Revista Tabu - 11º edição

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a revista que quebra paradigmas

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ed.
ano
dezembro de 2022

EXPEDIENTE

Revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, elaborada por alunos do componente curricular Labora tório de Planejamento e Pesquisa em Jornalismo (2022.2).

Periodicidade semestral: Edição 11. dezembro 2022.

Coordenação e revisão: Profa. Dra. Janaina Barcelos (Jornalista Mtb. 6010/MG)

EDITORES

Cultura: Juliana Estevam e Nathália Quésia

Direitos Humanos: Lucas Targino e Murilo Martins

Meio Ambiente: Pedro Octavio de Oliveira e Maria Luísa Machado

Periferia: Kyara Torres e Natany Silva

Criação e editoração: Beatriz Cruz

Capas internas: Juliana Estevam

Cultura - Foto Riudete Martins de Sousa / Peça “Contos dos cantos”, do grupo Interferências do Teatro

Direitos Humanos - Foto Raiane Miranda / Cacique Luiz Katu

Meio Ambiente - Foto Lívia Mel / Alagamento no bairro Cidade Nova

Periferia - Foto Hélio Junior / Vista do bairro das Rocas

Foto de capa: Christian Reuter, Natal Planet

Instagram: @taburevista

Em uma sociedade malfadada por princípios excludentes e preconceituosos, os gru pos vítimas dessa realidade esperam um olhar sensível de outrem para que possam, além de lutar por seus direitos, reafirmar a importância de suas lutas sociais. E são esses grupos, predominantemente, a base histórica do nosso país, construído sob uma economia movida pela agricultura familiar e pela pesca, e de raízes indígenas.

Considerando esse contexto, a Tabu, na sua 11ª edição, propõe um olhar dedica do ao protagonismo social que diversos grupos de Natal executam no seu cotidiano.

São agremiações que, muitas vezes, têm seus interesses de alcance coletivo invisibili zados, em uma cidade necessitada de movimentos culturais inclusivos, de campanhas ambientais consistentes e de educação de resultados para crianças, jovens e adultos.

As zonas periféricas de uma cidade, por exemplo, guardam pessoas de grande repre sentação para a comunidade, figuras que têm muito a dizer. E são estes relatos que a Tabu busca ouvir para auxiliar na quebra de paradigmas Rio Grande do Norte afora.

Cultura, Direitos Humanos, Meio Ambiente e Periferia foram dispostos por Natal e zona metropolitana para ouvirem histórias que mensuram parte da grandeza e da força que permeiam as atividades comunitárias de pessoas comprometidas com o bem-estar dos grupos em seu entorno. Numa pluralidade de vozes, das Rocas a Canguaretama, da Ribeira a Ponta Negra, movidos pelo desejo de construir um tra balho voltado para a valorização de grupos minorizados, os repórteres desta revista trilharam caminhos que levam a lugares muito caros para o povo norte-rio-grandense.

Além de um laboratório para jornalistas em formação, a Tabu busca ser porta-voz dos desejos negligenciados por muito tempo a artistas, professores, mulheres, pescado res, indígenas. Constitui-se, portanto, uma revista que abre espaços de fala a indivíduos silenciados, à margem dos centros de desenvolvimento das cidades. É também desejo nosso que você, leitor, seja transportado a conhecer uma realidade de grande valor para a velocidade de um mundo globalizado, na certeza de uma excelente leitura.

SUMÁRIO

POR
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CULTURA, LUTA E RESISTÊNCIA
TRÁS DAS CORTINAS ENTRE PALCOS E ESTUDOS
PELO DIREITO DE TER ÁGUA E ESGOTO TRATADOS
PLANETA ROCAS MAR DOCE LAR HISTÓRIAS QUE INSPIRAM NATUREZA, TRABALHO E SUSTENTO SAÚDE É DIREITO DE TODOS RAÍZES DA APRENDIZAGEM

CULTURA

CULTURA, LUTA E RESISTÊNCIA

Teatros

Alberto Maranhão e Sandoval Wanderley enfrentam desafios para se manterem relevantes na cultura natalense

Se existe um local em Natal que poderia se enquadrar na definição de centro da cultura local e regional, seria o teatro, espaço de talentos em busca do simples aplauso do público. À disposi ção da cidade desde 1841, quando era apenas um barracão de palha da Sociedade do Teatro Nata lense, essa arte secular não encontra o mérito que merece, principalmente devido à invisibilidade que ainda enfrenta na comunidade natalense, embora ofereça tanto excelentes artistas locais, quanto nomes consagrados nacionalmente, que contam suas histórias no palco.

Reféns de manutenções atrasadas, reformas intermináveis e segurança precária para seus fre quentadores, os teatros da capital potiguar não estão entre os pontos mais visitados por turistas ou habitantes locais. Apesar de os espaços te atrais serem grandes divulgadores de talentos regionais em busca de oportunidades de serem vistos e ouvidos, não se vê muita divulgação das programações e dos espetáculos. Assim, conse guir vaga para se apresentar não significa que haverá audiência para grupos e artistas.

O Teatro Alberto Maranhão é um dos exemplos de vítimas de reformas longas.

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Por Ester Tavares, Ester Paiva, Marcos Teixeira e Nathália Quésia Obra estendida dificulta a vista da fachada do Teatro Alberto Maranhão

Com uma estrutura que traz traços da art nou veau, arquitetura francesa do final do século XIX, o local, construído entre 1898 e 1904, foi criado idealmente para apresentações musicais, devido ao formato de ferradura e à sua inclina ção, que favorecem a acústica do espaço.

Fechado em 2015 para reforma, iniciada somente em 2018, o Teatro reabriu suas por tas apenas em setembro de 2021, porém ainda ocorrem obras na fachada, o que atrapalha a

vista das pessoas desse monumento arquitetôni co. Felizmente, desde a sua reabertura, a plateia voltou a lotar o teatro, como aconteceu no dia 26 de outubro, com a apresentação da Orques tra Sinfônica do Rio Grande do Norte (OSRN), com regência do maestro Márcio da Silva, que teve ingressos distribuídos gratuitamente.

FORMAÇÃO DE PÚBLICO

O teatro é, também, uma experiência ines quecível para a formação das crianças. Quem foi ao teatro na infância, ao menos uma vez, sabe a importância dessa oportunidade. Jéssi ca do Nascimento, estudante de Pedagogia na Universidade Federal do Rio Grande do Nor te (UFRN) e estagiária do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) na Zona Norte, entende bem o que isso significa. “Como edu cadora, vejo que é de grande importância esse tipo de experiência para as crianças. Quando somos pequenos, passeios como esses ficam guardados na nossa memória para sempre, por fugir da rotina e proporcionar novos es paços onde as crianças podem observar e in teragir”, avalia. Segundo ela, esses espaços tra zem aprendizado para os pequenos, além de ampliar a visão sobre a arte: “Ela não existe só em desenhos e pinturas. O teatro, a música, a dança, tudo é arte, e isso é extremamente rico para a formação delas”.

Tal importância não é reconhecida ape nas pelos profissionais de educação, como também pelos pais e responsáveis das crian ças, os quais se empenham para proporcionar

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ESTER TAVARES

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essa experiência aos seus filhos. É o caso da assistente social Lúcia Delgado, que, no dia 5 de novembro de 2022, levou ao teatro a filha Jamille, de 9 anos, para assistir ao espetácu lo “Rabiscos de um Sonhador”, da Escola de Dança Meu Pequeno Cisne. Lúcia destaca a importância do primeiro contato das crian ças com a cultura e do desenvolvimento delas como artistas. “Eles se tornam pessoas desi nibidas e mais fáceis de sociabilizar”, acredita, destacando, ainda, a dificuldade que as artes cênicas enfrentam em Natal.

Da mesma forma, a pedagoga Nara Sou za, mãe de Maria Flor e Samire, destaca a im portância de conhecer os espaços culturais da cidade e a sociabilidade. Ela diz que a criança precisa entender por que aquele espaço está ali, ter consciência do que ele significa para a sociedade e aproveitá-lo. “Depois, vemos a mu dança no próprio comportamento da criança e as melhorias no aproveitamento escolar, na dis ciplina, no foco para atingir objetivos”, pontua.

LUGAR DE TRABALHO

Além de centro cultural e espaço de for mação de público, o teatro é essencial para vá rios profissionais, como musicistas, atores, ce nógrafos, diretores, figurinistas, entre outros. Um deles é o musicista Manuel Barbosa, que trabalha no Alberto Maranhão. Para ele, ainda existe falta de interesse do público nos vastos materiais que o teatro tem a oferecer. “Hoje mesmo, estamos terminando de passar o som para a palestra da Zila Mamede, mas já sabemos

que não haverá um grande público presente”, relata, inconformado, referindo-se ao Seminá rio de Arte, Cultura e Educação, parte da pro gramação do Quinto Festin de Teatro Infantil, realizado do dia 9 a 17 de Outubro .

Para o escritor, músico e poeta Marconi Castelo Branco, todo espaço cultural é bem -vindo na cidade. “É muito importante que nós tenhamos esse espaço com essa memória viva, em nome da nossa cultura”, opina. Entretanto, como profissional inserido no meio, desabafa: “Nenhum espaço cultural recebe a importância que merece”.

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Castelo Branco participa da luta de artistas que querem estar nos teatros NATHÁLIA QUÉSIA

Ativo em seu papel artístico, Castelo Bran co conta sobre uma de suas notáveis participa ções: a no movimento em nome da renovação do Teatro Sandoval Wanderley, localizado no bairro Alecrim. “Queriam construir um sho pping no lugar dele. Nós, artistas, não temos nada, apenas os espaços, e, se nos tirarem os espaços, não nos restará mais nada”, declara. O Teatro Sandoval Wanderley, conhecido como “Teatrinho do Povo” pelos frequentado res do Alecrim, com capacidade para 150 pes soas, encontra-se de portas fechadas e largado

ao desgaste do tempo desde 2009. Criado em 1962, é o único teatro municipal da cidade. Houve várias tentativas de trazê-lo de volta à ativa e, principalmente, de deixá-lo adequa do diante das novas exigências do Corpo de Bombeiros, feitas em 2013, porém nada foi realmente efetivo ainda.

Em junho de 2022, o projeto final para sua reforma, a partir do anteprojeto doado pela arquiteta Débora Dantas, foi apresentado e discutido na Prefeitura, pelo prefeito Álvaro Dias, com os secretários municipais de Cultura,

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Teatrinho em seu completo descaso e abandono ao tempo MARCOS TEIXEIRA

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Gabinete Civil, Mobilidade Urbana, Planeja mento, Meio Ambiente e Urbanismo, Obras Públicas e Infraestrutura e Serviços Urbanos.

Na manhã do dia 13 de outubro, o prefeito assinou a ordem de serviço de início das obras, com previsão de duração de seis a dez meses.

O site oficial da prefeitura de Natal destaca a relevância e necessidade da obra e informa que o poder público atendeu ao apelo da classe ar tística, que queria a recuperação e a moderni zação do teatro.

Enquanto o “Teatrinho” não volta a integrar o leque de possibilidades dos artistas, Castelo Branco lamenta, ao ver pequenos artistas com poucas oportunidades e diante de grandes obstá culos financeiros: “Os artistas têm que pagar até 30 mil reais para se apresentarem no shopping. A gente fica ao léu. Por enquanto, nos restam as praças, enquanto ainda não taxarem esses espa ços”, brinca, com um sorriso afetado, ao citar o Teatro Riachuelo, inaugurado em 2010, no Sho pping Midway Mall, com capacidade para cerca de 1500 pessoas.

De acordo com o analista de Conteúdo Re gional do Teatro Riachuelo, Josildo Alves,o local não possui uma tabela fixa para preços de apre sentações. O valor depende da quantidade de elementos que serão utilizados, como camarins, tempo de show, servidores a serem empregados e a data que o show será realizado. Segundo ele, é possível que um artista se apresente no Tea tro Riachuelo a partir do valor de 6 mil reais, um preço menos salgado em relação ao valor que Castelo Branco sugeriu, mas, ainda assim, muitas vezes inacessível para artistas regionais.

COMUNIDADE QUER CULTURA

Apesar das dificuldades de divulgação, de conseguir público e recursos para apresenta ções, há quem sinta falta do reconhecimento desses locais, como Elizabete Maria, 52 anos, que trabalha no entorno do Alberto Maranhão e passa sempre em frente ao teatro em seu ho rário de almoço. “Deveria ser mais divulgado, porque tem gente que nem tem noção do que está sendo apresentado. Eu mesma soube do evento infantil que teve recentemente, mas, quando soube, já havia esgotado tudo”, conta, referindo-se ao Quinto Festin de Teatro Infantil, de 9 a 17 de outubro, que distribuiu ingressos gratuitos até uma hora antes do espetáculo. Eli zabete diz, ainda, que se sente desconfortável com a reforma que aparenta não ter previsão para encerrar: “A gente achava que já havia ter minado, mas aí começou de novo, e fica essa coisa estendida”, diz, citando a obra da fachada. Sobre a questão, a Tabu não obteve retorno da administração do Teatro.

