Callas e os Seus Duplos — Metamorfoses da Aura na Era Digital

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callas e os seus duplos

Imagem obtida na plataforma Craiyon a partir da instrução «An image of Maria Callas in the style of Andy Warhol»

João Pedro Cachopo

CALLAS E OS SEUS DUPLOS

metamorfoses da aura na era digital

Trabalho realizado no âmbito do contrato da Norma Transitória – dl 57/2016/cp1453/ct0059 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

© João Pedro Cachopo, 2023

© Sistema Solar crl (Documenta) Rua Passos Manuel 67 b, 1150-258 Lisboa

1.ª edição: Outubro de 2023

isbn: 978-989-568-114-3

Capa: Imagem obtida na plataforma Craiyon

Revisão: António d’Andrade

Depósito legal: 522449/23

Impressão e acabamento: Tórculo

Kateryna
para a

Nessuno può doppiare la Callas.

Teatro dell’Opera di Roma

Índice Prólogo: Callas hoje ............................ 13 1. De volta ao Arena de Verona .................. 23 2. Sentidos da aura ........................... 31 3. Artista e mulher nas suas próprias palavras ........ 53 4. Um concerto ao vivo com uma cantora morta ...... 73 5. Do mito: fuga ou variações? ................... 93 6. A diva está presente ......................... 113 7. Dueto póstumo ............................ 139 8. Retratos do intérprete enquanto génio ........... 157 9. Mil e uma noites no cinema ................... 175 10. A estátua e o enxame ........................ 197 Epílogo: Porquê Callas? ......................... 213 Referências .................................. 223 Agradecimentos .............................. 229

Callas hoje

Quase meio século após a morte de Maria Callas (1923-1977), o mito da cantora persiste. Na verdade, a julgar pelos últimos anos, dir-se-ia que vai de vento em popa, que se intensifica de modo surpreendente. Novos livros, novas exposições, novos documentários vêm a lume. A fama da cantora alastra do mercado discográfico e da imprensa tradicional ao universo de plataformas como o YouTube, o Spotify, o Facebook, o Instagram e o Twitter. Surgem, além disso, projectos de outra índole, inéditos na sua complexidade tecnológica e singularidade artística: um dueto virtual, uma exposição multimédia, um espectáculo holográfico, uma ópera-performance. A intensificação, portanto, não é de ordem meramente quantitativa. Salda-se numa diversificação de meios e formatos. O mito ganha outro tom e outro ritmo à entrada do século XXI.

Neste contexto de efervescência cultural e tecnológica, marcada por um curioso enlace entre nostalgia e inovação, Callas e os Seus Duplos não é um livro — mais um livro — sobre Maria Callas. O seu propósito não é revelar a verdade oculta sobre a artista, revisitar as etapas decisivas da sua carreira, sublinhar os traços fundamentais do seu legado, esclarecer o mistério da sua voz ou reavivar a sua memória. Tão-pouco, num ano em que se comemora o centenário do seu nascimento, se trata de uma homenagem àquela que muitos consideram a mais extraordinária soprano do século XX.

callas e os seus duplos 13 prólogo

Sejamos claros, porém. Não foi sem admiração por Callas — admiração pontuada por incontáveis momentos de espanto — que se imaginou e concretizou este livro. Simplesmente, tratando-se de Callas, que os devotos tratam por «Divina», o género do encómio tem já bastantes praticantes. E eu não teria nem a imodéstia de tentar superá-los nem a modéstia de esconder que é outro o meu fito. De resto, a artista não merece a enxurrada de superlativos com a qual os fãs encharcam, ano após ano, o seu culto. Também sobre isso — sobre o que há de contraproducente e, porventura, de equivocado e de perverso na retórica devocional — se debruçam as páginas seguintes.

Não sendo, então, nem uma homenagem nem uma pesquisa de carácter biográfico, embora não prescinda de lançar um olhar retrospectivo sobre o percurso pessoal e artístico da cantora, a singularidade da sua arte e a emergência do seu mito, de que se trata então? Focado num conjunto recente de exposições, documentários, espectáculos, publicações, eventos, filmes, discos e controvérsias, Callas e os Seus Duplos constitui um exame da persistência e da intensificação do mito de Callas no século XXI. É no contexto desse exame que surpreende e examina um paradoxo que, manifestando-se de forma paradigmática nesta constelação de objectos, expressa um estado de coisas mais amplo: a sobrevivência da aura — de um apego aos valores da originalidade, da presença e da autenticidade — numa era dominada pela proliferação vertiginosa e avassaladora de cópias, imagens, réplicas, avatares e duplos. * * *

Como explicar a persistência do mito de Callas em 2023? Como explicar que Callas, em pleno século XXI, continue a exercer um fascínio tão irresistível entre fãs nascidos depois da sua morte?

