CHAPÉU
Oxente! REVISTA
ABRIL DE 2022 I EDIÇÃO 05
OS RIOS DE TERESINA MEMÓRIAS DA BATALHA DO JENIPAPO OS CAMINHOS DA CRIATIVIDADE
VÁRZEA QUEIMADA:
O POVOADO QUE TRANÇA A CARNAÚBA
Índice Expediente Editorial A emoção viva da bandida A vida imitando a arte: os caminhos da criatividade Os rios de Teresina: narradores de sua própria história A ponte metálica um patrimônio de Teresina Tá vendo como são as coisas? A cena Drag Queen teresinense Gislene Danielle a voz erudita Memórias de carnaval Crescimento de clubes literários Memórias da batalha: educação como arma de guerra A arte dos quadrinhos entre foices e facões Uma viagem à quatro rodas pelo Piauí Cartografia do afeto: a matéria viva da memória Café art bar: vivência e afeto na Pedro II Várzea queimada: o povoado que trança a carnaúba O outro lado do mar Entre o amor e a poesia, mulheres e a resistência feminina no Rap em Teresina
02 03 04 08 12 19 23 30 36 41 46 49 59 66 72 77 82 88 94
Expediente Reportagem Ádria Viana Alisson Araújo Ana Kálita Vale Ana Luiza Monteiro Ana Carolina Bernardo Pereira Bruno Chaves Gabriela Varanda Geovana Sousa Glayson Costa Illana Serena Jacírio Porto Jéssica Carvalho Jeyson Moraes João Gabriel Sousa
Karine Rocha Lara Matos Luna Santana Luzia Stefany Maria Luisa Costa Maria Teresa Mariana Costa Millena Brito Natália Carvalho Nayara Melo Ramila Gomes Rodrigo Alves Ronney Oliveira Samanta Leão Sane Araújo
Oxente!
Tcheska Valentim Thiago Santos Wallace Alves Yury Pontes
Diagramação e Edição Yury Pontes
Editora Chefe Ana Regina Rêgo
Illustração de Capa: Reprodução / Tatiane Cardeal
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EDITORIAL
m tempos de desinformação o jornalismo se faz mais e mais necessário, contudo, os caminhos para o leitor nem sempre são claros ou acessíveis. É preciso abrir-se ao diálogo e reestabelecer um contrato de credibilidade, em muitos cenários completamente rompido, e isso nem sempre é tarefa fácil. Nesse sentido, o campo jornalístico tem lançado mão de muitos recursos e estratégias mercadológicas, desvelando, inclusive, seus processos e práticas, como na divulgação da checagem de fatos, a fim de ganhar a confiança da sociedade. Nosso caminho na Revista Oxente! é distinto, aqui apostamos no jornalismo cultural e na estética literária para chegar até o nosso leitor pretendido, pessoas que gostam de cultura para além de suas manifestações estético-artística e gostam de literatura e, portanto, de um jornalismo leve, sem os limites impostos por uma prática que marcou a modernidade e que impõe ao profissional, manter-se no lado exterior ao da textualidade noticiosa. Na Revista Oxente! somos ouvidos de pessoas e personagens do nosso lugar, e, a um tempo narradores, mas também participamos ativamente da construção das histórias que contamos. Aqui não nos limitamos a uma estrutura objetiva, contudo, vale destacar que isso não nos faz extrapolar os limites do factual. Em nossa quinta edição, você leitor se encontrará com dezoito matérias que trazem narrativas sobre nossa cultura em seus mais diversos aspectos. De um lado, carnaval, música e memória nos levam a viajar pelo futuro de ontem, hoje passado, enquanto as formas de ser podem conferidas em matérias sobre a cena drag em Teresina e sobre a vida das mulheres musicistas que compõem rap. As delícias de uma viagem pelos cantos do nosso Piauí podem ser conferidas, enquanto as mais diversas formas de afeto se revelam nas memórias da escola ou nas mesas do bar. Misturar jornalismo cultural e jornalismo com estética literária é ao mesmo tempo, um desafio e um prazer. Um grande desafio porque a Revista Oxente! é desenvolvida já no sétimo período do curso de jornalismo da UFPI e, portanto, os discentes já estão acostumados com um estilo jornalístico mais fechado, com estrutura do lead e objetividade impostos e nossa revista pressupõe novas formas de narrar e também de pensar o profissional em seu tempo e espaço, propondo novas possibilidades de intervenção no tecido social em que atuam. Mas a Oxente! é também um prazer porque revelar histórias do nosso lugar e de outros lugares que perpassam a cena cultural, sempre será algo delicioso para um jornalista que gosta de contar boas histórias e interagir com os diversos tipos de públicos. A Revista Oxente! chega a sua quinta edição com um número recorde de matérias e de profissionais envolvidos, ao todo cerca de 36 participaram da presente revista que foi intencionalmente construída com muita dedicação e carinho. Por fim, convidamos todes a conhecer a nossa revista e se deliciar com nossas matérias.◢
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CARNAVAL Foto: Reprodução Gilcilene Araújo/G1
A EMOÇÃO VIVA DA BANDIDA
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amílias reunidas nas calçadas. Crianças brincando. Ruas decoradas já em clima de carnaval. Mais ao fim da rua o som das marchinhas carnavalescas se mistura às vozes que, cantando em um mesmo ritmo, continuam atraindo atenção do público que assistia um grupo de foliões passando pelas tradicionais ruas Pires de Castro, Coelho de Rezende e 24 de janeiro. O tênis, meia, short curto, camiseta e pochete usados naquele janeiro de 1988, somada a uma alegria contagiante que atraia multidões por onde passavam ainda estão
Nayara Melo e Glayson Costa
guardadas na memória de Último Coelho, um dos fundadores do pequeno grupo que era composto inicialmente por quatro amigos (três deles irmãos) e outros conhecidos. A alegria contagiante foi se espalhando até se tornar um dos maiores e mais tradicionais blocos de carnaval de Teresina, a Banda Bandida. O nome que surgiu de maneira quase que aleatória em uma das conversas do grupo de amigos em uma das mesas do bar Fundo de Quintal e rapidamente caiu na boca do povo. “A gente tinha apenas uns instrumentos de sopro e se concentrava no Fundo de Quin-
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CARNAVAL
Nessas mais de três décadas de história o endereço permaneceu o mesmo. Com início no último sábado do
ano e indo até o sábado de Zé Pereira, o movimento surgiu como uma alternativa àqueles apaixonados pelo calor humano, e que entre a cerveja e o pó de maisena, não deixaram as tradicionais marchinhas de carnaval caírem no esquecimento. A prévia carnavalesca começou como brincadeira e passou a percorrer as ruas de Teresina, espalhando alegria e diversão para multidões de todos os cantos da cidade e até mesmo de quem vinha de fora do Piauí. O bloco é responsável por formar vários
casais que se conheceram na folia e amizades que perduram até hoje. “São muitas amizades, foram muitos namoros e histórias engraçadas. Existem pessoas que se conheceram aqui e que estão juntas até hoje”, continuou Último Coelho. Músicos de todas as idades subiam em cima de caminhões de som para tocar instrumentos de sopro que, de forma coordenada, davam vida às músicas, como “Cabeleira do Zezé”, “Abre Alas” e Foto: Arquivo pessoal Último Coelho
tal. Como sempre fazíamos eventos que atraíam muitas pessoas e na época não estava acontecendo os desfiles de Carnaval, eu junto com os meus irmãos, Galba e Ivaldo, e com um amigo, o Leal Filho, organizamos com a intenção de fazer alguma coisa diferente. Percebemos que muitas pessoas nos acompanharam e nos sábados seguintes a adesão se tornou maior”, disse.
