Tropa Fandanga

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À Guida, meu amor, Aos meus filhos, Aos meus netos

Neste despretensioso livrinho em que recordo os tempos longínquos do meu serviço militar, devo, em primeiro lugar, um profundo agradecimento aos Capitães de Abril que, com a sua ação, abriram as portas da democracia a um País tacanho e anacrónico, tornando possível o fim da guerra colonial; disso mesmo fui direto beneficiário, pois desde 1975 participei em todos os atos eleitorais e ainda, mas não menos importante para o meu egoísmo, suspendeu para sempre a minha mobilização para Angola.

Durante os quase dois anos de tropa, marcou-me muito o alferes Pinheiro, comandante do meu pelotão, que suportou com galhardia o meu azedume e a minha frontalidade rude, de quem sempre desejou estar longe de Mafra.

Em relação ao livro propriamente dito, devo um agradecimento sincero ao António Massano, que tem uma paciência de santo para ler os meus desabafos, e ao Pedro Falcão, pelo design e pelos conselhos indispensáveis à concretização do projeto.

Ao Manuel Rosa, estou grato por ter, de novo, aceitado dar a estas memórias a chancela da Documenta, que procuro merecer.

Ao Dr. Jaime Gama, amigo de longa data, cidadão exemplar na sua dedicação à coisa pública, agradeço a paciência de ter sido o primeiro leitor destas memórias e de ter aceitado fazer a sua apresentação.

Ao Professor António Ventura, especialista em História Militar, agradeço também a disponibilidade para ler e apresentar este livro de histórias banais que talvez sejam História, só para mim.

Ao Coronel Aniceto Afonso, também distinto estudioso de História Militar, agradeço igualmente a disponibilidade para ler o texto que produzi, numa espécie de acerto de contas com o meu passado, com os meus passados.

Finalmente, quero exprimir a minha maior gratidão aos meus amigos da HCI Construções, pelo apoio à produção do livro, mais uma prova da gentileza com que acolhem as minhas divagações literárias.

Aos meus filhos e aos meus netos, agradeço o simples facto de existirem e o carinho que me dedicam, porventura imerecido.

João Appleton

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TROPA FANDANGA

João Appleton

Fiz o serviço militar obrigatório entre 15 de janeiro de 1974 e dezembro de 1975 ou, talvez, fim de novembro, não tenho a certeza, pois nos dias seguintes ao 25 de Novembro de 1975 houve uma limpeza geral de todo o Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, e democraticamente despacharam todo o pessoal para casa; mas isso foi mesmo no fim e, no devido tempo lá irei, se a paciência me chegar para tanto.

Devo desde já dizer que a minha “tropa” foi a mais banal possível, não fui para África, embora tenha estado mobilizado durante um ano, não entrei no 16 de Março de 1974, nem no 25 de Abril, pois era apenas um soldado-cadete em instrução, e esses, os verdadeiros “maçaricos”, não tinham lugar nessas movimentações político-militares, que eram só para gente crescida, ou antes, que se julgava crescida, adulta e responsável.

Na verdade, nem deveria ter cumprido o serviço militar obrigatório, o meu azar foi ter nascido em 1947, o que fez com que a inspeção, aos 18 anos, tivesse calhado em 1965, quando Portugal já tinha decidido ir para Angola em força, depois dos acontecimentos de 1961, ano em que, oficialmente, começou a guerra colonial.

É que, se eu fosse um dos meus irmãos mais velhos – que por esse simples facto fortuito foram inspecionados ainda na década de 50 do século XX, beneficiando de uma generosidade de apreciação de competência física e de maleitas mesmo quase inofensivas –, teria forçosamente que ficar livre desse aborrecimento.

Senão, vejamos: o Carlos, o meu irmão mais velho, foi despachado porque tinha tido um problema insignificante nos pulmões, julgo que se chamava primo-infeção e, no entanto, estava pronto e competente para, na mesma altura, mais mês, menos mês, entrar garbosamente na Academia Militar, onde descobriu a sua fraca apetência pelo Exército, passados os anos em que achava graça à farda de gala com que se passeava por Lisboa, com sucesso garantido entre as meninas casadoiras.