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Como explicar que, em virtude desse fascínio, se multipliquem os projectos nos últimos anos? Podemos, numa primeira abordagem, evocar fenómenos de distinção social, que continuam a vigorar no mundo da ópera, mas isso não explicaria o foco em Callas, nem o alastramento do seu mito à cultura e ao imaginário populares. Por outro lado, podemos lembrar aspectos marcantes da sua arte e da sua vida.1

Podemos evocar a singularidade das suas interpretações, o rigor das suas leituras, o fôlego da sua entrega em palco. Podemos recordar que Callas transformou a história da ópera, impulsionando a redescoberta do bel canto e o estilhaçamento de fronteiras entre repertórios e registos. Podemos notar que as consequências desta revolução ecoaram para além do domínio da ópera. Além disso, podemos — e devemos — sublinhar que Callas não foi apenas uma artista célebre. Foi também uma mulher na ribalta das artes e na boca do mundo. E os aspectos mais mundanos da sua existência também explicam o mito: desde os escândalos profissionais do período áureo da sua carreira na década de 1950 ao romance, que tanta tinta fez correr a partir de 1959, com Aristóteles Onassis. Finalmente, não há como

1 Entre as biografias de Maria Callas, nas quais muitos dos aspectos do percurso pessoal e artístico da cantora são circunstanciadamente abordados, destaco, por ordem cronológica, Maria Callas: the Woman Behind the Legend (1981) de Arianna Stassinopoulos Huffington; Maria Callas (1993) de Jürgen Kesting; The Unknown Callas: The Greek Years (2001) de Nicholas Petsales-Diomedes; Maria Callas (2009) de René de Ceccatty e Cast a Diva: The Hidden Life of Maria Callas (2021) de Lyndsy Spence. Sobre a sua carreira artística, o seu legado discográfico e a importância de ambos na história da ópera, são de consulta especialmente proveitosa um livro, um artigo e um volume colectivo: The Callas Legacy: The Complete Guide to Her Recordings on Compact Discs (1995) de John Ardoin, «Maria Callas and the achievement of an operatic vocal subjectivity» de Marco Beghelli e Mille e una Callas. Voci e studi (2016), editado por Luca Aversano e Jacopo Pellegrini. Sobre a sua voz, e a mestria de Callas no seu uso, leia-se o recente Maria Callas: Lyric and Coloratura Arias (2022) de Ginger Dellenbaugh.

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não referir a sua voz. Seria a voz de Callas — o timbre inconfundível da sua voz e, ao mesmo tempo, a maleabilidade multiforme das suas vozes — o aspecto decisivo que explica a persistência do mito?

É provável que todos estes factores tenham tido influência, sendo desnecessário e desaconselhável eleger apenas um. Do mesmo modo, não faria sentido escolher, de forma mutuamente exclusiva, entre os factores que concernem à arte e os factores que concernem à vida. Na verdade, ao longo de Callas e os Seus Duplos, procurarei justamente sublinhar que a emergência e a persistência do fascínio por Callas se prende com a indissociabilidade, no imaginário colectivo, entre a mulher e a artista. Contudo, a pergunta pelo que explica a persistência do mito de Callas no século XXI, embora pertinente, não é a única — nem sequer a principal — pergunta deste livro.

Como referi acima, a multiplicação de projectos em torno de Callas nos últimos anos não representa apenas uma persistência mas também uma intensificação. Por si só, portanto, os motivos que explicam a sobrevivência do mito não esclarecem a sua aceleração mais recente. O fascínio poderia manifestar-se de muitas outras formas. Ora, é a configuração específica e paradoxal dos projectos em que esse fascínio se cristaliza que cabe examinar. O que se dá, então, a pensar, não apenas na persistência, mas também na intensificação do mito de Callas hoje? E o que nos diz ele, não apenas sobre Callas, mas também sobre nós — e sobre o nosso tempo?

São do final de 2017, embora na altura não antecipasse escrevê-lo, os primeiros esboços deste livro. Em Outubro desse ano, a caminho de um colóquio em Rennes, visitei a exposição Maria by Callas, então patente no museu La Seine Musicale, nos arredores de Paris,

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* * *

com curadoria de Tom Volf. Espantou-me de imediato o contraste entre a entrada da exposição, onde um conjunto escultórico com múltiplos ecrãs acolhia o visitante, e a previsibilidade do percurso expositivo. Este contraste reflectia a disparidade mais geral entre a multiplicidade dos objectos em que o projecto de Volf consistia — além da exposição, estavam previstos um documentário, três livros e um disco — e o seu princípio unificador: o enfoque nas palavras de Maria Callas, entendidas como garantia de autenticidade.

Mas Callas é uma intérprete. Não bastam os documentos, os testemunhos ou as relíquias, que uma exposição ou um documentário mostram, para captar a singularidade da sua arte. Não bastam, sequer, as gravações, que, ao contrário dos vídeos, abundam. Por melhores que sejam ou fossem os registos audiovisuais, nunca mais — lamentam os devotos, soltando nostálgicos suspiros — assistiremos a uma actuação de Callas. A menos que, com pitadas de imaginação e perlimpimpins de tecnologia, se tornasse de novo possível ver e ouvir Callas ao vivo. É nessa «ficção» que aposta Callas in Concert — um concerto com um holograma da diva, congeminado pela BASE Hologram, que correu mundo, entre o início de 2018 e o início de 2020, quando a pandemia interrompeu a sua carreira.

Também a estreia de 7 Deaths of Maria Callas, um projecto operático de Marina Abramović, teve de ser adiada. Inicialmente agendado para Abril de 2020, o espectáculo só subiu ao palco da Bayerische Staatsoper de Munique em Setembro desse ano, tendo sido transmitido, poucos dias depois, pelo canal ARTE. É também numa ficção — aliás, numa teia de ficções, dado que Abramović representa não apenas Callas mas também as personagens a que ela deu corpo e voz ao longo da sua carreira — que insiste esta ópera-performance. E contudo, apesar do jogo de fantasmas e fingimentos que constitui o espectáculo, é a verdade, a um só tempo carnal

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e espiritual, da presença da artista que sobressai: Abramović incarna Callas em palco. É nessa presença que culmina, aqui e agora, o desfile de ficções.

