ambiental. “Tudo que está aqui foi reciclado. A montagem desse bar é 100% sustentável”, garante. O ambiente descontraído e recheado de elementos que refletem a história de vida do publicitário e metalúrgico, mesmo aparentemente recuperado das águas de maio, ainda enfrenta desafios. “Eu me sinto hoje em dia uma pessoa totalmente descapitalizada”, define.
A gente tem um propósito, então tem que seguir”
Luíz Roberto Sampaio, idealizador do Griô Burger
No Quarto Distrito, Carlos Kolesny reergueu o restaurante FDS mesclando elementos industriais e consciência ambiental
Carlos teve acesso ao auxílio reconstrução, pago em parcela única pelo governo federal às pessoas que tiveram a residência afetada, o que lhe ajudou. “Várias pessoas que não estavam nem na área alagada, ganharam financiamento. Até no Moinhos de Vento ganharam financiamento”, critica.
A reabertura do FDS aconteceu nove meses após a tragédia e, mesmo com feridas abertas, Carlos segue acreditando no seu sonho. “Eu só não quebrei por uma questão de vigor, de honra”, afirma.
Impacto financeiro
Presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) no Rio Grande do Sul, a chef de cozinha Maria Fernanda Tartoni, dona do Tartoni Ristorante, não sentiu os impactos físicos, mas sim os problemas financeiros trazidos com a enchente. “Foi pior do que na pandemia, porque naquela época a gente apenas fechou as portas e, quando pôde reabrir, foi só repor o estoque e voltar a trabalhar”, avalia.
O Tartoni está localizado no Shopping Bourbon Country, que durante a enchente fechava às 20h. Logo, o único faturamento era no horário de almoço.
Na reabertura, alguns fatores ajudaram a recompor o negócio. A empresária cita a ajuda no pagamento de salários; o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) e outras linhas de crédito para empresas maiores. O Pronampe é uma linha de crédito criada pelo governo federal que oferece empréstimos de até 30% do faturamento de micro e pequenos negócios. Porém, o valor máximo oferecido por empréstimo é de R$ 150 mil.
nada sem ajuda. “Uma andorinha só não faz verão e a gente vai tentando. Estamos aqui tentando ainda”, conclui.
História que resiste
A esperança é uma linha que costura as narrativas e, quando um espaço de importância histórica se reergue, representa a força que o povo gaúcho não esquece. É isso que representa o Chalé da Praça XV, patrimônio cultural de Porto Alegre.


Para Maria Fernanda, proprietária do restaurante
e presidente da
RS, impacto no setor foi pior do que na pandemia
Ainda, mesmo para uma especialista em crises, como se autointitula Maria Fernanda, não é possível fazer
O atual diretor do Chalé, Edemir Simonetti, também é diretor do Sindicato de Hospedagem e Alimentação de Porto Alegre e Região (Sindha) e proprietário do POA 360 Gastrobar. Com mais de 40 anos de profissão, os impactos da inundação em um dos principais pontos turísticos do Centro Histórico da capital ficaram marcados em sua trajetória: “Tínhamos todo o estoque no subsolo, câmaras com as carnes, informática, motores, foi um prejuízo muito grande”.
Apesar disso, as linhas de crédito e auxílios ajudaram a reerguer o restaurante. “Tivemos o pronampe solidário do Banrisul, sem juros, seis meses de carência. Isso foi fantástico”, afirma. Destaca também o pagamento de dois meses de salário dos funcionários pelo Programa Emergencial de Apoio Financeiro. Ainda, Edemir reforça o valor dos funcionários, principalmente dentro do setor gastronômico, e se mostra confiante quanto aos planos para o futuro do Chalé. “Eu sou um apaixonado pelo Chalé. Vamos deixar ele brilhando”, promete.
Porém, expressa tristeza ao lembrar de empresários veteranos que não conseguiram reabrir. “Dez anos de empresário, seis anos de empresário. Não é aventureiro. Muita gente não voltou”, conclui.
Atual proprietário do histórico Chalé da Praça XV, em frente ao Mercado Público, Edemir Simonetti se mostra confiante na reconstrução do espaço
A preocupação de Edemir é a realidade do Novo Recomeço, restaurante reinaugurado na Vila Mariante após a terceira e pior enchente de sua história. Taís de Souza, proprietária do estabelecimento, buscava manter o negócio após a estrutura quase toda ser coberta pela água, em maio de 2024. No entanto, o resultado foi o oposto do esperado. “A gente ficou quatro meses lá, mas não deu. Fechamos novamente”, lamenta. “Adquirimos muitas dívidas, estou com o nome sujo e endividada porque não tinha movimento”.

Hoje em Venâncio Aires, Taís está desempregada e o que lhe resta é a inadimplência e a vergonha de sair de casa. Mas, mesmo com tudo o que vivenciou, a entrevistada garante: “A gente ainda vive, então tem que ir e batalhar de novo”.
O governo federal, no documento “Avaliação dos efeitos e impactos das inundações no Rio Grande do Sul”, divulgado em novembro de 2024, informou que o setor de alimentação sofreu uma perda estimada de quase R$ 4 milhões no estado, em estoque, infraestrutura, mobília e equipamentos. Histórias como a de Taís são mais do que um espelho dos números, mas um exemplo de outros gaúchos de muita fé, honra, sonhos amplos e recursos insuficientes que ainda buscam alternativas. Fica a esperança de que casos como os de Luiz, Carlos e Edemir possam se multiplicar.
