Com a Palavra - Vila Verão 2024

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com a palavra,

vila verão 2024 #2

com a palavra,

sobre o com a palavra

O projeto “Com a Palavra” do Teatro Vila Velha é uma iniciativa que busca ampliar vozes e perspectivas, oferecendo espaço a artistas, jornalistas e pensadores para compartilharem suas reflexões sobre diversos temas expostos através de projetos realizados pelo Teatro.

Trata-se de um convite aberto para que profissionais expressem suas ideias, análises e críticas sobre temas que permeiam a arte, a vida em sociedade, educação e formação, contribuindo para um diálogo rico e diversificado dentro do cenário cultural.

Através do debate e dos diálogos sobre a importância do teatro, suas conexões com a realidade, os desafios e as possibilidades que envolvem as expressões artísticas, o teatro se faz presente nos assuntos relacionados à cidade, ao país e ao mundo, colaborando com a construção de uma sociedade mais integrada, forte e transformadora.

Nesta edição, o “Com a Palavra” traz contribuições de Chica Carelli, Martin Domecq, Celso Júnior, Mônica Santana e Diego Araúja, que ministraram oficinas da 27a edição do Vila Verão, programa de formação do Teatro Vila Velha.

TEATRO PARA INICIANTES

por chica carelli

As oficinas Vila verão sempre foram um momento muito especial para o Teatro Vila Velha. Espaço de encontros e de criação com pessoas diversas, amadores e profissionais, que querem nessa estação tão luminosa, experimentar, arriscar, extravasar, conhecer: criar. Desde o início do projeto eu proponho oficinas para iniciantes, contrariando a jovem atriz que eu fui que acreditava que teatro era uma coisa sagrada que só devia ser praticado por pessoas dispostas a dedicar suas vidas a ele. Continuo acreditando que o teatro é sagrado, e que os atores devem se dedicar a aprofundar e sempre experimentar novos caminhos. Mas acredito que o teatro é antes de tudo o espaço de resgate de nossa humanidade, de autoconhecimento e percepção, mas também de trocas e de encontros. Nesse sentido encaro meu trabalho nas oficinas, propondo exercícios que estimulam a descoberta de novas possibilidades de expressão do nosso corpo e voz, e jogos de improvisação que propiciam a criação coletiva na livre troca de ideias e opiniões onde o olhar do outro não é temido , mas acolhido como um instrumento de colaboração. Em resumo, aprofundar a escuta de si, sem a qual a criação não é possível, e a escuta do outro, sem a qual o

teatro não é possível. Assim é sempre um prazer ver a transformação de uma turma durante o processo de uma oficina. Quando chego no primeiro encontro cada um está sentado num canto olhando seu celular numa sala silenciosa, e no fim o ambiente é de festa, risadas e novas amizades! Viva o teatro!

Chica Carelli é formada em direção teatral pela UFBA. Atriz e diretora, participou do grupo Avelãs y Avestruz. Em 1980 fundou o Bando de Teatro Olodum com Marcio Meirelles, grupo que coordenou durante 25 anos. Atualmente integra Teatro dos Novos, onde protagonizou o premiado espetáculo Por que Hecuba. Dirigiu o espetáculo Áfricas e a ópera Dulcineia e Trancoso. Fez algumas participações no cinema nacional, como em Meu nome é Gal.

POÉTICA DAS DISTÂNCIAS

Entre uma pessoa e outra não há só um espaço neutro que possa ser medido em metros ou em centímetros cúbicos: há também uma distância feita de culturas, de histórias, de desejos, de medos, de expectativas, de opressões e de potências. Há o que podemos chamar uma distância poética. Neste curso propus explorar através do movimento, da poesia e da performance diversas formas dessa distância poética que configura nossas relações intersubjetivas... Pensar essa relação espacial como uma distância poética é deixar de vê-la apenas como dado objetivo ou como um fenômeno psicológico individual. Nesta perspectiva, ela se transforma em algo plástico, na urdidura invisível e elástica de um tecido simbólico de formações culturais e antropológicas que povoam os interstícios entre as pessoas, entre as coisas...

na Universidade Livre do Teatro Vila Velha no Experimento Poéticas da ausência, 2013. Depois o elástico se tornou um recurso cênico e de treinamento em múltiplas oficinas que ministrei, bem como nas minhas aulas na Universidade Federal do Sul da Bahia. No final de 2023, iniciei um projeto com o grupo Palavraemdança que trilha por estes caminhos... Nesta oficina minha ideia foi experimentar com xs participantes algumas possibilidades desta pesquisa sobre a distância e sobre o elástico.