Num ano em que se comemora o centenário do nascimento da cantora, poderíamos perguntar: o que têm em comum estes projectos, de que trataremos mais detidamente nos capítulos 3, 4 e 6, para além de demonstrarem a efervescência do mito de Callas nos últimos anos? Há algo mais a dizer, além de constatar a sua diversidade? A suspeita que atravessa este livro é a de que une estes projectos, não apenas a disposição para recorrer às mais diversas tecnologias audiovisuais no intuito de evocar a memória e o legado de Callas, mas também um peculiar apego aos valores da originalidade. O seu alfa e o seu ómega são, respectivamente, o testemunho original de Callas (em Maria by Callas); a experiência original do espectáculo ao vivo (em Callas in Concert); a presença, o destino e o carácter originais da artista (em 7 Deaths of Maria Callas).

O mesmo se aplica aos restantes objectos, eventos e controvérsias abordados nos capítulos 1, 7, 9 e 10. O atractivo do evento expositivo no Arena de Verona seria o de ligar imaginariamente a originalidade de um lugar, de uma data e de um objecto. O «dueto póstumo» entre Callas e Angela Gheorghiu condenaria a segunda a comparações embaraçosas. Que o vínculo original entre corpo e voz se rompa na Medea de Pier Paolo Pasolini continua a inquietar os críticos até hoje. Finalmente, a escultura de Callas, erigida em Atenas em 2021, não captaria nem a aparência, nem a postura, nem o carisma do modelo — sendo por isso, e não em virtude de uma reflexão crítica sobre o destino da estatuária no século XXI, que a maior parte dos críticos a censurou.

Estas apreciações tornam evidente como o critério da fidelidade ao original permanece a bitola em torno do qual se arregimentam os

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devotos, admiradores e estudiosos da diva. Mas não esgotam o que há a dizer sobre estas recentes manifestações do mito de Callas. E, cabe acrescentar, não correspondem ao que de mais pertinente ou instigante há a dizer sobre qualquer um deles. Ao longo deste livro, procurarei fazer-lhes justiça, embora de um modo que nem sempre — na verdade, quase nunca — coincide com o discurso dos seus promotores ou entusiastas.

* * *

É bem conhecida a hipótese de Walter Benjamin, segundo a qual, ao tornarem a experiência da obra de arte independente da presença do original, as novas tecnologias de reprodução da imagem e do som teriam um potencial desmistificador e emancipatório, enfraquecendo a disposição para o culto e fomentando novas formas de apropriação. É o tema da «queda da aura»2. Ora, como refiro no capítulo 2, se os efeitos estéticos e políticos da reprodutibilidade técnica são concebíveis no âmbito das artes visuais, são-no também, como Benjamin também sugere, no âmbito das artes performativas. Assim, não deveriam — surge a pergunta — manifestar-se num caso, como o de Callas, em que o culto, aliado aos valores da fidelidade ao original, da autenticidade e da presença, está tão entranhado?

Callas é venerada. Em que medida é possível distinguir a artista da mulher no contexto das loas que lhe cantam os fãs é outra das questões deste livro. Certo, em qualquer caso, é que o mito é

2 Walter Benjamin, «A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica (3.ª versão)», A Modernidade, trad. João Barrento (Lisboa: Assírio & Alvim, 2017), pp. 207-241.

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problemático a vários níveis, que envolvem questões sociais e políticas, bem como de género. Não penso apenas nos efeitos perversos do culto — que afectam, sempre que a adulação devém fanatismo, todas aquelas e todos aqueles que o talento, a dedicação e as circunstâncias elevaram ao estatuto de «diva», «estrela» ou «fenómeno». Penso, igualmente, numa certa equiparação entre o destino de Callas e o das personagens trágicas — Tosca, Violetta, Medeia — que a cantora interpretou. Esta equiparação, como sugiro no capítulo 5, onde me detenho nos estudos callasianos de John Ardoin, René de Ceccatty e Marco Beghelli, dá ao mito da intérprete um cunho sacrificial no qual o contacto entre a vida e a arte se torna radioactivo.

É possível admirar Callas sem flirtar com a ideia de que a excelência da artista está ligada ao sofrimento da mulher? Há forma de escapar à lógica do sacrifício que a retórica do nec plus ultra — do inigualável, do irrepetível, do inalcançável — contém em gérmen?

É possível emancipar a admiração do culto? E que papel podem desempenhar os meios de reprodução tecnológica na desconstrução de um mito norteado pela obsessão pelo original? Retomo estas perguntas, que animam o livro como um todo, no Epílogo. De forma preliminar, no capítulo 8, cotejo os perfis artísticos a um só tempo contrastantes e complementares, na sua associação ao palco e ao estúdio, de Maria Callas e Glenn Gould. Assim, abordo de passagem um outro problema: a especificidade da acção do intérprete, a par do compositor, como reinventor das obras que executa e a importância da distinção entre originalidade e singularidade no esclarecimento da sua tarefa na era da inteligência artificial.

Há não muito tempo, Philip Auslander evocava o «triunfo histórico» da reprodutibilidade técnica. Segundo o teórico norte-americano, «a aura, a autenticidade e o valor de culto foram definitivamente destronados, mesmo na performance ao vivo, que outrora parecera

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o último refúgio do aurático»3. A afirmação de Auslander está em consonância com a visão hoje generalizada, segundo a qual os novos meios digitais conteriam, não obstante os seus perigos éticos, sociais e políticos, um potencial de democratização cultural indiscutível. Ora, à luz dos projectos que abordaremos neste livro, torna-se claro que o diagnóstico da «queda da aura» — que, convém ser claro, quer Benjamin quer Auslander mobilizam de forma crítica — tem tanto de promessa quanto de equívoco.

