Revista E - janeiro/2023

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Nise da Silveira Psiquiatra revolucionou a saúde mental pela arte e pelo afeto Tempo de lazer Uso moderado de tecnologia pode ser aliado da prática físico-esportiva
femininas Obras de mulheres indígenas ganham espaço no universo artístico
Cárdenas Escritora cubana fala sobre ancestralidade na literatura Revista E | janeiro de 2023 nº 07 | ano 29 00334
Raízes
Teresa

SESC VERÃO 2023

7 DE JANEIRO A 12 DE FEVEREIRO PRATIQUE ONDE ESTIVER! COMO QUISER! Atividades para todos os públicos, com diversas modalidades. Participe e compartilhe nas redes #sescverão #pratiqueondeestiver Em todas as unidades do Sesc /esportesescsp | Saiba mais: sescsp.org.br/sescverao

Legendas Acessibilidade

CAPA: Obra Vivência (2020), xilogravura sobre papel, do artista Fernando Mariano, que trabalha como tema a arquitetura frágil e apertada da favela, desenhando espaços contrastados por luz e sombra. O trabalho integra a exposição Ocupação Xilográfica, em cartaz no Sesc Birigui até o final deste mês.

Tempo: presente

A chegada de um novo ano traz consigo a perspectiva da mudança, lança olhares para o futuro que se avizinha e convida a traçar planos e a iniciar uma nova caminhada em prol do bem-estar, seja no âmbito pessoal, seja no aspecto coletivo. O mês de janeiro marca recomeços, é simbolicamente o ponto de partida para realizar, construir, renovar e consolidar escolhas. Humanos que somos, aderimos a esse ritual que deixa sua marca no tempo e ajuda a compreender as tantas passagens que, somadas, compõem o próprio curso da vida.

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Há mais de sete décadas, o Sesc – Serviço Social do Comércio tem colaborado para proporcionar qualidade de vida ao seu público prioritário: os trabalhadores do setor de comércio de bens, serviços e turismo, seus familiares, bem como toda a comunidade. Trata-se de um projeto ousado, inovador e emancipatório, concretizado por meio de uma sólida ação cultural, de caráter educativo e permanente, realizada em seus centros culturais e esportivos. Assim, o Sesc participa como protagonista da sociedade, adaptando-se aos desafios que se apresentam a cada momento dessa história. Contribui, deste modo, para se fazer sempre presente e relevante no cotidiano das pessoas. Ontem, hoje e a qualquer tempo.

Leia também a revista em versão digital

Vida em movimento

Inúmeros e comprovados são os benefícios da prática físico-esportiva regular, que se estendem para além da saúde e integridade corporal, alcançando também os aspectos fundamentais de sociabilização, a construção de vínculos e o fortalecimento das relações interpessoais. Ainda que estejam amplamente difundidos, não geram necessariamente a mobilização para uma vida ativa, como apontam pesquisas recentes cujos dados revelam a ocorrência do sedentarismo como um fenômeno do contemporâneo.

“O que você faz no seu tempo livre e qual a sua compreensão sobre o lazer?” são algumas das perguntas que estudiosos têm feito a diferentes perfis de público. Escolhas relacionadas às tecnologias – como o uso excessivo das telas – têm surgido entre as respostas, acendendo um sinal de alerta em relação aos riscos para o bem-estar físico e mental. Esse é o tema abordado em reportagem deste mês na Revista E

A primeira edição de 2023 traz também Entrevista com a escritora cubana Teresa Cárdenas, que esteve na Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, em novembro, para lançar seu livro Awon Baba, no qual mergulha na ancestralidade. Na seção Em Pauta, artigos discutem a presença das tecnologias no processo de envelhecimento, com suas possibilidades de interações sociais e fruição cultural. No Almanaque, elementos arquitetônicos revelam a coexistência dos tempos passado e presente na cidade de São Paulo, aniversariante do dia 25. E, no Inéditos, um conto da escritora Natalia Timerman, que foi finalista do prêmio Jabuti com o livro Rachaduras (Quelônio, 2019). Boa leitura e bom ano!

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor Regional: Danilo Santos de Miranda Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marco Antonio Melchior, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Adriano Ladeira Vannucchi, Airá Fuentes Tacca, Alessandro Souza Santos, Aline Ribenboim, Ana Carolina Garcez de Castro, Ana Paula Fraay Moyses Henriques, Andre de Araujo Silva, Andrea de Oliveira Rodrigues, Barbara Cristina Roncati Guirado, Bruna Marcatto da Rocha, Bruno Seiti Momma, Carlos Daniel Dereste, Carolina Balza, Carolina Barbosa de Melo, Cinthya de Rezende Martins, Claudia Dias Perez Machado, Corina de Assis Maria, Danilo Cymrot, Danny Abensur, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Eduardo Santana Freitas, Eloá de Paula Cipriano, Érika Mourao Trindade Dutra, Estevão Denis Silveira, Felipe Campagna de Gaspari, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Gabriel Maion Gianelli Damasco, Geraldo Soares Ramos Junior, Heloisa Pisani, Igor Cardoso do Prado, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Juci Fernandes de Oliveira, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Laís Silveira de Jesus, Leandro Nunes Coelho, Ligia Helena Ferreira Zamaro, Marcel Antonio Verrumo, Mariana Lins Prado, Marina Burity Francisco, Marina Reis, Natalia dos Reis Fernandes Silva, Priscila Rahal Gutierrez, Rafaela Ometto Berto, Renan Cantuario Pereira, Renata Barros da Silva, Ricardo Carrero da Costa, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Roberta Lima Olimpio da Silva, Rodrigo Gerace, Romeu Marinho C. Ubeda, Roseane Silveira de Souza, Rosielle Francine Machado, Sergio Luis Venitt de Oliveira, Silas Storion Santos, Sílvia Garcia, Sofia Calabria y Carnero, Tatiane Ferrari de Souza, Thais Ferreira Rodrigues, Thamyres Rodrigues de Araujo, Thereza de Oliveira Leite de Almeida, Thiago da Silva Costa, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Vitor Penteado Franciscon

Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Ilustrações: Luyse Costa • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Cláudio Leite • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Júlia Lledó • Coordenação-Executiva: Marcos Ribeiro de Carvalho e Fernando Fialho • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Daniel Tonus, José Gonçalves Júnior e Renato Perez de Castro • Arte de Anúncios: Felipe Castro, Jucimara Serra, Nilton Bergamini e Walter Cruz • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Ana Paula Fraay • Circulação e Distribuição: Jair Moreira

Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).

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Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

A escritora cubana Teresa Cárdenas aproxima leitores de todas as idades da ancestralidade africana

Utilizada de forma equilibrada, a tecnologia pode estimular práticas físico-esportivas

Obras de arte feitas por mulheres indígenas evocam universo feminino, simbologias e saberes ancestrais

Da ideia à estante, quais os caminhos percorridos para se publicar um livro?

Como a visão humanista de Nise da Silveira transformou o atendimento psiquiátrico no Brasil por meio da arte

dossiê entrevista esporte bio gráfica literatura

p.54 p.11 p.16 p.24 p.34 p.40
SUMÁRIO
Roberto Setton (Dossiê); Renata Teixeira (Esporte); Aliã Wamiri Guajajara. Ukair III , 2019 (Gráfica)

Artigos refletem sobre inclusão digital na velhice

Tiago Rogero Natalia Timerman

Cantora e compositora Ellen Oléria fala sobre afeto e afrofuturismo p.60

Nos 469 anos de São Paulo, as miudezas arquitetônicas da cidade onde passado e presente coabitam

em pauta encontros inéditos depoimento almanaque P.S.

Anita Cleto

p.66 p.70 p.74 p.78 p.82
Luyse Costa (Inéditos); Adriana Vichi (Almanaque)

Cantora Lia de Itamaracá em apresentação no Sesc Guarulhos, em novembro passado. O show integrou o projeto Guarulhos: Território Nordeste, que promoveu o encontro de diversas expressividades da cultura nordestina, dentre elas a ciranda de Lia.

Anderson Rodrigues 9 | e
em cena

Passeios, oficinas e bate-papos fazem parte da programação: na foto, visita à vila de Paranapiacaba, em Santo André (SP), num roteiro que integra turismo, arte e natureza. Atividade realizada em 14/1, pelo Sesc Vila Mariana.

Pezinhos na estrada

Durante o Oba! Férias!, crianças desbravam novos lugares ou redescobrem a própria vizinhança com outros olhares

Já pensou no que as crianças podem fazer durante as férias escolares? Que tal aproveitar o mês de janeiro na praia com uma oficina de esculturas na areia? Quem sabe passar um dia no meio da Mata Atlântica fazendo trilhas em família e conhecendo práticas de sustentabilidade? Ou ainda desbravar a capital paulista, construindo memórias a partir de redescobertas no próprio bairro?

Durante o Oba! Férias!, o Sesc São Paulo realiza 30 atividades para crianças que desejam conhecer novos lugares ou enxergar os mesmos espaços com outros olhares. Entre os dias 8 e 31/1, 23 unidades do Sesc na capital, litoral e interior promovem circuitos a pé,

passeios de um dia e oficinas que estimulam a cultura de viagem.

Segundo Mayra Vergotti, assistente do Núcleo de Turismo Social do Sesc São Paulo, as atividades realizadas pelo projeto se baseiam numa proposta que alia ludicidade à educação. “O Oba! Férias! chega à sua décima edição com a intenção de engajar maior participação das crianças com suas famílias em atividades turísticas e, assim, promover experiências que ajudem na criação de repertórios e memórias afetivas para a formação das crianças, de forma divertida e pedagógica”, explica.

Entre os destaques da programação estão passeios de um dia à Floresta

Nacional de Ipanema, em Iperó (SP); ao Sítio Olho D’Água, em Mogi das Cruzes (SP), que adota práticas sustentáveis; ao Centro Paulus, em Parelheiros, que fica numa área de proteção ambiental na zona sul de São Paulo; e ao Museu Aberto de Astronomia, em Campinas (SP), além de oficinas de caderno de viagem, monóculos e estamparia. Os bate-papos e oficinas são gratuitos, enquanto os circuitos a pé e os passeios com transporte são pagos (crianças até 6 anos são isentas e as de 7 a 12 anos pagam meia), necessitam de inscrição prévia e incluem guia e mediadores. Conheça todos os detalhes: sescsp.org.br/obaferias

O Oba! Férias! chega à sua décima edição com a intenção de engajar maior participação das crianças com suas famílias em atividades turísticas e, assim, promover experiências que ajudem na criação de repertórios e memórias afetivas para a formação das crianças, de forma divertida e pedagógica Mayra Vergotti, assistente do Núcleo de Turismo Social do Sesc São Paulo

Marcia Regina de Oliveira
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DOSSIÊ

viva, essepê!

No mês em que completa 469 anos, a capital paulista é tema de um monólogo que reúne músicas, textos, poesias e depoimentos pessoais da atriz Regina Braga sobre a terra onde escolheu viver. Em São Paulo, que fica em cartaz de 20/1 a 11/2, no teatro do Sesc Santo André, as contradições sociais, os choques culturais e o crescimento desordenado da maior metrópole do país dialogam com a potência poética das cenas cotidianas nas esquinas paulistanas. Dirigido por Isabel Teixeira, o espetáculo tem no texto referências às obras de Roberto Pompeu de Toledo, Mário de Andrade, José de Anchieta, Castro Alves, Itamar Assumpção, Drauzio Varella, Adoniran Barbosa, Chico César, Renato Teixeira, entre outros artistas que contaram e cantaram São Paulo. Saiba mais: sescsp. org.br/santoandre.

O TECER DO TEMPO

Com o propósito de dar luz a obras de mulheres artistas que utilizam suportes têxteis como base para suas produções, o Sesc São José dos Campos recebe, até julho deste ano, a exposição Alento: do fio, do tecer e das tramas . A mostra faz um recorte artístico que relaciona a arte têxtil às questões da ancestralidade, do feminino, da colonização, transgressão e da poesia têxtil, abarcando artistas de diferentes

MÚSICA DE CÂMARA

Em junho passado, o Festival Sesc de Música de Câmara levou aos palcos três obras encomendadas com exclusividade para sua quarta edição e que, agora, estão disponíveis para todos os públicos em forma de single. A faixa Iluminuras, de André Mehmari, foi gravada pelo grupo Ilumina Music, enquanto What has

estados brasileiros e do exterior, como São Paulo, Minas Gerais, Acre e Cidade do México. Segundo a artista visual e educadora Célia Barros, curadora da exposição, “alentar parece ser um verbo que transpira calor e proximidade, em que o ato de urdir, costurar, bordar, tecer, pintar sobre tecido ou vestir alinhava projeções de futuro que retomam e reconectam heranças diversas”. Confira: sescsp.org.br/sjcampos.

been will be again, de Alexandre Lunsqui, foi conduzida pelo Quarteto Carlos Gomes. Além dessas composições, o arranjo inédito para Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga, foi feito pelo compositor Rodrigo Morte, e executado pelo quinteto Carion. Cada obra também inspirou um minidocumentário sobre o seu processo criativo. Disponível nas principais plataformas de áudio e no sescsp.org.br/ musicadecamara.

Rafael D. Adaime (Alento); Jānis Porietis (Festival Sesc de Música de Câmara) Arte e poesia em obras que se valem do suporte têxtil. Quinteto Carion interpreta arranjo inédito para Corta Jaca, de Chiquinha Gonzaga, composto por Rodrigo Morte.
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O histórico edifício do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), que marcou a cena teatral paulistana nos anos 1950 e 60, acaba de ser assumido pelo Sesc São Paulo e, nos próximos anos, deve abrigar uma nova unidade da instituição, no bairro do Bixiga, no centro

da capital paulista. Fundado em 1948, e tombado como patrimônio histórico na década de 80, o espaço vinha sendo administrado, desde 2008, pela Funarte (Fundação Nacional de Artes), e agora começa a se preparar para oferecer “uma programação dinâmica e

diversificada, cujos benefícios se apresentarão também para todo o bairro e região, pelo reordenamento de utilização de espaços que a cidade frequentemente proporciona para seus moradores”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo.

UM SÉCULO DE PAULICEIA

A publicação Pauliceia desvairada , obra icônica de Mário de Andrade (1893-1945) sobre a cidade de São Paulo, completou 100 anos em 2022. Proposta como uma celebração ao aniversário da obra e como parte das homenagens ao centenário da Semana de 1922, o livro Lirismo + crítica + arte = poesia: Um século de Pauliceia Desvairada reuniu críticos literários e estudiosos da obra de Mário para conceberem análises interpretativas de cada um dos 22 poemas que compõem Pauliceia desvairada , além de textos introdutórios e analíticos dos próprios organizadores. Cada poema recebeu uma ilustração de um artista plástico ou fotógrafo convidado. Saiba mais: sescsp.org.br/loja.

Lirismo + Crítica + Arte = Poesia (Edições Sesc São Paulo) tem organização de Maria Augusta Fonseca e Raul Antelo.

Divulgação
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FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

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PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
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Ricardo Ferreira

Sesc Vila Mariana ATÉ 12/02/2023. Quinta a sábado, 21h. Domingos, 18h. Especial: 25 de janeiro. Quarta, 18h. sescsp.org.br/umaleituradosbuzios ESPETÁCULO

Com Tainara Cerqueira 10 a 13 de janeiro. Terça a sexta, 15h às 18h.

Com Monica Santana 17 a 21 de janeiro. Terça a sexta, 14h às 18h.

encenação MARCIO MEIR EL L ES texto MONICA SANTANA direção musical JOÃO MILET MEIRELLES direção de movimento CRISTINA CASTRO
INSPIRADO NA CONJURAÇÃO BAIANA, REVOLTA DOS ALFAIATES OU REVOLTA DOS BÚZIOS, UM DOS PRINCIPAIS LEVANTES PELA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL, DE 1798.
Integrada
Foto: Matheus José Maria
Programação
Afro-Brasileira
Atelier de Dança
Dramaturgia
Laboratório de

Aos que virão

Com enredos que trazem o protagonismo negro na história, escritora cubana Teresa Cárdenas aproxima leitores de todas as idades da ancestralidade africana

Assim que chegou do Mercado de escravos, com uma argola de ferro no pescoço, arrastando os grilhões, enfraquecido e nu, os brancos do Engenho marcaram suas costas com um ferro quente e lhe deram o nome de José. Mas seu nome verdadeiro era Jata, e ele foi pego perto do rio Zaire”. Assim começa O Nome, primeiro conto do mais recente livro da escritora cubana Teresa Cárdenas, Awon Baba (2022), lançado pela editora Pallas. Premiada por obras que desvelam rostos, dores, mas também alegrias e memórias de antepassados africanos, a autora de Cartas para minha mãe (1997), Cachorro Velho (2005) e Mãe Sereia (2018) traça rotas de fuga, mapeia florestas e faz trilhas secretas para a liberdade, assim como suas personagens.