Tartoni
Abrasel
Mercado Público carrega memórias de duas enchentes históricas
Reaberto a frequentadores, espaço renova projeções para o futuro sob a liderança do presidente mais jovem da história da Associação dos Permissionários
Por Valentina Lopardo
No coração de Porto Alegre, o Mercado Público já sobreviveu a incêndio, enchentes e crises econômicas. Mas nunca foi tão abalado quanto em maio de 2024, quando as águas da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul invadiram suas estruturas centenárias, ultrapassando a marca histórica de 1941 e deixando cicatrizes físicas e emocionais. Nesse cenário, emergiu um protagonista: Rafael Sartori, 31 anos, o presidente mais jovem da Associação dos Permissionários do Mercado Público.
No cargo há apenas seis meses quando a tragédia atingiu a capital, Rafael precisou assumir o comando. “Eu faço 32 anos esse ano e, felizmente ou infelizmente, tudo isso aconteceu na minha gestão”, diz ele, com a seriedade de quem carrega uma importante participação na reconstrução de um dos símbolos da cidade.
A enchente atingiu com força total o térreo do Mercado, onde estão bancas históricas de alimentos, açougues, bares, lojas e o Assentamento de Bará, espaço de referência das religiões de matriz africana, visto por muitos como força protetora do prédio. Rafael relata que, no dia 4 de maio de 2024, as águas chegaram ao Mercado de forma repentina: “A gente

estava acompanhando o que estava acontecendo, recebendo vídeos e imagens dos bairros já alagados. Quando a água chegou no centro, veio muito rápido. Em menos de duas horas já tinha tomado conta do térreo todo”.
Com a água chegando a 1m80cm de altura, o prejuízo foi imediato e avassalador. Equipamentos e mercadorias foram perdidos, e cerca de mil trabalhadores foram diretamente impactados. “Dessas mil pessoas, 30% tiveram, além da perda do trabalho, a perda dos domicílios”, conta Rafael. A dificuldade era generalizada: “Não tinha pra onde levar, porque onde não tinha água já não tinha mais energia elétrica”.
Pontes entre gerações
Apesar da pouca experiência em crises desse porte, Rafael estruturou um grupo de conselheiros formado por ex-presidentes da Associação para guiar decisões e reduzir os riscos. “Eu não posso resolver nada sozinho, além de não ter experiência em grandes eventos como essa enchente, eu não tinha muita experiência em resolver problemas, estava no cargo há pouco tempo”, conta. A colaboração se tornou pilar fundamental para enfrentar os meses que viriam.
Quando a água chegou no centro, veio muito rápido. Em menos de duas horas já tinha tomado conta do térreo todo”
Rafael Sartori, presidente da Associação dos Permissionários do Mercado Público
Ao longo dos meses seguintes à enchente, a Associação dos Permissionários, sob a liderança de Rafael, segue promovendo ações para viabilizar a retomada dos espaços afetados, articulando com o poder público. A ideia é que o mercado volte a operar plenamente ainda em 2025, com adaptações estruturais e novos protocolos de prevenção.
Enquanto isso, o presidente segue acompanhando de perto cada etapa da reconstrução: “Estamos trabalhando para devolver o mercado para a cidade o quanto antes. Sabemos da importância que ele tem, não só para quem trabalha aqui, mas para toda Porto Alegre”.
Além disso, o presidente passou a participar de reuniões semanais com representantes da prefeitura e de grandes empresas, buscando soluções conjuntas para a retomada. As conversas com o poder público envolvem ações práticas, mas também demandas por reconhecimento, visando reconstruir o protagonismo do local para a população. Para garantir a continuidade, Rafael tem buscado estratégias que dialoguem com o presente e o futuro. “A gente sabe que precisa trazer as novas gerações para dentro do mercado. Tem muita gente jovem que não conhece a história desse lugar. Estamos tentando mudar isso com eventos, ações culturais, atividades que façam sentido para esse público”, projeta. Essas ações não são apenas cosméticas. São, na verdade, tentativas de reoxigenar o fluxo de visitantes e tornar o mercado novamente atrativo num cenário pós-tragédia. O entorno do prédio ainda sente os efeitos da catástrofe, com parte das lojas fechadas, estrutura danificada no segundo andar e um clima de reconstrução visível em cada detalhe.
PEDRO


Média de visitantes é de 20 mil por dia, número abaixo do considerado ideal pela Associação, que seria de 30 mil
Rafael Sartori buscou apoio em um grupo formado por expresidentes para gerir a crise
Até mesmo a maquete da Casa de Cultura Mário Quintana ficou marcada pela subida das águas de maio de 2024 no Centro Histórico

“Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos um rio só para nós. Um rio de portas a dentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas.”
