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Quanto vale ou \u00E9 por quilo?
CRIADORES, EMPRESÁRIOS E ESPECIALISTAS EM DIREITOS AUTORAIS DEBATEM O DESAFIO DE MANTER UMA REMUNERAÇÃO JUSTA AOS ARTISTAS NA ERA DOS STREAMINGS
Por Lauro Teixeira, de São Paulo
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Não é só por 20 centavos. O debate mundial que se trava atualmente em torno dos valores das músicas - e dos músicos, seus compositores e intérpretes - está muito além do preço que se paga para ouvi-los. Trata-se do futuro de artistas, consumidores e gravadoras que já se apresenta como presente. Os novos modelos de negócio navegam pelas águas incertas do streaming digital. Mas navegar é preciso, e a UBC zarpa em busca do cerne da discussão.
Diretor da nossa associação e integrante da Aliança Latino Americana de Compositores e Autores de Música (ALCAM), Geraldo Vianna ressalta que o momento é de transição e que levará algum tempo até se estabelecerem melhores negociação e remuneração para a utilização do repertório musical em streaming. O “Estudo sobre compensação justa para criadores de música na era digital”, apresentado em outubro de 2014 pelo economista e catedrático Pierre-É. Lalonde, em Nashville (EUA), mostra que, atualmente, falta equilíbrio entre os valores destinados aos compositores no fluxo das receitas de streaming para os titulares de direito autoral.
A pesquisa sustenta que, nos Estados Unidos, serviços como Spotify pagam entre US$ 0,001 e US$ 0,005 por taxa de transmissão a intérpretes, com cifras ainda menores para os compositores, assim como na Europa. Ainda que não haja números consolidados do Brasil, Vianna afirma que o panorama é similar.
“Em termos de valores, salvo algumas pequenas variantes, a situação brasileira é parecida com a realidade dos Estados Unidos e da Europa. Se considerarmos que a grande maioria dos autores e compositores brasileiros ainda é pouco ouvida via streaming, e que o pagamento é pelo número de execuções, perceberemos que, além dos baixos valores, aquém do ideal, temos ainda que avançar muito nas formas de repasse, já que, por serem muito baixos, inviabilizam e oneram as transações comerciais e as formas de pagamento. Temos também que estabelecer um diálogo com a indústria buscando formas de negociação com todos os serviços digitais nessa área, que, por estarem ainda no embrião da forma adequada de negociação, abrem-se para os intermediários técnicos que, com sua participação, diminuem ainda mais os valores pagos”, propõe Vianna.
SOLUÇÃO PASSA POR MELHORES CONTRATOS
Ele ressalta que o estudo de Lalonde calcula a taxa ideal de mercado para o uso da música nos serviços de streaming: 80% da arrecadação bruta, pagos a todos os detentores de direitos, com um repasse da metade desse percentual para os selos discográficos e intérpretes e a outra metade, para os editores e autores (letra e música). Apesar de achar que os valores atuais têm que ser revistos e, “embora haja certa subjetividade no que seria uma remuneração justa”, o compositor acredita que, somente por meio da discussão, da conscientização e da melhoria dos contratos com editores e prestadoras de serviços, chegaremos a melhores resultados. “Com o quase final do modelo tradicional do mercado da música e o advento da música digital na internet, na telefonia e em outros meios, estivemos, por um período, desnorteados. Assim iniciamos, naturalmente, uma busca de alternativas que, me parece, já estão surgindo como um possível modelo de negócios”, pondera Vianna. “Em minha opinião, o streaming é uma das grandes possibilidades. Mas existem muitas coisas para serem aprimoradas. No Brasil, ainda temos um problema muito sério com relação à qualidade da banda larga que impossibilita o acesso à compra. Temos ainda reflexos da cultura do não pagamento e do download gratuito. Somente o tempo nos dirá qual será o resultado do que estamos fazendo hoje. Mas sou otimista.”
Em 2013, os downloads permanentes e CDs ainda respondiam por 67% das receitas da indústria fonográfica, abaixo dos 78% em 2008. Enquanto isso, o streaming aumentou seu percentual de 4% para 11%. Em 2013, a receita de streaming cresceu 51% em relação a 2012, de US$ 734 mil para US$ 1,111 milhão. O número de assinantes pagantes cresceu 40% no mesmo período. No documento apresentado em Nashville, Lalonde fez a comparação entre os mercados escandinavos maduros e os crescentes mercados europeu e americano.
