ENFOQUE SÃO LEOPOLDO
ONDE SE LUTA POR MORADIA
A história, o cotidiano e os desafios dos moradores da ocupação às margens do Rio dos Sinos


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A história, o cotidiano e os desafios dos moradores da ocupação às margens do Rio dos Sinos




Aglomerados urbanos são "catalisadores de mudanças" para quem sofre com a falta de assistência do estado
As cercas de arame, os barracos de madeira e as bandeiras de movimentos sociais são o que a maioria enxerga, objetos comuns em uma estrutura geralmente precária, que marca a realidade de pessoas com quem a (falta de) estrutura estatal falhou. Pessoas que, na maioria das vezes, não tiveram, desde o nascimento, seus direitos à moradia, saúde, segurança e educação garantidos e, a partir disso, correram atrás de mudar essa realidade. A maratona, no entanto, é árdua e percorrida com o peso de muitas dificuldades amarradas aos pés. Uma ocupação é muito mais do que a falta de moradia. É sobre sobrevivência, dignidade e, acima de tudo, a luta diária pela conquista destes direitos.
Aldair José dos Santos, 52 anos, líder comunitário e um dos fundadores da Ocupação Steigleder, traduz essa complexidade com um olhar de quem vive a realidade. "A ocupação é um
aglomerado de pessoas que, por falta de infraestrutura e de políticas governamentais, acabam se aglomerando em um local que muitas vezes é insalubre, mas que, pela necessidade do povo, se reúnem ali", explica. A frase, direta e sem rodeios, já derruba o primeiro mito: uma ocupação não é uma escolha, mas uma consequência. É a resposta desesperada para a ausência de um direito básico garantido pela Constituição: a moradia digna. A Ocupação Steigleder, estudada nesta edição do ENFOQUE, está localizada em um terreno às margens do Rio dos Sinos e é a prova viva dessa tese. As famílias que ali vivem não escolheram o local por ser ideal, mas porque a necessidade as empurrou para lá. Aldair faz um paralelo com outras realidades de vulnerabilidade: "Assim como tem a necessidade do povo que mora na beira de rios, tem a necessidade daqueles que moram em morros, à beira de precipícios. É isso que vai formando a ocupação". A luta por um teto é a mesma em qualquer canto do Brasil, e o formato de ocupação, com todas as suas fragilidades e resistências, é apenas uma das suas manifestações.
Na narrativa de Aldair, a ocupação é, antes de tudo, uma família. É um espaço onde as pessoas não apenas moram lado a lado, mas se organizam, se apoiam e enfrentam desafios em conjunto. "Para nós, a ocupação é uma grande família resolvendo seus problemas internos, resolvendo os problemas da nossa casa, que é o Brasil", afirma. Dessa união, segundo ele, surgem histórias de vida, de superação e, principalmente, uma série de demandas que precisam ser resolvidas. É um círculo vicioso: a falta de assistência leva à ocupação, que, por sua vez, gera uma série de necessidades – saneamento básico, eletricidade, acesso a saúde e educação. O que para muitos é apenas um problema, para Aldair é também um catalisador de mudança. "Através dessas demandas, a gente descobre que tem uma grande luta dentro do Brasil por direitos que estão na Constituição, mas que, se a gente não fizer barulho, a gente não é visto e não é levado a sério", defende. Essa "luta por barulho" é o que impulsiona a comunidade a se organizar e buscar soluções.
E foi nesse processo que a Ocupação Steigleder mostrou a sua força, não apenas pela resistência, mas pela capacidade de inovar e criar. Um dos exemplos mais inspiradores é o projeto Sonhos e Sabores. Nascida da necessidade mais urgente – a fome durante a pandemia –, a iniciativa se transformou em uma padaria comunitária. O que começou como uma forma de garantir o pão na mesa hoje é um projeto que vai além da alimentação. É um símbolo de empoderamento feminino. "Descobrimos que, nesse aglomerado de mulheres, elas precisavam ter a sua autonomia, a sua renda", conta Aldair. O projeto se tornou uma ferramenta para que mulheres, muitas delas com a vida cerceada por maridos que não as deixavam trabalhar, pudessem se tornar independentes. "Hoje, elas já estão com carteira de trabalho, já conseguem trazer renda. O marido não deixava trabalhar, hoje já deixa. Elas ajudam na renda do esposo. Mudou muito a vida", conclui.
FEITA DE GENTE, DE BRASILEIROS
Comunidade que se formou às margens do Rio dos Sinos hoje é uma referência na luta por moradia digna
Ao final da conversa, Aldair apresenta sua ex-esposa, Gina, uma das protagonistas do projeto. O momento, que poderia ser apenas uma interrupção, reforça o ponto principal deste texto: uma ocupação é feita de gente, de famílias, de brasileiros. São histórias como a de Gina, das mulheres do Sonhos e Sabores e de cada morador da Ocupação Steigleder que desconstroem a ideia de que esses locais são apenas "aglomerados" anônimos. É na padaria comunitária, nos mutirões de limpeza, nas reuniões para discutir melhorias que a ocupação se torna um local de identidade e pertencimento. É o espaço onde a falta de moradia se transforma em luta pela dignidade e onde a união vira ferramenta de transformação. A Steigleder, suas famílias e suas demandas, mostra que uma ocupação não é o problema, mas a consequência de um problema muito maior. E, mais do que isso, é a prova de que, mesmo na ausência de amparo estatal, o ser humano é capaz de construir esperança, família e futuro onde a sociedade insiste em enxergar apenas precariedade e abandono.
THIELE REIS
LEO PALMI
Moradores da ocupação enxergam futuro digno após anos de angústias
Em 2024, a enchente do Rio Grande do Sul levou as imagens da tragédia a todo o mundo. Em São Leopoldo, uma das cidades mais afetadas, uma ocupação, às margens do Rio dos Sinos, foi especialmente devastada. Diferentemente do rio que a cerca, a Steigleder não é exatamente sinuosa – geograficamente –, composta por uma rua reta e grande e ruelas perpendiculares à principal. A história dessa região, no entanto, começa bem antes das cheias que alagaram todo o seu território.
A região Nordeste de São Leopoldo é constituída historicamente por ocupações. O bairro Santos Dumont abriga comunidades como a Vila Brás e a Vila dos Tocos que, ao longo das décadas, viram suas populações crescendo. Foi nesse contexto que, espontaneamente, a área privada, de posse da família Steigleder, passou a ser ocupada pelo excedente populacional das vilas ao redor a partir dos anos 1990. De acordo com moradores, porém, o local só passou a ser uma comunidade em meados de 2014, quando uma quantia maior de pessoas começou a se deslocar ao território e, com certa organização, começou a construir casas. No fim dos anos 2000, as obras de expansão das linhas do Trensurb entre as estações Rio dos Sinos e Novo Hamburgo forçaram a prefeitura de São Leopoldo a comprar áreas de terra para o reassentamento de famílias afetadas pelas construções. Entre elas, as da Vila dos Tocos, que foram enviadas à Steigleder. “Muita gente viu a oportunidade e foram descendo. Não foi uma coisa planejada, foi natural. As quadras foram surgindo aos poucos”, relembra Aldair José da Silva, um dos primeiros moradores.
Vivendo à margem da regularização, a vida da população era ainda mais precária e humilde do que nos dias de hoje. “Era uma organização comunitária. A gente buscava madeira velha no Centro, de papa entulho, de casas desmanchadas. Quase todas as casas aqui são de materiais reciclados. Dá para contar nos dedos as que são feitas
de materiais novos”, comenta Aldair, primeiro morador da sua rua, que é, assim como outras, coberta com brita por cima do chão batido e abaixo do sol escaldante em dias de céu limpo. A falta de árvores e de sombras dá ao local um aspecto de sertão. A semelhança entre os Nordestes – do Brasil e de São Leopoldo –acaba quando as chuvas chegam ao Sul. A precariedade estrutural e a perigosa proximidade ao rio em tempos de desequilíbrio climático trazem ainda mais riscos a quem se aventurar a viver ali. “É uma escolha que vem da necessidade do povo”, reflete Aldair.
A ameaça de despejo sempre pairou sobre os ares da ocupação. Vivendo de maneira irregular, os moradores tiveram seus destinos definidos no fórum de São Leopoldo, a poucos quilômetros dali. Em 2017, a justiça suspendeu o último processo de reintegração de posse vigente, o que estabeleceu alguma segurança à comunidade em relação a esse risco. A medida foi essencial para que, com garantias, iniciativas fossem tomadas rumo a uma organização social da população.
A Unisinos, por exemplo, em parceria com órgãos públicos,
Aldair José da Silva, líder comunitário da Steigleder: "Quem se afasta da política está deixando o outro decidir por ele"
realizou o mapeamento e cadastramento das famílias habitantes no local, em 2019. Ficou acordado o congelamento da expansão populacional, a fim de que o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Nordeste pudesse administrar as demandas dos moradores. Em 2022, a estruturação dessas políticas serviram de alicerce para que a Prefeitura decretasse a desapropriação de mais de 20 mil metros quadrados da área por interesse social, com projetos que visavam a regularização fundiária e um sistema de drenagem pluvial na região.
UM "INTERIORZINHO" PERTO DO CENTRO
Por mais dura que seja a realidade, especialmente para quem vive confortavelmente distante dela, a comunidade da Steigleder se formou a partir da esperança de famílias por uma vida mais digna. “O começo era como se fosse interior. Tinha gente que vinha porque gostava de criar galinha, porco, cavalo. Era um interiorzinho perto do Centro, por causa da convivência com os animais. Hoje ainda tem muitos”, destaca Aldair, que lamenta a perda de muitos desses bichos durante a
enchente de 2024. “Como a água subiu à noite, no escuro, o pessoal só conseguiu abrir as portas e deixar os animais se virarem”, diz.
A representação material da unidade dos moradores da Steigleder é um espaço chamado por eles de "galpão". Parte das ações da parceria entre Unisinos e Prefeitura de São Leopoldo, que rendeu o cadastramento das famílias da ocupação, também resultou na entrega do projeto estrutural do Galpão Comunitário, desenvolvido por alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo. No local, que fica praticamente no centro da área da ocupação, acontecem oficinas promovidas por ONGs, refeições gratuitas para a população, além de reuniões entre moradores para definições de questões referentes à comunidade.
“Na pandemia nós começamos a fazer sopão. Aqui era uma casinha, de 3m por 2,5m. A gente fazia um culto e no final doava alimentos para o pessoal. Só que a necessidade foi aumentando e a quantidade também. Tudo doado por mercados e feiras. Dessa casinha nós puxamos uma lona para aumentar, e tudo que era evento era feito
aqui. Hoje tem 9m por 25m. É o nosso centro. Daqui a gente ajuda o pessoal da Vila Brás, da Vila dos Tocos, da Chácara dos Leões, que vêm buscar doações de comida, roupa, além das oficinas”, reconhece Aldair.
A luta pela moradia, uma garantia estabelecida na Constituição Federal, levou os moradores da ocupação Steigleder a conquistas inimagináveis há 10 anos. O cotidiano precário e sem estrutura está com os dias contados. Cadastrada pela prefeitura em 2023, a região foi contemplada no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal. De acordo com a gestão municipal, o investimento será de mais de R$ 200 milhões em infraestrutura, com unidades habitacionais, pavimentação, praças, Unidade Básica de Saúde e escola. Aldair José da Silva, sobre as transformações que vêm acontecendo na comunidade, reflete. “As pessoas costumam não gostar de política, não querem se envolver. Mas quem se afasta da política está deixando outro decidir por ele”.