As palavras são de Mário Quintana, escritas durante a enchente de 1941. Oito décadas depois, o Guaíba volta a invadir aquela mesma casa, agora transformada em uma Casa de Cultura que leva o nome do poeta ilustre. Por semanas, ruas do Centro Histórico e corredores de espaços culturais de Porto Alegre viraram rios. Além da Casa de Cultura Mário Quintana, o Museu de Artes do Rio Grande do Sul (Margs) e o Espaço Força e Luz, antigo Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, são exemplos de prédios históricos com acervo cultural atingidos. Após ser adiada pela catástrofe, a 14ª Bienal do Mercosul emerge como um gesto de resistência — um testemunho da força da arte e da cultura diante da destruição.
Sob o conceito dos “estalos” transições, rupturas e recomeços, esta edição da Bienal torna-se, por si só, um estalo coletivo. Muitos dos espaços participantes foram duramente afetados pelas águas em maio de 2024, mas, com esforço conjunto, conseguiram se reerguer a tempo de celebrar a arte e, com ela, a própria persistência cultural.
O Margs enfrentou uma das maiores
Corredores que viraram rios voltam a ser inundados de arte
Reabertura de espaços culturais no Centro Histórico permitiu exibir obras da Bienal do Mercosul em meio a marcas da enchente presentes na memória e no acervo
Por Andiara Marques | Imagens de Ana Falk
provações de sua história recente na enchente de 2024, que invadiu completamente o primeiro andar do prédio, comprometendo uma parte significativa do acervo, além de danificar equipamentos e infraestrutura para o funcionamento da instituição. “O impacto foi devastador, mas também marcou o início de uma longa jornada de reconstrução”, relata Francisco Dalcol, diretor e curador do museu.
Foram sete meses de trabalhos intensos, em dezembro, mesmo ainda em
processo de recuperação, o museu reabriu parcialmente as portas ao público com a exposição “Post Scriptum — Um museu como memória”, uma mostra relatando a própria tragédia e o papel do Margs como guardião de memórias e testemunha do tempo. O projeto original para a Bienal previa a ocupação dos dois andares expositivos, mas a realidade forçou a concentração apenas no primeiro piso. O segundo andar segue fechado, com previsão de reabertura no segundo semestre de 2025.
Memória
das águas
Na Rua dos Andradas, conhecida historicamente como Rua da Praia, por sua localização à margem do Guaíba antes do aterramento da orla, a Casa de Cultura Mario Quintana guarda mais do que arte e história, carrega também as marcas de duas enchentes históricas. Ao caminhar pelos corredores, é possível ver os vestígios do desastre mais recente, que atingiu especialmente o primeiro andar. O alerta chegou no dia 2 de maio de 2024: por precaução, todas as instituições culturais da região central deveriam fechar as portas. “No outro dia, muita gente não conseguia chegar até aqui, algumas das pessoas da equipe que moram mais próximas conseguiram vir e fazer uma força-tarefa para subir materiais que ficam no primeiro andar”, relata Ana Cristina Steffen, gestora cultural da Casa. “Acho que ninguém esperava que as coisas iam ter a dimensão que acabou tendo”, completa. Graças à mobilização emergencial, o acervo histórico foi preservado. Documentos da época do Hotel Majestic, alguns manuscritos do Mário Quintana e outros da Elis Regina já estavam no segundo andar e não foram comprometidos. A tragédia afetou diretamente o funcionamento do espaço: exposições, oficinas e atividades culturais precisaram ser reorganizadas. “A Bienal teve que ser toda reprogramada. Pensamos que em duas semanas retomaríamos a agenda, mas a situação foi muito mais grave do que imaginávamos”, conta Ana. No fim de maio de 2024, iniciou-se o processo de limpeza da Casa de Cultura.
Nossa prioridade foi acolher e apoiar artistas e agentes culturais que também foram impactados pelas enchentes”
Veronica Fernandez, diretora-presidente do Espaço Força e Luz
O processo de restauração levou meses para ser realizado, estendendo-se até fevereiro de 2025. Para celebrar a conclusão, foi inaugurada a obra “Memória das águas”, uma linha de alumínio que marca o ponto na Travessa Rua dos Cataventos até onde se estendia a margem do Guaíba antigamente, ressurgindo como símbolo da resistência cultural.
Apoio a artistas
Outro autor de grande importância para a literatura gaúcha também foi ameaçado pela inundação de maio de 2024. Felizmente, toda a estrutura que abriga sua obra está localizada no sexto do Espaço Força e Luz, e não foi prejudicada. As

águas de maio invadiram o primeiro andar do prédio, comprometendo parte da estrutura elétrica e da infraestrutura, mas Veronica Fernandez, diretora-presidente da instituição, lembra que o foco da recuperação não foi, num primeiro momento, a retomada de grandes eventos: “Nossa prioridade foi acolher e apoiar artistas e agentes culturais que também foram impactados pelas enchentes”.
O local disponibilizou suas dependências para que artistas pudessem continuar trabalhando enquanto se reerguiam das perdas. A Casa de Cultura Mário Quintana seguiu o mesmo caminho, abrindo diversas salas para que esses profissionais pudessem exercer suas atividades.
A preparação para a Bienal do Mercosul


Cristina Steffen, gestora cultural da Casa de Cultura Mário Quintana, destaca mobilização emergencial
de 2025 surgiu como consequência desse movimento de colaboração e solidariedade. Apesar do impacto estrutural, a programação prevista foi mantida. Houve ajustes de datas, pequenas adequações, mas nenhum projeto foi cancelado. A decisão foi clara: agir de dentro para fora. O espaço retorna à Bienal em 2025 não apenas como palco de exposições, mas como símbolo da força cultural que resiste, mesmo quando a cidade afunda.