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Foto: Reprodução José Marcelo/G1 PI
tantos outros clássicos que
de estacionamento, já
marcaram gerações, e que
deixava o isopor dentro
ficaram eternizadas na me-
do carro. Levava copos de
mória do policial civil José
plástico e levava o meu
Augusto de Sousa Júnior e de
isopor para perto de onde
tantos outros foliões. A pre-
os meus amigos e a minha
paração do sábado festivo
namorada estavam”, con-
de José Augusto começava
gos já estavam lá. Quando
tou.
eu tentei atravessar a mul-
já nas primeiras horas do dia, espalhando confetes e bebendo uma cerveja gelada enquanto esperava ansiosamente pelo pôr do sol, momento em que encontraria os seus amigos. Enquanto colocava o isopor com gelo e cerveja dentro carro, na companhia da sua namorada, escutava as
Ao fim da tarde, os caminhões, ao som dos instrumentos, começavam a percorrer as ruas, atraindo ainda mais pessoas para a pequena multidão, que aos poucos, iniciavam o percurso com um sorriso no rosto. Mas como nem tudo são flores, na me-
tro dono sem ele perceber. “Meus amigos estavam do outro lado da rua, próximo ao colégio Dom Barreto. Nessa noite eu cheguei um pouco tarde e meus ami-
tidão, coloquei meu celular no bolso, mas quando cheguei perto dos meus amigos percebi que o meu celular já não estava comigo. E como eu já estava lá mesmo não deixei me abalar e continuei na folia” lembrou José Augusto.
mória de Augusto, lembran-
A prévia carnavalesca
ças de uma das noites de folia
que um dia foi composto
na Rua 24 de Janeiro em que
por várias pessoas hoje se
percebeu que havia perdido
mantém distante das ruas
“Como eu chegava cedo
o seu celular ou na verdade o
pela falta de patrocínio. Vi-
para achar uma boa vaga
celular havia encontrado ou-
vendo com incerteza e sem
marchinhas de carnaval para aquecer e ir entrando no clima.
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CARNAVAL saber como vai continuar a organização do
o público, distante do palco principal. Novos
evento após a pandemia, ficam na memória
blocos foram surgindo em outros cantos da
os bons momentos vividos por Augusto no
cidade e assim criou-se um concorrente invi-
bloquinho e lembranças de 2020, quando es-
sível para a Banda Bandida, que hoje voltou
tava de plantão no seu trabalho e não pôde
a ser realizada de forma reduzida, após dois
registrar presença no evento que frequentava desde 2014.
anos de pandemia, e persistindo como pequenos grupos de foliões que, somados ao som de uma boa música, se recusam deixar a folia
O crescimento da cidade e a falta de segu-
passam.◢
Foto: Arquivo pessoal Último Coelho
rança manteve o principal atrativo, que era
acabar e ainda levam muita diversão por onde
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A VIDA IMITANDO A ARTE: OS CAMINHOS DA CRIATIVIDADE Oxente!
Foto: Arquivo pessoal Último Coelho
CHAPÉU ARTESANATO
Ana Luiza Monteiro e Mariana Costa 8
ARTESANATO
T
io”, “Toninho Silva”, “Antônio Silva”. Em qualquer das três formas, o homem que saiu da Paraíba na década de 60 para Teresina se pluraliza também nas artes. O talento herdado da mãe, que era artista, e do pai, que era músico, deixou nas veias o talento artístico. “Não sei viver sem ela”, afirma. Toninho, além de cantor, é artesão. Ele trabalha com cerâmica e possui um box no bairro Poty Velho, zona Norte de Teresina. O artista faz esculturas para decoração de variados tipos, sempre com a sua criatividade em primeiro plano retratada em todas as suas obras. No fundo do seu box, o local de trabalho do artista. É no pequeno e simples estúdio que as peças tomam formas e cores. Antônio, não se vê em outro local senão ali. “Aqui virou a minha casa. Não sei o que fazer quando não estou fazendo arte. É com o coração que isso se move”, conta. Do outro lado da rua, na avenida do Pólo Cerâmico, vários talentos e histórias se encontram. Quem também tem história para contar é escultor Jimmy
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Foto: Arquivo pessoal Último Coelho
ARTESANATO
Presley, conhecido na região. No seu ateliê, três jovens, entre conversas e trabalhos se encontram com literalmente “às mãos na massa”. Na amizade,
peça e se reveza.
“As peças de-
estiver disposto a
Apesar da pouca
pendem de quan-
esperar. A argila
idade, eles se dedi-
tos dias o cliente
usada nas escul-
cam no que fazem
está disposto a
turas e peças de
e o resultado são
esperar.”
decoração do Polo
esculturas detalhis-
Um dos jovens,
Cerâmico é extra-
tas e bem construí-
Manu, explica que
ída de uma lagoa
arte o seu talento.
das. Seria o que há
o tempo de produ-
próxima à região e
O local não é muito
de mais jovem em
ção de cada peça
dos rios próximos.
grande, mas juntos,
meio a décadas de
pode levar até um
Ao serem molda-
cada um faz uma
histórias.
mês, se o cliente
das, as esculturas
eles perceberam na
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ARTESANATO vão para um forno a lenha para queimarem
tros de barro, os artesãos do Poti Velho foram
até a argila petrificar. Só então, depois desse
aperfeiçoando a técnica tradicional e hoje já
processo, com as peças frias, é que recebem
confeccionam peças que imprimem a identida-
uma pintura. Dependendo do tamanho, o pro-
de local. Ao dar uma volta pelas lojas do Polo
cesso pode ser de horas a meses.
Cerâmico conseguimos respirar a cultura rodeando o local.◢ Foto: Arquivo pessoal Último Coelho
Dos mais simples jarros aos tradicionais fil-
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Foto: Reprodução
RIOS
OS RIOS DE TERESINA: NARRADORES DE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA Os pesqueiros que vejo por aqui
Oxente!
Ana Kálita Vale e Karine Rocha
RIOS margem, até que sinto o
Assim, o casal criou
remo ser erguido e não
as duas filhas e o filho
voltar mais para a água. É
com o que conseguiram
dona Francisca. Ela chegou
retirar das minhas águas.
mais cedo que o habitual
Branquinha, camarão, piaba,
hoje. Com o fim da pirace-
e outras espécies ou servia
ma, talvez tenha esperan-
para as refeições ou era
ça de encher a tarrafa logo
comercalizado no mercado
no finalzinho de março. Co-
do Poti. Com o dinheiro
nheço essa senhora há 25
pagavam as despesas e
anos. Francisca iniciou na
outras necessidades da casa.
pescaria quando veio morar no bairro Poti Velho ao lado de seu marido, de quem se iguala no amor por essas águas e no nome, Francisco. Seu Francisco e dona Francisca são pescadores e nunca tiveram outro ofício.
A
Ele, aprendeu a atividade ntes mesmo da aurora aparecer percebo uma movimentação no cais
com os pais, na infância. Ao longo dos anos a habilidade e a necessidade o levaram a tirar o sustento de toda fauna que eu proporciono.
Francisca, sozinha no barco, jogou as tarrafas na água e agora vai remando até que todo o objeto esteja na extensão do rio, de uma ponta até o meio. É um trabalho que exige calma. Ela se acomoda na canoa, observa a água e espera. De tom verde-amarronzado por causa de anos recebendo substâncias, minhas águas se tornaram turvas. Quando eram claras se tornavam
próximo ao Pesqueirinho.
“A gente vai para
um convite para um banho
To d o s o s b a r c o s c h a c o -
o Rio cedo, ainda de
no final do ano, quando as
alham/movem fazendo
madrugada.