Com o meu irmão Alfredo, o que sucedeu foi que o índice de massa corporal com que se apresentou foi considerado indecoroso e despacharam-no em três tempos; ora, eu era mais alto que o Alfredo três ou quatro centímetros, com os meus interessantes metro e oitenta e quatro, e pesava menos 6 ou 7 quilos, pois rondava então os 53 quilos, praticamente o peso do esqueleto, das vísceras e do cabelo, difícil era encontrar um pedaço de carne, através da pele contavam-se as costelas e as vértebras. Portanto, a minha massa corporal era muito mais vergonhosa do que a do Alfredo e saí da inspeção num ápice, com um carimbo de apurado para todo o serviço; resultado de um pequeno truque das autoridades civis e militares, o que eram sobras antes de 1961 passou a carne do lombo depois desse famigerado ano.

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nota introdutória

Recordo que fiz a inspeção em Lisboa, no Trem-Auto da Avenida de Berna, e comigo estavam quarenta ou cinquenta mancebos, completamente nus, em fila de pirilau e com o mesmo em exposição; percebi que a coisa não ia dar bom resultado, quando o mancebo que me precedia foi observado com olhar aprovador por um alferes-médico que, enfastiado, lhe perguntou se ele se queixava de alguma coisa. O rapaz mostrou o centímetro que lhe sobrara do indicador direito, disse a medo que não tinha um dedo, como bem se via:

– Isso não tem qualquer importância – disse o alferes-médico que, por acaso, tinha cinco dedos em cada mão. – Não tem o indicador, mas tem o dedo médio e o anelar que servem perfeitamente para puxar o gatilho da arma – e exemplificou, encolhendo o seu dedo indicador e simulando o disparo com o dedo médio da mão direita. – Está a ver?, não custa nada.

Despachado o mancebo, eu fui olhado com desdém, o alferes-médico nem me tocou, fez a pergunta da ordem e nem me ouviu responder, percebeu de relance que eu tinha todos os dedos das mãos e dos pés, não me faltava nenhuma costela, como bem se via, tornei-me assim num potencial militar.

Com tão pouca predisposição para a incumbência e convicto da injustiça de ter sido chamado a fazer parte da magnífica corporação que é o Exército, em todo esse período que por lá andei nunca me ofereci para coisa nenhuma, ou melhor, fui voluntário uma vez, corria o “verão quente” de 75, nunca me senti militar, mantive rigorosamente vivo o meu espírito civilista e meti-me ou meteram-me, portanto, em alguns sarilhos.

Talvez por me ter mantido fielmente civil durante dois anos, e como sempre gostei muito de observar o que me rodeava, sempre disponível para aprender sobre as coisas e sobre as pessoas, encarei esse tempo filosoficamente, deixando que o passar dos dias bastasse para resolver dúvidas e perplexidades que o serviço militar me colocava.

Vi muitas coisas nesse tempo de há quase cinquenta anos, era eu um menino de menos de 30 anos, engenheiro civil desde 1971, casado e pai de dois filhos, com ideias já então claras sobre a guerra colonial e sobre o direito dos povos à independência, ao fim daquela quase escravatura que eram os impérios coloniais clássicos, de que o português era uma espécie de sobra, os outros já se tinham antecipado e mudaram “sabiamente” o modus operandi, colonizando economicamente, que é, afinal, o que importa. Veja-se o exemplo dos ingleses, seculares peritos na apropriação de bens alheios, a quem não bastava colonizar Portugal, que nem sequer dava por isso. Mas estou a desviar-me da questão principal que aqui me traz e até, vendo bem, talvez nem mesmo devesse aventurar-me nesta vereda, quando tenho um

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irmão mais velho, médico e esteta, que passou um longo e mau bocado no pior que havia em Moçambique; mas ele não fala disso, pelo menos eu nunca o ouvi, e, se falasse, eram outras as histórias que contaria, decerto muito mais violentas e dramáticas e, enfim, ele já estava muito longe desses tempos e, julgo, terá uma

visão apenas parcial e em segunda mão daqueles que foram, em Portugal, os tempos mágicos de uma história que foi e de outra que podia ter sido.