Acervo restaurado
Margs, Casa de Cultura e Espaço Força e Luz realizaram diversas mudanças em sua estrutura, organização e armazenamento de obras após a enchente.
No Margs, o acervo foi transferido para o segundo andar para que não corra risco de ser prejudicado novamente. Quando questionados sobre possíveis trocas entre os museus para planos de ação de recuperação e preservação, os locais relatam que não tiveram tempo hábil ainda de sentarem e relatarem como foi esse período para eles, mas acreditam que após a finalização de todas as ações esse debate será realizado.
Nos três espaços, a percepção é unânime quanto ao público: as visitações cresceram. O interesse se intensificou. Mesmo com os desafios enfrentados pelo Centro Histórico em sua lenta reconstrução, as pessoas voltaram a caminhar pelos salões, onde um ano atrás só era possível passar com botes e canoas. A destruição, ao invés de afastar, parece ter despertado um novo tipo de presença: mais atenta, mais afetiva, mais solidária.
Ao todo, os três espaços receberam, juntos, mais de R$ 20 milhões em investimentos públicos e privados para recuperação estrutural, restauro de acervos e modernização de seus prédios. A força-tarefa envolveu desde o governo estadual e federal até empresas como Banrisul, Nubank e Equatorial.
Mais uma vez, arte no Rio Grande do Sul se reinventou, se renovou e, como propõe o tema da Bienal de 2025, se transformou. Assim como as paredes do Margs, do Espaço Força e Luz e da Casa de Cultura Mario Quintana, a cultura gaúcha está marcada, sim, mas também viva, resiliente e repleta de histórias que continuarão a atravessar o tempo e o vento.


Exposições da Bienal do Mercosul levaram público de volta aos museus, onde obras de arte dividem espaço com marcas da história
Ana
Como a sobreposição de crises abala o emocional dos gaúchos
Pandemia e enchentes: especialistas alertam para o risco de esgotamento emocional coletivo diante de eventos traumáticos sucessivos
Por Bianca Moraes
Em menos de quatro anos, o Rio Grande do Sul foi palco de duas tragédias históricas: uma pandemia global e, em seguida, a maior enchente já registrada no estado. O que ficou depois do luto coletivo e da destruição material foi algo ainda mais difícil de reconstruir: a saúde mental dos gaúchos.
Segundo levantamento do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), 42% das pessoas afetadas pelas enchentes no estado apresentaram sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Os dados, coletados entre junho e julho de 2024, revelam que 778 dos 1.846 entrevistados relataram sinais compatíveis com o transtorno. Mas os números contam apenas parte da história.
Moradora de Canoas, uma das cidades mais afetadas pela enchente de 2024, Maria dos Anjos viveu as duas tragédias de perto. Ao relembrar a pandemia, diz que o impacto maior foi a solidão. Nas enchentes, o abalo se intensificou. “Porque não foi apenas eu, foi todo o meu bairro, diversas pessoas
que eu conheço”, define. “E uma questão que pega muito é o financeiro. A gente trabalha, junta o nosso dinheiro, e tem que gastar para repor as coisas que a gente já tinha conquistado com o nosso trabalho. Isso pega bastante”, complementa.
Na pandemia, Maria encontrou nos hobbies manuais um escape emocional. “Me envolvi bastante com a costura, que era o que eu fazia quando era criança”, diz. Já durante as enchentes, foram atividades mais físicas e sensoriais que trouxeram algum alívio, como caminhar e ouvir música. O amparo externo, segundo ela, veio menos do poder público e mais das pessoas ao redor. Hoje, mesmo com reformas, sua casa ainda apresenta danos. E o medo persiste. “Toda vez que tem uma chuva, uma ventania, a gente ainda tem medo. É como se o trauma ainda estivesse ali”, conclui Maria.
Mudança de rotina
Segundo a psicóloga Ana Júlia Schmidt dos Santos, que atuou no acolhimento emocional de vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, eventos traumáticos, como a pandemia e as enchentes, transformam o funcionamento mental das pessoas. A mente humana busca naturalmente o equilíbrio, a chamada homeostase. “A gente precisa de rotina, estabilidade. Isso traz uma
Não foi apenas eu, foi todo o meu bairro, diversas pessoas que eu conheço”
Maria dos Anjos, moradora de Canoas
tranquilidade emocional. Mas quando a pandemia chegou, nosso cérebro foi ativado para o modo de sobrevivência. É o que a gente chama de estado de luta ou fuga”, explica Ana Júlia. Esse estado de alerta, que deveria ser passageiro, foi prolongado e sobreposto por uma nova tragédia: a enchente. “É como se o cérebro nunca tivesse voltado ao normal. Veio a pandemia, ficou, e logo depois veio a enchente. É uma sequência que não dá tempo para o trauma ser elaborado. E aí vira um trauma coletivo”, alerta a especialista. Ana Júlia comenta que esse trauma sobreposto é até mesmo confundido pelas pessoas: “Tem gente que chama a enchente de pandemia, porque foram experiências parecidas em muitos aspectos, o cérebro mistura essas memórias”. BRUNO

Memória afetiva
Além do impacto emocional da perda de vidas humanas, como no caso da pandemia, as enchentes trouxeram um elemento ainda mais devastador: a perda do lar e da memória afetiva. “As pessoas perderam a casa, o quarto do filho, as fotos do casamento. Isso tudo é a nossa referência emocional. A pandemia levou pessoas, mas a enchente levou também o lugar onde essas pessoas viviam”, descreve a psicóloga.