por martin domecq

Um adereço cênico: um elástico, foi minha forma de dar corpo, concretude e plasticidade, a essa ideia em aparência tão simples e ao mesmo tempo tão abstrata da distância como potência poética. Venho trabalhando com elásticos há uns dez anos em diversas experiências... Comecei

Convidei os/as participantes a trabalhar com um repertório de músicas, poemas, cenas e experimentos pautados nesta inquietação: um mundo sem distância é um mundo sem liberdade, sem surpresas, sem silêncio, sem poesia, sem rebeldia... No entanto, na cultura ocidental dos grandes centros urbanos muitas vezes a distância se torna um inimigo: tudo deve ser aqui e agora, tudo deve ser visível, transparente, com um sentido e uma utilidade bem definidos. A distância é despojada de sua potência poética. As relações “grudadas” ou bem amarrada carecem da possibilidade da dança que brinda o elástico, ou possibilidade

que evidencia nossa interdependência e a torna um desafio poético, criativo.

Durante a oficina também exploramos a estrutura espacial de uma cena da peça A serpente de Nelson Rodrigues. Foi uma forma de mostrar desdobramentos práticos no campo das artes cênicas de realizar uma análise de como se estruturam e evoluem as distâncias numa cena concreta e que possibilidades temos de brincar com essas estruturas e suas dinâmicas. Na mostra final, a través de práticas muito simples como: poemas de Alejandra Pizarnik performados em duplas enlaçadas com elásticos; barcos de papel carregados de memórias pessoais navegando no mar do presente; um diálogo performático e poético com a curta-metragem AMA de Julie Gautier; uma troca epistolar que atravessa imaginariamente subjetividades, tempos e espaços e o que chamo de “elástico comunitário” vivenciamos algumas possibilidades poéticas da partilha das distâncias.

No seu elogio do caminhar o antropólogo David Le Breton afirma que o caminhar é uma abertura para o mundo. Restaura no homem o sentimento

de felicidade pela a sua existência. Caminhar seria mergulhar em uma forma ativa de meditação que requer uma sensibilidade plena. No entanto, isto não vale apenas para o caminhar ou não depende apenas dessa ação. No fundo, esse caminhar é possível porque a distância é “encantada”. É isso que experimentamos nesta oficina, micro experiências de encantamento das distâncias. Frente uma cultura neoliberal que busca sempre encurtar as distâncias para aumentar produtividades, tornando as distâncias “terra arrasada”, encantar as distâncias é uma forma de subversão, é defender essa densidade poética do espaço que sempre esteve aí, é redescobrir essa poética das distâncias que é uma parte substancial da beleza de nosso estar na terra.

Martin DomecqEncenador, professor e pesquisador, Martin Domecq é graduado em filosofia pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Trabalhou como encenador em Buenos Aires e em Salvador. Sua produção se caracteriza pelo seu caráter experimental e pela hibridação das linguagens.

15 SINFONIAS SOLO A POLIFONIA DAS SINFONIAS SOLO

“Eu prefiro perder minhas pernas extrair meus dentes

arrancar meus olhos do que perder meu amor”

(Sarah Kane, Psicose 4.48)

Todos os anos, no verão, desde 1997, acontece o projeto Vila Verão, do Teatro Vila Velha. São encontros, cursos de curta duração, oficinas, nas áreas de teatro, dança, música. Em 2024, por causa da iminência do começo das obras no teatro, as oficinas foram ministradas no Museu de Arte da Bahia, no Corredor da Vitória, numa ação chamada de “O Vila ocupa a cidade”.

algumas características comuns, em encenações levadas à cena, a partir da segunda metade do século 20. Assim, o próprio Lehmann afirma: “o teatro pós-dramático é um teatro pós-brechtiano” (pág. 15) e que apresenta um novo vocabulário para o teatro, que pode ser definido assim,

“Teatro significa um tempo de vida em comum que atores e espectadores passam juntos no ar que respiram juntos naquele espaço em que a peça teatral e os espectadores se encontram frente à frente.”

(Hans-Thies Lehmann, Teatro pós-dramático, 1999)

por celso

jr

“Sinfonias solo”, realizada por mim, trouxe, como proposta, oferecer uma oficina prática de interpretação teatral para atores e atrizes já com alguma experiência, usando fragmentos da dramaturgia da autora britânica Sarah Kane (1971-1999) como base das cenas. A ideia foi utilizar alguns dos procedimentos de encenação apontados pelo crítico alemão Hans-Thies Lehmann, no “Teatro pós-dramático”. Apesar de não ser exatamente um “manual” de “como fazer teatro pós-dramático”, o livro de Lehmann observa

Ou seja, para Lehmann, teatro seria o que reune atores e espectadores em um mesmo espaço, num mesmo tempo. (Este paradigma sofre uma mudança, a partir de março de 2020, quando, por causa da pandemia de Covid-19, começam a surgir experiências teatrais que levam apenas o “tempo” como dimensão teatral, devido à impossibilidade de realizar apresentações presenciais, com público e elenco compartilhando o mesmo “espaço).