De qualquer modo, estar na tropa no 25 de Abril e atravessar todas as datas simbolicamente mais importantes que marcaram a história de um movimento militar corporativo – que reivindicava a alteração de uma lei que prejudicava a progressão na carreira dos militares de carreira, relativamente a milicianos integrados na mesma, e que se foi transformando até resultar num golpe de Estado sem destino à vista, passando a uma situação revolucionária que andou aos soluços até à reversão final –, estar lá dentro, ficando sempre de fora, deu-me a possibilidade de observar, quase de forma neutra, o que ia sucedendo dentro e fora da instituição militar.

Depois, foi uma questão de ter uma memória com características curiosas, que remete para vales profundos acontecimentos relevantes, mas que não me servem para explicar nem entender o que fui vivendo para, ao mesmo tempo, trazer à superfície memórias corriqueiras de coisas quase insignificantes de que poucos se lembrarão, mas que foram o sal e a pimenta da minha vida naqueles dois anos, em que fui sempre muito cético em relação ao papel dos militares na vida política do meu País, consumado que foi o golpe militar.

Quanto à verdadeira história do 25 de Abril, ela não é uma só, também lhe conheço algumas versões, com diferenças que não serão de somenos importância; para os mais novos, e para os mais velhos que andaram distraídos, recomendaria uma espécie de romance de Lídia Jorge, Os Memoráveis, onde se encontram, com nomes fictícios, as personagens de uma aventura que foi, com o desenrolar dos acontecimentos, muito mais do que talvez alguma vez pensassem os que a conduziram.

No que vou recordar, uso o meu arquivo pessoal, que tem características muito específicas, não se suporta em documentos, fotografias, gravações áudio ou vídeo: sai tudo (ou quase tudo, existem as cartas trocadas entre março e junho de 74 entre mim e a minha mulher) de um recanto codificado da minha memória, do qual só eu tenho a palavra-passe.

E, apesar disso, posso assegurar que em momento algum contrario a minha memória, não invento nem especulo, recordo apenas, deixando que as palavras vão escorrendo de dentro para fora de mim e, se em algum caso não respeito a verdade dos factos, é simplesmente porque não acedi a essa verdade ou a esses factos, culpa

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decerto de uma capacidade limitada de observar e registar, talvez porque, nesses casos, não olhei de frente mas de lado e haverá coisas que, se não vi, não pude apreender.

Mas as memórias que aqui trago são minhas, sou a personagem sempre presente, a viver essas memórias ou a ouvir diretamente de outros o que eles presenciaram, e isso transparece com clareza ao longo destas páginas.

Vamos então, caro leitor e amigo (os amigos são os únicos leitores que espero), fazer uma curta viagem no tempo. E tudo começa em Mafra, no mês de janeiro do ano 74 do século XX.

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tropa fandanga

MAFRA – Os primeiros dias 019 do resto da minha vida

TANCOS – O 25 de Abril visto por um canudo, 039 ou a tropa que o não foi

PONTINHA

tropa fandanga
Regimento
Infantaria
liberdade
João Appleton
Margarida Appleton 107
de
n.º 1, a
à solta 051 CARTAS
De
para

À direita, de pé, o Alferes Pinheiro, nosso comandante. Eu estou meio perdido entre o molho de cadetes.

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CARTAS

de João Appleton para Margarida Appleton

Ao longo da minha vida foram raras as ocasiões em que nos separámos, eu e a Guida, mesmo quando a minha vida profissional me afastava de Lisboa.

Sempre que podia, nas muitas viagens de trabalho que fiz por todo o País, fosse qual fosse a distância, saía de Lisboa de madrugada e regressava à noite, muitas vezes exagerando na velocidade a que me deslocava, para chegar a tempo de ver os meus filhos e de estar com a Guida.