A espectadora Angela Maria, 51 anos, presente para assistir ao espetáculo “Palestra da Zila”, no dia 17 de outubro, relata que é raro ir ao teatro. “Acredito que deveria haver uma divulgação bem maior na televisão, internet e afins”, demanda, reconhecendo a importância do teatro para a comunidade. “Faz parte da nos sa cultura, amplia os nossos horizontes, o nosso vocabulário, e vários fatores para a nossa vida cotidiana e social.”

Em relação à divulgação, a administração do Teatro Alberto Maranhão informa que, de vido a exigências legais do período eleitoral,

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as redes sociais dos patrimônios regidos pela Fundação José Augusto (FJA), responsável pelas atividades culturais potiguares, foram suspen sas temporariamente. A medida fez com que o alcance já diminuto da divulgação dos eventos fosse cortado de maneira brutal pelos algorit mos que regem as redes. Como esses algoritmos exigem que haja certa frequência de postagens para que o perfil continue a alcançar o seu pú blico-alvo, a paralisação acaba prejudicando essa divulgação. Após as eleições, as atividades nas redes retornaram à normalidade, e a população já pode consultar a programação do Teatro no Instagram (teatroalbertomaranhao.oficial).

Mesmo diante dos obstáculos, a equipe do Alberto Maranhão segue trabalhando com empenho para fazer do Teatro um espaço

reconhecido por trazer alegria à comunidade. Para Luana Santos Agostinho, que trabalha na administração do espaço, o Alberto Maranhão, assim como outros locais de cultura, precisa ser muito mais que mais um prédio da cidade. “O Teatro devia unir as pessoas, elas deviam se sentir representadas e ver seus sonhos ga nharem vida”, diz.

SEGURANÇA PÚBLICA

Contudo, há ainda um fator determinante para que o público compareça, de acordo com o musicista Manuel Barbosa: “Não há segurança efetiva nos arredores, principalmente, quan do estamos em uma área em que há tráfico de drogas, e isso dificulta para que o público compareça. Aqui, ninguém se sente seguro para estacionar o carro”, comenta.

Este é um fator que a própria administração do Teatro confessa ser um empecilho, pois, mes mo com uma organização que prioriza a apre sentação de artistas potiguares, localiza-se numa praça com o entorno abandonado à escuridão, devido à ausência de iluminação adequada, o que leva a população ao receio de comparecer aos eventos. Apesar da capacidade do Alberto Maranhão para até 600 pessoas, já houve apre sentações com apenas 20 pessoas presentes.

Em relação à segurança no local, de acordo com um Policial Militar com quem consegui mos entrar em contato, porém não quis se iden tificar existe um policial interno no Alberto Ma ranhão. Somente quando ocorre um espetáculo de maior visibilidade, uma viatura se desloca

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Luana acredita que o teatro deveria unir as pessoas NATHÁLIA QUÉSIA

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ao local para fazer a segurança do público, seja por pedido dos superiores ou por um reque rimento da própria administração do Alberto Maranhão. E, embora o tráfico de drogas ocorra nas proximidades, não é tão visível, de modo que há uma ação apenas quando necessário, segundo o policial.

A praça que abriga o Teatro também carre ga história e leva o nome de Augusto Severo de Albuquerque Maranhão, irmão de Alberto Fre derico Albuquerque Maranhão, estando ambos os espaços integrados. Alberto foi por duas ve zes governador do Rio Grande do Norte, além

de deputado federal. Augusto também atuou como deputado federal e é considerado um dos pais da aviação, ao lado de Santos Dumont, devido a seu balão Dirigível Pax, que colocou em voo em Paris, em 1902, o qual, entretanto, explodiu, causando sua morte na queda.

Alberto Maranhão está enterrado em uma área isolada do Teatro, cujo corpo veio do Rio de Janeiro para o Rio Grande do Norte em 2005, com autorização da família. Junto dele, estão a sua esposa, Ignez Barreto, e o seu irmão, próxi mos como os espaços que carregam seus nomes.

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Estátua desenhada por Jean Julius Salmon, foi um presente francês para a inauguração do Teatro Alberto Maranhão MARCOS TEIXEIRA

ENTRE PALCOS E ESTUDOS

Formação em Teatro em Natal pode passar pelo estudo acadêmico ou pela prática em grupos de teatro

Quem tem interesse em ampliar conheci mentos nesta arte milenar que é o teatro, en contra algumas opções em Natal. Em setembro de 2022, por exemplo, o dramaturgo Henrique Fontes, reconhecido nacionalmente e gestor da Casa da Ribeira, ofereceu o curso “Teatro do Real”, que aborda a escrita teatral entre fa tos reais, historiografia e ficção. Essa oficina é só um exemplo entre vários para quem quer descobrir ou se aprofundar neste saber essen cial para a natureza humana, presente em toda história da civilização.

Existem múltiplos caminhos formativos em artes cênicas, pois o ramo abriga várias ati vidades, como as de ator, diretor, cenógrafo e dramaturgo, cada uma exigindo conhecimentos específicos. Um deles é a formação informal, que acontece na prática artística em grupos de teatro, através de oficinas, cursos e da partici pação em festivais, sem um caminho formativo definido. O outro é o formal, principalmente aquele oferecido por cursos universitários.

“O teatro é muito dinâmico, por isso a formação é contínua e para a vida toda”, diz o professor de Cenografia no Departamento de

Artes (Deart) da Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN), Sávio de Araújo, profissional com ampla experiência artística prática. Atu almente, ele coordena o curso de Licenciatura em Teatro, com objetivo principal de formar professores de teatro.

A Licenciatura em Teatro na UFRN dura oito semestres e forma, principalmente, para a rede de ensino pública e privada da educação básica, conforme a Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional e os Parâmetros Curricula res Nacionais. Para entrar no curso oferecido pela UFRN,é preciso ser aprovado no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), além de passar por um Teste de Habilidades Específicas (THE), que consiste numa avaliação prática-te órica, abordando conhecimentos específicos da área teatral, além de reflexões pedagógicas.

O curso se desenvolveu a partir do curso de Educação Artística, que virou Artes Cênicas com habilitação em Teatro, e, finalmente, em 2007, tornou-se o curso atual, com uma refor ma em 2012. A Licenciatura se divide em três áreas: prática, teórica e pedagógica. De acordo com o professor Makarios Maia Barbosa, com

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Por Frank Duesberg, Kirllyan Souza e Paulo Fernandes

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40 anos de prática teatral e docente do Departa mento de Artes por mais de 30 anos, existe uma conexão imprescindível entre a prática teatral e o ensino. “Não é possível ensinar teatro, se não houver experiência prática”, diz.

Uma parte do ensino é baseada em ex perimentos cênicos, considerando afaze res da prática teatral, como, por exemplo,

o desenvolvimento de linguagens corporais para a atuação, incluindo uma série de habilidades técnicas cênicas, como iluminação, sonoplastia e práticas em encenação. A teoria considera a história do teatro, dramaturgia e estética, entre outros saberes. Todos esses conhecimentos e habilidades são baseados em conceitos e pro cedimentos para a prática artística-pedagógica.

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Sávio Araújo diz que é preciso ter formação contínua, por causa do dinamismo da arte teatral ARQUIVO PESSOAL

FORMAÇÃO DE QUALIDADE PARA O RN

O aluno do quinto período do curso de Li cenciatura em Teatro da UFRN, Lucas de Araú jo Ribeiro, entrou na Universidade com uma visão completamente diferente da que tem no momento. “É comum o pensamento de que o curso é uma preparação para ser ator. Entre tanto, o foco é a docência, por se tratar de uma licenciatura”, diz ele.

“Quase todos os professores de teatro nos Institutos Federais, nas escolas estaduais e mu nicipais do RN, foram formados na UFRN”, orgulha-se Sávio de Araújo. “A maioria dos ingressantes hoje tiveram aulas com nossos ex-alunos. Isso mostra que fizemos uma boa escolha em ofertar licenciatura em vez do ba charelado, já que as possibilidades de viver de artes se tornaram escassas, principalmente, no governo Bolsonaro”, avalia o professor.

Aspectos que apontam essa piora no gover no vigente foram, por exemplo, a extinção do Ministério da Cultura, em 2019, assim como a Medida Provisória nº 1.135/2022, que dá per missão ao governo para adiar repasses aos se tores da cultura e de eventos. Essas medidas impactam porque, no Brasil, uma das fontes de renda mais comuns para os artistas são editais públicos. As artes dependem muito de fomentos governamentais, como a lei Rouanet, a qual pos sibilita destinar, para o setor cultural brasileiro, valores de pagamento do Imposto de Renda. Se gundo dados da Secretaria Especial da Cultura, do governo federal, houve uma diminuição da

quantidade de projetos aceitos no país de 4.640, em 2020, para apenas 2.636, em 2021.

A conclusão da graduação não dá direito ao registro profissional da Delegacia Regional de Trabalho (DRT), emitido pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diver sões do estado (Sated), documento que per mite trabalhar como profissional, exigido, por exemplo, para atuar na televisão. Existem dois meios de obter a DRT: um é finalizar um curso profissionalizante de teatro reconhecido pela delegacia de ensino do Ministério da Educação (MEC); outra, por meio do Sated, com compro vação de anos de trabalho em peças teatrais,

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Lucas de Araújo sempre escreveu histórias em quadrinhos, mas depois veio o estalo: por que não escrever para teatro? KIRLLYAN SOUZA

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cinema, ou televisão, por meio de documentos legítimos, e, em alguns casos, de uma avaliação por banca, caso considerado necessário.

DIFERENTES POSSIBILIDADES

“O curso de licenciatura em Teatro me deu diversos vislumbres do que realmente é o teatro. A gente tem a visão limitada de que é apenas ser ator, mas, na prática, o mundo teatral é imenso e existe muito mais, como sonoplastia, ilumi nação, figurino e cenário”, comenta o estudante Lucas. Ele percebeu, com o curso, que pode fa zer teatro sem atuar para o público.

Uma de suas experiências na Universida de foi com a sonoplastia, parte técnica de um espetáculo, que lida com os elementos sonoros, ajudando a envolver o público na construção de imagens e sensações. “Deu um nervoso, talvez mais do que aos atores, mas foi uma experiência muito legal e eu espero repetir”, revela, lembran do que o curso ajuda também no controle de timidez e ansiedade. “Teatro não faz milagre, todo ator fica nervoso quando vai se apresentar. Se você não fica nervoso antes de cada apre sentação, significa que não gosta do que faz ou não se importa, uma vez que, quando realmente gostamos do que fazemos, nos importamos com a reação do público e ansiamos pelo veredito”, acredita o estudante. Segundo ele, após sentir esse “frio na barriga” tantas vezes, aprende-se a lidar com ele e a trabalhar bem, independente mente do nervosismo.

A parte do processo que Lucas apon ta como insuficiente em sua formação é a

participação em atividades cênicas fora do ambiente universitário que, de acordo com ele, são poucas. “É tudo ainda muito acadêmico.

A gente faz teatro para o povo. Cadê o povo?”, questiona. Existem mostras com apresentações abertas ao público dentro da faculdade, mas, se gundo o estudante, diversas vezes, eles acabam lecionados num viés menos popular.

Segundo o coordenador do curso, para que fosse possível ampliar o acesso da população a essas produções, que ocorrem a cada semestre, seria interessante aumentar a quantidade de apresentações, pois o teatro laboratório Jesiel Figueiredo, onde esses eventos acontecem, com porta 90 pessoas.

AMOR PELA ARTE

“Meu objetivo é ensinar amor. Passar esse amor que tenho pela arte e inspirar alguém da forma que os artistas e professores que conheci me inspiraram”, aspira Lucas, que, em momentos conturbados da vida, encontrou porto seguro em alguns docentes. “A gente tem muito sentimento de querer mudar o destino da arte, mesmo que não seja no Brasil, mas no estado”, comenta Lu cas, sobre sua motivação para ser professor.

“A arte é política, nenhuma arte é neutra. A gente enfrenta, atualmente, uma onda de conservadorismo crescente”, diz Lucas de Araú jo. Ele exemplifica, citando o exemplo de um evento na Universidade, em outubro de 2022, para o público infantil, em que haveria a cena de casamento entre duas bonecas. “Mandaram a sinopse para o setor e tiraram a apresentação,

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‘porque não era lícito’”, conta Lucas. “Por que as crianças não podem ver duas mulheres juntas, não podem ver sobre casais homossexuais? No cenário brasileiro, a maior dificuldade que a gente enfrenta é a censura”, aponta Lucas.