A oficina foi organizada a partir de uma primeira aula expositiva, onde apresentei à turma os princípios do Teatro Pós-dramático, a partir de categorias de análise dramatúrgica e cênica. De

que modo se apresentam a Intriga, as Personagens e a Linguagem, e também como se comportam as representações do Tempo e do Espaço. Este primeiro momento serviu para familiarizar a turma a respeito de temas e procedimentos que seriam abordados de forma prática em seguida. Conceitos de “Perturbação de uma ordem estabelecida”, “sem articulação de tramas”, “dramaturgia visual”, e também “corpos não-significantes”, “corpos enigmáticos” e ainda “fluxos verbais”, “superfícies dialógicas contrastantes”. Em relação a espaço e tempo, foram usados conceitos de “fragmentação, simultaneidade e sincronicidade”, e também de “multiplicidade e descontinuidade espacial”.

Depois desta introdução teórica, repleta de exemplos, as aulas prosseguiram com práticas, através de exercícios de corpo, voz e interpretação, onde foram postos em prática os conteúdos presentes no teatro pós-dramático. A abordagem corporal buscou investigar as potencialidades do corpo de intérpretes, usando a força da gravidade como elemento expressivo, através de exercícios para ceder e/ou resistir à gravidade, usando o próprio corpo e seu peso. Na pesquisa da voz, foram investigadas as possibilidades expressivas

da respiração, sussurros, gritos, silêncio.

Em relação à interpretação, o que se buscou foi ampliar as capacidades interpretativas, a partir de estímulos provocados pela dramaturgia de Sarah Kane e suas proposições desafiantes, em relação a intriga, personagem, linguagem, tempo espaço e ação.

Isto tudo, com conexões em relação às obras do escultor francês Auguste Rodin, expostas no Museu de Arte da Bahia (MAB). Numa técnica chamada de picturização, os atores e atrizes foram estimulados a emular a postura física das esculturas e inclui-las numa sequência de movimentos alinhados com seus solos.

A apresentação, ocorrida no dia 28 de janeiro pela manh ã , dispôs o elenco em pequenos espaços individuais, na área de exposição do Museu, delimitados cenograficamente por fitas vermelhas no chão, como uma grande instalação cênica, em que os 17 atores e atrizes apresentaram seus solos simultaneamente, criando uma polifonia, onde o público foi convidado a circular entre o elenco, buscando

captar um sentido para cada voz, somada às outras vozes. E ainda: dois intérpretes que não poderiam estar presentes no dia da mostra tiveram seus solos gravados em vídeo, editados e projetados juntamente com os outros solos.

Assim, o resultado foi um grupo de atores e atrizes interpretando suas sinfonias solos e suas distopias, através da perturbação da ordem estabelecida na relação entre o público e o museu, com seus corpos não-significantes, em fluxos verbais verborrágicos e repetitivos, criando uma polifonia de superfícies dialógicas contrastantes.

Celso Jr. é ator, diretor teatral e professor universitário. É graduado em Direção Teatral, possui doutorado em Artes Cênicas, mestrado em Letras e Linguística (UFBA) Pesquisa Dramaturgia Moderna/Contemporânea, História do Teatro e Improvisação Teatral. Tem mais de 35 anos de carreira nos palcos, em mais de 80 espetáculos produzidos como ator e diretor.

ATELIÊ DE DRAMATURGIA

ESCREVER COMO CONSTRUÇÃO DE MUNDOS

por mônica santana

Acredito que escrever se configura num dos gestos de construir mundos, ou pelo menos afetar aquele que existe: o pensamento é primeira instância de materializar ações. Drama, por sua vez, é ação. Durante tardes de janeiro de 2024, dez pessoas se encontraram para escrever e esculpir dramas no Ateliê de Dramaturgia, conduzido pela dramaturga e escritora Mônica Santana e pelo dramaturgo, escritor e multiartista Diego Araúja. Para me referir ao que foi produzido pelas pessoas participantes, uso o verbo esculpir, esse que nos diz sobre moldar uma matéria, para que ele ajude a trazer uma melhor imagem para o ato de escrever – esse verbo tão potente, quanto banal, portanto, sim, vulgar – nem sempre da vulgaridade que se implica naquilo que é simples, mas daquela vulgaridade que se confunde com certo esvaziamento. Isso porque a escrita acompanha nossa comunicação diária – nunca escrevemos tanto. Não que essa escrita signifique uma expressão genuína e um ato de criação ou deflagração de mundos. Escrever não é apenas sobre projetar mundos para fora, também se trata de modular a própria