Prefeitura de São Leopoldo promete reassentamento e obras de saneamento, mas prazos seguem indefinidos
Ter a casa própria é o sonho da maioria dos brasileiros, independentemente das dificuldades que enfrentam. Alguns conseguem realizar esse desejo, enquanto outros recorrem ao aluguel. Dinora Fortes Fernandes, de 52 anos, já passou pelas duas situações. Hoje possui sua própria moradia, mas, se tudo ocorrer como prometido pelo executivo municipal, seu imóvel será demolido em breve.
Isso porque o local onde ela mora, a Ocupação Steingleder, em São Leopoldo, assim como outros 477 municípios gaúchos, foi totalmente devastado pela enchente de 2024. Todos os moradores foram atingidos e perderam quase tudo o que tinham , se não tudo. A tragédia deixou marcas profundas, obrigando a comunidade a se reorganizar diante da necessidade urgente de reconstrução.
Após a enchente, Dinora ergueu uma nova moradia a cerca de 500 metros da antiga. Pode parecer pouco, mas esse deslocamento representou uma grande mudança: a prefeitura elevou o terreno em 60cm, em uma tentativa de reduzir o risco de novos alagamentos e oferecer uma mínima segurança às famílias. Apesar do esforço, a situação ainda é precária, e a incerteza sobre o futuro das casas permanece.
Meses depois, a comunidade conseguiu uma parceria com o município. As casas construídas nessa área elevada, conhecidas como “casas de passagem”, serão demolidas para abrir espaço a um canteiro de obras do Serviço Municipal de Água e Esgoto de São Leopoldo (Semae). O projeto prevê intervenções para regularizar o saneamento da região, incluindo a construção de uma casa de bombas – reivindicação antiga dos moradores –, uma vala de drenagem e uma bacia de amortecimento, com o objetivo de tentar conter futuras enchentes.
A prefeitura prometeu que os moradores só sairão de suas casas depois do início do pagamento do aluguel social. Só então as residências