Pego as
temperaturas de Teresina
gotículas de água voarem
tarrafas, coloco nas
ficam mais altas. “Quando
pelo ar. A corda é retirada
bicicletas e vamos
eu era mais nova via gente,
no toco, o barco se separa
pedalando até lá. Como
crianças que ficavam nas
dos outros e rapidamente
fica perto de casa, a
partes raras se molhando e
sinto a interferência dos
gente chega num instante” brincando. Hoje é mais difícil, apesar de que umas pessoas diz Francisco.
remos. Ele se afasta da
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RIOS ainda vêm banhar aqui, mas
com barro nas mãos e sorriso
“A gente ia muito lá para
tem o risco de pegar doença” no rosto, mas ela é como
a beira do rio, eu gostava
lembra ela.
filha crescida. Uma hora ou
de atravessar. Hoje em
outra ela volta. Solimar Maria
dia não aguento mais não,
Nascimento da Silva é seu
mas eu dou uma nadada
nome, mas eu a reconheço
nele ainda.” Ela diz rindo
como a ribeirinha que
e parece se perder em
atravessava minhas águas,
memórias antigas.
Percorrendo as águas facilmente são encontrados locais onde lixo e esgotos são despejados. Frequentemente as “bocas de lobo” que me encontram em vários pontos da cidade drenam esgoto
aquela que vi crescer e formar imagens a partir da terra. Ela
s e m t ra t a m ent o pa r a cá .
estava aqui quando em 1985
Papel, metal, substâncias
eu transbordei e seus olhos
higiênicas e outras tantas
pequeninos se arregalaram
não tão higiênicas se tornam
com pavor. Foi em minha
parte da refeição de tatus,
beira em que ela foi salva da
porcos, aves, peixes e
areia que a engolia e ainda é
consequentemente humanos
aqui que suas memórias mais
das comunidades locais.
sagradas se deitam.
O lixo, não somente um
Ainda lembro de quando nadar era hábito dela, serelepe ela vinha e movia seus braços como quem tinha certeza de que era ali que pertencia. Mas não foi aqui em que aprendeu a nadar. Primeiro vieram as águas paradas da lagoa, lugar onde seu irmão também começou
Desde 1977 Solimar mora
seu aprendizado, as águas
perto de onde me encontro
pouco profundas eram menos
com o Rio Poti, na mesma
perigosas para as crianças
casa em que cresceu com sua
ribeirinhas. Mas entre mim e
irmã Sônia, onde aprendeu a
o Rio Poti, ela descobriu que
Após minutos na canoa,
desenhar, a pintar e perto de
as águas correntes sempre
chega o momento de
onde trabalha. Pouco depois
a chamavam. Todos aqueles
retirada da rede e coleta dos
do amanhecer, Solimar se
que já passaram por mim
peixes. Não foi muito, mas o
levanta para começar seu
sabem que de pouco adianta
suficiente para a venda do dia.
dia, ela arruma sua casa,
lutar contra a correnteza,
se exercita quando pode
principalmente quando é
e quando os raios do sol
época de cheia e não há como
refletem em minhas águas
prever quando um nado pode
você a vê invocando formas
virar a luta pela vida. Solimar
no barro e contando histórias
sabe bem disso, mas assim
com as outras artesãs.
como qualquer elemento da
problema visual provoca mau cheiro, que afasta clientes de restaurantes e áreas de lazer do entorno.
“Eu andei, eu nadei, eu pesquei.” -Solimar
D
e longe eu a vejo. Não é sempre que consigo
distingui-la de todas as outras
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RIOS natureza meu intuito é ser
do barco enquanto esperam
parte do curso da vida, seu
sua chegada. É no encontro
Solimar é criação do
começo, meio e fim, sempre
dos rios onde Solimar
encontro dos rios, sua
estão ligados a mim.
também encontra sustento
infância e de seus irmãos é
e reconhecimento pelo seu
marcada por esse pedacinho
trabalho. Com a terra retirada
em que as águas se misturam
perto das lagoas ela faz suas
e o povo se reúne. Ela me
esculturas das ceramistas,
chama de rústico, o rio
do cabeça-de-cuia e suas
que o povo usa pra sua
parceiras também montam as
sobrevivência. Os pescadores
bonecas do Poty, as mulheres
que vêm aqui ela conhece,
dos pescadores, as oleiras e
todos compartilham histórias
as esculturas religiosas.
parecidas. De manhãzinha ela
“Eu nadei muito no Rio Parnaíba e a gente nada não é contra a correnteza é indo junto com ela, entendeu? Vai descendo, vai nadando junto com ela. Aprendi assim, descendo conforme o percurso do Rio.”
todo tipo de peixe.”
Ela, nascida em Teresina,
compra seus peixes, mandi
Solimar conhece muito do
há 45 anos em meu encalço, é
de preferência. Seus amigos
meu percurso por Teresina. As
tão cria minha como da terra.
pescadores sobrevivem
minhas bordas recheadas de
Igual a ela existem muitas,
exclusivamente da pesca,
entretenimento. Os barzinhos,
mas as tenho gravadas em
fazem um bico aqui e ali,
os banhos, as embarcações
meu curso de forma única.
mas são minhas águas que
que passeiam pelas águas, a alegria que trago para meu
Pescando piaba com anzol
“
provém o seu sustento. São eles que em época de piracema recebem benefício
Acho que na faixa dos 12 anos, a gente saía de
do governo para conseguirem
por onde passo. Em um dos
tarde quase todo dia mais
se manter sem a pesca. Os
barcos que me permeiam foi
uma vizinha minha aqui, ela
ribeirinhos que vendem o
onde teve a sensação de paz,
gostava muito de pescar e
que pescam e alimentam o
de tranquilidade. “Sensação
me levava para pescar com os
mercado teresinense. Mas
boa” ela fala quando se
filhos dela e toda a criançada.
enquanto os pescadore s
recorda da ocasião. Tal qual
Ela sempre levava a gente
usam redes para pegarem o
ela existem muitos, todos os
para o Rio Poti. Aqui em casa
máximo de peixes possível,
dias eu vejo pessoas indo e
o povo é igual socó, todo
Solimar prefere usar anzol.
vindo, alguns pela primeira
mundo come peixe, mas o
Foi assim que ela e muitos
vez admiram minha extensão,
peixe que a gente mais gosta
de seus amigos aprenderam
outros, já acostumados,
é o mandi e tem o surubim
a pescar. Eles caçavam
apenas aproveitam o balançar
também, mas eu gosto de
minhocas, colocavam em
povo é o que a lembra de mim. Ela também já navegou
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Foto: Arquivo pessoal
RIOS
Legenda: Peças pintadas por Edilene, esposa de Jean seus anzóis e deixavam na água esperando a isca chamar a atenção de algo. Geralmente o que se pescava eram as piabinhas, eles puxavam o anzol e a criançada ficava alegre. Mas Solimar já levou susto em uma de suas aventuras. “Eu botei assim, aí fiquei puxando, puxando, todo mundo voltava com peixe e eu puxando meu anzol. Demorou, demorou, aí deu um puxão no anzol, quando eu fui puxar não tinha força aí a criançada lá foi puxar junto. Quando fui ver era
um peixe muçum, parece uma sempre fala que só os ribeirinhos cobra preta mesmo. Fiquei com cuidam dos rios de verdade. medo depois disso, mas não Mesmo que nem todo mundo deixei de pescar não.” Solimar aprecie nossa história e o que sorri e mesmo sendo uma fazemos não só por Teresina, lembrança talvez traumática a mas por toda essa redondeza, sua expressão é de nostalgia, ela sabe que somos parte dela, de saudade de uma época mais parte do que faz de Solimar a simples. artesã e ribeirinha querida por Ela lembra de sua infância nós. com o carinho de quem passou maior parte dela dentro de Os mitos que tomam forma nossas águas, as brincadeiras, pesar de todo o lixo, a as pescas, os amigos que fez. É cultura ribeirinha é sempre difícil não lamentar a poluição inspiração para os que veem que afeta meu curso, Solimar
a
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RIOS na música, escultura e histórias
do barro. Porém, diferente
turas tanto na argila, como na
uma maneira de perpetuar
da mãe e dos avós ele não
madeira de santos devotados
certas vivências e experiências.
molda tijolos nas olarias, e sim
na nossa região”, conta.