Hoje, quando a remediação digital toma o lugar da reprodução mecânica, proliferam, efectivamente, as imagens, os avatares, os duplos. Contudo, esta proliferação de cópias, que, segundo a intuição de Benjamin retomada por Auslander, precipitaria o declínio da aura, incentivando modos de fruição e experiência artísticos avessos ao culto, permanece paradoxalmente alinhada com os valores da originalidade: o mito da autenticidade, a hierarquia entre imediatez e mediação, o fascínio pela presença. De um tal paradoxo, são as recentes mutações do mito de Callas uma manifestação paradigmática. É dele que tratarei nas páginas que se seguem.

3 Philip Auslander, Liveness: Performance in a Mediatized Culture, 2.ª ed. (London: Routledge, 2008), p. 55.

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De volta ao Arena de Verona

1. Demoremos o olhar num pormenor da Fig. 1.1. Encostada ao espelho de um camarim do Teatro alla Scala em Milão, onde Maria Callas, prestes a interpretar Iphigénie en Tauride de Gluck, ajeita um colar de pérolas, entrevemos, desfocada, uma pintura. Trata-se de um trabalho do artista veronense Giambettino Cignaroli (1706-1770), seguidor da escola veneziana de Ticiano e Veronese e autor provável do célebre retrato de Mozart aos treze anos. Nesta miniatura, copiando uma tela do seu mestre Antonio Balestra, num formato adequado ao culto privado, o pintor retoma um motivo comum na época: a Sagrada Família.

Ora, o valor de culto desta pintura, que a passagem do tempo tende a inflacionar, sofreu uma reviravolta — um incremento súbito — em meados do século XX. A obra foi oferecida por Giovanni Battista Meneghini a Callas, ainda o industrial italiano cortejava a jovem cantora,

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1
Fig. 1.1 — Maria Callas num camarim do Teatro alla Scala em Milão (1957) | Fotografia de Willy Rizzo

na véspera da sua estreia em Itália, no Teatro Arena di Verona, onde interpretaria La Gioconda de Amilchare Ponchielli. Foi a 1 de Agosto de 1947 que tal aconteceu. Aproveitando a efeméride, e a reabertura do festival após a pandemia, o teatro organizou um «evento expositivo» a 1 de Agosto de 2021: por uma noite, em que permaneceu exposta, a Sagrada Família de Cignaroli — e, com ela, a memória de Callas — retornava ao Arena.1

Maria Callas afeiçoou-se à imagem. Incrustada, em 1951, num pequeno estojo forrado a veludo vermelho, que substituiu a moldura em que Meneghini a oferecera em 1947, a pintura viajou com a cantora por todo o mundo, sendo visível em muitas fotografias da artista em camarins e quartos de hotel. O objecto tornou-se para ela uma espécie de talismã. Segundo declarou em entrevista ao Daily Star de Toronto em 1958, somente duas vezes se esquecera de levar

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1 Cf. «La Sacra Famiglia di Maria Callas torna in Arena», Arena di Verona (website), Julho de 2021. Fig. 1.2 — A Sagrada Família de Giambettino Cignaroli | © Artistic Tamassia

a pintura consigo e em ambas o estado de saúde da sua voz piorou, impedindo-a de cantar.

Desta obra se pode então dizer, não apenas que é fruto do labor do artista italiano, que a pintou no século XVIII, mas também que é testemunha da carreira da cantora no século XX. Foi nela que poisaram os olhos de Callas — expectantes, inquietos, triunfantes — antes e depois de inúmeras actuações. É o vestígio desses olhares, dessas angústias, desses êxitos que este objecto acolhe. E é da imaginação desse acolhimento que vive a aura da Sagrada Família de Cignaroli. E o seu preço.

2. Quando Maria Callas morreu em 1977, os seus herdeiros improváveis foram o ex-marido, Giovanni Battista Meneghini, e a mãe, Evangelia Dimitriadou — improváveis, desde logo, porque Maria havia cortado relações com ambos. Dividido em duas colecções em 1977, o espólio de Callas continuou a dispersar-se após a morte dos seus herdeiros, respectivamente em 1981 e 1982. O ano de 2000 constitui um marco definitivo nesta dispersão. As colecções de Evangelia e Meneghini, separadas desde 1977, são de novo reunidas. Mas são-no, paradoxalmente, com o propósito de serem leiloadas. O leilão, que teria lugar na Drouot-Montaigne em Paris, organizado pelo estúdio Calmels Chambre Cohen, a 2 e 3 de Dezembro de 2000, foi precedido de exposições no Mónaco, em Tóquio e em Nova Iorque. Falou-se de uma tournée póstuma da diva.