serão demolidas, e cada família precisará procurar um novo local para morar. No entanto, as datas para o início desse processo têm sido constantemente adiadas, aumentando a insegurança e a ansiedade de quem vive na ocupação.
Apesar de finalmente ter um espaço para chamar de seu, Dinora enfrenta outros desafios diários. A casa, construída pelo filho, ainda não possui banheiro. Para as necessidades
básicas, ela depende da casa da filha, em outro bairro, ou improvisa com um balde, que depois despeja em um valão de esgoto. Dinora mora com o neto de três anos, que frequenta a creche, e cuida sozinha da criança. Para complementar a renda, trabalha com reciclagem, mas admite que o dinheiro mal cobre as despesas básicas. “Eu trabalho com reciclagem e me viro com o Bolsa Família. Às vezes
ganho R$ 700, R$ 900”, afirma. Outros moradores vivem dilemas parecidos. Vanderlei Roque de Lorena estava preso durante a enchente e, ao retornar, não tinha mais nada. Tentou reconstruir sua vida improvisando uma casa, mas precisou recorrer a um “gato” para ter energia elétrica – o que acabou provocando um curto-circuito e, consequentemente, um incêndio. Hoje, ele vive de favor na casa de
uma irmã, mas segue tentando construir sua própria moradia. Vanderlei não aceita a demolição e planeja erguer uma casa que possa ser deslocada, caso seja necessário. Além das dificuldades físicas, a comunidade também enfrenta desafios emocionais e sociais. Muitos moradores relatam sentimento de abandono e frustração diante das promessas não cumpridas. A ausência de prazos claros para o início do aluguel social, somada às condições precárias de vida, gera tensão constante. Apesar disso, a solidariedade entre vizinhos e a força para reconstruir o que foi perdido mantém a comunidade unida.
Atualmente, 64 famílias da Ocupação Steingleder vivem entre perdas e esperança, aguardando que as promessas de reassentamento e de saneamento básico finalmente se concretizem. Entre elas, histórias de superação, resistência e luta diária se entrelaçam, refletindo a realidade de milhares de brasileiros que, mesmo diante de tragédias, tentam reconstruir suas vidas.
Com estrutura precária e falta de materiais, moradores se viram para realizar o sonho da casa própria
Oque significa ter uma nova moradia para você? Pode ser comprar ou alugar uma casa, obter um apartamento em um prédio ou até adquirir um terreno e depois contratar engenheiro e pedreiros para tirar o sonho do papel. Essas parecem opções óbvias para boa parte da população, porém, para quem vive na Ocupação Steigleder, o desafio é muito maior.
Em uma manhã de bastante sol na localidade é fácil perceber o jeito peculiar de cada uma das casinhas de madeira que por ali estão. Por trás de cada projeto está uma mente pensante, muitas vezes sem experiência, que precisou lidar com o sonho da morada ideal, a quantidade limitada de material disponível e a pressa por terminar logo a construção.
Do lado de fora da cerca de uma casa em tons de verde está Adroaldo Garcia, 38, morador da ocupação pelos últimos 11 anos. Há pouco tempo ele tinha uma casa de madeira em outro terreno, mas acabou arrastada pela enchente de 2024. Após o baque, conseguiu um novo espaço que veio junto de um desafio: construir sua própria casa. “Desmanchei a casa caída da enchente, reaproveitei as madeiras inteiras e fiz a nova aos poucos nos finais de semana”, conta.
O morador diz que sabia mais ou menos como construir, então precisou ir levantando a moradia aos poucos. “Tem que começar pelas pedras no chão, depois o assoalho, colocar os paus nos cantos, fechar com madeira em volta e botar o telhado por último”, explica rapidamente, fazendo parecer fácil todo processo.
Para a reportagem poder acessar a moradia, Eliete Almeida, 50, teve que segurar o cachorro Pitbull na entrada. “Essa é a minha casa. Tenho que agradecer a Deus pela casa que tenho”, exalta, enquanto o cãozinho “Joaquim”, menor e mais dócil, fez uma recepção mais amigável na sala.
A moradia, construída por Adroaldo, conta com cozinha, sala e quarto praticamente
conectados. Mesmo sendo grata por ter um lugar para viver, Eliete não consegue esconder que existem vários problemas. “Em dia de chuva, parece que pinga lá fora e chove aqui dentro”, brinca sobre as várias goteiras.
Após as enchentes, a moradora detalha que, enquanto o marido fazia a nova casa, foi preciso morar com a cunhada. Entre o vaivém, o que trouxe mais esperança para a família foi a promessa de um kit casa para os habitantes da Steigleder. “Ficamos muito felizes quando falaram que viria madeira e telhado novo. Mas até agora não chegou nada”, salienta.
Uma rua acima mora Jéssica Broili, 32, junto a dois
filhos pequenos. Ao som da rádio Viva, enquanto o recém nascido Vladimir dorme e o filho maior Gladimir puxa assunto com o fotógrafo, a moradora conta que a enchente também levou sua casa, então foi preciso se mudar para outro terreno. Foi o cunhado quem acabou como responsável por erguer a nova casa.
“Como ainda estava grávida, falei que queria uma casa grande com um quarto separado para o pequeno”, recorda. Após a doação da madeira que veio por parte dos parentes, a casa demorou três meses para ser finalizada. São dois quartos e uma cozinha-sala. Duas lâmpadas iluminam o local. “Saiu uma casa média, foi o que deu para fazer”, analisa.