MUDANÇA DE PLANOS

Segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 38% dos formados no ensino superior, em 2018, não se guiram a mesma carreira - ou afins - de seus respectivos cursos universitários. O número cresceu, entre 2012 e 2018, entre as populações mais jovens de 24 a 35 anos. Muitas vezes, a busca por novas áreas de atuação passa pela formação prática.

Isso aconteceu com Henrique Fontes, que se formou em Comunicação Social em 2000, mas, por meio do trabalho com grupos de tea tro, acabou mudando de carreira. Embora re conheça a riqueza de sua formação por meio da experiência prática, ele sente falta do estudo formal no campo.

“A parte teórica, como a de história da arte, é uma falha da minha formação. E os caminhos, tanto para atuação, como para dramaturgia e direção, que são as áreas em que atuo hoje, po deriam ter sido facilitados por essa formação te órica, acadêmica”, diz Henrique. Hoje em dia, já bem mais maduro em relação a tais áreas, conta que deve sua evolução no universo teatral, prin cipalmente, aos seus companheiros e mestres, tendo, junto a eles, a prática como professora.

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Henrique Fontes no aclamado espetáculo “A invenção do Nordeste” ARQUIVO PESSOAL

POR TRÁS DAS CORTINAS

Grupos natalenses contam as dores e alegrias de fazer teatro e viver dele

A história do teatro em terras potiguares é antiga e essa arte milenar anda por aqui faz tem po. As primeiras apresentações de teatro do Rio Grande do Norte tiveram início em 1814, como descreve o diário de Henry Koster, escritor e comerciante inglês, quando apresentações de

comédias eram feitas pelas praças das cidades com atores ambulantes. Desde então, o estado segue com uma cultura teatral forte, apesar de ainda pouco valorizada pelo grande público. Segundo pesquisa realizada em 1999 pela historiadora graduada pela Universidade

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Clowns de Shakespeare e Teatro de Los Andes na estreia da obra FRONTE[I] RA | FRACAS[S]O no Festival Mirada do Sesc Consolação, São Paulo RAFAEL TELLES

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Ân gela Maria Carvalho de Melo, nos anos 1860, surgiram novas trupes teatrais em Natal. Na época, de acordo com a pesquisadora, havia grande demanda por espetáculos, sendo a maioria dos atores formados em outras locali dades do país. Na década de 1850, entram em cena as primeiras atrizes norte-rio-grandenses, Maria Epifânia de Oliveira e Honória Reis. Epi fânia era de origem humilde, viveu no teatro por quase 70 anos, e, mesmo na velhice, ainda sentia a curiosidade de viver, segundo Câmara Cascudo, citado pela autora em sua pesquisa. Honória foi a segunda mulher a pisar nos pal cos de teatro, encenou em várias companhias teatrais do RN.

Nos dias atuais, há vários grupos teatrais profissionais no estado, que se dedicam cotidia namente à carreira teatral, como o Clowns de Shakespeare, o Sostô Teatro e o Interferências de Teatro. Antes de as peças teatrais desses co letivos estarem prontas para serem apresenta das, existe todo um processo criativo que muda de acordo com as mensagens que os grupos querem passar.

De acordo com Diogo Spinelli, integrante do Clowns de Shakespeare, grupo formado em 1993, esse processo não se inicia a partir de uma ideia prévia, mas, sim, com um desejo, no qual surgem várias pesquisas até o resultado final. As obras passam por esse caminho em todos os aspectos, desde a dramaturgia até a seleção do figurino.

O tempo de criação depende também do tipo da apresentação e de outras condições,

conforme Spinelli. Uma obra para teatro de rua é construída de maneira diferente de uma para teatro de sala, por exemplo. Cada proces so é único. Alguns se desenvolvem de manei ra mais fluida, quando estão pesquisando e tentando encontrar coisas novas; outros não. Não há receitas.

PERSONALIDADE E CRIATIVIDADE

Cada teatro de equipe de Natal tende a ter sua própria estética e personalidade. Os gru pos buscam explorar os talentos individuais dos seus integrantes, traçando uma variedade de es tilos técnicos para aprimorar seus espetáculos.

O Sostô Teatro, consolidado por volta de 2017, utiliza técnicas de sonoplastia, colorime tria e preparação corporal nas apresentações, auxiliando na transmissão das emoções que deseja passar aos espectadores. “A preparação corporal é fundamental em qualquer apresen tação que um grupo de teatro realize. Cada um tem suas normas”, explica Walter Sá, membro do Sostô.

Como a voz não se separa do corpo, os di ferentes tipos de teatro influenciam na prepa ração corporal e vocal do grupo. “Trabalhamos exercícios de articulação. No caso do teatro de rua, minha voz tem que se projetar e ser com preensível a quem ouça, mesmo que eu fale rá pido”, esclarece Valéria Chaves, que faz parte do Sostô Teatro.

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QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA

Segundo Diogo Spinelli, os grupos se man têm por meio de uma combinação de vários fa tores, desde cachês de apresentação até alguma verba de edital, ou convite para fazer esquetes específicas, até venda de atrações para empresas.

Os coletivos necessitam, continuamen te, de buscar alternativas rentáveis, como fez o grupo Interferências de Teatro, criado em 2016. A trupe montou uma loja com livros e botons, produzidos por eles, e também busca suporte na Lei Aldir Blanc. Já o Clowns dá ofici nas quando o quadro de apresentações não está

favorável. No caso do Sostô, existem integrantes que participam de outras turmas teatrais, como é a situação de Valéria Chaves.

A Lei Aldir Blanc, de 29 de junho de 2020, define uma série de recursos destinados ao setor cultural e foi criada de forma emergencial devido à pandemia do novo coronavírus. Ela prevê 3 bi lhões a estados, municípios e ao Distrito Federal para cumprimento dos objetivos, entre os quais garantir acesso às ações de promoção à cultura, por meio da realização de prêmios e editais.

Não apenas o grupo Interferências de Teatro foi contemplado por ela, mas também o Sostô. A lei permitiu ao Sostô garantir elaboração de

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Para Walter Sá, Valéria Chaves e Ita Barbosa, independentemente das dificuldades, o teatro faz parte dos atores LYÊNIA MONTEIRO

cenários, aluguel de espaços, deslocamento, ali mentação, contratação dos profissionais de ilu minação e atores. Quando eles têm o auxílio da lei, a possibilidade de encenar peças maiores é mais favorável. “A gente espera que essa lei con tinue, porque ela incentiva a produção teatral e abre portas”, opina Walter Sá, do Sostô.

O Sostô participa de editais culturais do governo para conseguir verbas e locais de en saios. O grupo atua também no campo das ofi cinas online, redes sociais e YouTube. “O míni mo de apoio que o estado dá a um grupo muda toda a perspectiva”, informa Valéria.

O Interferências de Teatro tem nos editais sua principal fonte de renda. “O fazer teatral não é facilmente rentável. A gente faz apre sentações e recuperamos os gastos, mas lucro,

basicamente não tem. Esse lucro só acontece por meio da aprovação em editais que, rara mente, são lançados e aos quais nem sempre podemos concorrer, devido ao histórico de grupos mais antigos e mais conhecidos da cidade de Natal”, conta Rubinho Rodrigues, do Interferências.

Para Rubinho, a cena na capital é muito rica. Porém, tanto grupos novos quanto os mais antigos precisam enfrentar a falta de financia mento. “É uma realidade que nós, do Interfe rências, passamos, mas é um problema que um grupo com quase 30 anos também enfrenta, jus tamente porque não consegue, através de leis ou fundos de incentivo à cultura ou qualquer tipo de meio público, que o dinheiro chegue a esses trabalhos artísticos”, comenta.

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Grupo Interferências, composto por Geisla Blanco, Jason Gabriel, Robinho Rodrigues, Thayanne Percila e Valéria Chaves, em publicação do livro “Onde nascem as estrelas”, financiado com recursos da Lei Aldir Blanc @GRUPOINTERFERÊNCIAS

CULTURA

CONFLITOS,

E DESAFIOS

DISPUTAS

Ao falar-se sobre a relação entre os grupos de teatro da cena natalense, parece haver uma espécie de conflito entre aqueles já consolida dos e os que estão surgindo. “Quem cria esses editais, cria para os grupos mais novos ou para os mais antigos?”, questiona Walter Sá, do Sos tô, sobre a supervalorização dos grupos mais antigos, enquanto os mais novos se desfazem com facilidade.

Segundo Rubinho Rodrigues, entre os co letivos que nascem dentro das universidades, os poucos que conseguem sobreviver vão ter que lidar com um horizonte difícil sem o apa rato da instituição de ensino. “Vão encontrar um cenário em que é você por você. Precisam arranjar um canto de ensaio, material e pessoas que comprem a sua ideia”, aponta.

Diogo Spinelli pensa na perspectiva de que, para melhorar o âmbito teatral, é vital o contato com outros conjuntos de teatro e públicos para que a arte natalense não estagne. Para ele, a cena poderia se desenvolver mais se conseguisse re ceber mais espetáculos de outros locais. Por isso, considera importante para eles estrearem

em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, levando o trabalho daqui para lá, e, ao mesmo tempo, conhecendo outros grupos e trabalhos. O grupo estreou o espetáculo “Ubu: o que é bom tem que continuar”, fruto de uma parceria entre o Grupo Facetas, Mutretas e Outras His tórias e o Grupo Asavessa, no festival Campão Cultural, nos dias 13 e 15 de outubro de 2022, em dois lugares da capital sul-mato-grossense: a Feira da Orla Morena e o Calçadão da Barão. As turmas da arte teatral confessam que, em muitos momentos, pela instabilidade da situação financeira, os integrantes necessitam de várias fontes de renda. Por isso, buscam um balanceamento de contas para que seja possí vel se manter no coletivo e individualmente. Apesar da falta de investimento e estrutura, os grupos lutam não só para se manterem relevan tes, como também pela falta de acolhimento de outras companhias maiores que, segundo eles, acabam não tendo um olhar empático para no vas equipes que surgem. A despeito de tantas adversidades, o Clowns de Shakespeare, o Sostô Teatro e o Interferências de Teatro têm em co mum uma esperança: acreditam no potencial de crescimento do cenário teatral natalense.

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FIQUE POR DENTRO

RESQUÍCIOS: Uma das apresentações mais recentes do Sostô Teatro engloba a ence nação de um casal com relacionamento desgas tante e as dificuldades do término. Há várias combinações no cenário, escolhidas especifica mente para esse espetáculo. As luzes, as cores,

a música repetitiva, a mesa velha, os copos que brados e o corpo pintado de argila, que muda a partir das luzes do ambiente, influenciam na interpretação do público. “A gente lida com três temas: abandono, rastros e risco. Falamos sobre uma estética meio pós-apocalíptica, um relacionamento líquido que desfaz ”, explica Ita Barbosa, integrante do coletivo.

CULTURA
RESQUÍCIOS, peça do grupo Sostô Teatro ALESSANDRO SILVA

FRONTE[I]RA | FRACAS[S]O: obra do Clowns de Shakespeare, realizada juntamente com um grupo teatral da Bolívia, o Teatro de Lós Andes, com texto original criado de en trevistas e vivências feitas pelos dois grupos na cidade de Brasiléia, no Brasil, e Cobija, na Bolí via. A peça mostra questões culturais, políticas e econômicas na fronteira entre os dois países. Começou a ser planejada no início de 2022 e estreou em setembro do mesmo ano no Festival Mirada do Sesc Santos, em São Paulo.

CONTO DOS CONTOS: peça lúdica do Interferências de Teatro de 2021, se passa em um deserto de dunas, em alusão às dunas da praia de Genipabu/RN, e em um universo marítimo inspirado na Praia de Ponta Negra. A atriz prin cipal encena uma velhinha contadora de histó rias nesses dois mundos. O figurino, o cenário e a sonoplastia têm a autoria do próprio grupo.

Clowns de Shakespeare dando um show na peça FRONTE[I]RA | FRACAS[S]O RAFAEL TELLES Apresentação de Contos dos cantos, trabalho do grupo Interferências RIUDETE MARTINS DE SOUSA

MEIO AMBIENTE

PELO DIREITO DE TER ÁGUA E ESGOTO TRATADOS

Moradores

de Natal anseiam pelo saneamento básico, fundamental para a qualidade da saúde e do meio ambiente

MEIO AMBIENTE
Por Ana Débora, Ellena Mendes, Malu Machado, Pedro Octavio de Oliveira, Simone Santos, Tábata Dantas e Victória Orlando Rua Pinheiros, a visão da casa de Aline LÍVIA MEL

Todo brasileiro deveria ter água e esgoto tratados em sua casa. É um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, por meio dos artigos 21, 23 e 200, que tratam do saneamento básico, conjunto de serviços essenciais para o desenvolvimento socioeconômico das regiões. No entanto, muitas cidades no Brasil não con tam com esse sistema.