Sua obra devolve aos leitores o que ela própria encontrou nos livros: um refúgio. E, principalmente, o que ela não encontrou: protagonistas negros. “Nenhuma daquelas personagens era como eu. Nunca havia alguém dormindo com sua mãe, cozinhando com carvão, sem televisão em

casa, sem todas essas coisas. Ninguém com um rosto como o meu: um rosto negro”, disse em entrevista exclusiva à Revista E, durante a 20ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em novembro passado. Ainda que a maioria dos livros de Cárdenas, por vontade da escritora, sejam direcionados a um público de crianças e jovens, leitores de diferentes idades e culturas – sua obra já foi publicada em países da América Latina, nos Estados Unidos, Suécia e Coreia do Sul – têm contato com enredos que falam de um conhecimento ancestral sobre plantas, relações e humanidade. Nesta Entrevista, Teresa Cárdenas conta como foi o primeiro contato com a literatura, a influência de autoras brasileiras, seu processo de escrita e de que forma os antepassados são guias de sua literatura.

Como a literatura nasceu na sua história? Como foi esse primeiro encontro com os livros? Eu sempre amei muito os livros e a literatura. Eu vivia com a minha mãe num quartinho muito pequeno, em Cuba, num lugar que chamamos de “solar”, que é como um corredor, onde moram diferentes famílias em quartos separados.

Matheus José Maria

Éramos oito famílias e compartilhávamos apenas um banheiro. Era muito difícil, mas era como um lugar encantado para mim, quando menina. No quintal havia uma árvore e, do quarto, eu via o movimento dos galhos. Era como fugir para um mundo encantado ali e nos livros. Como éramos muito humildes, eu sempre me refugiava em histórias onde havia castelos, princesas, cavaleiros que brigavam pelo amor de uma rainha. E eu me sentia muito à vontade nesses lugares de escape, por fugir desse mundo tão humilde, muito bom e de muito carinho que era o mundo da minha mãe. Porém, às vezes eu não tinha as coisas de que precisava. Era muito difícil para comer, por exemplo. E eu dormi na mesma cama da minha mãe até os meus 23 anos. Foi um pouco complicado. Mas, esse tempo também me deu uma fortaleza e eu me refugiava nos livros para saber que havia algo mais que eu podia conquistar.

Foi a partir desse contato que você pensou em ser escritora?

Não sabia ainda que seria escritora. Me refugiava nos livros, mas não encontrava ninguém que se parecesse comigo. Nenhuma daquelas protagonistas era como eu. Nunca havia alguém dormindo com sua mãe, cozinhando com carvão, sem televisão em casa, sem todas essas coisas.

Ninguém com um rosto como o meu: um rosto negro. Nenhuma família negra como a minha. Então, isso foi o motim e, com o tempo, fui resgatando essas famílias, esses rostos, essa realidade que não aparecia nos livros. Em minha literatura, tento abordar esses espaços vazios e incluir essas histórias. Porque eu senti muita falta da representatividade nos livros. E não só da minha, como também das minhas primas, irmãs, vizinhas. Essa é uma das missões, como eu sempre digo, da minha literatura: que apareçam esses rostos, essas histórias, essas famílias nos livros, e como protagonistas. Porque muitas vezes apareciam, mas ao fundo.

E quais foram as suas referências literárias? Eu não tive essas influências literárias, porque eu não as conhecia. Eu conhecia uma gente que me rodeava, gente apaixonada, barulhenta, que dançava, que comia e falava com a boca aberta, que ria e chorava ao mesmo tempo. E é essa gente que está dentro da minha literatura. Por essa gente é que eu escrevo. A minha literatura está cheia desses personagens anti-heróis, que é o que eu reflito. Portanto, são pessoas humanas em suas ações, em suas histórias de vida. Pessoas que podem ser violentas, que podem ser tristes, que podem amar desmesuradamente sem dizer uma só palavra. Minha mãe, mesmo, me amava muito, mas ela não conseguia falar. E eu lembro que, quando era menina, nunca estive descontente comigo, mas na relação com os outros, porque não me viam como uma menina bonita. Eu era uma “negrinha feia”, com os lábios muito grossos... Fui à minha mãe e lhe perguntei: “Eu sou bonita?”. Eu precisava que ela me abraçasse com esse “sim” que eu esperava, mas ela não fez isso. Claro, ela também viveu e experimentou essa discriminação. Ela me respondeu: “Filha, eu te amo”. Só que não era isso o que eu queria e precisava escutar. Na minha literatura, há muitos desses momentos, como em Cartas para minha mãe. Há um momento em que a personagem se encontra com um pedaço de espelho, e isso aconteceu comigo. Quando ninguém me considerava bonita, somente eu, me olho no espelho, vejo meus olhos cor de amêndoa, vejo meu nariz e meus lábios como os lábios de Nefertiti, muito bonitos, e falo: “Eu sou tão bonita. Como não veem isso?”.

Como foi esse processo de se ver no espelho pelo seu olhar e não dos outros? E como isso influenciou a sua forma de escrever? A princípio, tratei de me acomodar à visão dos demais. Fiz coisas no meu cabelo. Mas quando eu comecei a me conhecer um pouco mais, a me relacionar não só com essas pessoas que me rodeavam, mas também com os livros de histórias, com os livros de poetas cubanas

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Em minha literatura, tento abordar esses espaços vazios e incluir essas histórias. Porque eu senti muita falta da representatividade nos livros

como Georgina Herrera (1936-2021) e Nancy Morejón, ou quando eu conheci a obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), quando comecei a ler os livros de Conceição Evaristo. Quando esse poder começou a me abraçar, eu comecei a me levantar. Então, tive que destruir aquela Teresa que as demais pessoas queriam, para fazer a Teresa que sou, e que eu não conhecia. Comecei a me conhecer e a saber o que eu sempre senti: que sou uma mulher negra bonita, valiosa e poderosa. Essas são as minhas influências. Influências de um empoderamento, influências espirituais, do saber, da minha identidade, da minha memória, do meu sangue. São essas coisas que me influenciaram muito, mais do que ler determinados livros.

Como é seu processo de pesquisa e de escrita, uma vez que há uma minúcia de detalhes nas histórias que escreve, como em Cachorro Velho ou nos contos de Awon Baba? É muito difícil e poderíamos falar sobre isso até amanhã [risos]. Em cada livro é diferente. Por exemplo, em Cachorro Velho, no momento em que a personagem Beira oferece uma xícara de café adoçado com mel, ali está uma das coisas que eu investiguei. Há também muitas coisas que vêm da memória, que são assistências espirituais, ancestrais,

quase. Por exemplo, meus filhos me dizem: “Mãe, o que você está fazendo?”. Porque eu estou olhando para a minha mão, vendo como ela se move e, até transferir isso para o papel, levo uma semana. Talvez isso possa equivaler a duas ou três orações do texto. Mas, eu tenho que ver o movimento e tentar traduzi-lo para a escrita. Sempre realizo muitas oficinas e, às vezes, eu digo: “Não escreva. Esse não é um trabalho fácil, é muito duro, é desgastante, é sofrido. Não faça isso, faça outra coisa. Porque é muito lacerante”. Tem vezes que não estou escrevendo, mas a história continua sendo escrita na minha cabeça, no meu coração, no meu peito, e eu tenho que arrancá-la para fora. E, como mãe preta que escreve – assim eu me apresento, porque não sou uma autora, mas uma mãe preta que escreve – é muito difícil encontrar o momento de silêncio para poder escutar o que estou pensando. Com três filhos e uma netinha, é muito difícil ter esse momento de paz para escrever. Mas, quando eu consigo, é como uma bomba, uma explosão. Talvez por isso a literatura seja tão forte, porque tenho que aproveitar esses poucos momentos para colocar tudo isso para fora.

Seus dois primeiros livros publicados no Brasil, Cartas para minha mãe e Cachorro Velho, estão na categoria infantojuvenil. Havia a intenção de que essas obras fossem dirigidas, principalmente, para crianças e jovens? Sim. Eu queria, para, de alguma maneira, responder àquela Teresa criança, as muitas perguntas que eu tinha. Eu queria trabalhar para crianças e jovens, apresentar personagens negros a crianças negras e brancas, mas para que vissem rostos negros como os seus nos livros. Essa era minha intenção. Logo, foi crescendo um pouco, e sim, agora, eu escrevo para todo mundo. Segundo os críticos do meu país, sou caracterizada como uma autora de temas difíceis. E algumas vezes, as pessoas acham que esses livros são muito fortes, porque falo da escravidão, mas a escravidão aconteceu, havia muitas crianças lá e agora há muitas crianças que descendem daquelas pessoas escravizadas. E elas têm que saber sobre sua história. Saber que ela não começou na escravidão, porque nós erámos livres na África. E na África, éramos pessoas que podiam ser curandeiros, artistas, griôs, cantores, reis. Essa é uma história da sua vida que você não conhece. Então, para mim, é fundamental escrever para os jovens leitores.

E quais respostas recebe desses jovens leitores? Ah, muito carinho. Às vezes, eu penso: “Meu Deus, que sorte eu tenho”. Sorte de receber tanto carinho dos leitores, e não somente dos latino-americanos, porque recebi muito carinho de leitores cuja cultura não é a

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Tem vezes que não estou escrevendo, mas a história continua sendo escrita na minha cabeça, no meu coração, no meu peito, e eu tenho que arrancá-la para fora

cultura afrodescendente. Por exemplo, publiquei na Coreia do Sul e lá fui seguida pelas pessoas nas ruas, não somente porque era a única mulher preta ali. Nas universidades e nas escolas, me diziam: “Muito obrigado por vir até aqui para contar a sua história”. Conheciam meu livro da primeira à última página, todos os personagens, e se identificavam com eles. Aqui, no Brasil, também. Lembro que quando estive na Bahia, como dizem os cubanos, “me sacaron el kilo” [perdi um quilo, em tradução literal]. Porque eram três dias de conferências, e quando eu perguntava quanto tempo durariam, me diziam: “Ah... quatro”. Ou seja, quatro horas todos os dias, o teatro cheio, não sabia mais o que compartilhar, e as pessoas queriam saber meu processo de criação de personagens, histórias, queriam saber tudo. Em São Paulo, fui convidada algumas vezes pela Universidade Zumbi dos Palmares, e recebi, em 2018, o prêmio Raça Negra. Foi muito bom! Já o Rio de Janeiro é minha casa. E digo: tenho mais amigos no Rio do que em Havana. Também estive no Ceará, em Pernambuco, em muitos lugares, e sempre sou muito bem recebida. Agradeço ao povo brasileiro.

Você viaja para muitos países europeus, asiáticos, e está presente em diversos eventos literários, como a Festa Literária Internacional de Paraty, que em 2022 homenageou a obra da escritora Maria Firmina dos Reis (1822-1917), junto a autores de várias partes do mundo. Que reflexão você faz sobre o atual cenário mundial da literatura e que desafios ainda estão presentes para que mais vozes negras sejam publicadas, lidas e homenageadas? Acho que demorou, isso tinha que ter acontecido antes. Falamos muito de racismo, tanto em Cuba como no Brasil, e é preciso lembrar sempre que o Brasil foi o último país a libertar as pessoas escravizadas, em 1888, dois anos antes foi Cuba. Refleti há pouco tempo sobre isso numa entrevista: como é possível que nestes 30, 40 anos, o homem tenha alcançado um desenvolvimento na tecnologia, mas siga com pensamentos colonialistas e escravizantes? Seja pela cor de pele, pelo gênero ou pela orientação sexual? É uma brutalidade ser racista. O racismo não é inteligente, é um crime de desumanidade, porque ele corrompe tudo. E há quem ainda não se dê conta dos danos que o racismo provoca sobre as pessoas.

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Matheus José Maria

A literatura acaba se tornando esse espelho sobre o qual você falou, e um meio de contar outras histórias sobre a população afro-cubana e afro-brasileira, por exemplo?

A literatura que eu faço, mas a que fez Carolina Maria de Jesus, que faz Conceição Evaristo, Lilian Rocha, Ana dos Santos, muitas escritoras afro-brasileiras. Elas trazem esse empoderamento da mulher negra, mas de todo povo afrobrasileiro. Trata-se de dizer: Nós estamos aqui, e você não tem direito sobre a minha pessoa. Você não pode violentar a minha vida com seus pensamentos racistas. Acho que a literatura que estamos escrevendo agora, tanto no Brasil, em Cuba, quanto na Colômbia e em Costa Rica, por exemplo, é escrita por mulheres pretas e é um instrumento de resistência, de luta, de “estamos juntas”, de “ninguém solta a mão de ninguém”, de que agora, sim, estamos vendo que o futuro vai ser melhor. Nos fortalecemos umas nas outras. Eu tenho amigas, irmãs, escritoras negras como eu, com filhos, com lutas, com momentos tristes, com momentos de valentia, de paixão pela vida e, sobretudo, pela literatura e por deixar esse legado para os que virão. Não é só para os outros, mas para os que virão e que não podem começar a luta da estaca zero como nós. Aqueles que virão têm que encontrar as coisas mais avançadas. Sendo assim, escrevemos por nós e por eles: nossos filhos, nossos netos.

Uma questão que a gente percebe tanto no primeiro livro, Cartas para minha mãe, e em Cachorro Velho, é a falta do nome do protagonista. E no recém-lançado Awon Baba, o primeiro conto chama-se O Nome e fala sobre a importância desse nome que foi retirado de mulheres, homens e crianças escravizadas. Por que nos dois primeiros livros há ausência do nome, e nesse último, ele está presente? Em Cartas para minha mãe, eu terminei completinho o livro. Fiquei muito contente. Sempre que eu termino de escrever, deixo [o livro] descansar, e volto à leitura para corrigir algumas coisas. Nesse caso, quando eu voltei à leitura, me dei conta: eu não sabia que a personagem não tinha nome. Não sei por quê… Eu sempre digo que a literatura tem vida própria. E eu digo que sou portadora de uma mensagem. Sou apenas um instrumento deles, dessa gente que nunca teve voz e que agora pode ter pela minha literatura, mas é a voz dessa gente, não a minha. Então, percebi que a personagem não tinha nome, e comecei uma busca exaustiva por um, mas nenhum se acomodava. Até que entendi que ela não precisava de nome. Porque ela é a representação de muitas meninas que podiam estar passando pelo mesmo. Tanto foi assim, que esse livro, meu primeiro, teve uma explosão

de leitores de todas as partes do mundo. Mulheres e homens se aproximaram tanto dessa personagem sem nome, crianças brancas, negras, asiáticas, crianças de todas as partes do mundo, de diferentes culturas. Foi muito interessante. Esse é um dos livros mais cativantes. Um livro “travesseiro”, ou seja, daqueles que você não empresta, porque não te devolvem. É um livro muito amado pelos leitores até hoje. Eu o escrevi quando tinha acabado de ter a minha filha, que agora tem uma filha. Esse livro vai completar 25 anos e segue sendo lido, amado e protegido. Em Cachorro Velho, está um pouco mais explicado esse aspecto de retirada do nome e colocado outro nome “mais civilizado” [no personagem, um homem negro idoso escravizado]. E ao final, o nome é revelado somente para ele. E aí ficamos, os leitores, só de espectadores. Porque o nome só foi revelado a ele, nem sequer a mim, que foi quem escreveu.