Mulheres lavando roupas,
peixes, santos, sereias, e muito
homens pescando, crianças
mais do que pertence à cultura
fazendo da água o espaço
e mitologia/folclore popular
das brincadeiras. Essas são as
nordestina. Toda movimentação,
memórias que também estão
do mercado, dos rios e das
presentes nas esculturas de
histórias, fincou raízes em sua
Jean Pimentel, antigo pescador
memória e posteriormente se
e escultor há 16 anos. Jean ainda
tornaram inspiração para as
menino ia com o pai passar as
peças que faz e vende na loja
manhãs dentro de uma canoa.
Calango Artesanato, localizada
Era ele que jogava as tarrafas
no bairro Poti Velho.
na água. Cresceu ao meu lado. Vi ele cortar o pé com os cacos de vidro no fundo do rio, correr atrás de bola e tantas outras brincadeiras na companhia dos amigos. “No final de tarde, como não tinha toda essa
“Eu cresci vendo meus avós criar verdura na beira do rio. As chamadas vazantes. Vi minha mãe com outras mulheres lavando roupa. Como tudo isso faz parte da minha história e da história de nós, nordestinos, é de onde eu me
Com o tempo essas pessoas se afastaram de mim. Não é comum ver mulheres vindo em grupo ao som de risadas e passos apressados com baldes de lençóis. Ou legumes coloridos próximos a correnteza. Jean acha que as coisas e pessoas mudaram. Eu concordo em parte. As coisas mudaram só que outras pessoas vieram ocupar esse espaço. Aqueles que tinham essas águas como parceira ao longo de toda a vida estão envelhecendo. “Tanto o Parnaíba como o Poti são como um pai e uma mãe para a comuni-
inspiro. Gosto muito do tema
dade do Poti Velho, é de
regional e essas práticas es-
onde muitos ribeirinhos
tão nas minhas esculturas. É o
tiram o sustento da famí-
que cresci vendo. Sou católico,
lia, através da pesca, da
minha família é católica, a
lavoura, nas olarias que
gente escuta muito sobre os
fazem tijolos, então são de
santos, então eu sempre fui
grande importância. Mas
muito envolvido nessa parte
eu vejo que os políticos
religiosa. Aqui em Teresina
abandonaram nossos rios.
tem competições de arte
Quando eu era criança não
Jean assim como a mãe e
santeira, então isso também
tinha essa quantidade de
os avós tira a renda através
me impulsionou a fazer escul-
aguapé que tem hoje. Hoje
tecnologia de hoje, nós íamos para o rio brincar de quem tinha mais folego, de pega embaixo d’água e nessa época dava para ver o pé do amigo, algumas coisas do fundo. Hoje não mais porque a água já está bem mais suja.”
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RIOS a rede de escoamento com despejo de esgoto. Bem, de fato há bairros na capital que crescem de forma orgânica, e sem intervenção eficiente da administração pública, os
sépticas. Por sorte ou consequência há quem esteja disposto a fazer o necessário para me manter útil a comunidade, mesmo que poucos. Foi por conta Foto: Arquivo pessoal
o pescador é limitado, ele vai para uma certa região do rio, mas lá está tomado de aguapé e não consegue ultrapassar. E isso é sinal de que nossos rios estão ficando poluído”, diz Jean.
Legenda: Escultura de São Jorge feita por Jean Os pesquisadores Livânia Norberta e Carlos Ernando, sugerem que o desenvolvimento urbano tende a contaminar
moradores são induzidos a meios alternativos de esgotamento sanitário como esgotos a céu aberto ou fossas
Oxente!
das minhas águas e do velho Parnaíba que a comunidade cresceu em economia e em cultura.◢
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Foto: Arquivo pessoal
PATRIMÔNIO
A PONTE METÁLICA UM PATRIMÔNIO DE TERESINA Bernardo Pereira e Jacírio Porto
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Foto: Jacirio Porto
PATRIMÔNIO
A
Estação Ferroviária de Teresina Ponte Metálica denominada de João Luís Ferreira, em que cruza o Rio Parnaíba interligando a cidade de Timon no Maranhão a capital do Piauí Teresina-PI, em que levou dezessete anos para ser concluída e teve sua inauguração no dia 02 de dezembro de 1939. Foi a primeira ponte construída sobre o Rio
Parnaíba, e projetada pelo engenheiro alemão Germano Franz, em que consumiram cerca de 702 mil toneladas de ferro em sua construção, e logo após sua conclusão permitiu o estabelecimento da linha férrea ferrovia de São Luiz-Teresina pela REFFSA conectando-se por trens entre as duas capitais do nordeste brasileiro. Possuía também uma façanha ao tema de música
Oxente!
do cantor e compositor João do Vale cantada por vários cantores, em que o trem que fazia a viagem de Teresina a São luís veio a tornarse anedota devido seus constantes atrasos quando alguém vendo o trem chegar à estação exclamava olha está chegando em cima da hora, logo outro respondia esse é o de ontem, época da Maria Fumaça uma máquina a vapor queimando lenha
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PATRIMÔNIO trazendo aborrecimento aos passageiros nem que fosse mesmo pelo atraso, ou pelas faíscas produzidas pela fornalhas, essas que voavam ao longo do trem queimando os ternos de linho de 120 nos latifundiários senhores abastados. Para Luís Alves Bezerra morador de Timon sempre morou na beira do rio acompanhou de perto o término da obra, segundo ele foi testemunha do primeiro trem a passar sobre os trilhos novinhos em folha em direção a Estação Ferroviária de Teresina, já estava pronta desde 1926, o mesmo nos conta que foi grande a multidão para assistir a inauguração desta obra tão importante entre as duas cidades, mais que os discursos se seguiram, e primeiro na cabeceira do lado do Maranhão depois do lado do Piauí, terminado então na estação ferroviária. Já uma outra pessoa, que presenciou todos os acontecimentos dessa época, foi o pescador Raimundo Graciano, em que contou que
tinha muita gente para ver os pães, com aquelas imensas acontecimentos e feriados cestas de taboca na garupa em toda a cidade na beira de suas bicicletas cargueiras do cais do rio, em que poderia para atravessar a ponte, e ser do Maranhão ou do Piauí, se tinha apenas uma única mas estando ali cheinho de passarela para todos. gente olhando e admirando, Assim, por conta da pois eu nunca tinha visto p a s s a g e m n a p a s s a r e l a tanta gente assim, mais que da ponte metálica, tanto realmente eram um monte o s p e d e s t r e s c o m o o s de pessoas estranhas vindas v e n d e d o r e s c o m s e u s de outras bandas por aqui, cesteiros de pães enormes, disse o pescador. engarrafavam a passarela em J á n o s a n o s s e t e n t a a sua volta, e com isso levando p o n t e m e t á l i c a , p a s s o u horas e horas para chegarmos por uma grande reforma do outro lado nas imediações tendo sido retirado todo o da ponte metálica, e pelo assoalho de madeira em que qual, essa tal passarela servia como passarela para era totalmente contramão, os pedestres e na passagem pois, todos queriam passar de caminhões pesados, pois, ao mesmo tempo, e sendo quem nos conta é Francisco um perigo constante pois, de Melo, um antigo morador a ponte tinha um assoalho das imediações da ponte v e l h o e m s e u s t r i l h o s , e metálica. Em que relatou em seu depoimento, disse que por muito tempo havia muita dificuldade, e quando dava-se quatro horas da madrugada já tinha muita gente esperando para atravessar a ponte metálica, em que naquele tempo havia muitos vendedores de
Oxente!
que em determinados momentos ocasionava alguns acidentes entre os pedestres e os enormes cestos dos vendedores de pães. Essa grandiosa e magnífica construção da ponte metálica se tornou um grande patrimônio e progresso para o Estado do Piauí, em que através dela foi tornando
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PATRIMÔNIO Ficando então, na memória de todos aqueles tempos passados que nunca foram e s q u e c i d o s , mais que continuam trazendo alegrias e boas recordações para aqueles que realmente gostam de admirá-la, tanto por
suas águas quentes ou pelas boas lembranças do passado, que já rolaram de baixo de ti, e por tantas e mais que irão rolar, mas tendo o tempo como um grande aliado de seu testemunho vivo para sempre.◢ Foto: Jacirio Porto
possível chegarmos até a cidade de Fortaleza no Estado do Ceará, com mais rapidez e exportando toda a nossa produção para outros portos como o porto de Itaqui em São Luís no Maranhão através dos trilhos pela ponte metálica.