Em Natal, a expectativa de uma cidade to talmente saneada não é de hoje. Em novembro de 2013, o então prefeito Carlos Eduardo Alves assegurou, no ato de assinatura dos contratos que garantiam o saneamento da cidade, que esse problema seria resolvido até 2015. A so lenidade contava com a presença da governa dora Rosalba Ciarlini e do Ministro das Cida des, Agnaldo Ribeiro. Nove anos se passaram e parte da população ainda espera.

As atribuições do saneamento no meio ur bano podem ser divididas em quatro pilares: abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e sistema de drena gem urbana. Segundo a especialista em Hidráu lica e Saneamento, do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Ceres Dantas, entre esses eixos, o esgotamento sanitário é funda mental, pois contempla a coleta, o transporte, o tratamento e a disposição final dos esgotos gerados nas residências.

Viver sem saneamento é insalubre e peri goso. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que cerca de 15 mil pessoas morrem por ano no Brasil devido a doenças transmitidas pela falta de saneamento. Mora dores de alguns bairros de Natal, como Cidade Nova, Nossa Senhora da Apresentação e Ponta

Negra, sofrem com isso, obrigados a conviver com esgoto a céu aberto, mau cheiro e expo sição a enfermidades. “As principais doenças são aquelas relacionadas à veiculação hídrica. Temos exemplos clássicos como a diarreia, as verminoses e casos mais graves como a cólera”, acrescenta a professora do IFRN. Veiculação hí drica significa transmissão por meio da água. Assim, se a água não for bem tratada, é provável o aparecimento de diversas doenças.

DESCASO NAS PERIFERIAS

Embora o ex-diretor-presidente da Caern, Marcelo Toscano, tenha dito, em 2018, ao Poti guar Notícias, que Natal era a primeira cidade do país 100% saneada, basta visitar alguns bairros periféricos - os mais afetados pela falta de sane amento - e a realidade mostra sua cara. A Zona Norte da capital potiguar, por exemplo, tem apenas 3% da população com esgotamento, de acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), que, anualmente, co leta dados das cidades brasileiras para a compo sição dos indicadores daquele período. Em 2021, Natal contava com 56,73% da sua população sem esgoto, além de 1,1% sem coleta de lixo.

Não é à toa que indignação e desespero são predominantes nas falas dos moradores de várias regiões, quando se trata da situação insalubre de suas ruas, devido à falta de sane amento básico. No bairro Cidade Nova, Zona Oeste de Natal, faça chuva ou faça sol, as ruas estão sempre alagadas com poças de água de esgoto, que prejudicam a passagem de pedestres

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MEIO AMBIENTE

MEIO AMBIENTE

e automóveis, além de afetarem a qualidade de vida dos habitantes.

Lixo nas ruas, bueiros entupidos, alaga mentos, esgotos, mau cheiro. Esse é o estado atual do Cidade Nova. Os moradores dali não se lembram de já terem presenciado alguma obra de saneamento. Na rua Santa Célia, onde mora a comerciante Eunice da Silva, há várias poças de água suja que sai das pias das casas vizinhas, além de amontoados de lixo espalhados pelas ruas. Quando chove, a situação piora.

Isso impede as pessoas de irem ao comércio, de acordo com Eunice. “Não tem como chega rem até aqui porque a água quase transborda a calçada”, protesta a comerciante, que tem as ven das de seu negócio prejudicadas principalmen te nos períodos chuvosos. Farta do problema, Eunice menciona, ainda, o desagradável odor de “frango abatido”, que permeia a rua há muito tempo. “A situação não é de agora”, reclama.

Algumas ruas depois, Aline Soares vive ilhada no sentido literal da palavra, conside rando que a porta de sua casa abre para uma rua completamente alagada há mais de um ano. É inviável a passagem de veículos e pessoas de vido à profundidade das valas e à insalubridade da água, que, na verdade, é esgoto. Por isso, mo radores da rua Pinheiros puseram suas casas à venda pela inviabilidade de permanecerem ali. Antes de desocuparem suas residências, posi cionaram tijolos para tentarem se locomover pela rua, dadas as baixas condições de tráfego. Aline hoje vive sem vizinhos. “Ninguém mora mais aqui. Ninguém quer comprar essas casas. Quem vai sair de onde está para morar aqui com essa água?”, questiona a moradora.

SEM ESPERANÇAS

A situação dessa rua já foi retratada por diversos jornais da cidade e, mesmo assim, continua negligenciada pelo poder público. Enquanto isso, Aline acorda todos os dias sub metida a uma qualidade de vida desumana. “As condições aqui são péssimas, essa água está acu mulada com mau cheiro, fezes, sapo, muriçoca. As minhas portas vivem fechadas”, desabafa ela, sem esperança de mudança.

A triste realidade também é enfrentada pelos moradores do bairro Nossa Senhora da Apresentação, no Parque dos Coqueiros, Zona Norte de Natal. “Já estamos cansados do nos so bairro ser esquecido”, desabafa a moradora Maria da Paz Lima. Além da vulnerabilidade dos habitantes, com a situação que enfrentam há anos, outros fatores, como buracos nas ruas, fossas cheias, mosquitos transmissores da den gue, estão entre as queixas da população.

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Olhar indignado e angustiado acompanha Aline Soares ao abrir a porta de casa LÍVIA MEL

“Já foi feita a instalação, porém não hou ve ativação do saneamento básico. Eu coloco metralhas na frente da minha casa para não alagar”, relata Jovacira Tibiano, moradora do bairro há 32 anos. Os próprios habitantes si nalizam os locais com buracos e alagamentos para evitar acidentes.

A falta de políticas públicas de saneamen to básico desrespeita os direitos sociais presen tes na Constituição de 1988, que garante aos cidadãos uma cidade sustentável e saúde de qualidade. Alagamentos como esses oferecem condições para desencadear doenças veiculadas pela água, como leptospirose, cólera e dengue, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti.

“Todo mundo da rua já pegou dengue”, contam tanto Eunice quanto Aline. Elas relatam

que seus vizinhos do Cidade Nova e elas pró prias já sofreram com a doença infecciosa, cau sada pelo mosquito que se reproduz devido ao acúmulo de água parada. Assim como Eunice e Aline, Jovacira cita a incidência de casos de dengue. “Minha vizinha já foi para UTI devido a contrair dengue”, revela a moradora do Nossa Senhora da Apresentação.

ZONA TURÍSTICA

Embora os bairros mais afetados com a fal ta de saneamento sejam os periféricos, Ponta Negra também sofre com episódios nascidos dessa problemática.

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Moradoras Maria das Neves, Maria da Paz e Jovacira Tibiano desabafam sobre a realidade do bairro de Nossa Senhora da Apresentação ALLAN RICKSON

MEIO AMBIENTE

A praia de Ponta Negra, uma das mais vi sitadas por turistas, local de um dos principais cartões postais da cidade, o Morro do Careca, padece em alguns pontos. Sua beleza não é su ficiente para eliminar os problemas ambientais que cercam a orla, principalmente o esgoto a céu aberto despejado no mar, motivo constante de reclamação de seus frequentadores.

“O que mais nos deixou triste foi o esgoto na praia. A falta de saneamento básico, essa água servida que jogam diretamente no mar, não é ruim só para o turista, mas também para a bio diversidade. Não só destrói, como pode alterar as suas características originais”, relata o oficial de Justiça do estado de Rondônia, Anderson Go mes, que visita Natal pela primeira vez.

Segundo levantamento de 2021 da Asso ciação Brasileira de Engenharia Sanitária e Am biental (Abes), 42,63% da população natalense tem coleta de esgoto e 68,53% do esgoto recebe

tratamento. Mesmo assim, no dia a dia daquele bairro, ainda é possível encontrar transtornos recorrentes relacionados à higienização de áreas públicas e comuns, ainda sem solução.

Para muitos turistas, o sentimento de des cuido com a praia é evidente não só pelo esgoto à mostra, mas também pelo lixo espalhado na beira mar e no calçadão. Na visão do atendente de caixa, Max Santos, também de Rondônia, é fácil encontrar indícios de poluição presentes na praia. Ele relata que, inclusive, apanhou al guns objetos espalhados para jogar na lixeira, enquanto caminhava pela orla. “Acho que pre cisa de uma preservação maior, porque a visão daqui é muito linda. Vocês vivem em um para íso e precisam cultivar isso”, propõe Max.

As atividades econômicas desenvolvidas por ambulantes ou proprietários de estabeleci mentos também são diretamente afetadas pela má condição de preservação do espaço público.

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Esgoto na orla de Ponta Negra expõe banhista a risco de contaminação de doenças MARIANA BIGNOTTI

O sentimento de insatisfação e revolta pelo des caso é compartilhado por quem depende da praia no seu negócio.

“Trabalho com alimentos, e a praia, com o esgoto despejado, não só afeta meu trabalho, como também o turista. Ele vem, degusta al gum petisco e não tem condições [de perma necer] devido ao mau cheiro”, enfatiza Maria Francineide Alves, vendedora de crepes. Além disso, de acordo com a comerciante, os próprios banhistas reclamam do odor forte e evitam en trar no mar. Os pontos com problemas ficam próximos aos hotéis Coral Plaza Apart Hotel e Esmeralda Praia Hotel.

Ela conta que já presenciou ratos circulan do pelo calçadão em meio aos banhistas, ani mais que expõem a população a riscos, como a

possibilidade de transmissão de leptospirose. Francineide afirma que vê, com frequência, garis varrendo, mas o trabalho não é suficiente para sanar tais transtornos.

A Tabu entrou em contato com a Secre taria Municipal de Infraestrutura (Seinfra) e com a Companhia de Serviços Urbanos de Na tal (Urbana), para saber sobre a situação dos bairros mencionados nesta reportagem e sobre a limpeza na Praia de Ponta Negra, porém não obteve retorno até o fechamento da edição.

JUSTIFICATIVAS

Segundo informações da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte

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AMBIENTE
Maria Francineide Alves, vendedora de crepe, reclama do mau cheiro em Ponta Negra MARIANA BIGNOTTI

MEIO AMBIENTE

(Caern), órgão responsável pela distribuição de água, tratamento, captação e saneamento básico do estado, os bairros periféricos são mais recen tes e, por isso, esperam sua vez na fila. Ribeira, Cidade Alta e Petrópolis estão 100% saneados por serem bairros mais antigos, sendo, portan to, os primeiros a receberem saneamento.

Apesar das justificativas, ter seu bairro bem atendido é direito básico do cidadão. Em um país onde ter moradia própria é difícil, sofrer diaria mente com as consequências sanitárias de um bairro mal saneado intensifica ainda mais o des caso com quem deseja o mínimo. Mesmo com os moradores fazendo sua parte, como reciclagem e controle dos dejetos expostos nas ruas, está fora do controle algo que é dever do poder público, responsável pela coleta de lixo e drenagem.

O engenheiro civil e assessor da Diretoria Operacional da Caern, Isaías Costa Filho, expli ca que existe uma lei aprovada em 2020, o Mar co Legal do Saneamento, que estabelece garan tia do acesso à água potável a 99% da população e à coleta e ao tratamento de esgoto a 90% dos moradores, até 2023. Entre as iniciativas para o cumprimento da lei, está a construção de duas Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) em Natal: a do Guarapes, na Zona Oeste, com 65% das obras em andamento, e a Jaguaribe, na Zona Norte, com 90% concluídas.

A edificação dessas estações permitirá o tratamento dos esgotos dessas zonas da cida de. “O saneamento básico não é apenas esgoto.

O tratamento traz saúde, higiene, água bem servida, lazer, as pessoas podem andar na rua. Então, o benefício começa por isso, evitando várias doenças provenientes da falta de sanea mento”, exemplifica Isaías.

Diante da falta de retorno da prefeitura, a Tabu apurou que o jornal Tribuna do Norte publicou, em 2020, notícia com previsão para a entrega das estações até o final de 2022. Essa obra poderá colaborar para resolver os casos registrados em Cidade Nova, que ficará sob a ETE do Guararapes, e em Nossa Senhora da Apresentação, com a Jaguaribe.

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Isaías Filho informa que estão em andamento as obras de duas Estações de Tratamento de Esgoto LÍVIA MEL

PERIFERIA

PERIFERIA PLANETA ROCAS

Um apanhado de histórias, tradições e culturas perpassa um dos bairros mais antigos de Natal

Natal não conhece sua própria história. Pa rece estranho proferir tal frase acerca dessa ci dade com tanta riqueza histórica, mas vivenciar não é o mesmo que conhecer. Por isso, é bem provável que muitos personagens importantes

tenham sido esquecidos, ou silenciados, propo sitalmente ou não, ao longo dos anos, ficando de fora da história tradicional ensinada nas escolas. Você conhece o bairro das Rocas?