Em Awon Baba, os personagens dos contos sabem seus nomes. Por que neste livro você fez essa escolha? Awon Baba [pronuncia-se abon baba] é uma expressão iorubá que significa “os antepassados”, “os pais”, aqueles que nos deixaram um legado. Na cultura africana, o respeito aos mais velhos e o respeito às tradições são muito importantes. E, por isso, esse livro é como uma homenagem àquelas pessoas que nos deixaram sua resistência e sobrevivência. Graças ao fato de terem sobrevivido ao terror que foi a escravidão, hoje, estamos aqui. Eu começo com o conto O Nome, porque eu considero o nome a primeira posse de toda pessoa. No caso dos africanos, sobretudo o povo iorubá, o nome é dado ao recém-nascido quando ele completa sete ou oito dias. Há ritos para escolher qual será o nome do bebê. Não é

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Se você se esquece de onde você é, quem você é, você não tem futuro

uma decisão fácil que se toma de primeira. Dar nome às pessoas é algo que exige muita reflexão e respeito. Eu explico um pouco disso nesse conto, mas me concentrei em como era retirado, não somente o nome, como todo o resto de humanidade desses africanos. Eles eram castigados se falassem como seu povo, não deixavam que adorassem seus próprios deuses. Eles teriam que tirar deles tudo que os recordasse quem eles eram e adotar, com violência e crueldade, aquelas coisas novas que lhes eram impostas: os deuses, a linguagem, a comida. Era como um nascer de novo, mas sob uma violência profunda, e muitos não sobreviveram. Por isso, há uma parte desse conto em que eu falo dessa ruptura espiritual, dessa ruptura da sabedoria. Tive que fazer um estudo aprofundado sobre as vozes religiosas do meu povo. Esse conto, O Nome, fala que mesmo tirando-lhes tudo o que tiraram, eles sobreviveram. E aí um deles, que não teve o nome substituído por um nome cristão “mais civilizado” – porque os brancos não conseguiam pronunciar o nome africano –, esse personagem, o Suyeré, ele lembrava porque sua mãe lhe disse seu nome, de que família ele vinha, como seria celebrado seu nascimento, quem foi seu pai, todas essas coisas. Aí está o legado.

Como você observa hoje essa troca entre gerações mais velhas e mais novas? Há uma valorização desse ensinamento ancestral ou ainda é um desafio mostrar aos jovens que a experiência dos antepassados é essencial para compreensão e mudança de desigualdades e injustiças do presente?

Eu tenho muitos contos que falam sobre isso [essa troca entre gerações], muitos contos feitos a Oxalá, que é a representação da sabedoria, do conhecimento e da inteligência – acho que também aqui no Brasil. São esses contos que falam sobre os anciãos ensinando as novas gerações. Um deles se chama Os Velhos, e fala sobre um momento em que os jovens não queriam saber mais nada

sobre os velhos. Estavam cansados dos velhos, porque eles sempre diziam o mesmo. Os jovens foram, então, a Olódùmarè, que os levou a um lugar onde não havia velhos. Os jovens ficaram contentes ali: não tinham que ver caras enrugadas, pessoas que caminhavam devagar, tampouco escutar algo que os incomodasse. Mas, com o tempo, eles foram perdendo habilidades. Foram esquecendo coisas que haviam aprendido, e não podiam existir porque lhes faltava experiência. E então, não conseguiram sobreviver. Aí, Oxalá fala com Olódùmarè e diz que quer ajudá-los. E cantando, atravessa um lugar muito extenso até encontrar um jovem e uma jovem, e começa a ensinar-lhes e a passar tudo aquilo que eles haviam esquecido. É só um conto, mas é uma metáfora do que pode acontecer. Acho que, sobretudo, a cultura africana sempre foi passada de boca a boca. E, por isso, eu acho que os jovens têm que ser “orelhas”, eles têm que escutar. É essa a importância de não perder o vínculo, o conhecimento, a sabedoria, o que é passado de geração em geração. Só assim sobreviveremos e seguiremos. Se você se esquece de onde você é, quem você é, você não tem futuro. Por isso, minha literatura sempre volta a essas questões, para que as crianças de agora leiam e saibam. Agora, com toda essa tecnologia, perde-se muito tempo, mas, ainda assim, temos os livros. É muito importante não só para crianças, porque há muitas pessoas com a minha idade que também se esqueceram. É bom que as pessoas tropecem nesses livros e recordem todas essas histórias.

Assista ao vídeo com trechos da Entrevista com a escritora cubana Teresa Cárdenas, gravada durante a 20ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

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Como é possível que nestes 30, 40 anos, o homem tenha alcançado um desenvolvimento na tecnologia, mas segue com pensamentos colonialistas e escravizantes?

SANTANA

LANÇAMENTO SELO SESC
ritmos afro-brasileiros e cubanos, o novo álbum do pianista e compositor
do violonista
compositor
traz vozes, piano, violão-tambor
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e percussão em uma oferenda ao tempo presente e às ancestralidades negras que cruzaram o Atlântico. /selosesc Visite a loja virtual e conheça o catálogo completo sescsp.org.br/loja

Segundo o sociólogo francês Joffre Dumazedier, o lazer abarca três Ds: descanso, divertimento e desenvolvimento.

Juliana Lobato

Como as tecnologias e o uso em excesso das telas podem favorecer o sedentarismo, mas também ser aliados da prática físico-esportiva

TEMPO DE lazer

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Como você tem passado o seu tempo livre? O que tem escolhido fazer nos momentos de lazer? Gosta de praticar atividades ao ar livre, que estimulem o movimento do corpo, ou prefere ficar nas redes sociais, quem sabe maratonando filmes e séries? Aliás, qual é a sua concepção de lazer?

Para estudiosos do tema, o lazer é uma dimensão da cultura humana – e não uma atividade propriamente dita – que envolve elementos como tempo, espaço, atitude e manifestações culturais. Esse fenômeno implica, de acordo com o sociólogo francês Joffre Dumazedier, três Ds: descanso, divertimento e desenvolvimento.

Segundo a pesquisa A dimensão tempo na gestão das experiências de lazer em período de pandemia da Covid-19 no Brasil, publicada em setembro de 2020 pela revista Licere, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a maioria (79%) dos 2.278 participantes (adultos de todos os estados e do DF) declarou dispor de tempo para o lazer naquele momento de isolamento social. Desse total, 54% afirmaram que suas experiências de lazer, porém, haviam diminuído se comparadas ao período pré-pandemia. Nesse estudo, o lazer foi dividido em sete categorias: virtual, intelectual, manual, artístico, turístico, físico-esportivo e social.

“Com o fechamento de academias, clubes e parques, trabalho remoto, afazeres domésticos e o cuidado com filhos e familiares, muitas pessoas tiveram seu tempo de lazer reduzido. Mas, entre os que se mantiveram ativos mesmo dentro de casa, 80% usaram o quintal ou fizeram adaptações em cômodos, nas sacadas, garagens e até em corredores para praticar ginástica, yoga e meditação. Muitos, inclusive, compraram acessórios para fazer exercícios, como colchonetes, pesos e esteiras ou bicicletas ergométricas – assim como muita gente adquiriu, por outro lado, cadeira gamer, home theater e jogos de videogame”, descreve Ana Paula Teodoro, doutora em ciências da motricidade pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenadora do Laboratório de Gestão das Experiências de Lazer (Lagel/Gesporte), da Universidade de Brasília (UnB), que realizou a pesquisa.

Entre as atividades físicas mais citadas, estavam, nesta ordem: meditação, zumba, ciclismo, dança, musculação, corrida e natação. “Aqueles que alegaram não praticar exercícios nem ter muitos momentos de lazer citaram

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a falta de tempo como principal fator. Além disso, a linha entre trabalho remoto e lazer está cada vez mais tênue e difícil de ser contabilizada, pois, enquanto eu trabalho, posso ver um vídeo ou interagir numa rede social. Esses tempos se fundem e, cada vez mais, fica difícil falar numa separação cronológica deles”, analisa.

De acordo com a pesquisadora, o estudo também revelou um aumento no uso da internet e das telas, aparecendo nas respostas de quase todas as categorias de lazer. “As pessoas mencionaram que participavam de chamadas de vídeo com amigos e familiares, aniversários online, aulas remotas de dança e ginástica, jogos de videogame, lives de artistas e leituras digitais, além de assistir a filmes, séries e vídeos diversos (de culinária, artesanato, jardinagem etc.)”, enumera. Ela também acrescenta que já faz mais de duas décadas que as tecnologias vêm promovendo alterações significativas nas

dinâmicas sociais, mas isso ficou ainda mais evidente a partir do período de pandemia. “A casa não é mais um espaço isolado do mundo. As pessoas estão o tempo todo conectadas com o ambiente externo.”

IMPACTOS DO EXCESSO

Desde a pré-pandemia até o primeiro trimestre de 2022, houve uma queda de 21% entre os brasileiros que declararam se exercitar toda semana, chegando a um terço da população (71 milhões de pessoas). É o que revela o estudo Covitel, feito em 2021 pela organização Vital Strategies, em parceria com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel). O levantamento avaliou 18 indicadores de saúde (como prática de atividade física no tempo livre e consumo de alimentos in natura), além de fatores de risco para doenças crônicas (excesso de peso, tabagismo, uso de álcool e tempo de tela).

Pesquisa aponta que desde a pré-pandemia até o primeiro trimestre de 2022, houve uma queda de 21% entre os brasileiros que declaram se exercitar toda semana.

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A Organização Mundial da Saúde (OMS) dobrou sua recomendação semanal de atividade física moderada ou vigorosa de 150 para 300 minutos (ou 5 horas).

Nunis
Alexandre

TODA A NOSSA RELAÇÃO COM O CORPO E COM O MOVIMENTO É APRENDIDA AO LONGO

DA VIDA

Thabata Telles, psicóloga clínica e do esporte

Para tentar reverter esse cenário, nos últimos dois anos a Organização Mundial da Saúde (OMS) dobrou sua recomendação semanal de atividade física moderada ou vigorosa: de 150 para 300 minutos (ou 5 horas). E o excesso do tempo em frente a telas também pesa nessa conta. Além do sedentarismo, o uso de celulares, tablets, notebooks e televisores acima do limite considerado saudável favorece a má qualidade do sono, a redução nas relações interpessoais, a superestimulação da atenção e a subestimação intelectual, segundo o pesquisador francês Michel Desmurget, especializado em neurociência cognitiva e autor de livros sobre o tema.

Para Cassio Meira Jr., doutor em educação física pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, há um número cada vez maior de crianças e adolescentes sedentários por causa das telas. “Muitos adolescentes viram noites em maratonas de jogos online e acabam tendo problemas de sono e não conseguindo controlar a ansiedade de jogar. Além disso, temos visto um aumento de problemas motores, posturais, oftalmológicos e de saúde mental, de vício mesmo, em que a pessoa não consegue sair da frente da tela”, relata.

A psicóloga clínica e do esporte Thabata Telles, pósdoutora em educação física e esporte pela USP e vicepresidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (Abrapesp), complementa que o uso excessivo de telas, seja para lazer ou trabalho, acaba trazendo impactos negativos à saúde física e mental. “Do ponto de vista dos neurotransmissores, o excesso de tempo gasto nas redes sociais, por exemplo, está relacionado a um boom de dopamina. Isso faz com que você tenha uma sensação de prazer constante, porque o algoritmo filtra coisas que têm a ver com o que você gosta e visualiza. Para sair desse ciclo, é muito complicado”, diz.

Segundo a psicóloga, estamos ensinando nossos corpos a permanecerem sentados, em posturas estáticas, por longos períodos. “É como se a gente estivesse se desacostumando a se movimentar. Estamos criando um hábito de ficar muito tempo parados na frente das telas. Toda a nossa relação com o corpo e com o movimento é aprendida ao longo da vida. A gente ‘informa’ ao corpo [e ao cérebro] o que vale a pena fazer. Se eu digo o tempo inteiro que a melhor forma de me divertir é estar parado, então vou ter que fazer um esforço muito maior para sair da inércia, mesmo que seja uma simples caminhada”, considera.

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A TECNOLOGIA PODE SER UMA PORTA DE ENTRADA PARA AS PESSOAS EXPERIMENTAREM NOVAS PRÁTICAS

Andrea Toledo, assistente da Gerência de Desenvolvimento Físico-Esportivo do Sesc São Paulo

Thabata reforça que a atividade física também libera hormônios ligados ao prazer e ao bem-estar, como serotonina, endorfina e dopamina, mas que primeiro é preciso se movimentar e se expor ao desconforto. “Há estudos que falam da importância de olharmos para o horizonte, de ampliarmos nosso campo de visão, para aumentar nossa percepção de mundo e nossos movimentos. Quando andamos ou passeamos por uma cidade, ampliamos essa capacidade, por meio das coisas que vemos, ouvimos, cheiramos e sentimos na pele, como o frio, o calor e a chuva”, explica.

TECNOLOGIA COMO ALIADA

Quando utilizadas de maneira adequada e por períodos limitados, as telas podem oferecer vantagens à prática esportiva. Segundo a pós-doutora em educação física e esporte Thabata Telles, há aplicativos e aparelhos que ajudam a medir a frequência cardíaca, o gasto calórico e a qualidade do sono, entre outros indicadores. “Planilhas, vídeos, apps, consultas online e o acompanhamento remoto de personal trainers têm facilitado o acesso de pessoas à prática de exercícios. Mas acho importante haver um equilíbrio entre o on e o offline”, ressalta. Segundo o professor Cassio Meira Jr., também há jogos de videogame que propiciam movimentos amplos do corpo, fazendo os participantes mexerem pernas, braços e quadris e, com isso, a atividade física vai sendo estimulada dentro de casa.

Para a pesquisadora Ana Paula Teodoro, as novas tecnologias também podem auxiliar nas aulas de educação física, com diversas opções que estimulam a prática de atividades físicas, como caça ao tesouro pelo WhatsApp, jogos que utilizam o Instagram e permitem interação, Pokémon GO, Among Us e até quadribol do Harry Potter. “O professor não precisa saber jogar, mas entender a realidade dos alunos, do que eles gostam, e trazer isso para suas aulas. Participo de oficinas e cursos pelo Brasil para falar sobre webgames que envolvem o corpo e o uso de tecnologias durante as aulas”, diz.

Uma das propostas que aliam esporte e tecnologia é o canal @esportesescsp, iniciativa do Sesc São Paulo presente, desde 2020, no Instagram e, um ano depois, no YouTube. Nesses canais virtuais, o público encontra dicas, aulas e informações sobre esporte e atividade física para ter uma rotina mais ativa. As publicações, compostas por vídeos curtos, lives, aulas abertas e até cursos mais longos, todos gratuitos, apostam em temas como coordenação motora, exercícios aeróbicos, de força e condicionamento, modalidades esportivas, práticas corporais, dança, meditação e respiração. “A tecnologia pode ser uma porta de entrada para as pessoas experimentarem novas práticas. São conteúdos que podem ser adotados no dia a dia, para um treino mais completo”, destaca Andrea Toledo, assistente da Gerência de Desenvolvimento Físico-Esportivo do Sesc São Paulo.

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esporte

Planilhas, vídeos, aplicativos e acompanhamento remoto de um personal trainer podem facilitar o acesso de pessoas à prática de exercícios.

Natt
Fejfar

esporte / para ver no sesc

PRÁTICAS DIVERSAS

Focado em atividades presenciais, Sesc Verão 2023 deseja atrair o público com vasto leque de opções e incentivá-lo a aderir às práticas no dia a dia

Na programação do Sesc Verão, é possível escolher entre várias atividades, como esta aula de bicicleta no Sesc Santos.

De 7 de janeiro a 12 de fevereiro, o Sesc São Paulo promove, em todo o estado, o Sesc Verão 2023. Com o tema Pratique onde estiver! Como quiser!, a 27ª edição convida o público a participar das mais de 1300 ações, todas gratuitas, e assim refletir sobre a importância de incluir exercícios em sua rotina diária.

“Por meio de uma programação intensa, diversificada e predominantemente presencial, o Sesc Verão 2023 busca oferecer o maior número possível de atividades

para incentivar as pessoas a encontrarem a prática que melhor se encaixe no seu perfil e, assim, manter-se em movimento dentro e fora das unidades do Sesc. Queremos que o público entenda os benefícios da atividade física e aprenda a administrar bem o seu tempo, para incluir esse momento de autocuidado no dia a dia”, destaca Carol Seixas, gerente da Gerência de Desenvolvimento Físico-Esportivo do Sesc São Paulo. Conheça a programação completa: sescsp.org.br/sescverao.

ARARAQUARA

Vivência de natação para pessoas cegas O ex-atleta paralímpico Alex Viana Palhares ensina adaptações necessárias para a participação de pessoas com deficiência visual nessa atividade aquática. De 7 a 10/2, das 16h às 17h. GRÁTIS.