voz, escutando, encorpando, afinando por meio da palavra escrita. E aqui a palavra escrita almeja dar conta: da ruptura de limites, de interdições, de plausibilidades. Ao longo dos encontros foram propostos exercícios de escrita criativa, bem como conduzida exposição dialogada sobre as bases do Drama, como conceito e gênero, noção de personagem, estrutura do drama, situações dramáticas entre outros. Os exercícios convidaram cada participante para se colocar diante de uma etapa de construção de uma pequena estrutura dramática, apontando para o horizonte de desenvolvê-la e aprofundá-la após o ciclo de encontros.

Dessas dez pessoas que se lançaram na aventura da escrita, cinco concluíram seus apontamentos de cena, que foram preparados para uma leitura dramática, reunindo as atrizes e atores da Universidade Livre do Teatro Vila Velha e artistas convidados. A leitura foi uma oportunidade de testar os textos, ainda muito frescos e com isso ser mais uma etapa no processo de criação.

O Ateliê de Dramaturgia visa sobretudo se configurar num espaço seguro para partilha dos textos: escuta, trocas, comentários, ajustes,

aprofundamentos viáveis pela coletividade, que ali se une pelo propósito de escrever. A aposta é que esses apontamentos de cena sejam gatilhos para o desenvolvimento de peças de teatro, performances, roteiros para audiovisual e toda sorte de obra que tenha no drama sua plataforma de criação. Que essas cinco cenas construídas por Fábio Osório, Gabo Sena, Luane Souto, Mariana, Thiago Almasy sejam encorpadas e incorporadas em palcos, telas, páginas, mundo afora. E possam, sim, criar novos mundos.

Mônica Santana é Profissional multidisciplinar, Doutora e Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Atualmente é Prof. Orientadora no Mestrado Profissional em Artes e Mediação Cultural da Célia Helena Centro de Artes e Educação e Itaú Cultural, também docente convidada no Mestrado Acadêmico desta faculdade.

DRAMA-ENCONTRO

É corriqueiro ouvir que o drama se dá no confronto, no choque, na colisão entre forças. Neste sentido, pouca importa se as forças são antagônicas, contrárias [e nisso estou de acordo], posto que o drama, segundo esta visão, é justamente a colisão, o choque e o confronto. Contudo, se não quisermos usar expressões que denotam alguma qualidade de violência, poderemos ficar à vontade no uso da palavra encontro.

essa aleatoriedade; ela mesma deseja inventar o aleatório.

por diego araúja

O encontro é algo de ainda mais inesperado, as forças ainda não estão oferecidas ou exibidas. Saberemos pouco de quem (ou do quê) vamos encontrar; é irrelevante se há intimidade entre as partes. Enfim, somos ignorantes aos acontecimentos que compõem o outro até o encontro de fato – não seria encontro se soubéssemos; pois o evento exige o mínimo de oculto. Essa dinâmica diz menos de um movimento, é mais situação: também se dá na completa inércia, na paralisia enfadonha, nos insólitos performáticos ou no cotidiano, na troca de poucas palavras, entre pessoas casadas e desconhecidas mutuamente. Será a dramaturgia, essa técnica milenar, a responsável por dar estrutura a tensão que nos levará a

Esse é o maior desafio no ensino da dramaturgia: dispor as técnicas e ser sensível às motivações; em seguida, favorecer o aleatório, gerado do encontro entre forças, no material dramatúrgico. Desafio assumido pelo “Ateliê de Escrita Dramatúrgica” estruturado por Mônica Santana no Vila Verão 2024, e que tive a honra de colaborar na orientação das leituras dramáticas. Os textos dessa publicação são os primeiros passos de estruturação desses encontros, tão disponíveis para a aleatoriedade do drama, dados por esses dramaturgues – alguns deles, inclusive, experimentando pela primeira vez este gênero de escrita. Espero que vocês também, leitores, realizem um bom encontro com esses textos; e que desejem, absolutamente, encontrálos nos palcos.

Diego Araúja é artista natural de Salvador-BA, e produz arte de modo expandido. Com 12 anos de carreira artística, é bacharel em artes cênicas pela Escola de Teatro da UFBA. Suas mídias são literárias, visuais, cênicas, performáticas e audiovisuais; nas funções de diretor, cenógrafo, artista visual, dramaturgo, roteirista e escritor.

APOIO FINANCEIRO REALIZAÇÃO com a palavra, teatrovilavelha.com.br @teateovilavelha

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