Durante a tragédia, Ana Júlia fez parte de um grupo de acolhimento psicológico emergencial. Ela estava no interior e não conseguia voltar a Porto Alegre porque as estradas estavam destruídas. Começou a atender pessoas gratuitamente: idosos, jovens, mães, crianças. Para a psicóloga, o esgotamento emocional coletivo no estado é evidente, especialmente entre crianças e adolescentes. “Esses foram os mais afetados. Durante a pandemia, ficaram trancados em casa, muitas vezes em ambientes hostis. A escola era o único refúgio para muitos. E agora, na enchente, o trauma voltou. As crianças perderam o pouco que tinham. O impacto nelas é imenso”, pontua.
A especialista alerta sobre os riscos do silêncio coletivo. Segundo ela, o luto não é apenas pela perda de pessoas, mas também por objetos, espaços, lembranças. “Perder uma camiseta que a avó te deu pode ser tão doloroso quanto perder uma casa. Isso é luto. E se a gente não fala sobre ele, esse luto vira um acúmulo, um trauma crônico”, exemplifica. Outro ponto de preocupação é o aumento do uso de álcool e drogas como forma de lidar com os traumas. Ana Júlia reforça que o tempo pode amenizar o sofrimento para alguns, mas isso depende da história e da estrutura emocional de cada um. Em alguns casos, pode piorar, mudar de forma, aparecer em outro episódio.
Quanto aos sinais de adoecimento emocional, uma dica da psicóloga é prestar atenção no olhar: “Pupilas dilatadas, olhar perdido, para baixo. Esses são os primeiros sinais de que algo está errado”. Para ela, é necessário mais preparo no atendimento à população em eventos trauáticos, e defende que o básico sobre saúde mental seja ensinado a todos os profissionais da linha de frente, desde bombeiros até ginecologistas. “Cursos simples sobre o que é uma crise de pânico, como acolher uma pessoa autista, como reconhecer um sinal de luto. A gente precisa começar do básico”, sugere.
Enchentes trouxeram um elemento ainda mais devastador: a perda do lar
Quando voltar não é uma opção
Organizações internacionais atuaram no acolhimento de pessoas forçadas a se deslocarem de suas moradias pela devastação causada pela enchente histórica
Por Raquel Losekann
Asecretária Eduarda da Silva, de 23 anos, teve que sair às pressas da casa da mãe, em Canoas, que foi alagada, e também não podia retornar à sua casa, no bairro Floresta, em Porto Alegre, pelo mesmo motivo. “Cenário de guerra. Eu fiquei pensando: Será que eu posso voltar? Será que eu quero voltar? A gente não sabe se vai ter que sair de lá porque agora parece que vai virar uma coisa corriqueira”, conta.
Quando Eduarda foi resgatada, a água já havia chegado a quatro metros de altura. Após o resgate, ela e a irmã foram para o abrigo da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas. “Minha mãe achava que, quando ela voltasse para casa, o lugar estaria apenas sujo. Mas não. A casa estava destruída. Para ela, era mais difícil ainda essa sensação de não ter uma casa para voltar. Eu fiquei pensando: para onde a gente vai?”, relembra.
Para a analista de comunicação Náthali de Moura, enchentes, infelizmente, não eram “novidade” para os moradores de Eldorado do Sul, mas 2024 foi o estopim: “Minha casa tinha apenas dois anos e, depois da enchente, não quis mais voltar. Fiquei com medo de acontecer de novo”. Diante de situações como as de Eduarda e Náthali, a moradia, o abrigo e a ajuda humanitária se tornaram cruciais. Segundo a Defesa Civil do Rio Grande do Sul, mais de 380 mil pessoas ficaram desalojadas e 600 mil precisaram se deslocar. Em Canoas, cidade de Eduarda, foram entregues pelo poder público 58 moradias habitacionais temporárias, enquanto em Eldorado, cidade de Náthali, foram entregues 105, segundo dados disponibilizados pela agência Fiquem Sabendo, obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI).
Além disso, foram criados os Centros Humanitários de Acolhimento (CHA), ou abrigos, e distribuídas casas modulares, ou “casinhas”, para além das casas disponibilizadas pelo Estado. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), agência da ONU voltada à proteção de pessoas em situação de refúgio, apoiou com as casas modulares, enquanto a Organização Internacional para as Migrações (OIM), que
atua na promoção dos direitos de migrantes, ficou responsável pela gestão de abrigos. Essas organizações também assistem pessoas deslocadas internamente — aquelas que, embora não cruzem fronteiras, precisam deixar suas casas. Pela Convenção de Genebra (1951), refugiados, por exemplo, são pessoas deslocadas por motivos como raça, religião, opinião política ou até mesmo guerra. No entanto, em desastres como o ocorrido no Rio Grande do Sul, muitas pessoas também se viram forçadas a deixar suas casas.