Beto Assem (esquerda); Matheus José Maria (centro)
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No Sesc Interlagos, a Arena Praia oferece uma área aberta com equipamentos para a prática de ginástica ao ar livre, bem como para alongamento.

CONSOLAÇÃO

Corrida no Minhocão

A ultramaratonista e personal trainer Isadora Martins conduz essa atividade integrativa para estimular a prática inclusiva e prazerosa da corrida no dia a dia. Dia 12/2, domingo, das 8h às 10h. GRÁTIS.

Apresentação esportiva de skate, com Sandro Dias Mineirinho, como é conhecido, é hexacampeão mundial pela World Cup Skateboarding, tricampeão brasileiro e tricampeão do circuito europeu. Foi medalhista em X Games por mais de dez vezes e é conhecido por sua habilidade de “voar” com o skate, sendo o terceiro skatista da história a executar uma manobra de 900° (dois giros e meio no ar). Dia 7/1, das 14h30 às 16h30. GRÁTIS.

GUARULHOS E MOGI DAS CRUZES

Ginástica para todos, com Rebeca Andrade Bate-papo, apresentação e vivência esportiva com a atleta da seleção brasileira de ginástica artística, medalhista de ouro e prata nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021. Dia 7/1, das 10h às 12h (Mogi das Cruzes) e das 15h30 às 17h30 (Guarulhos). GRÁTIS.

para ver no sesc / esporte

SANTOS

A prática esportiva e a importância da vida ativa, com Marcio Atalla Palestra com o preparador físico, consultor e comunicador especializado em saúde e bemestar. Atalla é pós-graduado em nutrição pela Universidade de São Paulo (USP) e atua no treinamento de alto rendimento. Dia 11/1, das 20h às 21h30. GRÁTIS.

SANTO AMARO Apresentação e vivência de

vôlei

de areia, com Jacqueline Silva

A ex-atleta e campeã olímpica oferece aos participantes a oportunidade de entrar na quadra de areia e experimentar essa modalidade.

Dia 14/1, das 11h às 14h. GRÁTIS.

Ricardo Ferreira
Crianças aprendem a pedalar em vivência de bicicleta, no Sesc Vila Mariana.
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Arquivo Nise da Silveira Sem título (1968), de Emygdio de Barros. Óleo sobre papel.

coração LIBERTO

O olhar revolucionário da médica Nise da Silveira, que dignificou o atendimento psiquiátrico no Brasil por meio da arte

Durante os dez meses em que esteve preso no antigo Complexo Presidiário Frei Caneca, no Rio de Janeiro, o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) costumava jogar cartas na companhia de uma prisioneira franzina, de fala meiga e expressão acolhedora. Conterrâneos, não se conheciam até serem detidos, em 1936, acusados de subversão pelo governo Getúlio Vargas (1882-1954). Rapidamente se tornaram amigos, e conversavam por longas horas sobre literatura, filosofia e a vida que deixaram do lado de fora das grades. Tocado pela amizade nascida no ambiente hostil, angustiante, o autor imortalizou o encontro fraternal nas páginas da obra póstuma Memórias do Cárcere (1953): “[...] No patamar, abaixo de meu observatório, uma cortina de lona ocultava a Praça Vermelha. Junto, à direita, além de uma grade larga, distingui afinal uma senhora pálida e magra, de olhos fixos, arregalados. O rosto moço revelava fadiga, aos cabelos negros misturavam-se alguns fios grisalhos. Referiu-se a Maceió, apresentou-se: Nise da Silveira”.

A amiga seria homenageada por Graciliano Ramos, ainda, ao servir de inspiração para a personagem Caralâmpia, no livro de contos infantis A Terra dos Meninos Pelados (1937). No reino de Tatipirun, Caralâmpia é uma menina criativa, que se transforma em princesa e possui uma extraordinária habilidade: a de compreender o outro –

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os diferentes, os incomuns e os monstros. É desta forma que a médica psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) não só habitaria a obra do autor de Vidas Secas (1938), como também revolucionaria, para sempre, o campo da saúde mental, ao se tornar referência mundial na luta antimanicomial e na defesa do tratamento humanizado para pacientes com transtornos psíquicos. Radicalmente contrária às intervenções clínicas consideradas violentas, como o confinamento e a eletroconvulsoterapia, Nise foi pioneira ao introduzir, no Brasil, a terapia ocupacional baseada em expressões artísticas – e seu legado segue como uma das mais belas e potentes contribuições para o entendimento do inconsciente humano.

DESAFIAR E CRIAR

Ao ingressar na Faculdade de Medicina da Bahia, aos 16 anos, Nise da Silveira era a única mulher entre os 157 colegas de turma. Seria, também, uma das primeiras médicas a exercer a profissão no país. Contava com o apoio irrestrito do pai, professor e jornalista, e da mãe, pianista. O ímpeto desbravador se refletiu na atividade final de conclusão de curso, um ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil. Publicado em 1926, o estudo procurava traçar o perfil de mulheres infratoras, investigando temáticas pouco exploradas pela academia na época, como prostituição e alcoolismo feminino. No ano seguinte, em busca de trabalho, muda-se para o Rio de Janeiro com o marido, o médico sanitarista Mário Magalhães (1905-1986). Especializa-se em psiquiatria e, em 1933, passa a atuar no antigo Hospício Nacional de Alienados, em atividade entre 1841 e 1944.

Na instituição, foi denunciada por uma enfermeira ao guardar livros e jornais de teor marxista entre seus pertences – acusação que motivaria sua detenção, desligamento das funções no hospital e posterior clandestinidade. Nise permaneceu presa até 1937. Ao sair da prisão, refugiou-se no interior da Bahia, na companhia do marido e dos gatos que tanto amava. Escondida das autoridades, foi julgada à revelia, absolvida e anistiada. No período de reclusão, entrou em contato com o pensamento do filósofo holandês Baruch Spinoza (16321677) e sua dinâmica dos afetos, tema central de sua obra – e que exerceria enorme influência no trabalho da psiquiatra. Ao retomar o cargo público, em 1944, Nise da Silveira iniciou um serviço pioneiro no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no bairro de Engenho de Dentro, na zona norte da capital fluminense, atual Instituto Municipal Nise da Silveira.

O impacto primeiro [do trabalho de Nise] é de ordem filosófica: a psiquiatria não é apenas um ramo da medicina, mas um saber plural, poético e intenso Marco Lucchesi, amigo e escritor

Nise da Silveira e o interno Jarbas, que sempre a acompanhava nas festas promovidas pela Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II (1969).

Arquivo Nise da Silveira
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título, de Fernando Diniz. Óleo e guache sobre papel.

CURAR ESTIGMAS

Boicotada pela direção do hospital, fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação no setor de almoxarifado – local onde as tarefas de limpeza e manutenção eram realizadas pelos pacientes, aos quais a médica se referia como clientes. Implanta ateliês de pintura, desenho, escultura, colagem e costura. Bemrecebidos pelos internos, os espaços revolucionariam a psiquiatria praticada no Brasil, até aquele momento vinculada a uma visão ortodoxa da saúde mental, e tangenciada por agressões físicas, tortura e maus-tratos frequentes. Integrando a equipe médica precursora, estava a sambista Ivone Lara (1921-2018), que atuou como enfermeira e assistente social por quatro décadas. Foi da artista a ideia de implantar uma sala com instrumentos musicais à disposição dos pacientes – inaugurando, assim, a musicoterapia no país.

“O impacto primeiro [do trabalho de Nise] é de ordem filosófica: a psiquiatria não é apenas um ramo da medicina, mas um saber plural, poético e intenso. Destaco também a importância de sua condenação à lobotomia, a insatisfação com os prontuários e a recuperação das biografias [dos pacientes], o abatimento do muro [que separava o hospital do mundo], o uso da arte como elemento de cura e despotencialização de energia, a recusa da camisa de força [de pano ou química], a presença dos coterapeutas [cães e gatos] e o papel do afeto catalisador", reflete o escritor Marco Lucchesi, autor de Viagem a Florença: cartas de Nise da Silveira a Marco Lucchesi (Rocco, 2003), obra que reúne a correspondência que trocaram ao longo de mais de uma década de amizade. “O trabalho da Dra. Nise é uma das conquistas do pensamento brasileiro. Uma epistemologia do Sul. Por isso mesmo, seu impacto mundo afora, sua invenção profunda e inigualável. A revolução pelo afeto – que belo título! – vem justamente dessa ótica subjetiva profunda”, comenta o escritor.

Arquivo Nise da Silveira
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Sem

A BELEZA DO CUIDADO

A metodologia defendida pela médica resultaria na fundação, em 1952, do Museu de Imagens do Inconsciente, centro de estudo e pesquisa destinado à preservação dos trabalhos produzidos nos estúdios do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II. O museu conta com um acervo de mais de 360 mil itens. Em 1956, por sua vez, a médica psiquiatra criou a Casa das Palmeiras, “um pequeno território livre”, como ela caracterizava o espaço destinado a reabilitar antigos pacientes de instituições psiquiátricas.

“Dra. Nise reconhecia as obras de arte criadas pelos pacientes – intituladas prontuários imagéticos –como preciosos documentos que abriram enormes possibilidades para uma compreensão reveladora do universo interior das pessoas portadoras de esquizofrenia”, ressalta a arteterapeuta Isabel da Cunha Viana. Apesar de não considerar os desenhos e pinturas apresentados no museu unicamente como obras de arte, a produção no ateliê revelaria pacientes como artistas plásticos de talento – carinhosamente

apelidados pela psiquiatra de camafeus – cuja relevância obteve respaldo de críticos de arte como Mário Pedrosa (1900-1981) e o poeta Ferreira Gullar (1930-2016). Entre os camafeus, nomes como Emygdio de Barros (1895-1986), Adelina Gomes (1916-1984), Fernando Diniz (1918-1999) e Carlos Pertuis (1910-1977).

Ferreira Gullar, em texto publicado no jornal Folha de S.Paulo, em outubro de 2016, recordou: “Nise mostrou essas obras a Mário Pedrosa, que se empolgou com o talento de alguns daqueles pacientes e escreveu sobre a extraordinária experiência que ali se realizava. Os demais críticos de arte reagiram: doido não faz arte. Eu, que começava a escrever sobre arte, também me empolguei e passei a visitar o ateliê do Engenho de Dentro. Mas eis que um dia, próximo do Natal, a Dra. Nise pergunta aos seus pacientes o que queriam de presente. Emygdio de Barros, um dos gênios da turma, respondeu: ‘Quero um guarda-chuva’. Ela se surpreendeu e se perguntou: ‘Por que ele quer um guarda-chuva se vive aqui dentro, onde não chove?’. E concluiu: ‘Já sei, ele quer ir embora do hospital’”, escreveu Gullar.

Arquivo Nise da Silveira
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Sem título (1976), de Carlos Pertuis. Lápis de cera sobre papel.

CAMINHOS DA PERCEPÇÃO

Continuamente motivada a entender os desenhos feitos por seus pacientes, Nise da Silveira procurou respostas na obra do psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), fundador da escola de psicologia analítica. Para isso, ousou escrever ao próprio Jung: junto à correspondência, enviou fotografias com os desenhos circulares pintados em profusão pelos seus pacientes em terapia. A resposta chegaria um mês depois, com a confirmação de que os tais círculos eram, de fato, mandalas – imagens às quais Jung recorre para simbolizar a representação da psique.

Escrita em nome do suíço por sua colaboradora, a psicóloga Aniela Jaffé (1903-1991), a missiva relatava: “O Professor Jung faz diversas perguntas, que reproduzo a seguir: O que significam esses desenhos para os doentes, do ponto de vista de seus sentimentos? O que eles quiseram exprimir por meio dessas mandalas? Será que esses desenhos tiveram alguma influência sobre eles? Ele ainda observou que os desenhos têm uma regularidade notável, rara na produção dos esquizofrênicos, o que demonstra forte tendência do inconsciente para formar uma compensação à situação de caos do consciente. Ele também notou que o número 4 (ou 8 ou 32 etc.) prevalece. Eu, por minha parte, acho que as cores dão ainda mais força expressiva aos desenhos”. Jung convidaria a brasileira, ainda, para duas temporadas de estudos no Instituto Junguiano de Zurique, na Suíça, e foi um grande incentivador de exposições do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente em congressos internacionais de psiquiatria. Gestos que confirmaram a brilhante transformação preconizada por Nise da Silveira já àquela época.

EXPRESSÕES DO SENTIR

Exposição celebra a contribuição da psiquiatra Nise da Silveira para o campo da saúde mental

Em cartaz no Sesc Belenzinho, a mostra Nise da Silveira: A Revolução pelo afeto propõe uma imersão na vida e na obra da médica a partir de três eixos. No primeiro, Contexto, dor & afeto, são levantadas questões do debate sobre loucura e normalidade. No segundo recorte, Ser mulher, ser revolucionária, o foco é a trajetória pioneira e combativa de Nise. Já em Engenho de Dentro: inconsciente e território, terceiro eixo do projeto, são expostas algumas das obras criadas pelos pacientes acompanhados pela médica ao longo de sua atuação no antigo Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, atual Instituto Municipal Nise da Silveira, onde trabalhou entre 1944 e 1975.

Fazem parte da mostra trabalhos de quatro dos camafeus de Nise da Silveira: Adelina Gomes, Emygdio de Barros, Carlos Pertrius e Fernando Diniz, artistas reconhecidos pela crítica especializada e que eram bastante próximos à médica.

Junto aos camafeus, estão, também, produções de artistas contemporâneos, como Lygia Clark (1920-1988) e Carlos Vergara. A exposição conta ainda com quatro pinturas de Aurora Cursino dos Santos (1896-1959) e três obras de Ubirajara Ferreira Braga, todas do acervo do Museu Osório César, parte do Complexo Hospitalar do Juquery e um dos símbolos da arteterapia no país. A curadoria da mostra é do Estúdio M’Baraká, com consultoria do psiquiatra Vitor Pordeus e do museólogo Eurípedes Júnior.

BELENZINHO

Nise da Silveira: A Revolução pelo Afeto Até 26/3, de terça a sábado, das 10h às 21h. Domingos e feriados, das 10h às 18h. Livre. GRÁTIS. Saiba mais: sescsp.org.br/belenzinho

Arquivo Nise da Silveira
39 | e para
sesc / bio
Sem título (1960), de Adelina Gomes. Óleo sobre papel.
ver no

RAÍZES FEMININAS

Protagonismo das mulheres indígenas conquista espaço cada vez maior nas artes visuais, na literatura e na mídia

Crédito da foto e | 40
gráfica

Reflexo de Watatakalu (2019), fotografia de Henry Mähler-Nakashima.

Coordenadora do braço de atuação feminina da Associação Terra Indígena do Xingu, Watatakalu Yawalapiti em ritual de pintura, na 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, realizada em Brasília (DF), entre 9 e 13 de agosto de 2019.

Osigno feminino, na concepção de vários povos indígenas, vai muito além das mulheres: está presente nos seres da natureza – árvores, rios, animais e nos humanos, sejam eles homens ou mulheres, adultos ou crianças. A partir dessa visão ancestral, o feminino está na base de tudo, no chão, no território, na mãe-Terra. “Está também na Lua, que nos ajuda nos plantios e nas colheitas. A mulher, porém, é considerada a versão mais completa do feminino, porque tem a capacidade de reprodução da vida, do cuidado, embora todos possam cuidar. Além disso, nós não vemos a função doméstica como pejorativa, porque a nossa casa, nosso lugar de moradia, é considerado muito importante”, explica Fabiane Medina Cruz, doutoranda em ciência política. Ela, que é da etnia Avá-Guarani, do Mato Grosso do Sul, pesquisa gênero, feminismo indígena e políticas públicas para mulheres indígenas, além de trabalhar em dois documentários sobre essas temáticas e integrar a curadoria da exposição Coração na aldeia, pés no mundo, no Sesc Piracicaba [Leia mais em Da aldeia para o mundo].