Num texto redigido para o catálogo deste leilão, Nicolas Petsalis-Diomidis, que coleccionara inúmeros objectos de Maria Callas (comprara muitos deles a Jackie, irmã de Callas, após a morte da mãe de ambas) e que escrevera uma biografia da cantora em 1998 (publicada em inglês, com o título The Unknown Callas: The Greek

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Years, em 2001), dá conta dos seus esforços, entre 1998 e 2000, no sentido da criação de um museu Callas em Atenas. E explica também a sua decisão, perante o desinteresse do poder camarário, e confirmada a aprovação moral de Jackie, de vender parte da sua colecção. Na verdade, arrisca, talvez seja melhor assim… Pois «quem compraria estes objectos senão pessoas que realmente amam e admiram Callas, que respeitam a sua memória e cultivam a sua lenda?»2

Mas talvez a dispersão convenha ao mito de Callas por outro motivo. Falamos de pertences, cinzas e memórias. Falamos, portanto, de vestígios. Mas Callas é uma intérprete: a sua obra é o conjunto das suas actuações ao vivo e em estúdio. Logo, os vestígios da sua arte são fundamentalmente as suas gravações. Um museu de Callas, por mais que fizesse sentido em Nova Iorque, Atenas ou Paris (as cidades que viram a artista nascer, crescer e morrer), por mais que ganhasse com a reunião dos seus pertences (a miniatura de Cignaroli, os auto-retratos de Pasolini, peças de vestuário), por mais que enriquecesse com traços da sua carreira (programas, cartazes, notícias), teria sempre de acolher, reservando-lhes um lugar central, as suas gravações. São elas o vestígio cimeiro da sua arte.

No caso de Callas — no caso, a bem dizer, de qualquer artista-intérprete — não é possível um «museu de originais». O verdadeiro original é a actuação. E desta não subsistem senão cópias reprodutíveis. Ou seja, ao contrário das réplicas que encontramos na Casa Museu Albrecht Dürer em Nuremberga (que, enquanto cópias manuais, são tão únicas quanto os originais), as gravação que encontraríamos numa «Casa Museu Maria Callas» seriam, enquanto cópias

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2 Nicolas Petsalis-Diomidis citado em Alan Riding, «Once Again Callas’s Fans Can Bid Her Farewell», New York Times, 11 de Julho de 2000.

reprodutíveis, múltiplas. A gravação de La Traviata no Teatro de São Carlos, disponibilizada ao visitante desse museu, seria a mesma que eu, reproduzindo o respectivo CD, posso ouvir em casa. E o mesmo se aplica a qualquer outra pessoa em qualquer parte do mundo. A dispersão é inevitável.

Dito isto, se o projecto de um «museu de originais» está condenado ao fracasso no caso de um artista-intérprete, resta saber se esse fracasso não é, de um outro ponto de vista, um triunfo. Um museu liberto da tutela do original, do fetiche do original, do espartilho do original — eis o que faria tanto mais sentido no caso de Callas.

3. O que é feito da Sagrada Família de Cignaroli? A obra, que voltara às mãos de Meneghini após a morte de Callas em 1977, foi herdada, aquando da sua morte em 1981, pela sua governanta, Emma Roverselli-Brutti. Foi a ela que o coleccionador Ilario Tamassia, que conserva a pintura até hoje, a adquiriu. Todavia, os empréstimos são frequentes. E foi graças a um desses empréstimos que a pintura esteve exposta, a 1 de Agosto de 2021, no Arena de Verona.

Temos, pois, um objecto único — único na sua consistência, único na sua história, único por ter acompanhado, ao longo da sua carreira ímpar, a artista excepcional que foi Maria Callas. Mas temos também um acontecimento único: a estreia no Arena de Verona, na véspera da qual, a 1 de Agosto de 1947, Maria Callas recebeu das mãos de Meneghini a pintura de Cignaroli.

É do cruzamento imaginário daquele objecto único com aquele acontecimento único que nasce a ideia, que o Arena di Verona decidiu pôr em prática, de exibir a miniatura, antes de uma récita de Turandot, com Anna Netrebko. Eis como o «evento único» foi apresentado no site da Fondazione Paolo e Carolina Zani:

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Uma colaboração entre a Fondazione Paolo e Carolina Zani e a Fondazione Arena di Verona para um evento único: 1 de Agosto de 2021. A Sagrada Família de Maria Callas retorna ao Arena.

A pintura de Giambettino Cignaroli, oferecida por Giovanni Battista Meneghini a Maria Callas a 1 de Agosto de 1947 retorna ao Arena exactamente 74 anos depois, por ocasião de um evento nocturno, que inclui também a apresentação cénica de Turandot, de Giacomo Puccini, com um elenco internacional, incluindo, no papel principal, a soprano mais requisitada e admirada de todo o mundo nos últimos vinte anos, Anna Netrebko.

A pintura, talismã de Maria Callas, será exibida ao público no interior do portão 1, excepcionalmente das 17h00 às 19h00 para todos os visitantes com entrada livre, e depois, para todos os espectadores de Turandot, até ao final do espectáculo. Para Cecilia Gasdia, superintendente da Fundação Arena de Verona, graças a esta exposição, «é como se entrássemos no camarim e dele saíssemos sem perturbar a cantora, pois ela ainda está aqui, sempre viva». Massimiliano Capella, director da Casa Museu da Fondazione Zani, sublinha que esta «não é uma operação nostálgica, devendo ser encarada como uma autêntica restituição artística. De facto, a pequena tela retorna ao lugar em que Maria Callas a recebeu das mãos de Giovanni Battista Meneghini.»3

A ênfase no carácter único do evento — à boleia do carácter único do lugar, da data, do objecto, da artista, do espectáculo — não poderia ser mais óbvia. Foi ali, no Arena de Verona, que Callas recebeu de Meneghini este quadro de Cignaroli há setenta e quatro anos… É ali, nos bastidores do teatro, que a presença da cantora

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3 Fondazione Paolo e Carolina Zani, «August 1, 2021. The Holy Family of Maria Callas returns to the Arena», Fondazione Zani (website), Julho de 2021.

ainda se faz sentir… Será ali, no palco do anfiteatro, que uma apresentação de Turandot acontecerá ao vivo…

E porém — o que nos conduz a uma perplexidade fértil — falamos sempre de «cópias». Não será Callas, mas Netrebko, que actuará ao vivo. Não são os camarins do Arena, como os encontrou Callas em 1947, mas de outros teatros, como o La Scala de Milão, o La Fenice de Veneza ou a Lyric de Chicago, que nos mostram outras fotografias de Callas com a Sagrada Família. A própria miniatura de Cignaroli é uma réplica!