Rocas é um dos bairros mais antigos de Natal, com relevância histórica para a cidade HÉLIO JÚNIOR

Falar de bairros, é falar de pertencimento. De acordo com o sociólogo brasileiro Antônio Cândido, o termo bairro é uma porção de terra à qual os moradores têm consciência de perten cer, formando certa unidade diferente das outras. A convivência entre eles decorre da proximidade física e da necessidade de cooperação. Essa defi nição não poderia descrever melhor a alma das Rocas, um dos bairros mais antigos e tradicionais de Natal. O sentimento de pertencimento é quase palpável, e uma das tarefas mais difíceis é achar um habitante desse lugar que almeja sair de lá em algum momento. A ascensão acontece dentro do bairro e não ao deixá-lo. O melhor está ali, com seus pouco mais de 10 mil habitantes.

O bairro, que de pequeno tem apenas seu território — cerca de 65 hectares, o equivalente a nove estádios do Arena das Dunas — abriga moradores gigantes de espírito e caráter, vivendo de trabalho árduo e alegria sem fim. Personali dades importantes nasceram ali, como o famoso presidente Café Filho, o ex-jogador de futebol do Corinthians, Rodriguinho, e José Varela, expedi cionário da Segunda Guerra Mundial.

É uma experiência até mesmo adorável observar o cotidiano daqueles moradores. A organização da feira local se contrapõe ao burburinho causado pela panfletagem polí tica. Um único morador, impondo-se de for ma grosseira contra o ato político, é abafado por vários feirantes que advertem, respeitam e acalmam. É um mundo de solidariedade e apoio mútuo que acaba chocando os visitan tes desavisados.

RESISTÊNCIA E TRABALHO

A história das Rocas sempre foi de resistên cia. Um lugar periférico, setor de orla marítima, fundado sobre o mangue e localizado na Zona Leste de Natal. Lugar de pesca, é berço único po tiguar, carregado de histórias e cultura. Segundo Câmara Cascudo, o bairro teve início nos mea dos de 1880. Inicialmente, foi nomeado de Ilha de Montenegro, conhecido antigamente como Limpa. Logo em seguida, teve seu nome altera do para Rocas, em referência ao Atol das Rocas, lugar de pesca dos homens do mar natalense.

Começou a crescer com a chegada de migrantes do interior, que buscavam oportu nidades de emprego. Portanto, já no início se estabelece a essência de um bairro formado por trabalhadores, que, desde a chegada da ferrovia, em 1878, até a construção do porto, em 1932, são responsáveis por fornecer mão de obra e servir de base para as principais atividades eco nômicas da cidade.

Foi também nessa região que surgiu, antes mesmo do famoso bairro Alecrim, um corre dor de comércio onde hoje fica a praça central, responsável por intensa atividade comercial. Atualmente, como resquício do que antes movi mentava o bairro inteiro, resiste a feira semanal. Com feirantes de todo o estado trazendo diver sos produtos de origem nacional e internacio nal, o evento representa uma riqueza cultivada há mais de 60 anos no bairro.

“A feira era mais espaçosa, bem maior, mais movimentada, mas, com a pulverização de várias feiras, isso foi diminuindo”, diz Marcos Santa na, 53 anos, morador das Rocas há três décadas.

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Marcos, que panfletava pelos arredores da feira, a qual acontece às segundas-feiras, conta que o bairro sempre foi um lugar de movimento. Nas ruas, nos comércios, é fácil achar pessoas andan do e conversando livremente. O espírito traba lhador é facilmente identificado nos feirantes, parece ser uma herança proletária de quem foi ensinado desde cedo a pegar no pesado. Os movimentos são ritmados. Frutas nas sacolas. Peixes faqueados. Promoções anuncia das a cada segundo. São trabalhadores em suas próprias linhas de produção, fazendo o que fo ram ensinados, muitas vezes, desde crianças. As cores são tão vivas quanto as de uma aquarela.

Morangos, cenouras, maçãs, laranjas e limões brilham debaixo de tendas extensas. Tudo de que você, porventura, possa precisar, reúne-se naquele espaço rodeado pela Praça do Pátio, bares, restaurantes e moradores com seu jeito simples de viver a vida.

Próximo da rua São Pedro, onde está loca lizada a feira, encontra-se a Matriz da Sagrada Família. Fundada em 1925, ela carrega em seu solo um espaço de fé e devoção, com suas mis sas, louvores e adoração. A igreja, banhada de história, traz traços da arquitetura holandesa intacta, mesmo com a aproximação de seu ani versário de cem anos. De acordo com o Censo

A feira, que décadas atrás ia até as 18h, hoje termina às 14h ANA BEATRIZ MEDEIROS

2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Esta tística (IBGE), a cidade de Natal tem 67% de sua população católica, e o bairro das Rocas segue essa estimativa, tendo a Matriz como um lugar de paz e acolhimento.

RESPEITO COMO LEMA

Com um passado de terreiros de Umbanda e Centros Espíritas que se perpetua, a intolerân cia religiosa nunca foi problema para moradores do local. O Terreiro de Umbanda Jejê Mahi Vo dum, a Federação Espírita de Umbanda Jurema e Candomblé (Feumjuca) e a Sociedade Espírita de Cultura e Assistência (Seca) são exemplos de casas religiosas de outras matrizes, frutos do sincretismo herdado da presença de migrantes na formação do bairro. O respeito mútuo acaba comandando qualquer relação que porventura aconteça. “Cada vizinho na sua casa, cada ma caco no seu galho”, descreve Raimunda Trajano, 70 anos, mais conhecida como Tia Mundinha. Professora desde os 13 anos, Raimunda é uma das personalidades mais conhecidas das Rocas. Vivendo toda a sua vida na mesma casa, suas histórias não poderiam ser menos comuns. Sua fala é rápida, tem muitos anos para relatar. Seu jeito é doce, como uma professora de crian ças sempre é. Sabe as tradições e os significados de todas as ruas do bairro, é historiadora da vida que vive. Relata que vai às festas locais des de a adolescência, quando ainda precisava sair escondida da mãe. É adorada e conhecida, não foi difícil encontrar sua casa apenas perguntan do aos moradores pelo caminho. Raimunda é

riso solto, afeição e luta, uma personificação das Rocas em alma jovem.

O Mercado do Peixe, onde Tia Mundinha tem uma loja de artesanato, localiza-se mais abaixo da Matriz. É um mercado da Prefeitura, conquistado pelo apelo do povo 15 anos atrás, com uma concentração comercial de pescaria e arte. “Reformaram isso tudo e aqui nós es tamos trabalhando. Vivemos aqui, tranquilos, dando de comer aos nossos filhos. Muita gente vive da pesca”, relata Lúcio Rodrigues, 60 anos,

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A matriz foi fundada por padres holandeses ANA BEATRIZ MEDEIROS

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A beleza das Rocas se distribui em vários aspectos. Sua população aguerrida, sua histori cidade revolucionária e seu físico exuberante se misturam com monumentos centenários, que inundam os olhos de quem vê, e deixa um gos to doce de quero mais. Mais da andança pelas ruas movimentadas. Mais das conversas longas com experientes contadores de estórias. Mais das descobertas de um pedaço de nossa própria cultura. Rocas têm a capacidade marcante de envolver, com braços maternais de quem não julga precipitadamente. Muito pelo contrário, sem pedir nada em troca, irá torcer pelo seu su cesso. Torcer pelo deles acaba sendo inevitável.

permissionário do box “Peixaria do Lúcio”. Com 42 anos no ramo do peixe, e tendo começado aos 14 no ramo das carnes, Lúcio transpira simpatia e amor pelas Rocas. Nascido e criado no bairro, não esconde o carinho pelo seu primeiro lar.

O bairro é um roteiro de experiências pro porcionadas por lugares e pessoas. “Rocas não é seletiva. Ela não é excludente, ela é includen te. Você sabe que tem um código, que tem que respeitar o outro”, diz, emocionado, Ciro Pe droza, jornalista, radialista e publicitário, que publicou o livro “Uma História das Rocas”, em abril de 2022. Com olhar aguçado e cheio de sensibilidade, Pedroza relata o que torna esse lugar inesquecível e convence facilmente seus moradores a nunca querer deixá-lo.

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Tia Mundinha coleciona alunos e amizades pelo bairro das Rocas ANA BEATRIZ MEDEIROS Lúcio mora atualmente na Zona Norte de Natal, mas trabalha nas Rocas ANA BEATRIZ MEDEIROS

HISTÓRIAS QUE INSPIRAM

Personalidades marcam o bairro das Rocas e mostram o acolhimento da periferia

Dentro do bairro das Rocas, existem pes soas que têm o poder de compor a alma da comunidade e enriquecer os dias daqueles que ali vivem. Após conhecer a história de forma ção do lugar, é importante ter o contato com aqueles que moram na periferia e possuem diferentes visões acerca de um mesmo espa ço. Estas três narrativas, de diferentes figuras que influenciam e são influenciadas dentro do bairro, mostram que, para além de uma peri feria, Rocas possui aquilo que muitos locais não têm: um povo acolhedor e bairrista, que defende o seu lugar acima de tudo.

DONA DORINHA

“O que eu quero é que o carnaval cresça”

Maria das Dores Campos de Souza, mais conhecida como Dona Dorinha, nasceu no município de Taipu, interior do Rio Grande do Norte. Nos anos 1960, veio morar em Natal com a sua família e se estabeleceu no bairro das Rocas, onde reside até hoje. Na capital potiguar, começou a trabalhar num ateliê de costura, que produzia todos os tipos de confecções.

Nesse período, conheceu Lucarino Roberto de Souza, popularmente conhecido como Mes tre Lucarino, o homem com quem compartilha ria o resto de sua vida. Tiveram três filhos, dois meninos e uma menina, a qual, infelizmente, faleceu alguns anos depois, por motivos de saú de. Dorinha também trabalhou na Secretaria de Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e do Lazer (Seec) durante 37 anos, onde criou for tes laços de amizade. Atualmente, aos 75 anos, ela é presidente vitalícia de honra da escola de samba Balanço do Morro, fundada por seu ma rido Mestre Lucarino (1935-1996).

“Meu marido sempre gostou de escola de samba”, explica Dona Dorinha. Ela conta que o companheiro dava aulas de música para diver sas escolas de samba, sendo Balanço do Samba e Malandros do Morro as principais, ambas lo calizadas em Macaíba. Mestre Lucarino ajudava os demais a prosseguir com a tradição carnava lesca, por meio de produção sonora e artística, além de doar fantasias para enaltecer o local no qual seria feito o evento. “Ele lutava por uma iluminação boa, exigia melhores condições de vida para as pessoas que moravam por ali. Era desenrolado, mesmo sendo semianalfabeto da quarta série”, conta Dorinha.

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Após alguns desentendimentos com a anti ga escola Malandros do Morro, Lucarino decide montar sua própria escola em 6 de janeiro de 1966. Com ele, familiares e amigos também se colocaram à disposição para incentivar e apoiar a Balanço do Morro. Naquele momento, Dori nha e o marido faziam apenas um ano de casa dos. Ela explica que, no início, não havia samba enredo. Após um tempo, foi necessário que to das as escolas produzissem um. Em apenas três anos, a Balanço do Morro já ocupava colocação elevada, pertencente ao grupo A de escolas de samba da cidade.

Um dos últimos enredos criados pela esco la, em 2022, foi sobre “As mães de braços aber tos”, que perderam seus filhos assassinados, com o objetivo de homenagear as famílias vítimas da violência, representado pela comissão de

frente da escola com 12 matriarcas que ecoa vam o samba aos prantos. “Nosso enredo era muito emocionante”, relembra Dona Dorinha. Infelizmente, devido a uma das exigências da Fundação Cultural Capitania das Artes (Fun carte) sobre as vestimentas de uma das baianas, a escola acabou perdendo o carnaval por dois décimos. Dorinha acredita que a escola terá êxi to nas próximas edições de carnaval. Hoje, a Balanço do Morro conta com 600 colaboradores, que auxiliam no funcionamento da escola, da sinopse do enredo ao figurino e demais processos para realizar o carnaval, que exige organização, patrocinadores e recursos financeiros para cobrir os gastos mensais. “So mente no último carnaval, foram utilizados 86 mil reais”, informa Dorinha.

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Em sua juventude, Dorinha foi presidente do Clube de Jovens do bairro HELOÍSE VICTORIA

“O que eu quero é que o carnaval cresça”, deseja Dorinha, sobre a pretensão de aumentar o número de componentes, principalmente os batuqueiros, pois, quase sempre, é necessário juntar os batuqueiros de outras escolas con correntes para completar o time. Esse arranjo, muitas vezes, funciona com dificuldade, porque alguns possuem um ritmo acelerado ao tocar, enquanto os rapazes da Balanço tocam num “ritmo mais cadenciado”, e essa mistura de ve locidades pode prejudicar na avenida, atrasan do o desfile, de acordo com a ilustre moradora. Seja em qual ritmo for, o coração bate com amor: “Eu amo as Rocas, é um bairro muito importante para mim, porque é um local mui to carismático, as pessoas são muito amigas. Se você andar comigo, você vai ver”, relata Dona Dorinha, com um sorriso no rosto. Morar em outro lugar está fora de cogitação. Mesmo já tendo recebido convites da velha guarda da Por tela para morar no Rio de Janeiro.