MODELO ATUAL AINDA É DA ERA DO VINIL, DIZ ECONOMISTA
“O que estamos experimentando, na América, no Norte e no Sul, são realmente os estágios iniciais do desenvolvimento do mercado de streaming. Os EUA são o principal candidato até agora em termos de maturidade, mas o jogo ainda está começando. Em termos de modelos, vender menos mídias físicas e downloads vai significar uma maior confiança no valor dos direitos intrínsecos. Em minha opinião, esses direitos têm de crescer em grande parte a favor dos autores, compositores e intérpretes ou executantes. O modelo atual de partilha de receitas ainda se baseia na era do vinil, com grandes rótulos e distribuidores sendo compensados por retornos e ruptura. Eu me pergunto como alguém poderia retornar ou quebrar um arquivo digital! Portanto, eu acho que não é o modelo de negócio que tem de mudar, é o modelo de remuneração de direitos. Isso só pode acontecer com todos os detentores de direitos negociando honestamente e tornando todas as informações disponíveis para todas as partes”, diz Lalonde.
Para o economista, o problema está na definição das tarifas para esses direitos. O processo é diferente em cada país e, segundo ele, normalmente muito complexo e dispendioso. Por exemplo, nos EUA as tarifa pagas pelo popular serviço de streamings Pandora se baseiam em leis da década de 1940. “Não estou certo de que as tarifas atuais refletem uma forte compreensão da realidade do streaming. Uma questão que tem chamado recentemente a minha atenção é a seguinte. Eu assino o Spotify. Existe uma funcionalidade que me permite ouvir música offline. Então, enquanto eu não estou conectado à internet ainda posso ouvir as músicas que pus na minha 'biblioteca'. Se eu ouvir essas músicas offline, o Spotify não sabe (a menos que as informações sejam tabuladas e transferidas para Spotify quando eu estiver reconectado à internet). Levantei a questão de se o artista é pago quando eu escuto desconectado, e ninguém parece saber a resposta. Se o Spotify não sabe o que eu ouço offline, o artista não é pago de forma adequada”, raciocina Lalonde.
A plataforma oferece um serviço gratuito aos internautas, em que é possível ouvir músicas em ordem aleatória enquanto se está conectado, alternadas com propagandas. Na versão premium, o usuário pode escutá-las offline e em alta definição. Atualmente, o Spotify oferece uma degustação da “assinatura” de R$ 1,99 por três meses. Roberta Pate, responsável pelo relacionamento com gravadoras do Spotify Brasil, admite que a empresa não consegue compartilhar o valor exato do que é transferido aos artistas, pois são muitas variáveis que impactam o valor “por stream”: volume de músicas ouvidas, publicidade vendida, assinantes pagos e também cada contrato com provedores de conteúdo, que, por sua vez, possuem contratos específicos com artistas e compositores.
“A relação acontece principalmente por meio das gravadoras e editoras no que diz respeito a contratos. Mas, para ações especiais com envolvimento artístico, estamos à disposição para encontros e para discutir oportunidades promocionais. Os novos modelos caminham para um mercado cada vez mais legalizado e que garanta remuneração aos criadores das obras e também aos intérpretes. Em relação ao direito autoral, a cada stream realizado, nós pagamos um percentual mensal para que editoras repassem aos compositores”, diz Roberta.
O cantor e compositor anglo-brasileiro Ritchie vê na concorrência entre os serviços de streaming a possibilidade de se avançar rumo a uma melhor distribuição. Ele conta que usava o serviço gratuito do Spotify, mas se mostrava reticente quanto à assinatura. A dúvida acabou quando foi lançado, recentemente, o Apple Music, que já nasceu em meio à polêmica quando a popular cantora americana Taylor Swift veio a público criticar o modelo de remuneração do serviço de streamig da gigante digital – que ofereceria acesso gratuito de três meses ao usuário e, também, imporia “moratória” no pagamento aos artistas pelo mesmo período. Diante da forte repercussão, a Apple voltou atrás.
“Vejo como um futuro absolutamente impossível de evitar. Chutar contra os pinos não vai adiantar. Agora que há duas plataformas concorrendo para um serviço funcional, basicamente é uma questão de escolha dos usuários. O valor vai ser dado por eles mais uma vez: não é o que a música custa, mas o que o consumidor dá a ela. O download já era, o CD, também. Por incrível que pareça, o vinil sobrevive como objeto de culto, de forma emblemática e irônica. Estamos ingressando numa era digital. O suporte físico migrou para o éter. Tem que ser encarado como um serviço como água, gás etc.”, compara Ritchie.