Eis, pois, uma pintura, cuja aura se torna inseparável do culto de uma artista, de uma intérprete, de uma cantora. Tal culto, aparentemente, não pode prescindir de cópias, mas nem por isso se deixa de falar na aura da artista, da sua presença, da sua voz. Este desacerto conceptual torna uma pergunta inevitável. De que falamos ao certo quando falamos de aura?

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Porquê Callas?

Porquê Callas? Porquê Callas, num livro que, embora centrado em projectos que evocam ou homenageiam a artista, se debate com uma questão que simultaneamente os atravessa e transcende: o peculiar entrelaçamento entre aceleração tecnológica e conservadorismo cultural que marca os nossos dias ou, nos termos em que apresentámos a questão desde o início, a coexistência paradoxal entre o fascínio pela multiplicação de cópias e a obsessão, que condiciona a experiência e a apreciação dessas cópias, pelos valores do original?

Responder a esta questão implica não só relembrar as duas vertentes deste livro — a vertente centrípeta, sempre em torno do mito de Callas, e a vertente centrífuga, tomando-o como impulso para uma reflexão mais abrangente sobre o ethos contemporâneo — mas também, e decisivamente, explicitar em que medida eles se cruzam. Importa, por outras palavras, compreender o que torna o caso de Callas paradigmático dos problemas que aquele paradoxo encerra.

Em primeiro lugar, o caso Callas é paradigmático na medida em que os pólos desse paradoxo surgem extremados, logo mais nítidos, naqueles projectos. É espantoso, de facto, que uma cantora de ópera, falecida há praticamente meio século, continue a ser fermento de criatividade, objecto de fascínio ou motivo de zangas. E nem a retórica da distinção nem o eco dos escândalos explicaria, isoladamente, a sobrevivência do mito. Mas é igualmente espantoso,

callas e os seus duplos 213 epílogo

atendendo a que estes projectos não se coíbem de recorrer às mais avançadas técnicas de reprodução e remediação audiovisual, que, na sua apreciação e crítica, a valorização da originalidade, da imediatez e da presença continue a ser critério e argumento.

Que a estátua capte (ou não) a aura original de Callas; que o espectáculo holográfico restitua (ou não) a experiência original de um concerto ao vivo com a diva; que a ópera-performance evoque (ou não) a presença original da intérprete; que o quadro-talismã presentifique (ou não) o momento original da carreira; que o documentário restitua (ou não) a versão original da estória; que o dueto retenha (ou não) a dinâmica original de uma colaboração artística — eis o pomo das discórdias. Discórdias que se desdobram na proliferação de cópias, na dispersão de imagens, na multiplicação de duplos ao mesmo tempo que tomam o original, ou a experiência conforme ao original, por critério. Tornado nítido, o paradoxo conduz ao diagnóstico que se impõe: mais do que declinar, a aura metamorfoseou-se na era digital.

Mas o caso Callas é paradigmático por um segundo motivo. Callas não foi simplesmente uma artista extremamente famosa, talentosa e admirada. Enquanto artista, foi fundamentalmente uma intérprete, e uma intérprete de ópera. Logo, a sua «acção» músico-teatral, envolvendo a representação de personagens ficcionais, convoca, inevitavelmente, a problema da relação da arte com a vida. O mito de Callas é paradigmático de como essa relação, tão decisiva para a arte, se pode tornar inesperadamente problemática, assumindo um cunho sacrificial. Pois, se é certo que a arte não pode deixar de se relacionar com a vida, sob pena de se transformar em mera cultura, certo é também que uma concepção mimética dessa relação, favorecida pela ideologia da autenticidade, tem os efeitos mais nefastos. Ao contrário do que se poderia pensar, uma tal visão, bem

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alinhada com o que Jacques Rancière designou por regimes mimético e representativo, continua muito presente, embora confusamente entrelaçada com as práticas e os discursos do regime estético, em pleno século XXI.

Elogia-se, amiúde, Callas por ter sido — mais do que por ter representado — as personagens que interpretou. Não se trata apenas — o que seria justo — de chamar a atenção para os dotes a um só tempo vocais, musicais e teatrais de Callas, mas de sugerir a afinidade, que explicaria a excelência inigualável da artista, entre a mulher e a personagem. É este, de resto, o leitmotiv que percorre, de lés a lés, dos píncaros da erudição musicológica às caixas de comentários do YouTube, incontáveis elogios a Callas. Seria o leitor ou a leitora capaz de destrinçar as considerações do musicólogo, do crítico ou do ensaísta das reacções espontâneas, embora curiosamente repetitivas, do fã digital? Eis algumas citações (das quais, a bem deste exercício, não incluirei referências):

— As suas actuações operáticas pareciam reais; a sua vida real parecia operática.

— Adoro ambas: Callas e Tebaldi. Tebaldi, que voz extraordinária. Contudo, não deixa de ser Tebaldi. Já Callas, quando canta… Callas é Tosca.

— Mal subia ao palco, através de uma transformação quase mística, Maria tornava-se a personagem que era suposto representar.

— Callas fala connosco quando canta. Conta-nos os seus segredos — as suas dores, as suas alegrias — e nós contamos-lhes as nossas. «Senti um tal desespero, uma tal felicidade», confessa Callas. «Também eu, também eu!», confessamos.