Jéssica em sua casa (abaixo) e, acima, à direita, Vanderlei junto à estrutura onde está construindo sua residência
Perto dali, ao lado de uma casa inacabada, estava Vanderlei Roque de Lorena, 45. Em meio a pilhas de madeira queimada, ele explica que perdeu sua moradia recentemente por causa de um incêndio. “Há um mês pegou fogo na minha casa, deve ter sido por causa de curto-circuito. Foi muito triste, eu estava fora e, quando cheguei, tudo tinha queimado. Tudo que era meu foi perdido, até documento”, lamenta. Por já ter experiência com trabalho em obras, Vanderlei encara com mais tranquilidade a construção. O problema mesmo está em conseguir os materiais. “Fui catando por aí e fiz o que deu”, conta. No dia da reportagem a obra já tinha assoalho, algumas madeiras de
sustentação e telhado. “Para construir minha casa até aqui, primeiro fiz o esquadro, botei o plumo (garantia para que a parede fique alinhada), coloquei os cantos e botei o telhado”, explica. No momento, faltam madeiras para fechar as paredes da casa. “Se eu tiver tudo em mãos, finalizo em dois dias. No fim vai ter duas lâmpadas, três tomadas, um disjuntor, uma torneira, duas janelas e uma porta”, projeta. Mas, como Vanderlei perdeu tudo no incêndio, quando finalizar a casa terá que conseguir móveis novos também. “Doações seriam muito bem-vindas”, finaliza.
GUSTAVO BAYS JOÃO PEDRO BOCH


Enquanto luta contra convulsões sem diagnóstico definido, a rotina de Elias e seus pais é marcada pelo medo e pela dificuldade de conseguir assistência
Juliano Faller, 30 anos, Jeisiane Lopes Wagner Faller, 24, e os filhos Elias Lopes Wagner Faller, quatro, e Yasmin Lopes Wagner Faller, três, vivem na Ocupação Steigleder, em São Leopoldo. Desde 2017, chamam o local de lar. Porém, na enchente de 2024, perderam a casa e todos os seus pertences. Restou apenas a vontade de recomeçar. Após passarem por abrigos da região, retornaram ao endereço onde construíram sua história, desta vez em uma casa alugada através do auxílio de aluguel social, concedido pelo governo federal, enquanto aguardam a construção de moradias definitivas na comunidade ( leia mais sobre o projeto na página 4).
A trajetória da família, já marcada por perdas, carrega também a angústia da luta pela saúde do pequeno Elias, que completou quatro anos em julho passado. A criança nasceu em 22 de julho de 2021. Aos seis meses, os pais viveram um dos momentos mais difíceis: o menino apresentou convulsões e febre alta, sem nenhuma explicação. Desde então, crises semelhantes se repetem, mas sem diagnóstico definido: “Ele pode estar bem, brincando, e daqui a pouco passar mal”, relata Juliano.
Jeisiane lembra de uma crise em especial, quando o filho tinha apenas um ano e dois meses: “A gente achou que estava perdendo ele. O nenê não estava reagindo, não estava se mexendo, a gente não via ele, sabe?”, destaca. Ao longo desses anos, Elias passou por consultas médicas e exames de sangue, mas nunca foi hospitalizado para acompanhamento ou investigação das convulsões. A família conta que depende de transporte para conseguir levá-lo até o pronto-socorro mais próximo, principalmente em momentos de emergência, o que nem sempre é possível. A criança faz uso de medicação diária, mas os efeitos também