Fabiane defende que falar sobre arte indígena no Brasil é tão importante quanto tratar de arte em geral. “É uma necessidade, pois a expressão artística é algo natural de todo ser humano e de

toda cultura”. A também curadora da exposição Fabiana Bruno, que é pós-doutora em antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), alega que é preciso evidenciar as heranças e o lugar das mulheres indígenas no século 21, salientando a riqueza de suas sabedorias e a importância delas na transmissão de conhecimentos tradicionais, sem invisibilizar suas identidades. “Há temas urgentes que afetam a vida de todos nessas comunidades: a perda das terras, o apagamento étnico e o genocídio. O êxodo de mulheres e suas famílias deixa marcas profundas de violência. Elas passam a viver desaldeadas, em contextos de exclusão socioeconômica, política e racial; apartadas de laços e heranças cosmológicas e ancestrais; e negligenciadas de seus direitos humanos”, contextualiza Fabiana.

Fabiane Medina Cruz, que nasceu em uma aldeia urbana, em Campo Grande (MS), mas se mudou para a aldeia Jaguapiru, em Dourados (MS), completa que, se por um lado as populações indígenas são subalternizadas e excluídas, “nós sempre andamos em grupo e trazemos esse legado [dos demais] conosco”. Ela acredita contribuir com essa missão coletiva ao colocar “artistas juntos(as) para conversar, como se fosse uma assembleia, uma roda de conversa, sempre com a ideia de rede em mente”, finaliza.

E nos deram espelhos (2015), fotografia de Edgar Kanaykõ Xakriabá, da série Wamhu: Resistência indígena.

Tikmu’un, do povo Maxakali (MG).

Edgar Kanaykõ Xakriabá
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Vertical 10 da série Marcados (Ericó), 19831984, fotografia de Claudia Andujar. Políptico com 8 partes.

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Coleção da artista. Cortesia Galeria Vermelho Cortesia dos artistas e Galeria Vermelho
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Yano_A (2005), videoinstalação de Claudia Andujar, Gisela Motta e Leandro Lima. Jetitim (2016), fotografia de Priscila Tapajowara. Capa de Coração na aldeia, pés no mundo (2018), primeiro livro da cordelista Auritha Tabajara, ilustrado com xilogravuras de Regina Drozina e lançado pelo selo Uk’a Editorial. It was Amazon! (Era uma vez a Amazônia!), 2016, de Jaider Esbell. Coleção de 16 desenhos elaborados com técnica livre, sobre papel preto em tamanho A3, com tinta branca de caneta Posca. Os desenhos evidenciam a exuberância da Floresta Amazônica, dos seus seres, mitologias, mundos e dores. Coleção da artista. Cortesia Galeria Vermelho
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Amazônia (1978), de Claudia Andujar e George Love.
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Resistir para existir (2019), fotografia de Katie Mähler. À frente, Aydé Krikatí na 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, sob o lema Território: nosso corpo, nosso espírito.

Detalhe da série Mimética e Resistência: Akangatára (2022), instalação com cinco cocares, de Denilson Baniwa.

Gustavo Paixão

DA ALDEIA PARA O MUNDO

Exposição destaca universo feminino indígena, seus corpos, simbologias e saberes ancestrais

Em cartaz até 30 de abril, no Sesc Piracicaba, a exposição Coração na aldeia, pés no mundo reúne 108 obras contemporâneas – como pinturas, fotografias, vídeos, instalações, esculturas e desenhos – feitas por 22 artistas (a maioria de origem indígena) de sete estados brasileiros e do exterior. A curadoria de Fabiane Medina Cruz e Fabiana Bruno estabelece um diálogo entre nomes já consolidados nas artes visuais – como Claudia Andujar, Anna Bella Geiger, Cildo Meireles e Frans Krajcberg –, com artistas que estão despontando – Denilson

Baniwa e Edgar Xakriabá – e que começam a despontar – como Vanessa Pataxó e Priscila Tapajowara, primeira mulher indígena do país a se formar em produção audiovisual, com atuação na Amazônia.

Organizada em três núcleos –Território Corpo-Sangue, Território Corpo-Vida e Território VidaResistência –, a mostra está disposta em um espaço assimétrico, que começa em um andar e avança para outro, chegando a um salão intimista. Logo na entrada, há trabalhos de Jaider Esbell (1979-2021), uma

ver no sesc / gráfica

Acesse o catálogo digital da exposição Coração na aldeia, pés no mundo.

homenagem a esse expoente da etnia Macuxi, de Roraima, que morreu em plena ascensão da carreira, aos 42 anos. No percurso, o público ainda conhece a Yandê, primeira rádio digital indígena do Brasil, no ar desde 2013.

“Falamos sobre a ancestralidade dos povos originários, a expropriação de territórios, a migração forçada para as cidades, o lugar do feminino – que muitas vezes é violado e violentado. É uma mostra rica em diversidade: há representantes das etnias Guajajara, Pataxó, Baniwa, Terena, Kadiwéu e Xakriabá, entre outras”, explica Margarete Regina Chiarella, técnica de programação do Sesc Piracicaba. Para Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, “a participação das mulheres indígenas tem sido fundamental na proteção de seus povos, fortalecendo e valorizando o conhecimento tradicional, garantindo as práticas dos saberes ancestrais, da espiritualidade e da cultura de seus antecessores como forma de respeito a suas existências”.

PIRACICABA

Coração na aldeia,

pés no mundo

Até 30/4, de terça a sexta, das 13h30 às 21h30; sábados, domingos e feriados, das 10h às 17h45. GRÁTIS. Mais informações: sescsp.org.br/piracicaba.

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Tuíre em Gerações (2019), fotografia de Henry Mähler-Nakashima. Na imagem, Tuíre Kayapó compartilha suas experiências com diversas etnias e gerações durante os debates realizados entre as mulheres indígenas na 1ª Marcha das Mulheres Indígenas (Brasília, 2019). para

LIVRO nasce um

Tudo nasce de uma ideia, que é lapidada e amadurecida. Da mente do autor pousa no papel ou no arquivo do computador. Pouco a pouco, argumentos, personagens e enredos vão ganhando a forma de uma história com começo, meio e fim, custando horas de trabalho e dedicação – e muitas vezes, até noites em claro. Mas, e depois? Como esse material original, esse embrião literário, torna-se um livro? Objeto que há mais de dois mil anos guarda um inventário de mundos, o livro é fruto de um longo trajeto criativo para se materializar e habitar livrarias e bibliotecas e, finalmente, fisgar leitores.

Em diferentes tamanhos, tipos de papel e acabamentos – suas páginas podem ser costuradas ou coladas à lombada, que é a parte que liga as folhas e dá sustentação ao material –, romances, ensaios, ficções, poesias e outros gêneros literários passam por um cuidadoso processo de produção. Primeiramente, o projeto de livro chega às mãos de um conselho editorial, equipe responsável por avaliar a proposta, numa editora. Esse grupo faz a leitura dos originais enviados e decide se o material está alinhado ao perfil de suas publicações.

Coordenadora editorial nas Edições Sesc São Paulo, Clívia Ramiro explica que lá, por exemplo, as

propostas de publicações são avaliadas pelos membros da Comissão de Publicações e do Conselho Editorial, e também podem ser enviadas para pareceres externos de especialistas, para, então, o editor entrar em cena.

“O trabalho efetivo do editor e dos assistentes editoriais começa após essa avaliação [da Comissão] e aprovação da diretoria, com um estudo do texto original do livro. Esse estudo envolve definir que tipo e grau de intervenção o livro precisa.

A partir dessa avaliação, o editor pode indicar cortes, reescritas de partes, inserção de novos trechos e realocação da ordem de entrada do conteúdo. Também é analisada a necessidade de inclusão de ilustrações, fotografias, gráficos e tabelas, se for o caso”, explica Clívia.

Ou seja, o editor é uma peça fundamental para a publicação de um livro. “Entre a editora e o autor, há um trabalho de muita troca, diálogo e colaboração nesta primeira fase da edição. E isto é essencial para que as fases posteriores fluam sem atrasos ou problemas”, ressalta Clívia. A britânica Virginia Woolf (18821941), por exemplo, somou esse papel ao ofício da escrita quando criou, em 1917, junto ao marido e cientista político Leonard Woolf, a Hogarth Press. Essa visão crítica e curatorial do casal Woolf foi

fundamental para que as obras do pai da psicanálise, Freud, e dos russos Tchekhov, Tolstói e Dostoiévski fossem traduzidas para a língua inglesa naquela época. Curiosamente, a Hogarth Press, que encerrou suas atividades em 1946 com um acervo de 527 títulos, cometeu o deslize de não publicar o manuscrito de Ulisses, do irlandês James Joyce (1882-1941), que se encarregou de encontrar outra editora para lançar uma das obras mais importantes da literatura mundial.

ALÉM DA CAPA

Passada a etapa de ajustes de texto junto ao autor, o editor seleciona profissionais com perfis adequados para trabalhar com preparação e revisões de texto. Em seguida, entra em atuação o designer, que cria um projeto gráfico para o livro em diálogo tanto com a obra quanto com a identidade visual do catálogo da editora. Designer de projetos premiados dentro e fora do Brasil, Raquel Matsushita conta que o primeiro passo do seu trabalho é ler o livro e, então, escolher palavras-chave para a condução da narrativa visual.

Nesse processo autoral, ideias para a parte externa do livro (capa, quarta capa, lombada e orelhas) podem surgir antes mesmo da composição do miolo (parte interna de uma obra literária). Tipografia, cores e tamanho da publicação são algumas das etapas de criação. “Vou juntando todos esses elementos que o design me oferece para traduzir o conceito do livro. Não gosto de criações muito óbvias ou fechadas, que permitam apenas uma leitura. É legal instigar o leitor, e nunca subestimá-lo”, destaca Raquel.

Do surgimento da ideia original até chegar à mão dos leitores, outros profissionais se juntam ao escritor para a publicação de uma obra literária
55 | e literatura

Outra etapa é a criação do espelho, algo como um “storyboard do cinema, só que do livro”, explica Raquel. No espelho, o página a página é esmiuçado para que, em conjunto, dê ritmo à leitura. “O tempo de virar a página, que seja um segundo, é um espaço vazio que você pode explorar. Nesse intervalo, é possível incluir uma imagem ou alguma composição gráfica que salte aos olhos, que dê um susto a quem lê, ou não. Também posso continuar no silêncio [de um espaço em branco]”, explica.

NOTAS DE RODAPÉ

O que serve de matéria para a produção de uma obra literária pode também ser útil ao designer. “Um filme, uma peça, uma cena na rua ou no metrô. A vida influencia. Uma vez, eu criei uma paleta de cores para um livro depois de ver uma vitrine de tênis”, compartilha Raquel Matsushita, mostrando de que forma alia referências técnicas aos acasos do dia a dia como inspiração.

“Para a criação da capa de Mercados e feiras livres em São Paulo: 18671933 (Edições Sesc São Paulo, 2019), fui à feira, peguei algumas caixas, desmontei uma por uma, juntei as ripas, pintei e imprimi aquela ideia para usá-la. Então, a hora que escolho fazer desse jeito, já estou narrando algo que tem a ver com a obra. No caso desse livro, escrito por Francis Manzoni, fui buscar a matéria-prima que ele encontrou na feira. Ou seja, eu busco essa dança com o autor”.

Depois dessa criação, somamse outras etapas – revisão do boneco [arquivo final diagramado], impressão, distribuição e divulgação – até o dia do lançamento do livro. E quando a obra finalmente cria asas, ela parte rumo a quem habitará suas páginas. Mas não se engane: essa escolha não é sua, e sim do livro. Pelo menos para o bibliófilo e escritor Alberto Manguel, que acredita que toda obra busca seu leitor ideal. “Às vezes, ele o encontra, às vezes, não, e segue esperando. Os livros são muito pacientes”, já disse em entrevista à Revista E.

TRAVESSIA LITERÁRIA

Como é o percurso para a publicação de um livro nas Edições Sesc São Paulo?

1.

Envio da obra original para apreciação da editora (Comissão de Publicações e/ou Conselho Editorial)

15.

O livro está no mundo... hora de publicar uma nova história!

NÃO GOSTO DE CRIAÇÕES MUITO ÓBVIAS OU FECHADAS, QUE PERMITAM APENAS UMA LEITURA. É LEGAL INSTIGAR O LEITOR, E NUNCA SUBESTIMÁ-LO
Matsushita, designer de livros
Raquel
e | 56 literatura

2.

Leitura crítica, tradução (quando for o caso) e edição

3.

Preparação de texto: revisão mais aprofundada, feita antes da diagramação

4.

Liberação de direitos autorais de textos e imagens que não sejam do autor do livro

5.

Projeto gráfico: criação da capa e miolo (parte interna do livro)

8.

O boneco (livro diagramado e revisado) passa por aprovação final e segue para impressão

6.

Diagramação: distribuição do texto e dos elementos gráficos (ilustrações, fotos etc.) nas páginas

7.

Revisões de 1ª e 2ª prova: após diagramado, o livro passa por duas revisões

9.

São realizados testes de impressão e provas de prelo (impressão) junto à gráfica 10.

14.

A equipe de comunicação divulga as ações de lançamento, fazendo contato com a imprensa especializada e criando postagens nas redes sociais da editora

12.

Os livros chegam às unidades da Loja Sesc e a livrarias físicas e online 13.

As equipes comercial e de eventos promovem a venda dos livros e as ações de lançamento e participação das Edições Sesc São Paulo em feiras e festivais literários

Os arquivos dos livros impressos são convertidos para serem comercializados também como obras digitais 11.

A tiragem impressa segue para o Centro de Armazenagem e Logística do Sesc (CAL) para conferência, armazenamento e distribuição

57 | e

PRONTO PRA LER!

Impresso ou digital, acervo das Edições Sesc São Paulo abarca um amplo catálogo de publicações nas áreas das artes e ciências humanas

Desde 2007, as Edições Sesc São Paulo colecionam lançamentos de obras literárias, em formato impresso e digital, nas áreas de artes e ciências humanas. Baseado em conteúdos que dialogam com a atuação do Sesc e com questões contemporâneas, o acervo das Edições Sesc soma 370 livros, reunidos num catálogo que pode ser acessado em: sescsp.org.br/edicoes.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

Coleção Bibliofilia (2020)

Em parceria, as Edições Sesc São Paulo e o Ateliê Editorial conceberam uma série de obras para celebrar o fascínio pela leitura e fomentar a importância social, cultural e simbólica do livro. Organizada por Marisa Midori Deaecto e Plinio Martins Filho, a coleção é composta pelos três títulos a seguir, além de mais cinco em fase de produção:

O que é um livro?

De João Adolfo Hansen. Reflexão sobre os múltiplos significados de um livro. Segundo o autor, a obra pode ser considerada tanto um objeto material quanto simbólico.

Da argila à nuvem

De Yann Sordet. Percorra o caminho dos manuscritos medievais, o impacto da invenção da imprensa, a expansão das universidades e bibliotecas, até chegar à era das tecnologias digitais.

A sabedoria do bibliotecário De Michel Melot. Homenagem ao bibliotecário, importante personagem na conservação e organização do conhecimento. Aquele profissional que, segundo o autor, “ama os livros como o marinheiro ama o mar”.

Divulgação
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literatura / para ver no sesc
Sesc Pinheiros Até 12/02/2023 Sexta e sábado, 19h. Domingo, 18h. sescsp.org.br/amazonias 35 jovens num projeto social inédito do Sesc São Paulo. Um espetáculo sobre questões climáticas e os povos da �loresta. Coordenação artístico-pedagógica: MARIA THAÍS. Equipe de criação: Aelson Lima, Edlene Sousa, Jennifer Ramos, Kako Guirado, Luísa Almeida, Marcelo Nakamura, Marcia Kambeba, Márcio Medina, Morris, Murilo de Paula, Naine Terena, Rubens Oliveira, Otávio Oscar, Patrícia Gondim, Rita Carelli, Silvana de Jesus, Tiça Camargo, Wagner Antônio, Willame Leite, Yghor Boy, Ubiratan Suruí.

envelhecimento TECNOLOGIAS E

Videochamadas, mensagens eletrônicas, publicações digitais, e-mails, plataformas de streaming… As possibilidades de interações sociais, fruição cultural e acesso à informação dilatam-se no universo digital. A pandemia acelerou ainda mais essa imersão e evidenciou abismos entre aqueles que têm acesso e os que estão desprovidos de tecnologias. No caso da população com 60 anos ou mais, dados de uma pesquisa recente realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) mostram que menos da metade das pessoas idosas no país (48%) eram usuárias de internet em 2021. O desconhecimento das ferramentas e a falta de acesso estão entre os fatores de exclusão digital, o que implica numa restrição de autonomia e de independência dessa significativa parcela da sociedade.