E quando tal era impossível, como sucedia em viagens para fora, falávamos longamente ao telefone, como namorados que fomos sempre.

A exceção aconteceu quando estive na tropa, primeiro na semana de campo, em Mafra, depois nos três meses de Tancos, em que a Guida se transferiu com os dois filhos para a Póvoa de Varzim, para onde eu ia nos fins-de-semana quando não estava de prevenção.

Desse tempo ficaram dois maços de cartas (quatro por semana, de cada um dos dois). Transcrevo aqui , parcialmente, algumas das que escrevi, com as passagens que se referem ao 25 de Abril e aos tempos mais próximos.

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Mafra, 5.3.74

Claro que no fim disto tudo, sem ti, ando um bocado desorientado de tal forma que hoje, e pela primeira vez, esqueci-me de fazer a cama e estou com um certo receio de apanhar algum castigo à conta disso. Espero que um colega meu tenha reparado nisso e se tenha apressado a remediar o erro, como é usual fazer-se.

Enfim, parece que ando em maré de azar e só faltava que no fim não tivesse a especialidade de testador. Mas, animemo-nos, melhores dias chegarão, a crise será ultrapassada e o optimismo voltará. Meu Deus, como eu anseio o fim daquela porcaria.

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cartas

Tancos,

Minha querida:

Escrevo de Tancos numa altura bastante confusa pois as coisas, como deves saber, nesta altura estão claramente a evoluir para um caminho algo diferente do que até agora se verificava. Para melhor ou para pior, só o tempo o dirá, mas que haverá (?) mudanças parece não haver dúvidas.

Claro que nestas condições a minha ida em fim-de-semana está claramente comprometida e julgo mesmo que o passarei aqui fechado para grande raiva minha. Mas será legítimo o meu protesto quando tantas coisas parecem estar em jogo, quando (quem sabe?) se está a viver um momento muitíssimo importante, mesmo decisivo da vida portuguesa?

Como deves depreender, a situação é pelo menos para já muito delicada de forma que é de toda a conveniência evitar as deslocações dentro da Póvoa e claro que nem se fala de possíveis viagens ao Porto. Deves a não ser que não possas permanecer em casa pois não sabemos o que o tempo trará.

Quanto a mim, não deves preocupar-te pois estou apenas à espera que haja ordem de saída se a situação se normalizar. Para já, há prevenção rigorosíssima que não se pode de forma alguma ultrapassar. Não posso sequer telefonar-te para te tranquilizar pois os telefones estão cortados e é muito difícil tentar telefonar pois parece que só do gabinete de um tenente-coronel se podem fazer chamadas.

Pedia-te que avisasses como pudesses os meus pais pois eu não tenho possibilidades de o fazer e eles estão com certeza preocupados com a minha vinda de Lisboa para Tancos em altura tão crítica. Por outro lado, também eu estou preocupado com eles pois em Lisboa a situação parece ser de molde a criar preocupação.

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25.4.74
cartas

Texto

© João Appleton, 2023

Editor

Sistema Solar (chancela Documenta)

Rua Passos Manuel 67-B 1150-258 Lisboa

ISBN 978-989-568-126-6 1.ª edição, Janeiro de 2024

Revisão

António José Massano

Desenho gráfico

Atelier Pedro Falcão

Proporção

[1:1,414] – 17 × 24 cm

Tipos de letra

Adobe Caslon Pro Figgins Sans

Impressão e Acabamento Gráfica Maiadouro

Depósito Legal

p. 3

Grupo de intrépidos atiradores em Mafra: em cima, à esquerda, estou eu com ar de matador; depois, o Guerreiro, engenheiro civil e uma verdadeira vocação militar; a seguir, o Cabrita, médico, o mais velho do pelotão e que não levava a tropa a sério; e o Baião, advogado, que foi talvez remetido para os serviços auxiliares, por ver tanto como uma toupeira. Em baixo, um dos benjamins, apanhado na Rede por não ter passado do sétimo ano, cujo nome não recordo, que pode ser Santos, por exemplo

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