CARLOS VOLU

“O que a gente tem aqui é alegria de viver”

Ele tem, como todos, um nome de batismo, Carlos Antônio de Oliveira Barbosa, mas, na arte, é Carlos Volu. Nascido em 1964 na cida de de Mossoró, é filho de um ferroviário que foi transferido para Recife na década de 1970 e veio até Natal em um trem. Quando chegou, ficou hospedado na casa de uma tia no bairro Alecrim, mas depois se mudou para a Vila Fer roviária, antiga casa dos ferroviários, dentro do

bairro das Rocas. “Eu moro aqui há mais de 50 anos, sou um canguleiro adotado, mas vi muita coisa acontecer quando cheguei. Acompanhei também o processo de abandono cultural e his tórico”, conta Volu, citando o nome canguleiro, dado aos moradores das Rocas em alusão ao peixe muito consumido por eles no final da dé cada de 1800, o Cangulo.

Envolvido com ações educativas e cultu rais na comunidade, Volu conta que o bairro ferve de cultura, de um povo que quer acolher aqueles que chegam. Volu chegou à Escola Esta dual Padre Monte em 1989, inicialmente como secretário escolar, mas, após se graduar e qua lificar-se, tornou-se diretor. Sempre preocupa do com a cultura e a arte na comunidade, ele planeja realizar um projeto em 2023, de resgate histórico e mapeamento das pessoas que fazem cultura, voltado para a comunidade escolar. “Muitos dizem que a juventude não quer saber dessas coisas, mas, se você não lhes apresenta a cultura, como eles vão gostar?”, questiona.

A ideia é voltada também para que a gran de mídia veja o talento e a potencialidade das Rocas, visto que, segundo ele, as pautas trata das pelos jornais, sejam eles impressos ou digi tais, só trazem a comunidade periférica como local de violência, não divulgando os fatos po sitivos do bairro. Volu espera que as políticas públicas possam olhar para o seu bairro e dizer “vocês têm valor”.

Ao resgatar suas memórias afetivas dentro do bairro, ele traz uma recordação antiga, que guarda consigo: “Aqui na rua São João, tinha um parque de diversões e, naquela época, esses par ques mandavam músicas dizendo: esta música

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vai de fulano para fulano com muito amor. Não esqueço nunca que, quando ele chegava, todos iam na expectativa de escutar uma música para si através do alto-falante. Eu recebi uma, mas até hoje não sei quem mandou”, relembra.

Volu fala, com brilho nos olhos, do lugar que ama: “O que a gente tem aqui é alegria de viver, vontade de crescer. O que nós temos de bom é um povo feliz, que quer acolher e fazer feliz quem aqui chega. É como diz aquela músi ca: a gente não quer só comida, a gente quer co mida, diversão e arte”, diz, referindo-se à canção “Comida”, da banda Titãs. Ele se recorda, tam bém, do dia em que quase assinou um contrato

de compra de uma casa em outro bairro, mas desistiu, ao lembrar-se das Rocas. “Não poderia sair do meu lugar”, conclui, em voz baixa. Quando se fala que Rocas é berço do sam ba e da cultura, é preciso lembrar também que é berço das senhorinhas que ficam nas calçadas conversando sobre o seu dia. É local de reuniões de jovens que formam uma nova geração dentro da comunidade. E, atualmente, também há um movimento da dita burguesia de Natal, que se locomove até as Rocas, para se divertir com as festas e os bares que o bairro oferece. Quem quiser, pode chegar!

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Volu se preocupa com resgate cultural que mescle práticas antigas e atuais, como a dança folclórica Araruna e o passinho, dança urbana popularizada no funk HELOÍSE VICTORIA

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HERBERTH SENA

“A luta do passado é importante para que hoje possamos ver toda a comunidade crescendo”

Com 33 anos, o atual vereador da cidade de Natal, Herberth Sena, que nasceu e cresceu na rua São Francisco, no bairro das Rocas, conta com muito orgulho sua trajetória e a história de vida da sua família, que sempre contribuiu para o avanço do bairro.

Formado em Engenharia Civil, estudou durante toda sua vida em escolas da comunida de: “Do maternal até a quarta série, estudei no Jardim Escola Alfabetolândia. Depois, voltei, no Fundamental II, para estudar na Escola Estadu al Isabel Gondim”. Ele afirma que, desde cedo, participava de projetos sociais. Sua paixão por prestar serviços sempre esteve em seu cotidia no, até mesmo quando era criança e discursava para os ursos de pelúcia da sua mãe: “Eu estava

Com família socialmente engajada no bairro, Herberth tem orgulho de suas raízes nas Rocas REBECA MARINHO

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lá discursando como um político. Entendo que essa vocação, trago do berço”.

Quando adolescente, cursou o ensino mé dio em escolas fora das Rocas, porém, mesmo não sendo parte dos alunos do bairro, sempre buscava participar frequentemente de movi mentos estudantis em prol da comunidade. Conta que esteve presente quando o governo de Rosalba Ciarlini propôs fechar as portas da Escola Estadual Isabel Gondim, comprou a briga como ex-aluno, marcando reunião com a Secretaria do Governo do Estado, convocando toda a comunidade escolar para, juntos, lutarem pela escola. Com orgulho, relata que a institui ção de ensino não fechou as portas e que foi reformada, apesar das dificuldades enfrentadas pelas escolas públicas em Natal.

Em meio aos seus feitos no ramo político, carrega consigo o título de vereador mais vota do das Rocas e de Natal. “Aumentou a minha responsabilidade, tanto na comunidade, quanto fora. Sou um jovem criado nas Rocas e com esse desafio de levar meu trabalho para toda Natal”, alega. Uma de suas lutas como vereador, para trazer melhorias à população, foi a ampliação do Hospital dos Pescadores, contendo uma

Unidade de Terapia Intensiva (UTI) com dez leitos e 18 leitos de enfermaria.

O neto de pescador diz, com alegria, que sua família participou da construção e do pro gresso da história das Rocas. Seu avô mater no foi um dos fundadores da escola de samba Malandros do Samba e de um time de futebol muito importante, o Racing. Quando se trata de samba, Herberth se orgulha em dizer: “Puxan do já ao meu avô, eu sou malandro. A minha escola de torcida era a Malandros do Samba, fundada há mais de 50 anos, é a escola mais tra dicional”. Ele sempre participou ativamente do processo criativo das escolas e ajuda, até hoje, dentro dos barracões.

Ao resgatar memórias afetivas do bairro, Herberth não poupa palavras para elogiar sua infância, marcada pelas ruas das Rocas, brin cando de bandeirinha e fazendo seus instru mentos de lata. Esses momentos de sua vida foram importantes na sua socialização, nas amizades e no trabalho coletivo, fazendo parte de sua personalidade. Para ele, a luta do passado é importante para que, hoje, possa ver a comu nidade crescer e se desenvolver.

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MAR DOCE LAR

Pescadores, moradores das Rocas, contam histórias reais sobre viver da pesca

É no Canto do Mangue, lugar popularmen te conhecido por estar próximo ao Mercado de Peixes, onde o dia começa para os pescadores. Localizado no bairro das Rocas, em Natal, o encontro do Rio Potengi com as praias do lito ral potiguar mantém a tradição do pescado há décadas, principal fonte de renda das pessoas que vivem nessa parte da comunidade.

Ivanildo de Lima Gouveia, mais conhecido apenas por Gouveia, é um pescador espirituoso e sucinto, cheio de histórias para contar. Aos 56 anos, deixa claro que a sua vida é estar em alto -mar, com a certeza de que muito se pode extrair das redes jogadas nas águas salinas do Canto do Mangue. Como tem sua trajetória ligada ao mar, ainda hoje, percorre sua vida em um pequeno

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A pescaria, no Rio Potengi e no mar, é uma das principais atividades do bairro KACIA EMYLLY

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barco de pesca, de onde provém seu sustento. Sobre ter conquistado o próprio espaço no Mer cado do Peixe, ele não hesita: “Aqui, todo mundo me conhece, eu sou o Gouveia”.

Gouveia relata os altos e baixos de ser pes cador, sejam eles os contratempos do clima e eventuais fenômenos da natureza, impedindo a circulação de barcos na região, ou a vigilância

que avalia a condição do mar para autorizar a navegação de barcos de pequeno porte, muitas vezes inviabilizando as viagens de pescadores como Gouveia, que dependem da pesca para sobreviver. A realidade precária de alguns bar cos é o principal motivo pelo qual os pescadores

precisam garantir seu bom funcionamento nas idas e vindas do mar. “Manter tudo funcionan do é caro, nem todo mundo consegue arcar com o orçamento”, explica Gouveia.

Ele faz um desabafo direcionado aos ór gãos governamentais, se queixa sobre não ter

Gouveia relata os altos e baixos da pesca, a escolha da sua vida NATANY SILVA

um seguro pelo trabalho que exerce. Arrisca a vida todos os dias, vende barato para os forne cedores e não obtém o lucro que deveria, pois o mesmo peixe é repassado pelo dobro do valor. Apesar disso, admite que gosta do que faz. Hoje, sua vida é o que o mar pode oferecer de susten to, mas ele ainda pensa num amanhã em que não precisará se preocupar tanto com o bolso. Entre as figuras cômicas que podemos en contrar no Mercado do Peixe, uma das mais conhecidas é o Bolinha, apelido de João Ma ria da Silva, antigo fuzileiro naval, que serviu

à Marinha brasileira de 1979 a 1982, até real mente encontrar o seu lugar no mar e na pes ca. Diferentemente de Gouveia, Bolinha não especula um outro futuro em sua vida para além de seu barco.

Ele relembra a época em que, através do extinto projeto social Centro Sócio-Pas toral Sagrada Família, que contava com a parceria de 23 sócios e empresários, con seguiu financiar a embarcação que pos sui até hoje. Entretanto, conta ser o único pescador que finalizou as prestações do

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Bolinha costuma ficar dez dias em alto mar, em seu barco chamado “Yvana” NATANY SILVA

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financiamento e tem, em seu nome, um te souro, lamentando por colegas de trabalho que não conseguiram arcar com os custos. “Foi com meu barco que consegui a casa própria”, ressalta.

Bolinha é um dos pescadores mais co nhecidos e visitados nas Rocas, até mesmo por outros pescadores. Muito desse reco nhecimento é em razão da sua participação na diretoria da colônia dos pescadores, onde também já foi presidente, mas encerrou o seu mandato por falta de tempo, ao dedi car-se integralmente à pesca em alto-mar.

Com uma tranquilidade que diverge do local movimentado onde trabalha, ele trans parece, em cada respiração, o orgulho que sente por tudo o que conquistou e, princi palmente, por ter dado o melhor à família, fazendo aquilo que sempre teve lugar no seu coração. Foi criado na praia, e o contato com o mar o enche de emoção. A experiência na Marinha foi um aprendizado, todavia ele reconhece o barco e a pesca como o ápice da sua vida. Com uma filha dando aula em Monte Alegre, um filho que estuda em uma das melhores escolas de Natal e uma parcei ra, que passou a ser também de negócios, ele diz não ter do que reclamar.

No entanto, sabendo que a vida de pescador não é fácil, Bolinha estabelece as mesmas críticas que Gouveia em rela ção aos custos de manutenção da ativida de. Diz ser caro, mas que boa parte do que precisa ser feito em equipamentos e mão de obra, aprendeu a fazer sozinho, o que garante menos gastos com o funcionamento

de seu barco que, por ser maior, requer ain da mais atenção.

Parar com o trabalho está fora de co gitação. Por isso, ser rentável se tornou a melhor alternativa. Bolinha também recla ma do combustível, cujo valor tem sofrido reajuste quase semanalmente, o que atra palha o controle de renda daqueles que não podem bancar aumentos significativos.

Sobre os perigos da rotina no mar, ele faz uma pontuação curiosa sobre os grandes navios, na maioria das vezes, comandados por estrangeiros. Segundo Bolinha, devido à falta de sinalização, acabam provocando acidentes no meio do mar, ao serem dire cionados aos barcos menores. Por isso, os pescadores precisam estar atentos à movi mentação dos navios para evitar possíveis danos. Ele conta que há um conhecido na região encarregado de manter contato com os falantes de outra língua, pedindo para que desviem da rota ou sejam cuidadosos quando alguns barcos pequenos estiverem nos arredores da praia.