Oxente!
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Foto: Reprodução
CHAPÉU
TÁ V E N D O C O M O SÃO AS COISAS? João Gabriel Sousa Ribeiro e Luzia Stefany Monteiro
R
ecordo-me como se fosse ontem. Ainda criança, sentindo a brisa do vento noturno no rosto pela primeira vez em uma viagem de carro, nos quilômetros entre Teresina e Pedro II, observava com cuidado a escuridão nas beiras da estrada. Os vultos das casas isoladas do mundo urbano e das muitas árvores de aparente infinito horizonte criavam um cenário de inquietude. Aquele sentimento de que algo não está certo, de que algo vai surgir das sombras, de que algo vai lhe abraçar da forma mais inamistosa possível.
Oxente!
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Foto: Reprodução
LENDAS URBANAS
BR-343. Foto: Reprodução Nunca viajei muito, então pressupus que aquela inquietude fosse comum à inocência da infância e guardei a memória com pouco carinho. Eventualmente, minha vida pediu por outras viagens, algumas mais longas, outras mais curtas, algumas com o sol de companhia, outras com a lua. Engraçado... A companhia da lua sempre trazia aquela inquietude da infância, aquela sensação de que algo me espera naquelas matas aparentemente infinitas e inquietas. As curvas da estrada de Santos podem até ser contemplativas, mas as longas linhas
retilíneas da BR-343 ainda me assombram. A 343, que liga Luís Correia a Bertolínia – e também a capital piauiense de Teresina ao Ceará na junção da BR-404 – é discutivelmente a mais importante rodovia do Piauí. Ela também passa por Altos, cidade onde reside José Gil Barbosa Terceiro, natural de Campo Maior, também no Piauí. José Gil, assim como eu, observava a incerteza da escuridão das estradas. Ele, no entanto, ia além. Observava as esquinas das ruas, as casas abandonadas, os terrenos isolados... José observava, mas além de observar, ele
Oxente!
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Foto: Reprodução/Ilustração Milton Paiva
LENDAS URBANAS
Reprodução da Internet/Ilustração Milton Paiva ouvia. Ouvia, ouvia e ouvia muito. Ouvia seus pais, vizinhos, amigos e até os transeuntes de beira de estrada. Não conheci José na beira da estrada, mas foram os sentimentos de inquietude que me perseguiram na 343 que nos conectaram. Acontece que José, desde seu nascimento, faz um mapeamento meticuloso das muitas lendas e mitos do Piauí, das histórias que os avós contam aos netos na calada da noite, no balanço
de uma cadeira velha, sobre as pessoas caladas na noite, que observam as cadeiras velhas balançando, mas que não podem ser observadas de volta. Este mapeamento ganhou vida no site pessoal/ blog “Causos Assustadores do Piauí”, uma coletânea extensa de vastos relatos sobrenaturais do estado do Piauí. O acervo do site o torna a Biblioteca de Alexandria do folclore sobrenatural piauiense, biblioteca esta
Oxente!
cuidada com afinco por José, um curador que, bem diferente deste de quem vos fala, guardou suas lembranças e relatos de inquietude com muito carinho. Recorri ao site em um momento de curiosidade espontânea para ver se havia algo relacionado às estradas da 343. Aparentemente, muitas lendas e mitos do Piauí convergem nas cidades, interiores e arredores da BR. Talvez a inquietude de minha infância encontrasse resposta
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Foto: Douglas Viana
LENDAS URBANAS
Ilustração inferno de Júlio em algumas destas. Comecemos do início: mitos e lendas não são a mesma coisa, mas José Gil mapeia ambos em seu site. Uma lenda é
uma história repassada oralmente pelas gerações, como uma explicação ou apenas exposição de algum fenômeno místico/ sobrenatural. Muitas
Oxente!
vezes as lendas misturam elementos fictícios com reais, e determinar o limite onde começa o real e começa o fictício é de uma ciência quase impossível.
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LENDAS URBANAS monstruosos, mágicos, divinos, etc. e buscam responder o que a ciência ainda não respondeu – pelo menos não para a cultura da mitologia em questão. As lendas datam dos mesopotâmicos, a mais antiga civilização humana, quando o rei Gilgamesh já buscava sua imortalidade 2000 anos antes de Jesus Cristo nascer. Mitologias não ficam muito atrás. Nós vemos o sol e a lua, os egípcios viam Rá e Iá (lê-se ‘iah’), os gregos viam Hélio e Selene, os nórdicos viam Sól (ou ‘Siëgel’, no inglês arcaico) e Máni, os tupis-guaranis viam Guaraci e Jaci e... É, a lista é extensa. Se você estiver passando pela zona rural de José de Freitas, no Piauí, e buscar pelo povoado Morada Nova, sem número específico, perto do “Bar do Pedim”, você vai ver mais do que árvores, terra e pedras. O pentagrama no portal e os grandes totens pintados com vívidas cores determinam a entrada da Vila Pagã, um belo exemplo de como a mitologia de um povo sobrevive no século dos serviços de streaming e delivery.
O mito é a narrativa de determinada cultura para explicar ou determinar elementos e eventos naturais ou fenômenos científicos que não são conhecidos pelo povo da referida cultura. Os elementos dos mitos geralmente misturam pessoas reais com seres
Os sacerdotes do local afirmam que a Senhora Carnaúba e o Mestre Babaçu, por exemplo, não são apenas lendas com nomes de árvores, como para a maioria das pessoas, mas sim “mitos, entidades reais, que refletem traços da [nossa] identidade e realidade”. As mitologias, apesar de não mortas, perderam muito espaço para a ciência e o cristianismo com o passar dos tempos. As
Oxente!
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LENDAS URBANAS lendas, nem tanto. O caráter
irmãs Cardoso, por exemplo,
onde ou até se Vicente
episódico e misterioso das
já não sentam mais em
morreu. Seu corpo também
lendas – em contrapartida
cadeiras de balanços, mas
nunca foi encontrado.
ao caráter mais sazonal e
em sofás confortáveis com
religioso das mitologias –
direito a ventilação artificial
permitiu com que fossem
e energia elétrica, enquanto
passadas, revisitadas,
relatam os contos que, por
recriadas, repassadas, etc. de
sua vez, ouviam da mãe,
geração em geração.
sobre o endiabrado Vicente
E de geração em geração
Nunes, de Castelo do Piauí,
chegamos a José Gil Barbosa
um homem que viveu a mais
Junior e Lucia Maria Alves
de 150 anos, esquizofrênico
Mourão Barbosa, os pais do
para alguns e amigo do
filho-curador que mapeia
Primeiro Caído para outros.
o sobrenatural piauiense.