Geisiane e Juliano esperam melhora de Elias com a troca da medicação, mas seu caso permanece sem solução. Acima, o trio com a pequena Yasmin
preocupam os pais. “Ele começou a perder o movimento das pernas, começou a dar problema em outras regiões, então trocaram o remédio para esse que ele faz uso atualmente", explica Juliano.
"ÔNIBUS DA SAÚDE" TROUXE UM ALENTO
As crises do menino são imprevisíveis, o que torna a rotina da família ainda mais difícil. Jeisiane descreve o sentimento de viver sem respostas: “É um sentimento de incerteza, sabe? Porque ele pode estar bem agora brincando e depois atacar. Tu nunca tem certeza do que vai acontecer. Às vezes tu fica com medo de brigar, de educar, porque pensa que pode provocar alguma crise. É angustiante. A gente viu o estado dele e não quer ver de novo.” A mãe reforça que as convulsões nunca são iguais, variando de intensidade e
duração, o que aumenta a insegurança da família. Uma das queixas da família é quanto ao acesso à saúde, em questão de proximidade. Eles contam que chegar até o serviço se torna ainda mais difícil com crianças, principalmente quando se está a pé e chovendo.
Além da luta individual de Elias, a comunidade da Ocupação Steigleder também enfrenta dificuldades, mesmo que tenha acontecido uma mudança significativa. Um dos líderes da comunidade, Aldair José da Silva, que também é motoboy, destaca uma conquista importantíssima para quem vive ali: “A gente tem o 'ônibus da saúde', que vem aqui uma vez por mês. Por vezes vem da vacina também. Foi uma conquista muito especial para todos nós.”
A realidade da família de Juliano e Jeisiane expõe a fragilidade do sistema de saúde e o desafio diário de viver com a incerteza de um diagnóstico que ainda não chegou, enquanto aguardam respostas médicas.
AMANDA FERRARI
VICENZO WALBER
Quem cresce na Ocupação Steigleder está distante das instituições de ensino
Mais de 43 mil estudantes da Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul vivem sob o risco alto ou crítico de abandono escolar, segundo dados recentes da Secretaria da Educação (Seduc). O sistema de monitoramento acompanhou 859 escolas em todo o estado para revelar uma realidade que, na Ocupação Steigleder, às margens do Rio dos Sinos, é sentida há muitos anos.
Na comunidade, a escola de ensino fundamental mais próxima fica a cerca de um quilômetro e meio de distância. O trajeto, que já é difícil em dias comuns, torna-se extremamente complicado quando chove. Muitas famílias que dependem da bicicleta ou da caminhada para levar os filhos enfrentam nesses dias a chuva e a lama como inimigos da educação e do futuro dos filhos.
“Nos dias de chuva é pior. Eu coloco capa nas minhas filhas, mas quando chegam lá já estão molhadas. Aí elas têm os resfriados, quase o ano inteiro, mas principalmente no inverno, quando está frio”, conta Cleia Rodrigues, mãe de quatro crianças entre três e 11 anos e uma adolescente de 16 que precisou abandonar a escola devido a uma gravidez. Cleia conta que ela mesma deixou os estudos no oitavo ano, quando engravidou na adolescência, uma realidade comum entre as jovens da periferia. Para ela a expectativa é que os filhos finalizem os estudos.
A história se repete com Cristiano Moraes Rodrigues, pai de seis filhos. Ele sabe da importância da escola, mas admite que os filhos acumulam faltas quando não há como levá-los. “A gente torce para que eles consigam estudar e tenham um futuro melhor que o nosso, que não sofram, por que com estudo eles podem escolher uma profissão melhor do que a gente, por que nós não tivemos opção”, desabafa.
Cristiano também enfatiza a preocupação com que as crianças permaneçam na escola para que possa participar
do Bolsa Família, já que, para ganhar o benefício do governo federal, os filhos de famílias beneficiadas precisam estar matriculados na escola.
O morador da comunidade relata ainda que com quatro filhos em fase escolar, a dificuldade aumenta ainda mais, pois duas das filhas estudam na parte da manhã e duas, na parte da tarde, e, como não há transporte escolar na ocupação, a esposa e ele precisam se dividir para levar as filhas em dois turnos diferentes.
Moradora da Steigleder há 10 anos, Janaina Silveira conta que teve que largar os estudos assim que engravidou, mas sonha que a filha de 14 anos, que no momento está grávida, consiga terminar os estudos.
“Estou fazendo o EJA, por que quero terminar meus estudos e sempre aconselho ela a não parar também, pois é importante para ter um futuro melhor” relata Janaina, que é mãe de quatro filhos.
AULAS DE REFORÇO NA OCUPAÇÃO
Há quase uma década, Suelen Catarina dedica parte de sua vida ao voluntariado na comunidade Steigleder. É ela quem conduz as aulas de reforço escolar oferecidas às crianças e adolescentes da região. Nesse tempo, Suelen já presenciou um grande avanço educacional nas crianças: alunos que, no início, pouco se interessavam pelos estudos, hoje demonstram cada vez mais empenho e vontade de aprender.
“Para continuar no projeto, eles precisam apresentar boas notas. Isso os incentiva a se dedicar ainda mais”, explica. A estratégia tem dado resultado, mas os desafios continuam. Segundo Suelen, alguns jovens com idades mais avançadas chegam à maioridade sem saber ler ou escrever com autonomia, só copiam o que veem. Para que esses alunos não fiquem para trás, ela procura separar os mais velhos dos mais jovens para que possam de acordo com o nível ensino aprender de forma leve e sem cobrança.
Suelen destaca que não recebe nenhum apoio do governo. Todas as atividades são mantidas de forma
voluntária, buscando até mesmo professoras de outras disciplinas para complementar as aulas. Trabalhando sempre com amor e à vontade de ver a comunidade crescer.
“A partir disso, eu comecei a incentivar que eles busquem, que eles compreendam, que eles entendam que existe uma realidade melhor, mas tem um processo para chegar lá e esse processo é a
As
famílias de Cléia e de Cristiano se viram como podem para assistir às aulas, mas nem sempre é possível
educação” relata a professora. Conversando com as crianças do projeto, a reportagem constatou que elas se mostram grandes entusiastas da escola. Falam com felicidade que gostam de ir à aula mesmo com todas as adversidades. Flávia, 11 anos, diz que a matéria favorita dela é Matemática, “Eu gosto de ir para a escola por que a professora nos motiva”, conta a menina sentada nas classes do projeto enquanto desenha. Na comunidade, a solidariedade entre as mães também se destaca quando o assunto é a educação dos filhos.
Em dias de chuva, aquelas que têm carro oferecem carona aos colegas dos filhos, garantindo que todos consigam chegar bem às aulas. Apesar das dificuldades, a comunidade Steigleder segue encontrando formas de manter as crianças na escola. Entre o esforço das famílias, a solidariedade entre vizinhos e o trabalho voluntário de professores como Suelen Catarina, a educação permanece como prioridade e esperança de um futuro melhor para os jovens da ocupação.