No entanto, “se a longevidade está sendo alcançada, é esperado que o uso de tecnologias acompanhe a jornada de vida da humanidade”, pondera a gerontóloga Tássia Chiarelli, autora do livro Tecnologias e envelhecimento ativo (Senac São Paulo, 2020). Num cenário em que o número de pessoas acima dos 60 anos está em ascensão, tecnologias e envelhecimento precisam estar associados. “Caso contrário, corremos o risco de que, no futuro, o grupo etário que mais cresce no Brasil fique à margem da sociedade digitalizada, com comprometimento de sua participação e autonomia”, ressalta a doutora em comunicação Marília Duque, pesquisadora brasileira do estudo global Anthropology of Smartphones and Smart Ageing, sediado na University College London. Afinal, como a população de idosos está utilizando as plataformas digitais? E quais os principais desafios enfrentados por eles? Neste Em Pauta, Chiarelli e Duque levantam dados e apontam caminhos.

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em pauta

Pontes e conexões para a longevidade

Em uma sociedade cada vez mais envelhecida, o uso de tecnologias não pode ser entendido apenas como “coisa de jovem”. Afinal, se a longevidade está sendo alcançada, é esperado que o uso de tecnologias acompanhe a jornada de vida da humanidade. Ao aliar a tecnologia com o envelhecimento, surge um novo termo: Gerontecnologia. A gerontecnologia ganha força com a identificação de duas tendências: o envelhecimento populacional e a expansão de tecnologias. Mas, o que é a gerontecnologia?

De maneira sucinta, é o uso de tecnologia para melhorar a vida da pessoa idosa. Em 1998, M. Powell Lawton [psicólogo comportamental e gerontologista norte-americano que foi um dos pioneiros nos estudos da gerontologia ambiental] definiu o termo como adaptação e desenvolvimento de produtos, serviços e ambientes para as necessidades de uma população envelhecida e que envelhece. Um ponto forte dessa definição é a abordagem no processo, ou seja, no envelhecimento, dando perspectiva de continuidade. Todas as pessoas estão envelhecendo, e quando chegam à velhice, naturalmente, o envelhecimento continua. Portanto, o que uma pessoa não sente como necessidade neste momento, pode ser útil em outra circunstância. Então, essa possibilidade de mudança e de adaptação acompanha a aplicação da gerontecnologia.

Nota-se que a tecnologia utilizada nesse contexto não é apenas devido ao seu caráter inovador. A tecnologia precisa fazer sentido para o envelhecimento, ou seja, trazer benefícios para a população idosa. Buscando conhecer mais sobre os benefícios gerados pela tecnologia, apresento alguns resultados da minha dissertação de mestrado sobre as relações sociais da pessoa idosa na rede social Facebook. Na época da coleta dos dados, foram entrevistadas 153 pessoas idosas que tinham uma

conta no Facebook. Embora a maioria delas tenham relatado que ingressaram na plataforma por motivação familiar, a continuidade se deu devido as descobertas ao utilizar a rede, como a sociabilização e o acesso à informação.

Diante das 153 entrevistas, trago dois relatos para contextualizar aplicações que atendem demandas advindas da longevidade. Na primeira história, a pessoa idosa relatou o seguinte: “o Facebook fez eu voltar a ter voz”. Essa entrevistada tinha muita dificuldade em conseguir se comunicar por conta de um problema de dicção acometido na velhice. Mas, no Facebook era diferente. Por meio das suas publicações, ela conseguia se expressar e interagir com a sua rede de contatos. O que ela sentia? Ela se sentia parte. Então, aquela rede também pode ser uma maneira de inclusão social, pertencimento e participação. Isolamento social e solidão são temas expressivos na gerontologia, que podem ser minimizados com o uso de recursos tecnológicos.

O segundo relato envolve a história de uma pessoa idosa que veio sozinha, ainda jovem, para São Paulo, e perdeu totalmente o vínculo com os seus familiares. Por volta dos 80 anos de idade, ela resolveu criar uma conta no Facebook e conseguiu se conectar com parentes. Essa pessoa idosa resumiu a experiência em uma única frase: “o Facebook fez eu voltar a ter família”.

A proposta não é enaltecer o Facebook, mas entender suas diferentes aplicações e repercussões. Para muitos, a plataforma social é apenas uma fonte de entretenimento. Para outros, pode ganhar novos atributos, sentidos e significados. Portanto,

em pauta 62
A tecnologia precisa fazer sentido para o envelhecimento, ou seja, trazer benefícios para a população idosa

as mídias sociais, de um modo geral, podem ser consideradas como estratégias adaptativas para contribuir com o processo de envelhecimento. Por exemplo, essas novas tecnologias podem compensar déficits físicos e distâncias geográficas, além de otimizar relações sociais.

AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA

Apesar de muitas pessoas idosas utilizarem as mídias sociais, também há um número significativo sem acesso à internet, ou que nunca experimentou esse tipo de tecnologia. Espaços e ações que promovam a inclusão digital da pessoa idosa são fundamentais para que haja mais oportunidades de acesso e confiança no uso desses dispositivos. Existe uma política pública chamada Programa Viver – Envelhecimento Ativo e Saudável, que oferece atividades para a pessoa idosa em quatro campos de ação, sendo um deles a tecnologia. Muitos frequentadores do programa têm o seu primeiro contato com as novas tecnologias nessas atividades.

Eu ofereci consultoria ao Programa Viver e compartilho o relato de uma das pessoas idosas, que disse o seguinte: “A gente vivia praticamente fora do mundo, né? Fora do mundo. E aprender a mexer na internet é onde você começa a ser gente. Porque você vai ao banco e precisa mostrar a sua senha para outra pessoa, para poder te ajudar no negócio. São muitas coisas importantes que a gente tem que pegar passo a passo e aprender. Na verdade, é estar renascendo novamente depois de deixar tanta coisa cair”.

Nesse relato, evidencia-se como os recursos tecnológicos podem interferir na autonomia, independência e dignidade da pessoa idosa. No meu livro Tecnologias e envelhecimento ativo, reflito sobre como a sociedade não utiliza tecnologia, mas vive tecnologia. Ou seja, esses dispositivos estão intrinsecamente presentes na rotina e nas atividades diárias. Contudo, muitas vezes as tecnologias são desenhadas sem considerar diferentes contextos e realidades, o que pode fazer com que a pessoa idosa tenha medo de manusear os dispositivos ou

não se sinta capaz disso, gerando a exclusão digital e social. Portanto, o uso ou o não uso da tecnologia tem diferentes repercussões na velhice, que precisam ser pautadas no mercado, na educação e em políticas públicas.

TRANSFORMAÇÃO POSITIVA

Para reduzir a desigualdade digital no cenário atual e no futuro, recomendo compreender a tecnologia enquanto ponte. Para a ponte funcionar, é preciso considerar que tanto no seu início quanto no seu fim, há pessoas. Pessoas que podem ser idosas, com diferentes níveis econômicos, escolaridade, redes de apoio e condições de acesso. Ao reconhecer a tecnologia como intermediária, isso modifica a maneira como criamos e desenvolvemos soluções, porque o protagonista, ou seja, o sujeito que usará a tecnologia, entra na história. Ao identificar o sujeito, uma das principais características da velhice é revelada: a heterogeneidade, já que o envelhecimento é um processo individual e contínuo.

Dentro da velhice há muitas velhices. Ao mesmo tempo, dentro da tecnologia, também há muitas tecnologias. Por isso, a importância do termo gerontecnologia, para que haja a conexão entre essas áreas com o propósito de garantir a qualidade de vida. A tecnologia pode ser estratégica para mostrar todo o potencial da velhice, para aproximar gerações e promover maior liberdade à tão sonhada longevidade. Cabe aos profissionais e instituições exercitar a empatia, senso crítico e criatividade para que as tecnologias sejam utilizadas com toda sua capacidade de transformação positiva.

Tássia Chiarelli é gerontóloga, mestra em gerontologia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutoranda em gerontologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autora dos livros Tecnologias e envelhecimento ativo e Empreendedorismo no mercado da longevidade, ambos publicados em 2020 pela editora Senac São Paulo, e criadora do canal Longevidade para Todos, no YouTube.

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pauta

(Des)conexão: desafios para a autonomia e participação de pessoas idosas

Em 2021, apenas 48% dos brasileiros com 60 anos ou mais eram usuários de internet. O dado é da pesquisa TIC Domicílios que, desde 2016, também levanta o principal motivo declarado para a não utilização das redes. Falta de habilidade, de interesse, de necessidade e custo estão entre os principais motivos reportados pelos brasileiros. Entre pessoas idosas, a falta de interesse foi crescente até 2020, quando atingiu 42%.

É difícil imaginar que no ano da pandemia da Covid-19, com o isolamento social e rápida digitalização de serviços, incluindo os de acesso à saúde, o grupo etário mais vitimado pelo coronavírus tenha se mantido desinteressado pela internet. É preciso, portanto, resistir à tentação de reproduzir discursos que estigmatizam a pessoa idosa como avessa à tecnologia. Cabe então perguntar: O que a pessoa idosa realmente quer dizer quando declara desinteresse pela internet? Quais impactos desse “desinteresse” para o futuro?

Entre 2018 e 2019, conduzi etnografia de 16 meses com pessoas idosas de um distrito de classe média de São Paulo. Para os participantes da pesquisa, esse desinteresse declarado emerge como uma estratégia de autopreservação em relação aos filhos, em primeiro lugar. A tecnologia transfere às gerações mais novas um lugar de saber antes associado à velhice. Mais do que isso, a tecnologia é posta como natural às novas gerações. Ainda assim, isso não seria o suficiente para causar desinteresse, ao contrário.

Na literatura e independentemente da idade, a adoção de novas tecnologias é facilitada pela atuação dos "especialistas quentes". Trata-se de usuários

mais experientes, familiares e amigos que se dispõem a ajudar os novatos nesse processo de aprendizado. Entretanto, entre os participantes da pesquisa, foram frequentes as reclamações sobre a falta de tempo e paciência dos filhos. Essa indisponibilidade reflete uma quebra no pacto intergeracional, um acordo moral que implicava uma inversão natural na dependência, reconstruída como fardo nas sociedades neoliberais.

Com relação à dependência digital, é mais fácil declarar desinteresse do que representar um peso para os filhos. Ou pior, essa dependência pode ser usada em disputas de poder, principalmente por filhos adultos residindo com os pais idosos, quando a casa confere autoridade aos pais, e a tecnologia, aos filhos.

Por um motivo ou outro, o suporte "quente" dos filhos vem sendo substituído por ajuda profissional. A procura por cursos visa a reconexão, já que aplicativos de mensagens passam a mediar a comunicação com a família nuclear, estendida e transnacional, consolidando-se como um dos principais motivadores para a adoção do uso da internet entre pessoas idosas.

SMARTPHONES E BARREIRAS

Baixa autoestima é uma das principais barreiras para adoção de novas tecnologias por adultos mais velhos. No caso dos participantes da pesquisa, eles iniciam cursos de WhatsApp acreditando que os smartphones não são para eles, uma espécie de “idadismo introjetado”. Somado a isso, compartilham certa aversão ao erro, decorrente de três medos: apagar informações importantes, quebrar o dispositivo ou ser taxado por um serviço sem consentimento.

Outra barreira é a insegurança vivenciada por eles tanto no âmbito digital quanto no espaço público, onde são alvos preferenciais de golpes. Não seria exagero propor que tudo nesse processo de aprendizado seja hostil, a começar pelos próprios smartphones, meio exclusivo de acesso para 80% dos usuários idosos de internet, segundo pesquisa TIC Domicílios, em 2021.

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Por um lado, os dispositivos usados pelos participantes da pesquisa são herdados, com problemas de armazenamento e memória. Por outro, as interfaces, em geral, desconsideram especificidades físicas, motoras e cognitivas naturais ao envelhecimento. Ainda assim, com o decorrer dos cursos, os participantes ganham mais confiança e expandem seus usos do WhatsApp.

Porém, se o WhatsApp promove certa inclusão digital, não é possível equipará-la ao letramento digital. As habilidades adquiridas no aplicativo não capacitam as pessoas idosas para a produção, ou avaliação, de conteúdos digitais, nem são transponíveis para outros aplicativos. Por isso, não é raro que, ao experimentarem alguma dificuldade com o download de novos aplicativos, pessoas idosas os abandonem, retornando à estratégia da falta de interesse declarado.

ALÉM DO WHATSAPP

É verdade que, sozinho, o WhatsApp já viabiliza ganhos expressivos em termos de autonomia e participação. Trata-se de uma poderosa rede onde circulam informações que promovem sociabilidade, aprendizado e consumo da cidade. Além disso, o aplicativo estrutura uma eficiente rede de favores e cuidados. É graças ao WhatsApp que os participantes da pesquisa podem buscar, junto a amigos que trabalham na área médica, informações de saúde confiáveis e aconselhamento médico. É também o meio que viabiliza a administração do cuidado de pais idosos, permitindo que morem sozinhos enquanto monitorados a distância pelos filhos, numa sobreposição entre cuidado e vigilância.

Ainda assim, é preciso atentar para os perigos dessa “zona de conforto”. Em todo o mundo, observa-se uma

“appificação” [referente a aplicativo] das esferas privada e pública. Este é o caso do Brasil, que já ocupa a segunda posição no GovTech Maturity Index (GTMI), índice de maturidade de governo digital do Banco Mundial. Frente à agressiva estratégia de digitalização dos serviços públicos, a opção de atendimento presencial pode figurar como brecha para os cidadãos idosos. Porém, como já observado na Finlândia, essas opções se mostram cada vez menos acessíveis.

Neste sentido, é preciso que o letramento digital de pessoas idosas seja encarado como uma prioridade para políticas públicas. Caso contrário, corremos o risco de que, no futuro, o grupo etário que mais cresce no Brasil fique à margem da sociedade digitalizada, comprometendo sua participação e autonomia – o que demanda investimento em aprendizado contínuo.

Por último, é preciso diferenciar a “falta de interesse” tratada aqui do fenômeno de desconexão chamado de “detox digital”, enquanto deliberação (ética) individual acerca do grau de engajamento com mídias digitais no cotidiano. As pessoas idosas ainda estão, em sua maioria, aquém dessa possibilidade de escolha. Como mostra o Índice de Privação Online, o grupo idoso aparece em destaque no perfil desconectado, com zero dias de acesso à internet. Este perfil reflete, ainda, desigualdades mais profundas, reunindo os não alfabetizados – grau de escolaridade segue como consistente fator preditivo para o uso de TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação), e isso afeta a população idosa diretamente, visto a proporção de analfabetos nesse grupo etário. Juntos, esses fatores podem levar à “falta de interesse”, enquanto negociação com um não saber que antecede o digital e que resulta numa exclusão cujos danos não se restringem à esfera online.

Marília Duque é doutora em comunicação e práticas de consumo pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e pesquisadora brasileira do estudo global Anthropology of Smartphones and Smart Ageing, sediado na University College London. É autora do livro Ageing with Smartphones in Urban Brazil: a work in progress, publicado em 2022 pela UCL Press, com versão digital gratuita.

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É preciso que o letramento digital de pessoas idosas seja encarado como uma prioridade para políticas públicas
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NEGRAS vozes

Criador do projeto Querino, jornalista Tiago Rogero fala sobre popularização de séries em áudio, protagonismo negro e luta antirracista no país

Ele cresceu ouvindo histórias contadas pelos avós, em Minas Gerais, gostava de parar todo dia, às 19h, para escutar A Voz do Brasil, e seu primeiro emprego foi como repórter e apresentador numa rádio de Belo Horizonte. Ainda na faculdade de jornalismo, Tiago Rogero queria se formar para ser setorista de esportes e acompanhar o clube do coração, o Atlético Mineiro, mas logo se encantou pela cobertura de direitos humanos e viu aí uma

oportunidade para contribuir com a reparação e a revisão históricas do protagonismo negro na construção do Brasil. Em 2019, morando no Rio de Janeiro e trabalhando no jornal O Globo, lançou seu primeiro podcast – Negra Voz –, com o qual venceu o 42º Prêmio Vladimir Herzog de Produção Jornalística em Áudio. Já no fim de 2020, nascia o Vidas Negras, série em 30 episódios realizada pela produtora Rádio Novelo. Hoje, Rogero é gerente de criação da Novelo e, nela, encabeçou o trabalho mais ambicioso de sua carreira (até agora): o projeto Querino, inspirado em The 1619 Project, que a The New York Times Magazine lançou em 2019, com um olhar afrocentrado sobre os principais momentos históricos dos Estados Unidos. No fim de novembro de 2022, o podcast do projeto Querino ultrapassou a marca de um milhão de downloads. Segundo Rogero, a série em oito episódios (mais um extra), disponível como podcast narrativo, além de publicações em texto na revista piauí, ajuda a refletir sobre o racismo estrutural, olhando para os últimos 200 anos da nossa trajetória como nação. O projeto foi batizado em homenagem ao intelectual baiano Manuel Raimundo Querino (18511923), que no início do século 20 já reivindicava o papel de pessoas africanas e afrodescendentes na formação do Brasil. Professor de oficinas e cursos de podcasts, Rogero também é um dos atuais diretores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Neste Encontros, ele faz uma retrospectiva de sua atuação na podosfera, fala sobre o crescente interesse por esse formato e pela produção de conteúdos em áudio com temáticas negras e antirracistas.