De acordo com as irmãs,
Entre os zeros e uns do
Vicente era um amigo da
site de José, encontram-
família, porém inimigo da
se narrativas de um folclore
cidade. A lenda fala de um
pouco falado, pouco
homem raivoso, que havia
mencionado, mas muito rico
ateado fogo à própria casa,
e muito enigmático. José,
matado sua mãe, digerido o
em fervorosa afirmativa, até
fígado da falecida e roubado
reclama que:
o sino da Igreja de Nossa
“O sobrenatural folclórico piauiense vai
Senhora do Desterro. Não necessariamente nesta
Não acho que Vicente tenha sido o responsável pelas inquietudes de minha infância. Ele estava um pouco longe, cuidado de seu sino em sua pedra. Um pouco mais perto, na localidade Crioulos, na zona rural de Altos, talvez uma resposta. No conto de Irene Nascimento – que cresceu em uma região perto à da história – relatado por Carlos Dias e digitalizado por José Gil, temos a Divina Comédia de Júlio. Júlio era um Casanova pós-moderno, um bon vivant apreciador dos prazeres da carne, famoso por sua lascívia e seu “espírito conquistador”.
ordem. A pedra para onde
Reza a lenda que certa noite
Vicente levou o badalo da
Júlio voltava triste para
Igreja é considerado um
casa, no meio de uma trilha,
local turístico e misterioso
com nada se não a luz da
O Piauí é rico em cultura
até os dias de hoje. Vicente
lua iluminando o caminho,
sobrenatural, e os idosos
teve um fim mais humano do
quando uma donzela o
balançando as cadeiras na
que sua vida assustadora, ao
convidou para adentrar mais
calada da noite ainda são a
embarcar em um navio para
ainda as matas. Júlio seguiu
maior prova, literalmente
servir na Segunda Guerra
o chamado de sua Beatriz
viva, de tal afirmação. As
Mundial. Não se sabe como,
ao visitar um cenário que
muito além de Teresina. Não é só a capital. Não é só o Cabeça de Cuia.”
Oxente!
28
LENDAS URBANAS carece de adjetivação mais
também.
As coisas são assim:
precisa do que “infernal”:
Opa. Achei. Talvez. 1957,
não há resposta para o
pessoas mortas, torturadas
trinta pessoas mortas,
sentimento de inquietude
e castigadas por criaturas
margens da já mencionada
causado pela incerteza das
343, perto de Altos. O local
estradas noturnas, mas há
“Desastre” e redondezas,
um apanhado de respostas,
demoníacas que cantavam cantigas de Carnaval. Ao ver até mesmo o próprio avô, já falecido, exposto no inferno pessoal que adentrara, Júlio desmaiou.
de nome autoexplicativo, é ponto focal de vários relatos de pessoas misteriosas (com destaque a uma moça de
Quando acordou, Júlio
aparente recorrência) que
não havia enfrentado a Besta
pedem – ou simplesmente
que o convidou, muito menos
pegam sem ser convidadas
saído vitorioso. Diferente de Dante, Júlio morreu sem credibilidade ou redenção, escravo de um evento traumático que, até hoje, não se sabe se realmente ocorreu ou não. O local que Júlio aponta como o do acontecimento, no entanto,
– carona a motoristas que passem perto do local. Algumas das vítimas abandonaram o próprio veículo, outros seguiram a viagem e espalharam relatos sobre passageiros fantasmas. Curioso. Talvez.
de possíveis soluções, de possíveis causas. Há o sentimento de inquietude que permeia a cultura do povo piauiense desde seus tempos primordiais. Quando o sol se põe e a lua nasce na estrada, é inevitável que a inquietude volte, e isso precede em muito a invenção dos carros. É um sentimento primordial, fruto de uma conexão da humanidade à narrativa da lenda, ao mitológico histórico-cultural. É querer, lá no fundo, que
segue curiosamente sem
“Tá vendo como são
haja alguma coisa esperando
vida orgânica alguma e, de
as coisas?”, foi a fala
no escuro. Não temos
acordo com moradores como
de Claudynha Almeida,
Drácula, Wendigo ou o
Irene, trata-se de uma região
guarda municipal de Altos,
monstro de Frankenstein,
a José Gil, sobre os casos
mas temos Vicente, Júlio, as
relacionados ao Desastre.
almas do Desastre, e muitos
infértil onde, à noite, gritos misteriosos sempre serão ouvidos.
outros, personagens de um
Por mais curioso que seja
“ Tô ” v e n d o c o m o s ã o
folclore que José Gil, nosso
o local infernal de Júlio, este
as coisas, Claudynha. E o
Stephen King com uma dose
já perto de Altos, não creio
José provavelmente já viu
de Cajuína, já alertou: “é
que minha resposta esteja lá
também.
muito maior que Teresina”.◢
Oxente!
29
Foto: Lights Music Bar
CHAPÉU
A CENA DRAG QUEEN
TERESINENSE
Oxente!
30
CENÁRIO
B
Maria luisa e Samanta Leão atom chamativo, looks escandalosos e cílios postiços são itens quase obrigatórios na montagem de uma Drag Q u e e n . Pa r a s e u r i t ua l s e r
uma Drag Queen em horário nobre na televisão falando para todos os públicos. A transformista mais famosa do Brasil, Pabllo Vittar, é umas das figuras públicas mais influentes do país, vem do Nordeste e traz
completo o essencial é visível aos olhos, e isso
influências regionalistas em seus trabalhos
inclui originalidade. Cada queen possui uma
e na composição de sua personagem. No
personalidade diferente e tem o seu próprio
entanto, não é a única. O cenário pop
mundo. A atmosfera selvagem e colorida
brasileiro também conta com nomes como
que são sustentadas por um salto plataforma
Gloria Groove, Lia Clark e a mais experiente
gigante é o que faz dela, ela, e que caracteriza
Silvetty Montilla.
suas especificidades.
Atualmente, a cena teresinense, ora tão
A mundo drag sempre foi estimulado pela
enraizada em contextos arcaicos, não deixa a
cultura pop e assim ligada diretamente ao
desejar quando o assunto é Drag Queen. Ao
entretenimento, e se você se interessa por
cair da noite, a lua e as estrelas compõem a
essa cultura qual melhor forma de se entreter
passarela ao ar livre onde as Drags podem
se não assistindo um dos mais estruturados
desfilar com seus looks e maquiagens
programas nesta área e apresentado
elaboradas vibrando liberdade e resistência.
pela Drag Queen mais famosa do mundo, Assim a cidade transborda diversidade e conta Rupaul’s Drag Race. O show é exibido desde
com diversas festas voltadas para o público
2009 e serviu de incentivo para diversas
LGBTQIA+ nas quais as Drags Queens são
pessoas que já eram fascinadas por esse
atrações principais, mas isso nem sempre foi
universo excêntrico e comum maior acesso
assim.
à informação se tornaram pesquisadores incansáveis sobre o movimento.
Em 2015, se uma drag teresinense quisesse ser conceituada, respeitada e ser “A” drag,
A extravagância nas roupas, atitudes
ela tinha que participar da festa Sintética. O
e maquiagens eram acostumadas a viver
evento contava com batalhas de lip sync de
sob a luz de boates no meio alternativo da
emocionar o público e fazer arrepiar. Elas
cena local. No entanto, comemoramos que
dublavam ícones pop, que muitas vezes eram
os tempos mudaram e hoje em dia vemos
suas inspirações, de Madonna a Lady Gaga,
Oxente!
31
CHAPÉU cada queen em um canto do palco. As luzes, a animação Foto: Lights Music Bar
e energia não eram o suficiente para definir a campeã. Na votação, o personagem principal era o grito do público. Para personagens tão brilhantes falta o essencial para conseguir brilho: o dinheiro. Pelos altos valores gastos na hora da montagem, as casas de drag teresinenses começaram a oferecer entradas com valor reduzido para que elas fossem montadas. “Sabemos que se montar envolve muito dinheiro”, explicou Júnior Mysterious, dono da casa de shows Lights e fundador da festa Sintética. “Maquiagens, perucas, roupas, acessórios e sapatos, são muito caros. Então para ter a presença da drag na balada, na festa, no bar ou em qualquer lugar isso tem que ser levado em consideração. Atualmente, o valor reduzido das casas
Oxente!