Alessandro Macha transformou sua própria história ao chegar à ocupação e, agora, é uma referência para a comunidade
Por volta de 2012, Alessandro Macha chegou à Steigleder, com apenas 18 anos e um objetivo simples: construir uma vida independente. “Eu morava com meu pai lá na Vila dos Tocos. Daí comecei a namorar com uma menina e, como o cara não quer ser dependente de pai e mãe, né? Surgiu uma casa na ocupação e eu comprei de um amigo meu por R$ 250 um terreno aqui”, lembra. O começo foi marcado por dificuldades. A área onde Alessandro comprou o terreno alagava constantemente e ele conta que, na época, precisava entrar e sair de casa com a água na cintura. Mesmo assim, decidiu construir uma casa para tentar se estabelecer. Porém, apenas 30 dias depois, foi retirado do local e precisou se mudar para outro ponto da ocupação. “Tivemos que passar para esse lado de cá. Daí eu fiz uma meia-água e comecei a morar.”
Entre idas e vindas, casamento, separação e recomeços, Alessandro construiu sua vida na Steigleder. Hoje, aos 31 anos, ele é uma das lideranças do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) na ocupação, referência para muitos moradores e um dos responsáveis por articular reuniões, assembleias e debates sobre o futuro da comunidade. Mas o caminho até a liderança foi marcado por preconceito, perdas e luta.
“Tenho a minha família, mas a minha família não me procura porque eu moro na ocupação, porque eu faço parte do movimento. Pra eles, isso não é trabalho, é ser vagabundo. O papel que nós fizemos aqui, para eles, não vale nada”, desabafa. Ainda assim, Alessandro encontrou na Steigleder algo que não tinha do lado de fora: pertencimento. “Aqui na Ocupação nós nos tornamos uma família. A família Steigleder.”
Quando chegou, Alessandro era apenas mais um jovem tentando sobreviver. Em 2017, a história começou a mudar. Foi quando Aldair José da Silva, líder comunitário, o incentivou a participar das primeiras
reuniões do movimento. “Nós somos novinhos no movimento, nós somos recém-nascidos, engatinhando e dando os primeiros passos”, recorda, rindo. Aldair lembra bem da época. “Foi em 2017, antes disso ele era só morador. Depois, começou a participar de reuniões, passeatas, eventos. Cada rua tinha um líder. O Alessandro começou como liderança de rua, responsável por organizar demandas locais dos vizinhos.”
A função de liderança exigia mais do que disposição. Era necessário ouvir histórias difíceis, acolher demandas e enfrentar a burocracia do poder público. “Virei a liderança da rua pela necessidade. Cada um tem a sua demanda. Na minha rua era só eu de líder. Mas tinha ruas que tinham mais de um”, conta Alessandro. Com o tempo, ele se destacou. Hoje, após a enchente de 2024, atua ainda mais ativamente.
TUDO MUDOU
APÓS A ENCHENTE
Na enchente, todas as 96 casas da quadra onde Alessandro vivia com a esposa foram levadas pela água. Sem moradia, ele e a família foram realocados em outro
bairro através do Programa de Aluguel Social. Mesmo assim, continua sendo um líder ativos da Steigleder. Atualmente, ele está envolvido em um projeto da prefeitura para a construção de 96 novas casas e uma casa de bombas na ocupação.
Ele participa das assembleias, onde repassa informações aos moradores e ajuda a manter viva a consciência coletiva de luta. “Muita gente fala da demora, mas para cada luta tem uma história. Nada vai cair do céu. Tipo essa brita que botamos aqui tem uma história. Tudo tem uma história”, reflete. Para Aldair, o trabalho de conscientização é fundamental: “Nós queremos uma consciência de que aquela chave da nova casa não chegou do nada. Teve muita luta, muito choro, muito trabalho. Envolveu muita gente pra aquela casa ficar pronta.”
Em sua trajetória na Steigleder, Alessandro viu quase tudo: incêndios destruírem casas, amigos perderem tudo e até pessoas morrerem em situações precárias. “Já perdemos muita gente na ocupação. Teve casos de incêndio por causa da rede elétrica. Imagina, 10 anos aqui dentro. Quantas

casas já não aconteceu isso?”. E há, também, a dor da invisibilidade. Alessandro sente na pele a discriminação que muitos moradores enfrentam. “Tem essa questão que trocou o governo (municipal). Agora está tudo mais difícil. Tudo que tiver pra ser da ocupação eles botam em um patamar mais baixo. ‘Ah, é ocupação, bota na segunda gaveta’. Eles não pensam no pobre”, diz. Apesar de tudo, segue firme, movido pela fé e a solidariedade que encontrou no movimento. “Deus sabe o que faz. Eu sempre falo nas reuniões: Deus está olhando por nós.” A força de Alessandro vem da experiência pessoal. Ele sabe o que significa precisar de ajuda e não ter a quem recorrer. Em um momento marcante, lembra do dia em que precisou passar uma noite na casa da mãe enquanto construía seu lar na ocupação e ela lhe cobrou aluguel. “Tem coisas assim que só o cara sabe o que é. A maioria das pessoas aqui tem histórias mais tristes ainda. Eu vi gente passar dois, três dias sem comer. Se não fosse o movimento trazendo uma marmita, não sei o que seria delas". Hoje, quando moradores enfrentam problemas, Alessandro é uma das pessoas a ser procurada. “Como eu era uma referência aqui dentro, tinha gente que chegava e me pedia ajuda. Eu chegava no da Aldair e falava: ‘Tá acontecendo isso, isso e aquilo’.”
A ocupação resiste porque suas lideranças, como Alessandro, não desistem. Para ele, a luta é coletiva e passa pelo fortalecimento da comunidade. “Nada é da noite pro dia. Nada vai cair do céu”, afirma. Mesmo atualmente vivendo em outra parte da cidade com a esposa e a filha de cinco meses, continua presente na Steigleder, participando de reuniões, organizando assembleias e ajudando nas demandas do MNLM. Autônomo, faz bicos para sustentar a família enquanto segue na luta. “Quando eu entrei no movimento, eu não imaginava que ia estar aqui hoje. A gente foi aprendendo. Hoje eu sei que a luta não é só por mim, é por todos nós”.
RECH NÍCOLAS SUPPELSA
A clientela de Cristiano vai além dos moradores da Steigleder, mas é na ocupação que ele mantém o negócio com o qual sustenta a família
Abicicleta é um dos meios de transporte mais utilizados na Steigleder. Seja por trabalho, lazer ou simplesmente agilidade na locomoção, diversos moradores pedalam diariamente pelo território da ocupação. Para um deles, entretanto, o veículo de duas rodas possui significado um pouco mais especial. “Sou apaixonado em lidar com bicicletas e em deixar o meu cliente feliz”, afirma Cristiano Rodrigues, 49, que há cerca de três anos trabalha com a manutenção e o conserto das bikes na região. Natural de Canoas, ele conta que conseguiu se manter estudando somente até a segunda série primária. “Eu ia para a escola só para jogar bola... e para comer merenda também (risos)”, recorda, bem-humorado. Antes da mudança para São Leopoldo, residiu em Novo Hamburgo, no bairro Santo Afonso. “Passamos uma enchente e perdemos tudo o que podíamos perder por lá. Ganhamos uma casinha que estava mais ou menos e, então, negociamos ela por outra aqui”, relembra Cristiano sobre sua chegada à Steigleder. Junto com ele, moram a esposa Lisiane e as quatro filhas – Raíssa, Keila, Maria Clara e Clarisse Sophia. A habilidade para consertar bicicletas surgiu ainda na adolescência. Cristiano, que diz ter começado aos 17 anos, garante que a técnica foi adquirida de forma autodidata: “Aprendi só olhando. Nunca ninguém sentou e me disse: ‘É assim’. Eu pedi para Deus me ensinar e aprendi”. Hoje em dia, ele afirma estar habilitado a realizar todo o tipo de manutenção. “Eu faço de tudo, em qualquer bicicleta. Pode vir Viking, pode vir Sundown, pode vir motorizada... Pode vir o que for”, menciona. Apesar disso, ele também confessa se sentir subestimado em alguns momentos. “Por eu ser um cara humilde, às vezes sou desacreditado. Tem os que querem fachada, querem placa. Aqui não tem isso. Mas os que vieram, recomendaram. Daí, graças a Deus, vêm as pessoas para cá por causa dos meus amigos”, relata. Localizada bem em frente à