Ajuda
internacional
Pelo Acnur, foram entregues 308 unidades habitacionais de emergência, que abrigaram até 1.848 pessoas deslocadas, segundo dados fornecidos pelo Alto Comissariado. Também foram doados itens de higiene e cozinha. O governo solicitou apoio desse material ao Acnur, que doou à Defesa Civil do Estado e à Secretaria de Desenvolvimento Social, segundo Pablo Mattos, 43 anos, natural de Rio Grande (RS) e oficial de Relações Governamentais do Acnur. As casas modulares já foram utilizadas na Operação Acolhida, em 2018, em Pacaraima, no Estado de Roraima, em função da chegada de venezuelanos ao Brasil.
“No RS, a necessidade imediata era de abrigar as pessoas. Eram questões
Minha casa tinha apenas dois anos e, depois da enchente, não quis mais voltar. Fiquei com medo de acontecer de novo”
Náthali de Moura, analista de comunicação

muito básicas. Então, buscamos apoiar também com abrigos provisórios, onde as pessoas recebessem alimentação, roupas e proteção”, destaca Pablo. Para além do apoio com os materiais e com as casas, o Acnur também disponibilizou capacitações aos servidores locais para o uso dos materiais e, especialmente, das unidades modulares.
Já a OIM esteve à frente da organização de dois Centros Humanitários de Acolhimento (CHA), o Centro Humanitário Vida, em Porto Alegre, e o Centro Humanitário Esperança, em Canoas. Segundo dados fornecidos pela organização, foram 187 pessoas acolhidas no CHA Esperança, e 129 no CHA Vida. Em ambos os abrigos, as necessidades também eram básicas. Para além de abrigar as pessoas, os centros disponibilizaram água, materiais de higiene e atendimento médico. Após um ano da enchente, as casinhas modulares do Acnur já foram enviadas ao norte do país, onde ficam guardadas. Os Centros Humanitários de Acolhimento da OIM também foram desmobilizados.
Um ano depois da crise, em maio de 2025, o CHA Esperança estava em processo de encerramento. As pessoas estavam saindo do local levando seus pertences e outros materiais de assistência. Havia, ainda, duas casinhas modulares restantes. As trabalhadoras da OIM estavam etiquetando pertences e organizando a saída das pessoas.
Cenário de destruição impossibilitou retorno de Eduarda e sua família à casa onde moravam, em Canoas
“O mandato do Acnur, por exemplo, foi se expandindo para abarcar outras pessoas que têm uma condição parecida com a condição de refugiado. Essa expansão ocorre por meio de algumas resoluções que autorizam o envolvimento do Acnur com um trabalho que eles já fazem, que é prestar assistência em emergências”, observa Matheus Frhölich, professor e pesquisador em Relações Internacionais da Univates. O pesquisador ressalta o trabalho de outras organizações, como a Unicef, e as dificuldades em situações como a do RS: “Não há uma diretriz clara para respostas a pessoas que vão daqui para frente sofrer com estes eventos extremos”.
Em função da magnitude da tragédia no Rio Grande do Sul, o Acnur decidiu abrir uma sede em Porto Alegre, espaço que foi aberto no dia 26 de maio de 2025, no prédio do Ministério Público Estadual. A organização mantém sua sede nacional em Brasília e escritórios em São Paulo, Boa Vista e Manaus. A OIM já tinha sede na capital gaúcha, no centro da cidade.
ARQUIVO PESSOAL / EDUARDA DA SILVA
Ciclovia da Ipiranga simboliza entraves da mobilidade urbana
Percurso permanece com trechos interditados um ano após a enchente, aprofundando insatisfação com falhas de planejamento questionadas desde a inauguração
Por Giovani Baltezan Imagens de Laura Nunes
Ouso da bicicleta é uma das alternativas mais eficientes para enfrentar a crise climática e melhorar a qualidade de vida nas cidades. Estudos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) destacam que a substituição de veículos automotores por bicicletas pode reduzir significativamente as emissões de CO2 no setor de transportes. Além de não emitir gases poluentes, o uso da bicicleta como meio de transporte reduz a poluição sonora e desafoga o trânsito das grandes cidades.
Em Porto Alegre, um dos símbolos da transição inacabada em direção à mobilidade urbana sustentável, é a ciclovia da Avenida Ipiranga. Em maio de 2025, percorri os cerca de nove quilômetros da ciclovia mais extensa da cidade. Há exatamente um ano, mais de 80% do trajeto havia sido bloqueado devido a desmoronamentos causados pela inundação histórica que atingiu a capital gaúcha.
Com uma bicicleta elétrica, parti da Orla do Guaíba em direção à zona leste. A experiência foi preocupante. Logo após os primeiros 900 metros, já deparei com um desvio obrigatório de rota na altura da Avenida Erico Veríssimo. Duzentos metros adiante, a ciclovia troca inexplicavelmente de lado. Mais alguns metros e a estrutura está interditada novamente. Um trecho de cerca de 300 metros, na altura entre as ruas Gomes Jardim e Silva Só, segue fechado para obras. Ali estão os pontos mais críticos de desmoronamento, que obrigam os ciclistas a deixarem a ciclovia e seguirem pela calçada, em meio aos pedestres, o que aumenta o risco de acidentes. Além disso, a má conservação da calçada pode causar furos nos pneus.