— Ecco un artista. Nunca representou papéis, mas viveu no fio da navalha.

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Este tipo de elogio, elidindo a fronteira entre realidade e ficção que o fingimento deveria manter tensa, revela-se especialmente pernicioso no caso de Callas. Constrangida pelo elogio da autenticidade, é como se Callas se afigurasse, retrospectivamente, tanto mais excelente, enquanto artista, quanto se lhe reconhece, enquanto mulher, uma existência trágica. Ao invés de complicar, com os fios da ficção, a trama do real, a arte, preferindo decalcar clichés, reproduzi-la-ia servilmente. E torna-se cruel, pois é como se a admiração do esteta encontrasse justificação no sofrimento da mulher. Não que as interpretações de Callas mudem, objectivamente, quando imaginamos a sua vida. Mas uma certa escuta comove-se com a possibilidade de equiparar a sua tragédia pessoal à das personagens que incarnou. É a segunda lágrima, para a qual Milan Kundera reservou, num contexto distinto, mas cuja evocação é aqui pertinente, o termo de kitsch.

É nesta óptica que se deve compreender o tour de force do capítulo 8: como uma tentativa de pensar a singularidade da entrega de Maria Callas, sobretudo em palco, com todo o risco envolvido pela actuação ao vivo, sem cair no engodo da homologia entre a artista, a mulher e a personagem. Portanto, se neste livro se contesta as ideologias da diva, da aura, do génio, da fidelidade e da autenticidade, não se enjeita o juízo segundo o qual Callas foi uma intérprete realmente notável, que revolucionou a história da interpretação operática e ainda hoje nos surpreende com novas intuições sobre as obras que interpretou. Ora, que nada disto se confunda com o credo da autenticidade e menos ainda se coadune com as rezas de quem, prostrado no altar das coisas da cultura, se põem a recitar ideias feitas acerca de como Callas foi Medeia, Tosca ou Manon — já para não falar nas desvairadas Elvira e Lucia, que uma pitada de loucura fica sempre bem ao génio — marca a fronteira entre o reco-

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nhecimento do poder da arte e a verborreia do senso-comum, quer ande quer não ande mascarado de erudição e sensibilidade.

* * *

É comum, em pesquisas sobre a cultura contemporânea pelo viés das questões da imagem e da técnica, evocar Jean Baudrillard e a sua teoria do simulacro: o simulacro teria levado a melhor no nosso tempo, o simulacro que já não é cópia porque já não duplica um suposto original. Pensando nas últimas décadas, é caso para dizer, invertendo uma expressão bem conhecida: se è ben trovato, non è vero . Numa época marcada por uma indisfarçável euforia pelas maravilhas da reprodutibilidade tecnológica, prevalece, qual núcleo de inquebrantáveis feixes, o apego aos valores do original. Apesar do seu potencial de desvio, mutação e diferença, a inovação é posta ao serviço de uma imaginação conservadora e acaba sugada, nos seus usos e efeitos, pelo sorvedouro da identidade. Veja-se, nos tempos que correm, a idolatria dos factos, a nostalgia da tradição, o louvor da vida que há-de ser o que sempre foi.

Ora, se o desaire das promessas estéticas e políticas da reprodutibilidade tecnológica, que naturalmente não se restringem ao campo artístico, se faz sentir nas controvérsias em torno da presença e da liveness, manifesta-se também na retórica da autenticidade — na qual a cópia e o original surgem equiparados à arte e à vida. Neste sentido, acrescentaria que a intuição benjaminiana — o reconhecimento de um potencial emancipatório na queda da aura — admite um outro desdobramento. O potencial contido nas tecnologias de reprodução e remediação da imagem e do som não se cinge a uma transformação dos modos de recepção e produção artísticos; incide também, graças ao modo como enriquece e fortalece a linguagem da

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ficção, sobre o nexo entre a arte e a vida. Num contexto de aceleração digital, esta questão torna-se cada vez mais urgente, envolvendo ainda os debates sobre a inteligência artificial e a sua relação com a linguagem e a imaginação.

Não se trata, evidentemente, de esquecer que a arte sempre foi técnica. Na verdade, valeria a pena lembrar — na esteira, por exemplo, de Bernard Stiegler — que não há como pensar o humano sem frisar que a técnica, em sentido lato, incluindo desde logo a linguagem e a escrita, medeia desde sempre a nossa relação com o espaço e com o tempo. Trata-se, simplesmente, de reconhecer que, com os meios digitais, o espectro do que se dá a percepcionar e a imaginar, no encontro com um objecto ou uma prática artísticos, sofreu um alargamento vertiginoso, cujo potencial estamos ainda longe de sopesar.

Ainda uma palavra sobre os projectos tratados neste livro. Ao longo das páginas anteriores, destaquei amiúde que em todos eles, apesar da sua complexidade intermedial e intertextual, prevalecia a reverência ao original. Sugeri, assim, que a promessa de uma relação menos devota, menos fetichista, menos protocolar, mais livre, mais gratificante, mais ambiciosa, com o objecto admirado — a arte de Callas — se via tendencialmente traída ou desperdiçada. Daí as perguntas que atravessam as entrelinhas deste livro. E se a exposição aceitasse ser uma exposição de cópias? E se o espectáculo holográfico prescindisse de imitar um concerto ao vivo? E se a ópera-performance de Abramović abandonasse o fetichismo da presença? E se déssemos, finalmente, ouvidos às palavras de Callas, quando reflecte sobre as suas gravações como se estivesse numa mesa de montagem,

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e não apenas quando insiste nos clichés do génio e na fidelidade à partitura?