ORALIDADE ANCESTRAL

Gosto muito de acreditar que [o interesse pela narrativa em áudio] vem da nossa formação como brasileiros e da contribuição africana, decisiva para a nossa formação também, que é a questão da oralidade. Contar histórias é das coisas mais antigas da humanidade, é de todos os povos. E o brasileiro gosta da contação de histórias, [isso] faz parte da minha vida, da minha tradição. Meu avô era um contador de histórias, minhas avós [também]. E eu sempre ouvi muito rádio, gostava de escutar A Voz do Brasil. Achava ótimo, principalmente quando comecei a trabalhar com jornalismo, porque [o programa] era bom para saber das notícias e dos projetos que estavam em votação, a opinião de alguns parlamentares. Meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] foi todo sobre história oral, e meu primeiro emprego foi numa rádio, como repórter e apresentador da BandNews FM, em Belo Horizonte. Depois, fui para o jornalismo impresso, na sucursal do Estadão no Rio de Janeiro, e então para o jornal O Globo. Mas, minha paixão pelo rádio continuou e, quando descobri a mídia podcast, me encantei e decidi fazer algum projeto nessa área.

POPULARIZAÇÃO GRADUAL

O podcast, enquanto mídia, ainda não é algo popular no Brasil. Existem mídias que são muito mais consumidas, como os vídeos. Embora, na maioria das vezes, o podcast seja gratuito, ele é uma mídia digital, então requer acesso à internet, a algum celular, computador, tablet ou a uma TV. E a gente mora num país

profundamente desigual, que se manifesta [também] no acesso à internet. Isso ficou evidenciado no período da pandemia. Mas, apesar disso, [o podcast] é uma mídia que está crescendo a cada ano, e há movimentos que favorecem esse crescimento. Grandes plataformas internacionais, como o Spotify, começaram a investir na produção nacional de conteúdo em podcasts. [Além disso,] na página de cada episódio [do projeto Querino], há a transcrição na íntegra para deficientes auditivos, para que eles também possam consumir o conteúdo. [Também incluímos] todas as referências bibliográficas a que a gente recorreu, com o devido link. Então, é uma série de fatores que vai ajudando a difusão desse tipo de formato.

POSSIBILIDADES DE IMAGINAÇÃO

A [minha] ideia [de podcasts] é, aos poucos, também brincar como se fosse uma radionovela, lançando mão de elementos [como efeitos sonoros, trilha musical e recursos na voz e na respiração]. O áudio é muito interessante, porque o que poderia ser visto por algumas pessoas como uma limitação, que é a ausência de imagem, é uma superpossibilidade para o campo da imaginação. É poder construir uma cena, pensar em como transportar uma pessoa para determinado lugar. Por exemplo, a cena que abre o primeiro episódio do projeto Querino é o incêndio no Museu Nacional [ocorrido em 2018, no Rio de Janeiro]. Como a gente iria transportar as pessoas para aquele momento? Abre, literalmente, com barulho de fogo queimando madeira, dá aqueles estalos, [e há] uma sirene de bombeiros ao fundo. [Usamos] esse tipo de recurso para

Leo Martins
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tentar criar um clima, transportar a pessoa e fazê-la visualizar aquele momento, estar nele. Outra coisa que acho superinteressante [num podcast] é essa intimidade. O que é mais íntimo do que você falar ao pé do ouvido de alguém? O podcast acaba tendo isso, porque, na maioria das vezes, a pessoa escuta com fone de ouvido. Tem gente que consome com o celular alto enquanto lava louça, outros colocam numa caixinha de som, na TV. Mas, no fone, cria uma relação de fidelização, de intimidade, e o ideal é trabalhar para que a pessoa se sinta próxima de você, quase como uma amiga. Tem gente que me chama de “Ti” nas redes, porque sente essa proximidade.

NEGRA VOZ

A ideia do projeto Querino começou a surgir logo depois que fiz o [podcast] Negra Voz, que tinha uma pegada mais de biografias, [apresentando] pessoas cujas histórias a gente não aprende na escola nem no dia a dia vendo TV, ou lendo um livro. É óbvio que elas existem [em livros], a gente não revelou nenhuma história inédita, mas divulgamos coisas que, por uma série de motivos, num país estruturalmente racista como o Brasil, acabaram escanteadas, não receberam o destaque que merecem. Uma delas é [a primeira

romancista negra do país, a escritora maranhense] Maria Firmina dos Reis (1822-1917), homenageada de 2022 da Flip [Festa Literária Internacional de Paraty]. Mas, naquela época [em 2019] falava-se pouquíssimo sobre ela. Outra [personalidade que o podcast destaca] é Ruth de Souza (1921-2019), uma das atrizes mais importantes da história do cinema mundial, e que não é tratada no Brasil como deveria.

PROJETO QUERINO

O nome do projeto é uma referência e reverência ao intelectual Manuel Raimundo Querino, um homem negro que nasceu livre ainda no período da escravização, na Bahia. Como uma exceção da exceção, não só para as pessoas negras, ele conseguiu estudar, se tornou professor, abolicionista, desenhista, artista, estudioso. Em 1918, publicou um livro [O colono preto como fator da civilização brasileira] reivindicando o protagonismo das pessoas africanas e afrodescendentes na formação do Brasil. É um pensamento que, hoje em dia, ainda é considerado disruptivo e inovador. O projeto Querino é uma versão [da história do Brasil] mais completa e mais complexa. [Ao todo] foram dois anos e oito meses de trabalho, até ser lançado em agosto de 2022. Os primeiros dez meses foram só

de pesquisa, sob a consultoria da historiadora Ynaê Lopes dos Santos. Na equipe [mais de 40 profissionais, a maioria negra] havia também um pesquisador-jornalista, um pesquisador-historiador e duas consultoras narrativas. Na primeira reunião, decidimos quais seriam os temas e, no fim das contas, chegamos a oito [um para cada episódio]. Passei, então, dois meses complementando as pesquisas e transformando os relatórios produzidos em narrativas únicas. Agora, o projeto vai continuar com outros desdobramentos, como um livro. A gente também está sendo procurado por produtores para adaptar o podcast para um conteúdo audiovisual [TV ou streaming] para poder alcançar um público muito maior.

SALA DE AULA

Logo na primeira semana [do lançamento do projeto Querino], teve um professor de Manaus que colocou os alunos do ensino médio para escutar o primeiro episódio. A partir daí, ele propôs uma atividade de história em quadrinhos, me mandou e eu postei nas minhas redes sociais. Assim como ele, vários professores [pelo país] têm usado o podcast em sala de aula. Eu reconheço que o formato não é o ideal [pensando na didática], pois uma criança ou adolescente pode achar chato escutar mais de 50 minutos de um podcast [na escola]. Eu tenho sugerido a professores e alunos de licenciatura que usem trechos de episódios para falar sobre alguma coisa. Acho que assim funciona melhor, é mais fácil de captar a atenção [dos estudantes]. Nosso foco [para o futuro] é adaptar o projeto para a sala de aula.

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UMA VEZ QUE A GENTE ABRIU ESSAS PORTAS, NÃO VAI DEIXAR QUE ELAS SE FECHEM DE NOVO

EXEMPLOS DE VIDA

O Brasil é um país majoritariamente afrodescendente: mais da metade da população é negra, mas, entre essas pessoas, muitas não se consideram negras. Porque o país comunica, por todos os lados, que não é bom ser negro. E, se você tiver pele clara, deve se considerar branco, embora, quando for receber seu salário, ele será menor que o de uma pessoa branca. Na escola, ao se ensinar sobre pessoas negras nos períodos da colônia e do Império no Brasil, elas só aparecem como escravizadas no tronco. Ignora-se que, mesmo nessa condição, muitas estavam resistindo, formando quilombos, professando sua fé, formando famílias, aprendendo a ler, ensinando outros, matando seus senhores – ainda que [tudo] isso fosse proibido. A maior e mais incrível das biografias brasileiras, e do mundo, é a do [jornalista e advogado abolicionista] Luiz Gama (1830-1882). [Outra figura que merece ser lembrada é o psiquiatra] Juliano Moreira (1873-1933), que teve sucesso e vivência como escritor, médico e cientista, e foi [na minha opinião] o maior escritor brasileiro.

AÇÕES AFIRMATIVAS

A gente está amadurecendo [no debate racial] graças a uma das coisas mais importantes que já aconteceram na história do Brasil, que é a política de ação afirmativa e a Lei de Cotas. A gente tem [hoje] o acesso dessas pessoas à universidade. E o que a gente ganha com isso é que a produção intelectual brasileira está muito mais complexa. A gente [agora] tem acesso a um mundo de saberes que

antes era impossibilitado [de ser estudado e divulgado], porque só eram permitidos chegar à academia os filhos dessa elite que vem lá do século passado. Então, realmente [havia] um limite para a produção intelectual. Agora, a gente está vendo mais discussão porque há um acesso muito maior [de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência] à academia. Ocupando esse espaço, a gente está trazendo novas formas de pensar. Esse é um caminho sem volta. Uma vez que a gente abriu essas portas, não vai deixar que elas se fechem de novo.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com o convidado. Tiago Rogero esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 18 de novembro de 2022. A mediação é de Guilherme

.

Angélica Paulo Barreto, jornalista da Revista E Tiago Rogero em gravação do projeto Querino, na Ilha da Marambaia (RJ).
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À memória de Luiz Augusto Garai e Rogério de Sá

Desde que minha mala se perdeu num voo São Paulo – Campo Grande, nunca mais passei incólume à espera na esteira de bagagem. A viagem era uma visita ao meu namorado, que vivia em São Paulo mas tinha ido passar as férias com a família, e me ver de repente sem as roupas que eu havia escolhido a dedo, as minhas melhores, foi um exercício e tanto de desprendimento. Lembro disso agora, diante do espelho, sabe-se lá por que caminho de memória, por que dobra de tempo. O vestido que cobre meu corpo não tem semelhança alguma com a roupa cinza que comprei há duas décadas para usar até que minha mala chegasse; reparando no tecido colorido de que não gosto muito, mas que uso semana sim, outra também, me vem à mente que me mostro para o mundo todos os dias numa versão chinfrim, com as roupas que não me incomodo em gastar, guardando as preferidas para as tais ocasiões especiais, como se a vida fosse feita delas, só delas.

Túnel aberto, entro por ele. Como entender os fragmentos de sonho que me vêm de repente, nas situações mais inusitadas, compondo um pano de fundo incontrolável para o pensamento? Isso acontece com outras pessoas também? Um pano de fundo que vem antes, até, do pedaço de sonho, como um teor, uma aura que se desprende casualmente de algum lugar do meu cérebro invadindo a consciência. Pode ocorrer a qualquer momento e muda minha ligação com o instante no qual estou ancorada: no trabalho, no ônibus, lendo alguma coisa; na maioria das vezes, é o sonho da última noite que invade o dia com sua atmosfera, mas pode acontecer de ser um antigo, o que é mais enigmático. Quase nunca consigo relacionar o que vem desse passado onírico ao momento em que chega. Haja análise. Mas dessa vez não foi um sonho, foi uma lembrança, se é possível diferenciar um do outro. Um bloco de sensações, toda uma época que caiu de repente como uma bigorna diante do espelho, diante de mim. Meu namorado não viajava nos dias 28, nem ninguém da família dele,

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POR NATALIA TIMERMAN ILUSTRAÇÕES LUYSE COSTA
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porque alguns acidentes rodoviários fatais, verdadeiras tragédias, haviam levado parentes sempre nessa data, em meses variados. A superstição se estendeu a viagens aéreas; sei então que não foi num 28 que cheguei a Campo Grande sem mala, mas em qualquer outro dia de um janeiro longínquo.

Não existia celular, eu nem dava notícias para os meus pais, apenas vivia aquela vida outra, jovem, de noites na varanda com os amigos dele. Fazíamos música, cantávamos, de dia havia piscina e muito calor, de noite fumaça e álcool. Os amigos do meu namorado eram músicos. Me impressionava como eles eram bons, e meu namorado cantava, e cantava bem com seu vozeirão. Era um deleite, uma época feliz, o futuro inteiro aberto diante de cada um de nós ali, o meu, o do Léo, Nola, Gugu, Daniel, Rapha, Evelise, Benga. O festival sendo apenas a coroação disso.

Sim, houve um festival. Eles apresentariam duas músicas, acho, e haveria um vencedor. Não, não sei se eram duas músicas, só lembro de uma: “meu amor, sabes bem onde me encontrar, entre as (esqueci), nas esquinas das Minas Gerais, nos embalos desses pantanais”, sim, era algo assim o refrão. A música era linda, na plateia estávamos nós, a mãe dele, provavelmente o irmão, mas só me lembro da mãe. Eles cantaram e foi mesmo fantástico, e não só eu achei, porque eles ganharam o primeiro lugar. Eu queria que eles gravassem aquela música, que fizessem um disco do qual ela fosse parte, que a nossa alegria pequena ganhasse o mundo.

Tampouco foi num dia 28 que a nossa ida a um show no Rio de Janeiro deu errado. Quer dizer, estamos vivos, o Léo e eu; talvez tenha dado certo. Mas não conseguimos chegar ao show de uma de nossas bandas preferidas por uma conjunção absurda e inverossímil de fatores. Os amigos dele chegaram; nós assistimos o finalzinho do show pela televisão, frustrados, abismados, tristes como se a vida só nos devesse felicidade.

Foi assim: primeiro a avó do meu namorado caiu e precisou de uma cirurgia, o que reteve o pai dele, que nos levaria de carro, por mais alguns dias em Campo Grande. Mas tudo bem, o show era sábado, e ainda era segunda. Na terça, foi a vez do pai dele cair no banheiro molhado, e então decidimos sair sexta, quando a dor no quadril passasse e o permitisse dirigir. Assim foi. Pegamos estrada cedo, o dia estava claro e quente. Paramos para abastecer, seguimos viagem, íamos em bom ritmo, até que nos deparamos com um bloqueio da polícia rodoviária que nos obrigou a pegar desvios e estradas menores e definir uma grande volta para o trajeto até o show. Um pouco mais apreensivos dentro do carro, mas sem mencionar palavra alguma sobre isso, seguimos. Mais adiante no dia, um bom tempo depois da parada para o almoço, o barulho de um avião decolando vindo do capô do carro nos assustou. Estávamos no meio do Mato Grosso do Sul, numa estrada de terra, o pai do Léo tentou ver o que era, não achou o problema; conseguimos chegar até a cidade mais próxima, minúscula, que se chamava Carneirinho. O moço da oficina disse que conseguiria a peça para o dia seguinte pela manhã. Liguei para o meu pai, fizemos cálculos, se saíssemos bem cedo na manhã de sábado, daria tempo.

Passamos a noite em um dos últimos quartos disponíveis de uma casa em cuja fachada estava pendurada uma placa: Hotel. Havia escadas. Havia uma horta na cidade. Não vi carneiro algum. Era uma cidade com começo, meio e fim, praticamente um quadrado escondido no centro do país, onde eu provavelmente jamais pisaria se um avião não tivesse decolado dentro do carro.

O silêncio da noite. O quarto dividido entre nós três. A madrugada. E na manhã seguinte, a constatação de que nosso carro estava atravancado por diversos outros que haviam chegado para o casamento que ocorreria na diminuta cidade justo naquele fim de semana, somando visitantes

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festivos aos do enterro que calhava de ser também no mesmo dia, mas eu só posso estar inventando, isso é inverossímil demais.