Do Gouveia ao Bolinha, o amor que os pescadores nutrem por navegar transpare ce, assim como a beleza no litoral. A pele queimada do sol, o cheiro forte do peixe e os obstáculos de ter o mar como segundo lar são circunstâncias que fazem parte da vida. Para além da necessidade da subsistência, eles buscam dar conta do trabalho exaustivo, sem perder o senso de humor, e trazer do rio e do mar muito mais do que peixe para vender, mas, sim, boas histórias para contar.

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DIREITOS HUMANOS

DIREITOS HUMANOS NATUREZA, TRABALHO E SUSTENTO

Afazeres na Aldeia Katu giram em torno da subsistência e do cuidado com a floresta para resistir às ameaças externas

Por Cecília Batalha e Mylla Acsa

Por muitas décadas, foi passado de gera ção para geração que não existiam indígenas no Rio Grande do Norte, que eles haviam sido dizimados por guerras e epidemias. Até mesmo Câmara Cascudo, um dos mais respeitados pes quisadores do folclore e da etnografia no Brasil, encerra o capítulo sobre indígenas norte-rio grandenses, no seu livro “História do Rio Gran de do Norte”, apontando: “Em três séculos toda essa gente desapareceu. Nenhum centro resistiu na paz às tentações d’aguardente, às moléstias contagiosas, as brutalidades rapinantes do con quistador. Reduzidos foram sumindo misterio samente, como que sentindo que a hora passara e eles eram estrangeiros na própria terra”.

No entanto, com o passar dos anos, evi denciou-se que esse “sumiço” dos indígenas, aconteceu em decorrência da violenta perse guição dos colonizadores da época. Muitos povos migraram para outras regiões, alguns negaram sua própria identidade étnica, para evitar a política cruel daquele momento. Porém, nos últimos anos, amparados pela Constituição

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RAIANE MIRANDA O Cacique Luiz Katu ensina sobre a natureza

DIREITOS

Federal, diversos povos vêm se reorganizando e tomando de volta suas terras por direito. Um exemplo são os indígenas Katu, que se identi ficam como Potiguaras por se definirem como famílias descendentes dos Eleotérios.

A Aldeia Katu situa-se em dois municípios, Canguaretama e Goianinha. De acordo com o cacique Luiz Katu, a origem da aldeia vem do aldeamento de Igramació, no século XVIII, su bindo entre Sibaúma e Barra de Cunhaú, onde deságua o rio, até as nascentes de mata fechada.

Os moradores lutam para suas terras se rem reconhecidas e, junto com os habitantes da Aldeia Sagi Trabanda, reivindicam para que seu território seja demarcado. De acordo com o Artigo 231 da Constituição Federal de 1988, “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tra dicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

A Aldeia Katu conta com cerca de 270 fa mílias, totalizando quase mil pessoas. A maior parte do sustento da comunidade vem da agri cultura familiar. Os moradores plantam, colhem, consomem e vendem seus próprios produtos. São hortaliças, macaxeira, mandioca, batata, produção desenvolvida pelo próprio grupo fa miliar, na área próxima ao rio, chamada de Páu. Alguns poucos indígenas e não indígenas que vi vem na Aldeia trabalham fora, como terceiriza dos em empresas, indústrias e nos canaviais, os quais tanto ameaçam o território desses povos.

A Aldeia fica próxima a esses canaviais que, segundo os moradores de Katu, contaminam as

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águas e o solo com agrotóxicos, destroem suas plantações, desmatam, incendeiam e ameaçam a vida da população. No entanto, por ainda ha ver poucas oportunidades de trabalho, muitos indígenas se veem sujeitos a esse trabalho.

Entretanto, o cacique Luiz Katu tem busca do estratégias para que os trabalhadores exer çam funções que não afetem negativamente a natureza e, por consequência, a comunidade. “Já que muitas vezes a agricultura familiar não consegue manter o sustento da família, muitos indígenas optam pelo trabalho com a cana-de -açúcar, que tanto explora a nossa região. No entanto, isso está melhorando. Estamos nos reu nindo e produzindo objetos que sirvam para a venda, e isso deixa uma renda extra, fora a agricultura familiar; consequentemente faz com que muitos acabem indo produzir e vender, ao invés de trabalhar com a cana”, esclarece.

Junior Katu, agricultor da Aldeia, desenvol ve suas atividades na roça, com destaque para o plantio, a colheita e o transporte de batata, macaxeira e milho, além de outras culturas. No inverno, explica Junior, o trabalho se modi fica, sendo acrescentada a plantação de fava e a preparação da terra para o cultivo do inhame e a colheita da mangaba. Outra ocupação é o trans porte dos produtos internamente e para a venda externa, que exige plantões noturnos e vigílias.

ALDEIA MOVIMENTADA

Professores, técnicos e outros profissionais também fazem parte do cotidiano da Aldeia Katu. O etnoturismo é uma das mais fortes

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novas estratégias de sustento e, de acordo com o cacique Luiz Katu, de resistência para a região. É com visitas dos mais diversos públicos que os aldeões podem girar sua economia, através de trilhas, da culinária e das vendas de artesanato e demais produções locais. Há, em média, dez artesãs na comunidade.

Além disso, as festas tradicionais aconte cem frequentemente e atraem ainda mais os que buscam por uma experiência singular. Um exemplo é a Festa da Batata, que ocorre em 1 de novembro, no Dia de Todos os Santos. “A gente fortalece a agricultura familiar, faz o concurso da maior batata. Os agricultores se incentivam e se estimulam para produzir a melhor bata ta possível e ser coroado o agricultor do ano”, comenta Luiz Katu.

As alternativas criadas têm dado resultado, fazendo com que cerca de 80% dos aldeões tra balhem dentro da comunidade e apenas 20%, externamente, o que é interessante para fomen tar o crescimento da aldeia.

O BEM VIVER KATU

Em seu livro “O Bem Viver - uma oportu nidade para imaginar outros mundos”, o autor equatoriano, Alberto Acosta, descreve bem vi ver como um “processo proveniente da matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com a Natureza”. É uma forma de ver o mundo, repensando as relações entre seres humanos e seres não-humanos, a fim de criar uma reali dade mais justa para todos. Essa filosofia nas ceu em sociedades indígenas latinoamericanas, principalmente no Equador e na Bolívia, mas não se limita a esses povos. Ela é uma contribui ção para a diversificação de narrativas ao redor do mundo, podendo ser aplicada a qualquer sociedade oprimida.

Na Aldeia Katu, aplica-se essa política do bem viver. Tudo é partilhado e repartido igualmente entre os moradores. Quando um necessita, todos se movem. Quando necessá rio, fontes externas (como ONGs, projetos e instituições de apoio) destinam recursos para sanar as necessidades. Desfrutando da mãe natureza e de tudo que ela oferece, Katu vive e resiste com veemência.

“Isso torna o povo indígena realmente in dígena, o sentimento de pertencimento, o se ajudar. ‘Eu só me sinto bem se você estiver bem

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ARQUIVO PESSOAL Junior, agricultor da Aldeia, e sua esposa Dora, na entrada de Katu

também’, essa é a política do bem viver que nós pregamos. Quem planta na agricultura familiar, antes de vender na feira livre, já comercializa in ternamente com seu parente, para que ele possa vender também”, expressa o líder da aldeia.

Os indígenas da Aldeia Katu são uma famí lia, por isso se chamam de parentes. “Aqui so mos uma família só. Todos nós nos chamamos de parente. É apenas uma Aldeia, então somos todos irmãos”, afirma o agricultor Junior.

De modo geral, o objetivo dos líderes e de todos é que o trabalho da sua população seja,

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ao máximo possível, internalizado. Para que a renda circule dentro da própria comunidade, o ideal é que todos possam exercer suas funções profissionais dentro de sua própria região, des tacando os recursos dados pela natureza que os envolve. “Isso é uma estratégia de resistência, de não se submeter a essa escravidão moder na, implantada para convencer você, inclusive, a abandonar o seu território tradicionalmente ocupado. Você tenta voltar a ele, mas ele já não existe mais”, explana Luiz Katu.

RAIANE MIRANDA Luiz Katu em momento de ensino aos visitantes da aldeia, em ação de etnoturismo

RAÍZES DA APRENDIZAGEM

Indígenas potiguara enfrentam caminho de luta e resistência para ter acesso à educação

“Eu estudo para defender a mãe terra”, é o que diz Meyriane Costa ou, em tupi, Guayumi Potiguara, licenciada em Educação do Campo e mestranda em Antropologia Social na Universi dade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Há dez anos integrante da comunidade Katu, de etnia Potiguara, localizada em Canguare tama e Goianinha, Meyriane traçou um longo caminho em busca de sua formação e identida de. Filha de pai branco e mãe indígena, ambos

pescadores, ela teve uma educação tradicional em Natal. Sem condições para pagar a passagem do transporte público, andava 7 km de sua casa à Escola José Fernandes Machado, em Ponta Negra, onde terminou o Ensino Médio. “Não foi muito fácil, foi bem desafiante”, recorda. Por dois anos, ela tentou ingressar no ensino superior através do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), sem sucesso. Decidida a mudar sua trajetória, buscou por seu passado indígena. Seu interesse pela língua tupi e as histórias que escutava na infância despertaram sua curiosida de, levando-a a conectar-se com suas raízes. “Como habitante da costa, a gente cresce ouvindo várias palavras comuns do cotidiano indígena. Então, eu fazia muitas perguntas, mas nunca obtinha respostas. Não entendia que ha via um apagamento da memória ancestral no RN potiguara como povos da costa”, aponta ela. Descobrir o livro “Método Moderno de Tupi Antigo”, do professor de Tupi Antigo da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo de Almeida Navarro, na biblioteca municipal de Goianinha, foi um divisor de águas. “Com preendi muita coisa da nossa história”, relata Meyriane. Esse livro tem o objetivo de ensinar a língua indígena clássica do Brasil e abordar

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Meyriane Costa se conectou com suas raízes indígenas para chegar ao mestrado ARQUIVO PESSOAL

sobre a sua importância na construção do vo cabulário do país.

MUDANÇA DE VIDA

Apesar de sua família pertencer a outro tronco indígena, de Extremoz, o despertar de sua ancestralidade se deu na Assembleia da Ju ventude, em 2012, no município de João Câma ra (RN). Meyriane também teve oportunidade de realizar algumas visitas à comunidade Katu, onde conversou com o cacique e os anciãos. Um ano após, em 2013, ela se mudou para o muni cípio de Canguaretama e depois se aldeiou na comunidade. No Katu, ela começou a frequen tar as escolas como voluntária, auxiliando as crianças, e a estudar a língua tupi.

A mudança em sua trajetória se iniciou com a construção do campus de Canguaretama do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN). “Um dia, eu fui expor artesanato, era a abertura do campus, e alguns professores do IF central colocaram o olho em mim e disse ram: ‘Você precisa voltar a estudar’’’, relembra, emocionada.

A partir daí, ela começou a participar do Mulheres Mil, programa canadense com ob jetivo de promover a formação profissional e tecnológica, junto ao aumento da escolarida de, de mulheres em situação de vulnerabilida de social. Após seis meses do Mulheres Mil, voltou a estudar para o vestibular. Em 2016, passou para Gestão em Turismo, no IFRN, mas não se matriculou. “Eu sentia que ain da não era aquilo. Porém, estava feliz por ter

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passado”, revela. Sua educação seguiu se forta lecendo após cursar Licenciatura em Educação do Campo (Ledoc), em 2017, no IFRN, para contribuir com sua comunidade, e participar do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indí genas, também no IFRN.

Assim como no início de sua formação, as raízes indígenas mostraram, mais uma vez, o caminho que ela deveria seguir. Durante um incêndio criminoso em sua aldeia, segundo ela provocado pelas usinas, que fez o fogo se espa lhar da cana para a nascente do rio, Meyriane passou a escrever todas as memórias de seu povo em relação à mata e a ler autoras indí genas. A partir dessas anotações, foi capaz de redigir um projeto para o mestrado em Antro pologia Social para Povos Indígenas, Quilom bolas e Ciganos, na UFRN, que fez as portas da universidade se abrirem mais uma vez.

“Ter mais indígenas aqui seria um fortale cimento, um apoio. Eu fico muito feliz quando vejo outros indígenas que vieram para o mes trado antes de mim! É maravilhoso, porque, se eles conseguiram, eu vou conseguir também”, diz Meyriane, ressaltando a importância de ha ver cada vez mais indígenas em universidades.

DESAFIOS NA EDUCAÇÃO DOS INDÍGENAS

A história de Meyriane é uma dentre as de zenas que existem, envolvendo a trajetória cheia de desafios que os povos indígenas enfrentam para alcançarem o ensino universitário. De acordo com o Censo da Educação Superior,

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a quantidade de estudantes que se autodeclaram indígenas em universidades deu um salto entre 2010 e 2018, passando de 7 mil para 57.706, respectivamente.