32
CENÁRIO Foto: Lights Music Bar
atento e imergido no meio de transição sociocultural protagonizado pelas divas, Avelar acredita que assim como muitos rituais de passagem organicamente absorvidos, o mundo drag faz parte do universo gay como uma das fases do auto-entendimento. Principalmente para o homem gay não assumido que está querendo se soltar, se desprender das amarras da família, e dos julgamentos de uma cidade provinciana. Por meio da liberdade artística um grande parte dos meninos que se montam são valem para drags e pes- Avelar Amorim, explica que
os que saem escondidos dos
soas trans.” Explica Myste- essa arte é cíclica.
familiares e muitas vezes não
rious que se incomoda com
são assumidos sexualmente
o fato de alguns eventos
“Drags somem para que
LGBTQIA+ não serem inclu-
outras possam aparecer.
sivos.
O mais interessante é que esse ciclo não morre. No-
Através da sua montagem as drags podem construir inúmeras formas de reflexão sobre identidades através da ressignificação, originalidade e presença artística. O pesquisador, antropólogo e admirador das drags Teresinenses,
vas sempre vão surgir. Um vai puxando outra, soma e vai surgindo outra. Então é um mundo que não tem prazo de validade na verdade”, comenta. Mediante um olhar
Oxente!
em casa. “Eles se sentem livres, à noite, montados. Começam a colocar um salto, criar uma ideia, uma bota, uma lupa na imagem dessa mulher idealizada, bota glitter, bota tudo de grande de alegre se espelhando nesta imagem e brinca”, conclui o antropólogo.
33
CENÁRIO Percorrendo o meio por
Queen pertence ao mundo e
Passar a ver isso como uma
um determinado espaço de
pode estar em qualquer lugar.
forma de arte, uma forma de
tempo, o pesquisador fez
Imersa em um universo
um trabalho etnográfico de
capaz de alimentar sua
Por gostar de artes em
um contexto sociocultural
veia artística e cada vez
suas diferentes vertentes,
em que estava inserido. Cu-
mais apta a aperfeiçoar sua
MHYOU que pintava decidiu
rioso, astuto e comunicativo
paixão, MHYOU, drag há
ousar. Na primeira vez que se
acabou por criar uma rede de
três anos, evidencia que
montou, ao invés de pintar
interações relevantes com as
sua montagem veio de uma
no quadro, decidiu que a arte
personagens mais cativantes
carreira artística preexistente
seria feita em seu rosto. Desta
e trouxe revelações pessoais. sina. Com os olhos brilhando, “Começar a fazer drag foi uma Avelar não cansa de rasgar forma de experimentação.
forma deixou para trás as
elogios à Chandelle Kidman, Também de libertação de uma das Drag Queens mais alguns paradigmas que eu renomadas da cidade, que faz tinha, de certos traumas.
internos, percebendo que
do âmbito artístico de Tere-
expressão”, disse.
correntes que a prendiam em seus paradigmas e conflitos aquela arte poderia lhe deixar blindada contra as
trabalhos voluntários. Apesar das amarras de uma cidade provinciana, com muita luta e esforços unidos as drags estão encontrando seus lugares dentro da comunidade. Chandelle quebra o paradigma na questão de sair da sua zona de conforto, um espaço especificamente LGBT. A queen faz trabalhos em com câncer, além de agregar, ocupa espaços e soma aceitação em ambientes que seriam considerados preconceituosos. A arte Drag
Foto: Lights Music Bar
hospitais com as crianças
Oxente!
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CENÁRIO Foto: Lights Music Bar
autocríticas. “Minha construção foi bem lenta, um pouco dolorida, posso ser derrubada mas também sei que vou subir novamente, me reerguer, redefinir quantas vezes for necessário e saber aceitar a transformação”, explica. A queen MHYOU, que também organiza festividades na capital, conta que a redução de preço na entrada de eventos valoriza a arte drag. Depois de unir esforços, ter que bancar, pagar roupa, tirar tudo do próprio bolso, a festa é o momento construído para celebrar. Renan Costa, fã e admirador das queens,
Nos últimos anos, toda festa
singular é o quanto ela
confessa que no início seu
LGBTQIA+ que você vai tem
consegue ser fluida, se
contato era tímido com este
várias drags. Elas ganharam
adaptando a cada ambiente
universo, pois o movimento
muito mais espaço, tanto
e interagindo com diversas
era distante e não se encaixava com seu estilo de vida. “Meu primeiro contato com a cultura drag foi no
fazendo sets em festa como fazendo performances no palco.”
linguagens. A representação do extraordinário, ousado e aprimorado jeito de ser quem você é, trazendo alegria e
Mercearia, mas na época eu
Dos inúmeros motivos
resistência, independente
não dava atenção, elas não
que tornam a arte drag
do que mentes fechadas irão
eram tão acessíveis para mim.
t ã o en cantador a, o m ais
pensar.◢
Oxente!
35
Foto: Arquivo Pessoal
CHAPÉU
Alysson Araújo e Tcheska Valentim
GISLENE DANIELLE A VOZ ERUDITA Oxente!
36
U
MÚSICA
ma vida dedicada à música, o significado do canto vai muito além de soltar a voz, é um ato de expressividade que transcende o sentindo mais amplo da melodia
Teresina e então decide matricular-se. Nesse
da vida. Vida esta que se apresenta através
momento a sua mãe, Francisca Alves, sugere
do encanto da sucessão de sons, melodias e
que também leve a “Girlene”, como carin-
acordes para a caçula temporã de três irmãos
hosamente chama a filha caçula.
da família Carvalho. Ainda na infância na sala de sua casa de forma intuitiva, já aprende a colocar o vinil para tocar, a vitrola tem um destaque especial. O som da voz de Chico Buarque, a doçura de Gil e o grave de Milton Nascimento, retratam a conexão da pequena Gislene com a cultura da Música Popular Brasileira que marca a década dos anos 80, período de grande efervescência cultural no Brasil, tornando-se uma identidade musical de referência para a carreira da artista.
Em 1987, ao assistir TV na sala, Maria Helena, sua irmã mais velha, com os olhos vidrados acompanha a reportagem de divulgação do período de matrículas da Escola de Música de
“Lembro do dia que fui fazer a matrícula. Eu achei a casa linda e fiquei encantada com a arquitetura. Quando entrei na sala havia um piano de calda e isso rapidamente me despertou uma vontade imensa de estar e aprender a tocar naquele lugar”. Assim, ao acaso do destino ou predestinação, sua irmã teve de levá-la junto, sem saber que a partir dali a vida de sua irmã caçula iria mudar.
Aos 7 anos, a afinidade com a música
Com onze anos, a futura solista erudita
começara a ser definida e tudo acontece de
piauiense, entra na Escola de Música de Tere-
forma despretensiosa, cantarolando a canção
sina- EMT. Das idas e vindas nas aulas de flau-
“Travessia” de Milton Nascimento.
ta doce, e sob a obrigatoriedade de cantar no
“Eu me recordo que eu gostava muito de cantar a música e todas as vezes que eu começava a cantar: Vou deixar o meu pranto, vou querer me matar..., mamãe sempre saia correndo em prantos de onde estivesse e questionando se eu queria me matar, acreditando que era uma composição minha”.
no mundo adulto do canto. Como tudo em sua jornada parece ser predestinado, consegue entrar no coral por possuir uma estatura alta. Com a prática do canto coral, ainda na adolescência conhece Aurélio Melo, hoje maestro da Orquestra Sinfônica de Teresina, que na época contava com diversos outros projetos musicais entre os quais estão o grupo
E rindo Gislene, respondia que era apenas uma música do cantor.
Coral, ela adentra ainda na pré-adolescência
Candeia e Vox Populi que ao final do semestre apresentavam-se pela cidade com a magia
Oxente!