Dito isto, também tentei — o leitor ou a leitora dirá se com ou sem sucesso — chamar a atenção para aqueles momentos e aspectos que fogem a essa regra: o caleidoscópio de perspectivas apresentadas pelo projecto Maria by Callas, a fantasia das cartas esvoaçantes no espectáculo com o holograma, a componente multimédia e o espírito interartístico de 7 Deaths of Maria Callas, o cruzamento de temporalidades no dueto póstumo ou mesmo o desconforto com a estatuária na polémica virtual em torno da escultura ateniense de Callas. Em todos estes casos, são as perguntas e as perplexidades sugeridas por um enlace mais audaz entre imaginação e tecnologia que resgatam aqueles projectos à banalidade.

Neste aspecto, Callas e os Seus Duplos retoma questionamentos d’A Torção dos Sentidos (cruzando-os com temas aos quais tenho dedicado esforços de pesquisa ao longo de vários anos, em especial a relação da ópera com os novos media). Se, n’A Torção dos Sentidos, se tratou, no que concerne à questão tecnológica de fundo, de escapar à dicotomia entre «apocalípticos» e «remediados», trata-se, agora, de reconhecer como o entusiasmo ingénuo dos segundos — «ah, que maravilha, até se ouvem os saltos dos sapatos do holograma da Callas!» — e o conservadorismo nostálgico dos primeiros — «ah, Callas, evidentemente, sempre única e irrepetível, inimitável, inigualável!» — se imbricam espalhafatosamente no habitus dos devotos callasianos da era digital.

Em vésperas da noite fatídica de 3 de Janeiro 1958, quando Callas solicitou a presença de uma cantora que a pudesse substituir em caso

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de doença, a resposta do Teatro de Ópera de Roma foi a afirmação que o leitor ou a leitora conhece desde a primeira página deste livro: ninguém pode duplicar a Callas [«nessuno può doppiare la Callas»]1. Que esta afirmação — o acento em que Callas é insusceptível de duplicação — sirva de epígrafe a este livro não aponta apenas, ironicamente, para o desfile de duplos, avatares e réplicas que nele se aborda; alude também ao facto de que a retórica da adulação e o discurso da autoridade, cheio de intransigência e crueldade, nem sempre se distinguem. Afinal, o que torna Callas original, no plano mitológico que este livro procura escalpelizar, é essa equivalência sacrificial entre a mulher-artista e a personagem, graças à qual a excelência de Callas como intérprete fiel à «letra da arte» se vê confirmada pela excelência de Callas como intérprete fiel ao «espírito da vida». Será possível admirá-la de outra forma?

A resposta que este livro sugere é afirmativa. Não há contradição entre a desconstrução do mito de Callas e a admiração pela sua arte. Na verdade, não há sequer contradição entre a desconstrução do mito de Callas e a admiração pela singularidade da sua arte. Simplesmente, a lógica do singular, sendo irredutível à lógica do superlativo, escapa também à retórica do inimitável, do inalcançável, do inigualável. Portanto, se Callas é uma artista admirável, pelo modo como recriou as personagens que interpretou, não o é em virtude de permanecer fiel a um qualquer «original» — seja na vida, seja na arte. Abdique-se, então, de duas ideias aparentemente antagónicas mas indissociáveis: a ideia de que o sofrimento da mulher é o segredo da excelência da artista-intérprete e a ideia de que a artista-intérprete, para se tornar

1 O termo «doppiare», que opto por traduzir por «duplicar», em virtude da etimologia da palavra e do título escolhido para este livro, acolhe em italiano dois sentidos: dobrar, no sentido técnico das dobragens no cinema, mas também, em termos gerais, duplicar.

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excelente, deve anular a sua subjectividade, limitando-se a objectivar a partitura.

O que a artista deve à mulher — ou o que a mulher deve à artista — permanece uma incógnita. Na verdade, o ponto em que arte e vida se tocam não só permanece como deve permanecer uma incógnita, uma incógnita e uma promessa de transformação, da qual dependem, em tempos assombrados pelo terror da mesmidade, a alegria e o poder das artes.

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Agradecimentos

Escrito entre 2021 e 2023, Callas e os Seus Duplos apresenta ideias cujo desenvolvimento remonta, pelo menos, ao artigo «The Aura of Opera Reproduced», publicado na revista The Opera Quarterly em 2018. Versões iniciais dos capítulos 1, 3 e 4 apareceram nas revistas Glosas, Dramaturgias e Sound Stage Screen. Estou grato aos seus editores, Edward Ayres de Abreu, Marcus Mota, Giorgio Biancorosso e Emilio Sala pelo acolhimento e colaboração. As impressões trocadas com Luiz Camillo Osório, Madalena Vaz Pinto, Maria Filomena Molder, Mariana Pinto dos Santos e Nuno Fonseca, entre outros interlocutores electivos nas conferências e seminários em que participei nos últimos anos, graças ao sempre pronto apoio do CESEM, foram um incentivo igualmente crucial. Ao Manuel Rosa, que mais uma vez se deixou contagiar pelo meu entusiasmo, agradeço o generoso acolhimento na Sistema Solar. Viajante confesso, agradeço ainda a Nuremberga, Atenas e Veneza, onde algumas das ideias para este livro se desenvencilharam dos nós que as amarravam. Finalmente, o meu principal agradecimento vai para a Kateryna Maksymova, cuja alegria e cujo estímulo foram para mim um fio de Ariadne em dias mais e menos felizes.

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