A Lei de Cotas, criada em 2012, que garan te a reserva de um número de matrículas em universidades federais a alunos que se autode claram negros, indígenas ou pardos, é um dos principais, senão o principal, fator que contri buiu para o aumento desse número.

Apesar do crescimento desse percentual, o sistema de cotas ainda é insuficiente. “Mes mo com os avanços que já ocorreram, em que vemos os resultados com a presença indígena no ensino superior, as cotas não alcançam a quantidade de indígenas aptos a entrarem na universidade”, diz a integrante da Articulação de Mulheres Indígenas da Paraíba e doutoran da em Ciências das Religiões pela Universida de Federal da Paraíba (UFPB), Iranilza Cinesio. Segundo ela, o próprio sistema de seleção do Enem não é abrangente nem para metade da quantidade de indígenas aptos. O número de vagas é muito inferior em relação à quantidade de indígenas concorrentes.

Outra questão é a permanência no ensino superior. Em 2013, foi aprovada a lei da Bolsa Permanência, valor que os estudantes indígenas e quilombolas recebem mensalmente para se manterem na universidade. No entanto, a lei passou por várias mudanças desde o governo Michel Temer.

“Desde o início, o edital era aberto sem um total específico de vagas. Então, todas as pes soas que atendessem aos critérios poderiam se inscrever para concorrer à bolsa. Porém, houve

Iranilza Cinesio, é através da educação escolar indígena que o seu povo tem a oportunidade de contar a própria história e fortalecer sua identidade étnica

uma mudança e passaram-se alguns anos sem publicação desse edital. No início de 2022, o nú mero de bolsas ofertadas foi absurdamente pe queno, não atendendo a quantidade de indíge nas que estão na universidade”, informa Iranilza.

Em 2022 o Ministério da Educação (MEC) ofereceu apenas 2 mil bolsas para uma lista de 5.278 mil estudantes que declararam precisar de auxílio para manter a frequência no curso. Número que já chegou a ter 24 mil beneficiá rios, em 2017.

A doutoranda enfatiza que não existe um acompanhamento das pessoas indígenas que entram nas universidades e que as instituições não estão preparadas para recebê-las. “Elas não

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Para ARQUIVO PESSOAL

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dialogam com a população indígena, ignoram a presença desses estudantes, o que dificulta mui to a permanência deles”, avalia.

ENSINO BÁSICO

As dificuldades educacionais indígenas não se limitam apenas ao ensino superior. São duras as batalhas que também enfrentam na educa ção de base. De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica de 2020, existem hoje, no Brasil, 3.359 mil escolas indígenas. Ainda de acordo com o Censo, metade delas não possui esgoto sanitário, um terço (30%) não conta com energia elétrica e 75% não têm acesso à internet.

Além dos problemas de infraestrutura, o material didático representa um grande desafio também. O censo aponta que menos da metade (48%) recebe material em língua indígena, ape sar de a maioria (74%) ministrar aulas em sua língua nativa. Pelo grande número de culturas e línguas distintas entre os próprios povos indíge nas, os materiais precisam equilibrar elementos do currículo nacional com as especificidades da cultura na qual a escola está inserida, ou seja, o idioma da população local e seus conhecimen tos tradicionais.

As escolas indígenas precisam batalhar para serem legalizadas e oficializadas, o que registraria sua existência e validaria seu tipo de ensino, pelo MEC, permitindo que elas recebam verbas e materiais escolares do Governo Fede ral. “O processo para legalizar e tornar a escola vista foi muito doloroso, de luta, principalmen te para as lideranças que encabeçaram a luta”,

recorda Luiz Katu, cacique da comunidade Katu e professor da Escola Municipal Indìgena João Lino da Silva, primeira escola indígena a ser oficializada no estado do Rio Grande do Norte.

Em 2012, eles já estavam lutando para o seu trabalho na escola ser reconhecido pelo Governo. Sem sucesso, decidiram pressionar os órgãos públicos. Com isso, conquistaram a primeira audiência pública de educação in dígena do Estado, para se falar e ter um olhar sobre esse tipo de educação. Após três anos de espera, em 2015, foi oficializada a legalização da escola, que, atualmente, conta com 113 alunos matriculados, entre educação infantil e ensino fundamental. A instituição de ensino também realiza a educação escolar indígena, que consis te na interculturalidade entre os conhecimentos culturais e tradicionais indígenas com os conhe cimentos estabelecidos pela educação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

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Primeira escola municipal indígena do RN reconhecida pelo MEC, localizada na Comunidade Katu, Canguaretama RAIANE MI RANDA

SAÚDE É DIREITO DE TODOS

Apesar de constitucional, a atenção à saúde dos povos indígenas sofre com descaso e assistência incompleta

Você sabia que o Sistema Único de Saúde (SUS) é pautado em três princípios? São a uni versalidade, a integralidade e a equidade. Mas o que é isso, na prática? A universalidade prevê que o Estado assegure o direito à saúde a todas as pessoas, independentemente de raça, cor, ocupação, nacionalidade, orientação sexual, etnia, entre outros. A integralidade é a garantia de que o usuário será atendido em todos os ser viços de saúde, conforme sua complexidade, em

todo o âmbito nacional. Já a equidade tem por objetivo diminuir os aspectos da desigualdade, realizando atividades e ações de saúde de forma diferente, para públicos diferentes, levando em consideração suas necessidades específicas. Isso significa que todos os brasileiros têm direito à saúde. Inclusive os povos indígenas. Além de estar no Art. 7º da Constituição Fe deral, esse direito fundamental ganhou reforço com a Política Nacional de Atenção à Saúde dos

Luiz Katu e Pajé Guaraci guiam trilha pela aldeia; sabedoria do pajé é fundamental para comunidade, como curandeiro, conselheiro e intermediário espiritual

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RAIANE MIRANDA

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Povos Indígenas (Portaria n° 254, de janeiro de 2002), que assegura políticas públicas e ações de saúde para esse grupo. A implementação da política considera o atendimento de que a po pulação indígena necessita e a organização da prestação do cuidado, da promoção, prevenção, recuperação e tratamento desses povos.

Entretanto, a realidade, longe do que diz o papel, é bem diferente. No caso da Aldeia indíge na Katu, que fica localizada entre os municípios de Canguaretama e Goianinha, a saúde é tratada de forma convencional e não diferenciada dos povos não-indígenas. Para o cacique Luiz Katu, trata-se de um grande desafio, pois a não pres tação do cuidado especializado coloca a popu lação indígena em vulnerabilidade, levando em consideração as especificidades dos indígenas.

A população indígena do RN, desde 2019, foi desligada do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), ligado ao estado da Paraíba. “Portanto, essas pessoas ficaram sem assistência especial à saúde e sem o devido monitoramento, que deve ser garantido pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, localizado no Ministério da Saúde”, afirma a subcoordenadora da Unidade de Políticas Transversais e Promoção à Saúde (UPTPS), ligada à Secretaria de Saúde Pública do Rio Grande do Norte (Sesap), Paula Érica Batista de Oliveira. Segundo ela, em 2019, lide ranças indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Serviço Especial de Saúde Pública (S esp), após discussão sobre esse panorama, encaminharam, ao Ministério da Saúde, a soli citação de implantação de um Distrito Sanitário Especial Indígena no Estado. “No entanto, até

o presente momento, não obtivemos resposta”, revela a subcoordenadora.

O Distrito Sanitário Especializado Indíge na (DSEI), criado pelo Ministério da Saúde, atua como unidade descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. O modelo permite a organização de um serviço para um espaço etno-cultural, geográfico e populacional de que a população indígena necessita. No Brasil, há 34 unidades do DSEI. No Nordeste, os estados contemplados são Maranhão, Sergipe, Alagoas, Bahia, Pernambuco e Ceará. Apenas Rio Grande do Norte e Piauí não possuem o subsistema.

Luiz Katu afirma que o DSEI chegou a ser instalado no Rio Grande do Norte, entretanto, só permaneceu durante dois anos, até a entrada do governo Jair Bolsonaro, em 2018. Na Aldeia, a equipe do Distrito Sanitário realizou cadastro familiar, levantamento de grupos etários, além de contar com equipe multiprofissional, com visitas domiciliares e atendimentos especiali zados para toda a aldeia. O cacique enaltece a necessidade de retornar aos atendimentos es pecializados dentro das aldeias, assegurando a cultura local, como o trabalho das parteiras, das raizeiras, dos pajés, pois fará grande diferença para toda a população indígena.

LIMITAÇÃO NOS ATENDIMENTOS

A comunidade Katu conta com duas Uni dades Básicas de Saúde (UBS), que não atendem diariamente a população. O atendimento médi co, odontológico e de enfermagem é realizado

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apenas uma vez por semana, na contramão do que a Portaria n° 397/2020 regulamenta, uma vez que ela estabelece que as UBS funcionem 40 horas semanais, no mínimo, cinco vezes por semana, nos 12 meses do ano.

Em casos de alta ou média complexidade, o local mais próximo para ser atendido é São José de Mipibu, a 60 km da aldeia Katu, ou 80 km para o hospital Walfredo Gurgel, em Natal. Para casos de menor complexidade, fica em média de 10 a 15 km, no centro de Canguaretama, ou em Goianinha. A aldeia não possui ambulância, e o deslocamento tem que ser feito em carros de parentes ou em veículos locados, o que repre senta um gasto de 70 reais.

A dificuldade de oferecer assistência às populações indígenas no RN também é re conhecida pela UPTPS. A subcoordenadora Paula Oliveira lista os principais desafios en frentados: a inexistência de registros oficiais acerca da presença indígena nos municípios; a subnotificação dos riscos e agravos relacionados à saúde da população indígena do RN; a falta, por parte dos municípios, de programas e ações específicos voltados à saúde da população indí gena; ausência de capacitações, formações e/ou

educação permanente em saúde voltadas aos profissionais da rede; subnotificação do quesi to raça-cor-etnia; inexistência de um DSEI no RN e a ausência de apoio e monitoramento por parte da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão responsável por coordenar e exe cutar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.

MEDIDAS NA PANDEMIA

Durante a pandemia do novo coronaví rus, a situação se agravou e a comunidade Katu agiu como foi possível para se proteger. Logo de imediato, realizou barreiras sanitárias, a fim de evitar o contato entre residentes da aldeia e pessoas de fora da comunidade, levando em consideração que o poder público não direcio nou cuidados à população indígena, conforme informa o cacique.

Os impactos foram muito grandes, tanto na saúde dos indígenas, quanto na subsistência da aldeia. As pessoas que vivem da agricultura familiar foram surpreendidas com o fechamen to das feiras livres, o que gerou grande prejuízo

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Posto de apoio da comunidade Katu RAIANE MIRANDA

DIREITOS HUMANOS

para toda a comunidade. Após protestos nas redes sociais, Luiz Katu afirma que os gover nantes começaram a ter um olhar mais sensível e cuidadoso para os povos indígenas, como a distribuição de máscaras e álcool em gel.

Desde o início da pandemia até a primeira quinzena de outubro de 2022, a Sesai registrou, no Brasil, 69.514 casos de Covid-19 e 928 óbitos de indígenas. Na Aldeia Katu, houve o registro de, aproximadamente, 40 casos, com um óbi to, totalizando seis óbitos de indígenas no Rio Grande do Norte. Diante da emergência sanitá ria, a Sesap, através da UPTPS, em parceria com lideranças indígenas, áreas técnicas da saúde, intersetorialidade e instituições de ensino, lan çou um plano de enfrentamento à Covid-19, voltado à população indígena.

“A princípio, o Ministério da Saúde não inseriu os povos indígenas do RN no seu plano nacional de imunização. Foi necessária uma verdadeira mobilização junto às lideranças, se cretarias municipais de saúde, Funai, Ministério

Público, Coordenadoria de Promoção da Igual dade Racial (Coeppir), Coordenação Estadual de Vigilância em Saúde e Subcoordenadoria de Atenção Primária em Saúde, para alterarmos essa definição e garantirmos proteção, preven ção e imunização da população indígena”, in forma Paula Oliveira.

Garantir ações e serviços de saúde é um fa tor constitucional, portanto um direito de todos e dever do Estado. A regionalização das ações de saúde é outro fator que deve ser levado em con sideração para abarcar a saúde da população. Levando em consideração todos esses aspectos legais que corroboram para uma prestação de saúde universal, integral e equânime, as Políti cas de Saúde têm por finalidade a necessidade de estabelecer esses princípios e reorganizar a prestação de saúde para a população indígena, o que requer um envolvimento multisetorial. Enquanto isso, a comunidade Katu segue sua luta pelo direito de sobreviver com dignidade.

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Luiz Katu demonstra como são usados alguns dos remédios naturais na aldeia RAIANE MIRANDA

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