Mesmo concordando que a remuneração ainda é baixa para os artistas, Ritchie acredita no modelo, desde que “com adaptações”. “Acredito no formato, à medida que esse universo está se expandindo em cada smartphone, e o US$ 0,0001 há de crescer exponencialmente. Há ajustes a fazer, mas acredito muito no mercado exponencial e no consumo de música mundial. O cara que está no seu quartinho fazendo música vai poder jogar o seu produto feito em casa na mesma plataforma que a Madonna. O mundo é feito de preferências, e alguém vai ter que caçar esse cara. É o sonho de todo músico de quarto de dormir.”
De outro lado, artistas como Prince anunciaram que retirarão toda a sua obra do Spotify e da Apple Music. Outros, como Beyoncé, decidiram não oferecer seus singles em serviços como Rdio e Deezer. Já um terceiro grupo, puxado pelo líder do Radiohead, Thom Yorke, e pelas bandas The Black Keys e AC/DC, simplesmente se recusa a oferecer seus álbuns para streaming por acreditar que a remuneração é muito baixa.
No Midem 2015, o maior evento mundial do mercado de música, ocorrido em junho em Cannes, o cantor e compositor Paul Williams fez um forte apelo por uma reforma justa de direitos autorais que seja viável para todos. Em sua fala, disse que compositores não são antitecnologia, mas contra aqueles que os exploram, precipitando, assim, a desvalorização econômica em curso de música. "Agora é preciso uma média de um milhão de streams em Pandora para um compositor e editor ganhar apenas US$ 90 em royalties. Mesmo uma grande canção de sucesso raramente rende a seu compositor mais do que alguns milhares de dólares em royalties digitais”, criticou.
Ex-presidente da EMI, da Universal Music e da Associação Brasileira de Produtores de Disco, e um executivos mais respeitados da música no Brasil, Marcelo Castello Branco diz que o streaming foi adotado pelo consumidor global como a melhor modalidade de consumo no momento.
“Torço muito para que alcance escala e, a partir desse crescimento, a remuneração seja cada vez mais justa e responsável. O negócio está cada vez mais dinâmico, mais plural, mais inclusivo. O que está claro é que a questão dos direitos e conteúdos está no centro de tudo e, cada vez mais, será decisiva para uma política de diferenciação dos canais de distribuição. Mais que fazer profecias, acho vital seguir investindo e estar atento. Iniciativas aparentemente loucas podem ser relevantes de uma dia para o outro. Neste mercado, já perdemos muito terreno por excesso de ceticismo ou resistência”, opina Castello Branco.

EMPRESÁRIO: CONSUMIDOR JÁ NÃO QUER POSSE; QUER ACESSO
Segundo ele, existe em vários mercados mundiais uma relação direta entre a diminuição da pirataria virtual e o oferecimento de alternativas legais válidas. “E o streaming é a maior delas. O download ainda significa posse, ainda que de um mero arquivo digital. O que o consumidor quer e exige agora é acesso. Uma vez que a experiência seja gratificante e relativamente barata, num contexto de oferta de repertório descomunal, a insistência da pirataria deixa de ser 'sexy', passa a ser marginalmente sexy. O legal agora é criar e compartir playlists em plataformas musicais legais, que são verdadeiras redes sociais. O streaming vem crescendo no mundo inteiro, e o download, onde não estacionou, caiu. O mercado sueco, graças ao Spotify, voltou a ter o mesmo tamanho de receita de 10 anos atrás. No Brasil, estamos ainda no inicio, mas, com a presença de todas as plataformas e a entrada da Apple Music, a realidade tende a mudar drasticamente. Acredito que 2015 vai ser o ano crucial da virada do digital no Brasil, e números recentes apontam para esta direção. Vai ser o primeiro ano onde o consumo digital vai superar o físico.”
Lorenzo Ferrero, presidente do conselho da CIAM, não vê um futuro assim tão colorido. Para ele, o principal problema é que o modelo de negócio dos serviços de streaming está longe de ser transparente. O segundo maior obstáculo é que o (pouco) valor distribuído é dividido de forma injusta entre rótulos, artistas, compositores e seus parceiros de publicação. Ferrero explica que esse é o desafio que motivou a iniciativa Fair Trade Music, que se propõe a debater caminhos para a encruzilhada. “Os rótulos tendem a ter a mesma proporção que tinham no mundo analógico. Mas sem impressão, distribuição, estocagem, partes de loja, e assim por diante. Já os outros (os artistas) estão muito insatisfeitos com as cotas que recebem. Isso é o que Fair Trade Music tenta abordar em nível mundial: conversando com todos na cadeia de valor e tentando encontrar um modelo mais sustentável e justo. A resposta de muitos atores nesse panorama tem sido promissora (Universal Publishing, Spotify, algumas sociedades de gestão colectiva e associações de artistas). Mas é claro que há muito trabalho pela frente.”