Mas não. Foi isso mesmo.

Quando enfim conseguimos pegar estrada, estávamos no limite para dar tempo de chegar na hora exata do show. Não havia Waze, e placa alguma indicando o caminho para as grandes metrópoles na saída da onírica Carneirinho. Uns quarenta minutos de estrada depois, percebemos que havíamos percorrido todo aquele tempo no sentido contrário. Já não daria mais tempo.

Chorei como se não ver minha banda favorita em sua primeira passagem pelo Brasil fosse uma tragédia. O pai do meu namorado ficou tristíssimo diante de nosso desalento. Meu namorado mais me consolou do que se permitiu entregar-se à própria frustração. Mas a vida seguiu, e hoje eu sei que não ter ido à apresentação da banda favorita dos meus vinte anos é um evento mais memorável do que se eu tivesse ido.

A vida seguiu para nós.

Assumi a superstição de não viajar dia 28 por algum tempo, mesmo depois do término; não me lembro em que momento ela deixou de definir as datas em que comprava passagens. Uma hora simplesmente deixou, a vida foi mudando aos poucos e, quando percebi, já era outra.

Em algum dia que não era um 28, numa das estradas do país, não a que leva a Carneirinho, mas outra, um caminhão acertou o carro onde estavam Gugu e Benga, o baixista e o baterista da banda que ganhou o festival, junto de toda a família do Gugu.

Ninguém sobreviveu, e a música do festival nunca foi gravada.

Natalia Timerman é escritora e tem várias obras publicadas, entre elas Desterros: Histórias de um hospital-prisão (Elefante, 2017), a coletânea de contos Rachaduras (Quelônio, 2019), finalista do prêmio Jabuti, e o romance Copo Vazio (Todavia, 2021).

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de e

CHÃO CANÇÃO

Nascida no cerrado e de origem sertaneja, Ellen Oléria lança quinto disco movida pelos afetos e pelo afrofuturismo

No nono andar de um prédio dos anos 1950, incrustado na movimentada avenida Nove de Julho, a cantora Ellen Oléria nos aguarda. Vestida de branco, pés descalços e alheia ao intenso barulho de buzinas e motores, a artista, nascida no Distrito Federal, fez da cidade de São Paulo sua segunda casa. Filha de pai sanfoneiro, conviveu com as melodias da rádio sintonizada pela mãe, o som alto dos vizinhos aos domingos, e fazia ganzá com potes vazios e um punhado de arroz. Ainda que a música tenha feito parte da sua rotina, foi fisgada, aos 20 e

poucos anos, pelo teatro. Cursou artes cênicas na Universidade de Brasília (UnB), onde aprendeu com mestres como o diretor uruguaio Hugo Rodas (1939-2022). No tablado, ela desenvolveu a verve da interpretação que, incorporada à musicalidade e à voz, transformou a vida da jovem artista.

Partiu da cena cultural brasiliense, onde lançou os discos Peça (2009) e Ao vivo no Garagem! (2011), para se tornar conhecida em outras partes do país após vencer a primeira temporada de um reality show musical, em 2012.

Na bagagem, referências da música negra brasileira e internacional, mas também da viola caipira e da origem sertaneja. De lá pra cá, mais dois álbuns – Ellen Oléria (2013) e Afrofuturista (2016) – até lançar o mais recente trabalho: Re.trato, em show no Sesc Pompeia, em novembro passado. Nesta quinta obra, a cantora refaz os combinados consigo, como ela mesma afirma, sempre fiel às suas raízes e à poesia que a atravessam no cotidiano. Voz potente de sua geração, a artista fala, neste Depoimento, sobre processo criativo, música, teatro e afrofuturismo.

Adriana Vichi e | 74 depoimento

estribilho Grande parte da minha vida aconteceu entre Taguatinga e Ceilândia: tenho essas duas cidades no meu coração e meu imaginário musical tem a ver com esses territórios. A gente cresceu cercado de música: meu pai sanfoneiro, todo domingo de manhã, pegava a sanfona e ia fazendo som. A gente assistia ao programa Viola, Minha Viola, na televisão, e minha mãe, que sempre foi uma apaixonada por música, estava com o rádio ligado em música sertaneja ou ouvindo hinos, conectada com a religião e com a fé. A gente também cresceu ouvindo aquela paisagem sonora dos vizinhos que gostam de som alto. Ouvia muito Tim Maia (1942-1998), R&B, pagode, samba. A minha primeira parceira de composição foi a minha irmã. A gente fazia muito barulho em casa: batia nas tampas das panelas, fazia ganzá com arroz e alguns potinhos, fazia de tudo uma brincadeira musical.

palco

Eu estava me preparando para fazer o vestibular e ainda tinha dúvidas sobre qual área ia tentar. Fui ao teatro pela primeira vez com uma amiga, quando eu já tinha 21 anos. Na hora, eu tive certeza de que era aquilo mesmo que eu tinha que fazer. Fiz o vestibular e passei, para alegria da minha mãe e minha também. No final, o teatro acabou me levando de volta para a música. Eu nunca parei de cantar. Foi numa viagem, num circuito de teatro, que eu entendi que a música realmente tinha um papel muito importante na minha vida. A gente apresentava o espetáculo, depois saía para celebrar com os amigos num restaurante ou num bar, e eu dava uma canja. Os espetáculos eram da Companhia dos Sonhos: Rosanegra – Uma saga

sertaneja e O Caminho de Amalfi, com direção do Hugo Rodas. Hugo me dava aulas no curso de teatro, e acabou me convidando para substituir o ator Chico Sant'Anna em Rosanegra. Nessa temporada, Seu Badia Medeiros [(1940-2018) violeiro e artista popular] me aconselhou bastante, porque estava conosco nessas viagens. Foi ele que me incentivou a retornar para a música. Eu já cantava à noite para me bancar na universidade, comprar minhas passagens, almoços e jantares na UnB, onde passava o dia inteiro, às vezes à noite também, para os ensaios. Era a música que me mantinha na universidade.

afrofuturismo

Acho que eu já era afrofuturista antes de dar esse nome para o pertencimento dessa identidade. Ser afrofuturista é ter a possibilidade e a expertise de se conectar com suas raízes negras, afrodiaspóricas, com toda a tecnologia que a construiu, e atualizar essas heranças. Acredito que dentro da afrodiáspora, sempre pensando em tecnologias de sobrevivência

e de expansão de consciência, o amor é fundante. Todas as vezes que falo de afrofuturismo, eu preciso falar de amor e de afeto, porque esse povo preto sobreviveu com muita vontade de viver, e isso nos faz afrofuturistas. Trata-se de potencializar as nossas técnicas e tecnologias de vida, de sobrevivência, de subsistência, de produção e de reprodução de conhecimento.

fluxos

Eu sou muito atravessada pelos meus afetos. Tem canções que eu escrevi por causa de uma frase dita pela minha mãe, ou a partir de uma conversa que eu tive com meu pai. Os amores da minha vida também me tocam profundamente. Eu sinto que compor é devolver para a comunidade o que a gente tem recebido. Então, não há nada novo na minha produção, mas compilações de impactos e de atravessamentos cotidianos. Uma palavra dita, uma imagem potente… Ali, na minha parede, está emoldurado O Espírito da Intimidade – Ensinamentos Ancestrais Africanos Sobre Maneiras de Se Relacionar (Odysseus, 2007), um livro de Sobonfu Somé [professora e escritora de Burkina Faso], que me atravessa muito. Tudo isso acaba compondo meu imaginário e virando poesia.

EU SOU PORQUE NÓS SOMOS. SOU REFLEXO DA MINHA COMUNIDADE

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Quarenta anos é chão, né? Eu me sinto muito abençoada, muito agraciada pela vida, pelos caminhos, pelos lugares que conheci, pelas pessoas que eu amei e que me amaram. Me sinto muito realizada dentro do meu trabalho. A gente tem muita luta, mas não pode esquecer das vitórias. Ver que tem um monte de jovens artistas, meninas negras que olham para

depoimento

o meu trabalho, se espelham e dizem: “Comecei a cantar por causa de você” ou “Ouvi sua música e ela me fortaleceu num momento muito difícil”. Sinto que eu fiz o trabalho que precisava ser feito. Nossa matéria-prima é a emoção, e trabalhar com emoção é algo muito desafiador nesse mundo violento. Mas, eu acho que a gente tem encontrado cura, também, na arte. A arte tem sido revolucionária nesse sentido, de dar outros sentidos possíveis para a vida da gente aqui.

motriz

Foi o amor que nos manteve vivas até aqui. Um amor pela vida, não só no sentido romântico, um amor pela vontade de viver. E isso tem muito a ver com a afrodiáspora. Dessa vez, eu estou chegando com um trabalho depois de sete anos sem lançar

um disco. E a gente chega depois de uma temporada muito dura, muito violenta, de muitas perdas, despedidas, dor e luto. Portanto, a ideia é trazer um bálsamo para o nosso coração, um refrigério para nossa alma. Quero falar de amor para trazer essa esperança, para aliviar um pouquinho a nossa dor. Acho que se a música nos dá essa possibilidade, vamos aproveitá-la.

re-trato

Esse disco se chama Re.trato porque é um momento de refazer os combinados comigo mesma. Um novo trato. Eu estou me conectando com canções que escrevi há 15, 20 anos. Aquela menina de 20 anos que eu fui, doida para mudar o mundo, desesperada pela revolução no planeta, por uma vida mais justa para todo

mundo, ou vivendo aqueles amores tórridos profundos, de rasgar a alma. Eu estou me conectando com as ideias daquela menina, mas, agora, com essa maturidade da mulher que me tornei.

ubuntu

Eu só acredito assim: eu sou porque nós somos. Sou reflexo da minha comunidade. Não sou sozinha. A ideia da inspiração vai além. Acho que não é só para composição, é para a vida. A gente é mais forte quando anda junto.

Assista ao vídeo com trechos do Depoimento com a cantora Ellen Oléria.

Ivan Cruz
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A cantora e sua banda no show de lançamento do disco Re.trato, em novembro passado, no Sesc Pompeia.

São São Paulo

Nas miudezas arquitetônicas da cidade, passado e presente coabitam e inspiram

Pelas esquinas de uma São Paulo que celebra, em 25 de janeiro, seus 469 anos de história, passado e presente dão-se as mãos e acenam para o que está por vir. A cidade que insiste em acelerar os passos dos que nela habitam e que compreende a transformação como inescapável vai se constituindo em sua multiplicidade tão característica, deixando rastros de suas contradições. “Porém com todo defeito / Te carrego no meu peito / São, São Paulo quanta dor / São, São Paulo meu amor”, declara-se Tom Zé.

Numa cidade onde o tempo não para, inevitavelmente, ontem e hoje cruzam miradas, percebidas nos detalhes de maçanetas, caixas de correspondências, portões, janelas e degraus. Outros detalhes da miscelânea arquitetônica convidam a repousar os olhos sobre uma margarida que desabrocha numa parede de concreto, ou a se perder na geometria de um piso salpicado de caquinhos vermelhos, amarelos e pretos.

Ontem e hoje, poetas, escritores, compositores, professores, amadores de toda sorte, seguem tentando decifrar suas linhas tortas, pirambeiras, torres, praças e vilas abraçadas às franjas do tempo. São Paulo dança com o que é duradouro e com o efêmero, estendendo-se, longeva.

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Não me iludo

Tudo permanecerá do jeito que tem sido Transcorrendo, transformando Tempo e espaço navegando todos os sentidos (Tempo Rei, Gilberto Gil)

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ALMANAQUE

Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu

(A Flor e a Náusea, Carlos Drummond de Andrade)

Venha nesse embalo, concrete, fax, telex Igreja, Praça da Sé, faça logo sua prece Quem vem pra São Paulo, meu bem, jamais se esquece Não tem intervalo, tudo depressa acontece

(Venha até São Paulo, Itamar Assumpção)

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Tem os que passam e tudo se passa com passos já passados tem os que partem da pedra ao vidro deixam tudo partido e tem, ainda bem, os que deixam a vaga impressão de ter ficado

O ônibus corria pela rua das Palmeiras, [...] fechei os olhos pra não ler. Mas é tão desagradável andar de automóvel com os olhos vendados! Acorda a noção do perigo e não se ajusta mais o ser com a realidade. Abri de novo os olhos e fui vendo o que é viajar. Árvore, tabuleta, casa, rua (...)

(O terno itinerário ou trecho de antologia, Mário de Andrade)

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(Vice Versos, Alice Ruiz)

Entre saltos ginásticos, sincronia e paixão

Como o esporte entrou na sua vida?

Já parou para pensar qual foi o exato momento em que o esporte ou uma atividade física encantou você?

Eu sei! Foi lá em 1996, quando assisti pela primeira vez a uma apresentação de ginástica aeróbica. Uma música acelerada, passos de dança, elementos de saltos, força e flexibilidade – um espetáculo em forma de esporte.

Fiquei absolutamente hipnotizada pela sincronia e beleza dos movimentos dessa modalidade, e aos 10 anos de idade, eu ainda não sabia, mas seria esse momento que guiaria meus passos profissionais e pessoais por toda a vida.

A vida seguiu e me tornei uma ginasta! Alguns anos de categorias de base, alto rendimento, seleção brasileira, competições internacionais, medalhas, e assim tudo me encaminhou para a escolha da minha profissão! Tinha uma certeza (certeza?): quero ser técnica de ginástica! Vou ser bacharel em esporte!

Sim! Eu queria formar atletas! Queria perseguir a perfeição dos movimentos ginásticos e formar atletas como eu fui formada! É, eu achava que era isso, mas faltava alguma coisa...

Faltava o brilho dos olhos lá da “pequena ginasta” do começo, que me mostrava um caminho a seguir. E onde estava o caminho agora?

Foi aí que entrou o Sesc na minha vida. Foi uma mudança bem estranha e abrupta, eu diria!

Num domingo, eu estava com a equipe de Osasco (SP), onde eu era técnica, no Campeonato Brasileiro Infantil de Ginástica Artística e na terça-feira seguinte, eu já estava sentada na cadeira de monitora de esportes do Sesc Pinheiros.

UAU, que loucura! Já era setembro, e na avalanche de informações que me chegavam, a mais importante ação que se aproximava: nosso maior evento institucional do físico-esportivo, o tão famoso Sesc Verão.

Aquele caos gostoso de dezenas de atividades, pensando nos diversos públicos e possibilidades, buscando sempre um único objetivo: encantar o maior número de pessoas possível com esporte e atividade física, para que se sentissem motivadas a fazer isso por toda vida. Pois é, deu match!

Era isso que faltava! O que eu precisava! Ter a possibilidade de proporcionar pra tanta gente aquele momento quando me apaixonei pelo esporte e por me movimentar, é o que realmente me faz brilhar os olhos. Sem me limitar a uma modalidade específica, ou a perfeccionismos dos códigos de pontuação. A perfeição está em sentir a motivação de praticar um esporte ou uma atividade física que simplesmente faz seu coração bater no ritmo e sincronia com suas vontades!

Volto a perguntar a você: E aí? Você se lembra, assim como eu, qual foi o exato momento em que o esporte ou uma atividade física te encantou?

Se já aconteceu com você, espero que tenham surgido, em sua memória, lembranças muito gostosas que te levem a revisitar histórias, amizades e alegrias. Se não aconteceu ainda, a gente dá um jeito, sempre há tempo!

Há tempo de começar um novo esporte, de viver a paixão por aquele que já é o seu preferido, de se encantar por um outro que você nem sabe que existe ainda.

Convido você a vir comigo e tentar! Neste mês, começa o Sesc Verão 2023! Mais uma oportunidade que temos de te mostrar esse mundo de possibilidades e te encantar pelo movimento, como aconteceu comigo! Só vem! Te garanto que vale a pena!

Anita Cleto é graduada em esporte e trabalha como assistente na Gerência de Desenvolvimento Físico-Esportivo do Sesc São Paulo.

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JANEIRO 2023 RETIRE GRATUITAMENTE SEU GUIA NAS UNIDADES DA CAPITAL E GRANDE SÃO PAULO Confira a programação completa: www.sescsp.org.br Fique por dentro do que é destaque na programação deste mês!

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Rafaela Netto (foto); Nortearia (colagem) sescsp.org.br

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