Seguindo o trajeto, a instabilidade contínua. A ciclovia vai se estreitando a ponto de permitir apenas a passagem de um ciclista por vez, nos dois sentidos. Há vários trechos com postes mal posicionados que impedem a visibilidade, tornando perigoso o cruzamento com quem vem no sentido oposto. Por diversas vezes, quase colidi com outros ciclistas.
Já próximo à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),

Desvio no cruzamento com a Rua Erico Verissimo é um dos pontos críticos, onde ciclistas e usuários de patinetes elétricos precisam disputar espaço com carros

um novo bloqueio força outro desvio. No trajeto final, mais obstáculos causados pelo desmoronamento e perigos decorrentes do mau planejamento da ciclovia.
Impacto nos ciclistas
Igor Trindade é ciclista e entregador de aplicativo. Todos os dias, pedala mais de 200 quilômetros pela cidade, a maior parte pela ciclovia da Ipiranga. Ele conta que optou pela bicicleta devido à praticidade nos deslocamentos urbanos. No entanto, desde os desmoronamentos, sua rotina se tornou mais perigosa e demorada. “Esses desvios obrigam a gente a ir para calçadas esburacadas ou dividir espaço com os carros. Isso causa congestionamentos e aumenta o risco de acidente”, relata. Edimar Farias, vendedor de uma oficina de bicicleta localizada justamente na Avenida Ipiranga, confirma que a movimentação dos ciclistas diminuiu logo após o desmoronamento. “A
Esses desvios obrigam a ir para calçadas esburacadas ou dividir espaço com os carros”
Igor Trindade, entregador de aplicativo
ciclovia parou. Muita gente sumiu. Mas depois de algumas semanas, os ciclistas voltaram, muitos com pneu furado. Eles dizem que foram obrigados a sair da ciclovia e pegar calçadas cheias de pregos, pedras e outros detritos”, conta. O vendedor mora em Viamão e vai de bicicleta todos os dias ao trabalho.
Apesar das dificuldades, ele defende o uso da bike: “Faço isso também pensando na natureza. Cada pedalada é um carro a menos emitindo poluentes”.
Projeto inacabado
O Plano Diretor Cicloviário de Porto Alegre, criado em 15 de julho de 2009, por meio da Lei Complementar 626, prevê a implementação de uma Rede Cicloviária Estrutural com 495 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas em toda a cidade. Apesar disso, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), apenas 89,94 quilômetros foram efetivamente implantados até hoje. Isso representa cerca de 18% do que está previsto em lei, menos de um quinto da meta em mais de uma década e meia. Agora, além do atraso, o pouco que já foi construído está ruindo. Símbolo de um projeto inacabado de mobilidade sustentável em Porto Alegre, a ciclovia da Ipiranga já era questionada por ciclistas devido ao planejamento precário. Agora, o pouco que se tinha foi destruído pelas chuvas. Cerca de 8 dos 9,4 km da ciclovia ficaram inutilizados por meses.
Segundo informações do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), divulgadas no site da Prefeitura de Porto Alegre, as equipes técnicas seguem trabalhando na elaboração dos projetos para os trechos da ciclovia que ainda apresentam danos. A previsão é de que todas as obras de reconstrução sejam concluídas até o primeiro semestre de 2026.
A mobilidade ativa nunca foi um tema simples em Porto Alegre. Desde o início da implantação das ciclovias, após a criação do Plano Diretor Cicloviário, houve polêmicas quanto à sua localização, planejamento e execução. Agora, o caso da Avenida Ipiranga se tornou histórico, de forma negativa — o que poderia ter se tornado um modelo de infraestrutura para a mobilidade sustentável acabou se tornando símbolo de improviso e descaso.
O desmoronamento de parte da estrutura após as enchentes de 2024 foi apenas a gota d’água em um sistema já precário e inacabado. Não se sabe se o projeto de 495 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas em toda a cidade um dia será concluído. “É contraditório, porque a cidade precisa de mais bicicletas, mas onde há ciclovia, ela está desmoronando”, pontua Igor Trindade, em um desabafo que poderia facilmente vir de qualquer outro ciclista porto-alegrense.
Pista da Orla retoma fôlego em meio a desafios estruturais
Depois da cheia histórica, manobras de skatistas locais e competidores do circuito nacional mostram como a cidade se levanta, uma volta por vez
Texto e fotos de João Pedro Mendoza
Desde sua inauguração, em 2021, a pista de skate do trecho 3 da Orla do Guaíba, batizada de Orla Skate Park, se consolidou como referência nacional. Divulgada como a maior da América Latina, a pista recebeu uma etapa do Skate Total Urbe (STU National) em março de 2025, com a presença da medalhista olímpica Rayssa Leal, que venceu a etapa de Porto Alegre e encantou com suas manobras de alto nível e levantaram a torcida gaúcha. Ao seu lado, a atleta local Maria Lúcia, que ficou em terceiro lugar, foi ovacionada no parque, que um ano antes estava debaixo d’água. Uma lição que o skate ensina a cada volta: depois de uma queda, é preciso se reerguer.
