Tomás Maia e Rita Roberto, «Clamor»

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a qualquer língua aprendida, o ruído específico dos humanos é este estranho apelo que apenas a alegria genital espontaneamente reencontra e relança para o ar no instante em que as sementes se escapam num jorro. Lançamento do grito no espaço externo. Invenção da voz como alívio da desolação natal misturada com a expressão da dor (vinda do mundo externo) e com o desencadear (no mundo interno daquele que apela) da ventilação involuntária imediatamente seguida da respiração. É a psychè.» (Pascal Quignard, L’Origine de la danse) Estranho apelo que nada pede senão nascer. Tal é o clamor. Os que pediram para não morrer inventaram a religião, os que suplicaram para nascer inventaram a arte. Não querer morrer é engendrado pelo medo e engendra o tempo do medo — uma qualquer escatologia. Não ter nascido — nunca ter nascido (como dizia Clarice Lispector) — é condição de um passado absoluto e abre o tempo da origem — que é a origem do tempo, o perpétuo nascimento. (Não querer morrer confundiu-se historicamente, e por vezes confunde-se ainda, com a súplica do nascimento. Para alguns, a arte é a religião derradeira.)

Linguagem (I) «Fama» — a palavra latina que Ovídio emprega no Livro XII — não tem à partida qualquer conotação (positiva ou negativa): significa somente «o que se diz de alguém». Num certo sentido, ela corresponde à expressão popular «bocas do mundo» 70


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