sua casa, no perímetro da ocupação, a oficina onde Cristiano trabalha é outra prova de resiliência em sua história. Ele conta que, na época das inundações de 2024, perdeu praticamente todo o material que possuía. “O que consegui salvar foi só um disco de cortar ferro”, aponta. Determinado a seguir trabalhando, demorou somente dois meses para reconstruir o espaço sozinho, utilizando apenas equipamentos encontrados na rua: “As ferramentas vêm tudo do lixo. Todas elas. Não tem uma que é comprada. No início, eu tinha só umas cinco chaves. Comprei cola, remendo e uma bomba e comecei assim, para ganhar o pão da família”. Além dos utensílios e acessórios necessários para o dia a dia, também é possível observar no local algumas frases que fazem referência a sua fé cristã, como "Deus é
tudo" e "A serviço do rei Jesus". “Acredito fielmente (em Deus). É por isso que eu estou de pé. É por isso que a minha família está comigo”, exclama. Em relação à clientela, Cristiano diz ter perdido a conta de quantas pessoas já atendeu. “No decorrer da minha vida, não tenho soma. Mas foram vários (clientes atendidos)”. Por outro lado, em determinado aspecto, ele é muito objetivo: “Eu não sou melhor do que ninguém, mas sempre fui agilidade. Quando o cliente chegou, quem tem razão é ele”, reitera. Dentro de Steigleder, não é difícil encontrar moradores que já precisaram contar com seu trabalho. “O servicinho é rápido, ele faz na hora e é barateiro, por isso que a gente vem aqui”, alega Édina Veiga, 32, que procurou a oficina para trocar a roda quebrada da bicicleta do filho Miguel. “Eu vou sempre no Cristiano. Ele
Autodidata, ele conta onde encontrou seu equipamento: "As ferramentas vêm tudo do lixo"

arruma bem, é um cara bom, respeita todo mundo e é humilde”, afirma Erick Valentim, 24, que depende de sua cargueira para poder trabalhar. O prazo de entrega e o valor do serviço, segundo Cristiano, dependem daquilo que for solicitado. Além da rotina de consertos, Cristiano conta ainda que tem outro ganha-pão. De três a quatro vezes por semana, ele sai de casa puxando seu carrinho para coletar recicláveis na rua. “O material (reciclável), para quem não entende, é lixo. Para mim é um sustento. Hoje eu vou sair, daí às vezes saio na terça, quarta, sexta... O dia certo da coleta seletiva, sabe? Não é todo dia que tem reciclagem para a gente pegar”. Ele também cita que, em determinado momento de sua vida, trabalhou com carteira assinada na empresa Construsinos. “Eu tinha umas contas mais pesadas e achei que
trabalhando na firma eu não ia conseguir pagar. O medo foi tanto que eu faltava e saía de carreta. Foi um erro da minha parte. Hoje em dia estou fazendo de tudo para ver se eu volto para lá”, declara. Quando perguntado sobre qual é sua principal demanda atualmente, não pensou duas vezes: “Madeira. É o que a gente mais está precisando. Aqui é madeira de enchente, então a casa está entortando. Eu estou precisando de madeira nessa casa”.
Por fim, Cristiano deixa sua mensagem: “O que me motiva é viver. Deus me deu a vida, então tenho que agradecer. E preguiçoso é a pior espécie que tem. Enquanto eu estiver vivo, vou continuar acordando cedo e trabalhando para dar comida para mim e para minha família”.
LUÍS HENRIQUE GUARNIERI VITOR BRANDÃO
Estigmas e rótulos ainda dificultam o dia a dia de quem vive na Steigleder
Em São Leopoldo, a Ocupação Steigleder se tornou símbolo da luta por moradia, mas também da resistência contra um estigma que acompanha seus moradores: o preconceito. Viver ali ainda significa enfrentar olhares de desconfiança, julgamentos e rótulos que às vezes pesam tanto quanto as dificuldades materiais.
Na visão de parte da sociedade, comunidades como a Steigleder estão ligadas à criminalidade e ao abandono. A realidade, porém, é outra: trabalhadores, famílias com crianças, idosos e pessoas que não tiveram acesso à moradia digna. Mesmo assim, muitos relatam situações de discriminação em serviços públicos, no ambiente escolar e até no
mercado de trabalho.
Vanderlei Nunes, morador e coordenador do grupo Lírio dos Lares, que ajuda dependentes químicos, comenta sobre o preconceito enfrentado pelos vizinhos: “É uma rua que não tem CEP, o que complica muito. As pessoas olham para cá como se fosse um lugar perigoso, muita gente tem medo de entrar. Por isso, acaba sendo difícil as pessoas conhecerem a realidade daqui”.
Ele também destaca a dificuldade com transporte: “Acontece muito de colocarmos o endereço no aplicativo e os motoristas se recusarem a nos levar. Nesta semana (quando a entrevista foi realizada, no final de agosto) , um Uber só aceitou trazer uma moradora porque já estava vindo do centro, mas ela tinha tentado várias vezes antes e sempre cancelavam”.
Outro morador, que preferiu não se identificar, relata a
experiência em uma entrevista de emprego: “Quando falei onde morava, o entrevistador mudou de expressão. Começou a fazer perguntas sobre meu passado e, em poucos minutos, a entrevista foi encerrada”.
Um terceiro entrevistado explica a solução que encontrou para evitar esse tipo de situação: “Na hora de procurar emprego, a gente acaba usando o endereço de familiares, porque aqui não tem CEP e também para não sofrer preconceito”.
A mídia e a opinião pública, em geral, só lembram da Steigleder em momentos de conflito ou risco de despejo, ignorando a vida comunitária que se constrói no dia a dia. Pouco se fala sobre os mutirões, a solidariedade entre vizinhos e o esforço coletivo para garantir um teto.
Apesar disso, o bairro se fortalece a partir da união. Ajudar quem passa necessidade, organizar melhorias nas casas e dividir o pouco que se tem são práticas comuns entre os moradores. Essa rede de apoio cria pertencimento e orgulho, transformando a luta por moradia também em afirmação de identidade.
MUITO ALÉM DE UM ENDEREÇO
O preconceito contra comunidades como a Steigleder é uma barreira invisível que impede acesso a oportunidades e reforça a exclusão social. Mais do que um teto, os moradores buscam reconhecimento, dignidade e o direito de viver sem carregar estigmas. Por trás de cada casa, há histórias de esforço e esperança que merecem ser vistas e ouvidas.
MATEUS GRECHI RAFAEL VALDUGA
“As pessoas olham para cá como se fosse um lugar perigoso, muita gente tem medo de entrar. Por isso, acaba sendo difícil as pessoas conhecerem a realidade daqui” Vanderlei Nunes Morador da Steigleder