O retorno das manobras para a pista da Orla é um sinal claro de que Porto Alegre está, aos poucos, retomando sua vocação na modalidade, com a presença de grandes eventos esportivos. Completamente tomada pela água e pela lama em maio de 2024, a área foi restaurada graças ao esforço coletivo da comunidade do skate.
A limpeza e recuperação da pista começaram antes mesmo da chegada do poder público. Professores como Tuka POA, que dá aulas de skate na Orla desde a inauguração, lideraram os esforços. “Assim que a água baixou, a gente veio tirar lixo, limpar. Ficamos aqui quase um mês, direto, removendo entulho, barro e até bicho morto”, relata. Segundo ele, a mobilização foi feita por amor ao espaço e à cultura do skate: “A gente ficou dia e noite aqui, inclusive no temporal. Aproveitamos a chuva para ajudar a lavar a pista”.
Falta de estrutura
Mesmo com a pista em boas condições atualmente, ainda há problemas persistentes. A ausência de gradis no entorno da área de street facilita o acesso desordenado de pedestres, o que tem gerado conflitos e acidentes. “Nos fins de semana e feriados, tem muita gente caminhando no meio da pista, pais colocando crianças para brincar como se fosse um parquinho. Isso aqui é uma área projetada para o skate, não um playground!”, alerta Tuka. “Falta fiscalização
e estrutura mínima, como sombra, água e espaço para descanso, principalmente no verão.”
A Secretaria Municipal de Esporte reconhece que todas as pistas da cidade foram afetadas pela enchente do ano passado, sendo a área de street da Orla a mais danificada. A pasta afirma que as obras de melhorias serão concluídas nos próximos dias e que todas as pistas já estão utilizáveis pelos praticantes. Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a reportagem buscou dados sobre orçamentos para as manutenções das pistas de skate, mas nenhuma resposta foi registrada no Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), mesmo após transcorrido o
prazo previsto na legislação, de 20 dias prorrogáveis por mais 10 dias, para responder a demandas nesse sistema. Em seu site oficial, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) informa que foi disponibilizado um investimento de R$ 781 mil para a recuperação da estrutura. O trabalho envolveu a retirada de toda a resina danificada pelas cheias, aplicação de três novas camadas, tratamento de fissuras e juntas de dilatação, pintura completa, manutenção dos guarda-corpos e colocação de novas placas de orientação. Os recursos são oriundos de Termo de Aquisição de Solo Criado por Contrapartida (TASCC) firmado com a empresa Cyrela.


Tuka POA (à esquerda) foi um dos praticantes que colaborou na limpeza da pista, possibilitando o retorno de manobras e aulas de skate ao local
A gente ficou dia e noite aqui, inclusive no temporal. Aproveitamos a chuva para ajudar a lavar a pista”
Tuka POA, professor de skate
“A megapista da Orla é importantíssima para o skate em Porto Alegre. Já se tornou referência e está pronta para continuar recebendo grandes eventos”, afirmou a Secretaria, por meio de nota. Ainda, segundo a gestão, apesar da ausência de um canal direto de contato com os skatistas, há um funcionário da prefeitura presente no local de segunda a sábado, monitorando a manutenção necessária.
Adaptações criativas
Com o apoio de uma empresa especializada na manutenção da pista, parte dos problemas estruturais vem sendo resolvida com criatividade. Algumas soluções práticas, como barreiras de contenção de barro, acabaram sendo incorporadas como novos obstáculos para manobras. “Concretaram uma área que sempre trazia terra para a pista, e em vez de simplesmente fechar, aproveitaram para construir uma rampinha nova”, explica Tuka. “Isso mostra a vantagem de ter uma empresa que entende de pista de skate — às vezes a solução técnica vira diversão”. A história recente da pista da Orla do Gasômetro é marcada por resistência. A comunidade do skate demonstrou capacidade de organização, cuidado com o espaço e dedicação ao esporte, mesmo sem infraestrutura ideal ou atenção contínua do poder público. “A gente batalha há décadas para manter esses espaços. Eles não são só pistas, são lugares de formação, lazer, expressão cultural e esportiva”, resume Tuka.
Enquanto a cidade encara o desafio de se reerguer, a pista da Orla reafirma seu papel como símbolo de reconstrução, onde cada manobra é também um ato de resistência e esperança — e o skate, mais uma vez, desliza na linha de frente da retomada.
Cores e aromas voltam às bancas
Por Guilherme Alves
Em um sábado ensolarado, estudantes de fotojornalismo da Unisinos - Porto Alegre, realizaram uma saída de campo com enfoque no Mercado Público, no Centro Histórico da capital gaúcha. Os registros revelam uma pluralidade de olhares, onde se observa um ambiente acolhedor e diversificado, que apresenta aos visitantes, além dos produtos expostos, a identidade única e histórica da edificação. Um ano depois de ficar submerso pelas águas, o cartão postal recupera suas cores e aromas que encantam o público.







VITÓRIA DORNELLES
LAURA NUNES
LAURA NUNES
GUILHERME ALVES
PEDRO CURI
VITÓRIA DORNELLES
GUILHERME ALVES