Eliete está entre as vítimas da enchente de 2024 que aguardam pelos recursos para ter um novo lar

Obra de R$ 200 milhões será dívida em cinco etapas com recursos federais e contrapartida do município
Acomunidade da ocupação começa a vislumbrar um novo futuro. Na quinta-feira, dia 28 de agosto, foi realizado o lançamento do PAC – Periferia Viva voltado a comunidade. A obra, no valor de R$ 200 milhões, irá beneficiar mais de 3,5 mil famílias da região Nordeste de São Leopoldo, atendendo demandas da comunidade como: moradia, saneamento básico, iluminação, escola, drenagem, unidade de saúde. As obras vão atender 66 famílias que hoje que ainda estão na Steigleder, além de outras que estão em aluguel social, assistência fornecida pela prefeitura, vivendo fora
da área da ocupação.
O líder da comunidade, Aldair José da Silva, destaca a importância desses recursos não só para a comunidade local como para o entorno, formado por outras áreas com infraestrutura precária. “O PAC veio para trazer melhorias para as pessoas da Steigleder e da região Nordeste”. As moradias serão térreas e dois andares, sendo trabalhando na comunidade qual casa atenderá melhor as necessidades de cada família.
Além das moradias, o projeto atenderá outras demandas, entre as quais casa de bomba, saneamento básico e pavimentação. Enquanto as obras estiverem sendo realizadas, todas as famílias serão colocadas em aluguel social.
“Todas serão retiradas e ficarão no aluguel social até o empreendimento ficar pronto”, reforça Aldair.

Programa voltado à comunidade deve beneficiar mais de 3,5 mil famílias da região Nordeste de São Leopoldo
Uma obra desse tamanho tende a demorar a ficar pronta, mas o líder comunitário espera que, com o trabalho de cooperação entre comunidade, Ministério Público, prefeitura e governo federal,
as obras possam ser realizadas de forma mais rápida. Moradora da Steigleder desde 2016, Eliete Almeida, 50, diz que as obras dão esperança de uma vida melhor após tantas dificuldades, principalmente
envolvendo as enchentes recentes, que fizeram com que muitos perdessem suas casas: “De vários moradores daqui a casa foi destruída. Um sonho teu que se foi, sabe”.
Apesar das dificuldades, Eliette destaca o espírito de ajuda entre os moradores. “Aqui todo mundo conhece todo mundo, aqui um ajuda o outro, sabe?”, afirma, destacando a situação de um vizinho que perdeu a casa em um incêndio.
Além do PAC – Periferia Viva, o Minha Casa Minha Vida – Entidades também beneficia moradores, o que deixa a moradora esperançosa. “É maravilhoso, sabe? Agradeço muito a Deus", conclui, com a expectativa de receber a reportagem novamente – para mostrar sua nova morada.
VITOR WESTHAUSER PEDRO SCHLEICH
ra um sábado de agosto em São Leopoldo. A reportagem do Enfoque esperava frio e nuvens, mas veio um dia ensolarado – um certo calor até, que não só aquecia a pele, mas a recepção. Aldair, líder comunitário, nos recebeu como quem abre a porta de casa e, ao falar da trajetória da ocupação Steingleder, fez do lugar uma história inteira, retratada neste espaço por
meio de fotos e frases. A comunidade fervilhava, podia-se observar uma oficina de bicicletas e o trabalho de personalização de calçados enquanto algumas crianças inventavam corridas e riam como se o futuro fosse exclusivamente radiante, tal qual o sol daquele dia. Os moradores, unidos pelas camisetas do Movimento Nacional de Luta por Moradia, mostravam que carregam no





O Enfoque São Leopoldo - Comunidade Steigleder é um jornal-laboratório dirigido à comunidade Steigleder, localizada em São Leopoldo (RS). A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do curso de Jornalismo da Unisinos (campus São Leopoldo).

enfoquesaoleopoldo@gmail.com
peito a força coletiva de existir. Convidados a entrar no loteamento, fomos acolhidos num território de cuidado. Entre lembranças da enchente e o anúncio tímido de novas políticas de saúde, o sol brilhava – e, ali, a esperança parecia coisa simples, visíveis no rosto de cada um dos membros da ocupação.
NATHÁLIA DOS S. RODRIGUES



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