37
MÚSICA cesso de tomada de decisão
Academicamente, iniciar
a todos que os ouviam, além
da carreira futura torna-se
Licenciatura em Letras, Biolo-
de propiciar vivências in-
um conflito manifestado pela
gia, Psicologia, Pedagogia e
esquecíveis e decisivas para
dúvida, para Gislene apesar
Educação Artística. “Eu com-
a jovem corista. Após isso,
de toda a seriedade e em-
ecei a buscar entender esse
Gislene ainda participa de
penho voltado para o apren-
insucesso, e nessa travessia
outro coral, onde conhece
dizado da flauta e do canto,
descobri o Transtorno do Dé-
o canto lírico e se apaixona
ela ainda acredita que não
ficit de Atenção e Hiperativi-
perdidamente. Porém, com
consegui planejar um futuro
dade - TDAH. Mas surpreen-
17 anos, a cantora ainda não
profissional com a música. Ao
dentemente, mesmo com
pensava em ser exclusiva-
sentir na pele as expectativas
esse diagnóstico, a música
mente musicista, e decide
e pressão de seguir uma car-
nunca foi um impasse. Aos 22
fazer diversos cursos, mas
reira, ela dar largada a um
anos, iniciei meu tratamento
sem sucesso.
processo de exploração voca-
com medicamento ritalina, o
cional passando por diversos
que permitiu o controle do
cursos.
meu déficit e finalmente con-
Em uma fase marcada pela adolescência, onde o pro-
Foto: Arquivo Pessoal
de suas vozes, encantando
Oxente!
Foto: Arquivo Pessoal
MÚSICA
segui concluir a graduação
concentração, relaxamento,
mais que isso são raríssimos
em Licenciatura em Música,
respiração e aquecimento
os nomes de mulheres pretas
em seguida Mestrado em
são etapas primordiais para
ocupando o papel de solistas
Educação e atualmente sou
soltar a voz com todo o po-
em concertos de orquestras.
Doutorandana área”. Com
tencial das suas cordas vocais,
isso, continua cantando e fa-
que são instrumentos de
zendo solos. A menina segue
quem canta nota por nota,
sua travessia de cânticos e
compasso por compasso.
com o convite do seu antigo
Uma prática rotineira para a
professor Maestro Aurélio
solista de música erudita. A
Melo, ela se torna a primeira
música erudita popularmente
Embora perceba que, em
solista negra a cantar na Or-
conhecida como clássica, ai-
termos de visibilidade é muito
questra Sinfônica de Teresina.
nda é mais um espaço pouco
importante a representativi-
Para a cantora erudita,
ocupado por mulheres. E
dade para inúmeras futuras
Oxente!
“Sim, eu reconheço essa questão do racismo em várias situações, não vivencio tanto quanto outras colegas”.
39
MÚSICA
Foto: Arquivo Pessoal
cantoras negras que sonham em ocupar esse lugar.” Mesmo com a questão do racismo enraizado na cultura, Gislene nunca deixa sua voz se calar. ◢
Oxente!
40
CARNAVAL
Fot
80 o: 1
us
Gra
Nathália Carvalho e Ronney Oliveira
MEMÓRIAS DE CARNAVAL Oxente!
41
O
CARNAVAL
glitter, as cores vibrantes, os corpos suados e o ritmo que embala. Os carros ale-
verso conspirou a favor. Mais
meiro frio na barriga, na hora
gente foi chegando, acatando
do grande resultado, revelou
aquela ideia e então, quando
que a Skindô conseguira ficar
uma escola de samba, assim
em quarto lugar ─ nada mal para um primeiro desfile. No
góricos e o samba-enredo em
relata o meu marido, já que
ano seguinte, as coisas foram
perfeita harmonia. Já é tradi-
eu só cheguei na Skindô na
melhorando, e veio o terceiro
ção: quando se aproximam os
década de 80, quando nos ca-
lugar. Mas os tempos áureos,
primeiros meses do ano, o co-
samos”, conta, com brilho no
o reinado, foram nos glorio-
ração de quem é apaixonado
olhar, relembrando os velhos
sos dois anos consecutivos,
pelo carnaval bate diferente.
tempos.
de 1978-79 em que ninguém
detalhes que a Tânia Said,
Foto: Arquivo Pessoal
conseguiu tirar a escola da primeira posição do pódio. Foto: Arquivo pessoal
E é com essa riqueza de
nos demos conta, já éramos
uma das mais antigas carnavalescas de Teresina, faz uma imersão no túnel do tempo de uma das escolas de samba mais tradicionais da cidade, a Skindô. Foi em 1975 que o verde e o branco se uniram, sem grandes pretensões, tudo ainda parecia ser apenas uma brincadeira. O cenário não era tão favorável, pouco se havia explorado do carnaval na capital piauiense, mas Jamil Said, marido de Tânia, viu naquele ano a oportunidade de fazer história.
Todos aqueles primeiros anos, de 1975 até 1981, foram regados de emoções na grande Avenida Marechal Castelo
“A Skindô nasceu de blo-
Branco. Tão logo aquela tími-
cos, pequenos blocos entu-
da escola que surgia e ganha-
siasmados que de pouco a
va destaque entre as outras
pouco se uniam e cada vez
começou a se destacar tam-
mais lotavam o salão. O uni-
bém nas premiações. O pri-
Oxente!
Mas como carnaval tem suas cinzas…
H
ouve um tempo em que avenida ficou vazia. Por
falta de apoio, os foliões da capital tiveram que engavetar suas fantasias e se preparar para os dias sem cor. “Em 1981 tivemos nosso último
42
Foto: Arquivo pessoal
CARNAVAL
carnaval, foi lindo! Um misto
uma cidade-fantasma. Meu
de sensações. Mas depois dis-
marido que é apaixonado
so, passamos um bom tempo
pelo carnaval me disse que
sem carnaval. Presenciei uma
sentiu uma dor no coração e
luta insana do Jamil com o
jurou a si mesmo que traria o
Paulo Vilhena, que é profes-
carnaval de volta à Teresina”,
sor de comunicação da Uni-
conta.
versidade Federal. Paulinho e Jamil foram as pessoas que mais lutaram pela volta do carnaval teresinense”, lembra. Nesse tempo o que mais apertava era a saudade. Tânia relembra as horas que gastava com o marido e amigos assistindo desfiles das escolas de samba mais famosas do Rio e São Paulo, aquilo tudo fazia a imaginação fluir e mantinha acesa a chama
me, e muito samba no pé. A emoção era grande, afinal a magia estava de volta. Ansiedade, em bom sentido, era o sentimento que definia o coração das belas mulheres que disputavam o título de
Anos haviam se passado e a festa continuava apagada, esquecida por muitos e sentida por outros. Dois fanáticos começaram então a lutar por
Rainha do Carnaval de Teresina. Entra em cena, com muito brilho, animação, alegria e calor, a menina Germana, em
isso. E quando chegamos em
1998. Uma nova experiência,
1998, o olho de Tânia brilha
agarrada com foco e deter-
ao falar que, depois de tanta
minação, marcava sua vida e
insistência, aquele monte de
abria um mundo de possibili-
gente estava nas ruas mais
dades a ela. Eleita Rainha do
uma vez. Paulo e Jamil conse-
Carnaval de Teresina, mais
guiram e a alegria estava de
tarde ela também se tornaria
volta.
parte da história da Skindô.
do carnaval. “Eu lembro que
E como toda boa história
Germana viveu momentos
em pleno carnaval fomos dar
precisa de bons personagens,
marcantes que hoje carrega
uma volta na cidade. Aquela
a Skindô tratou de garantir o
na mente e no coração. “Um
Avenida Frei Serafim, juro
melhor elenco. Junto às esco-
dos momentos mais marcan-
por Deus, andei nela todinha
las, as deusas, coroadas por
tes desse período eram os
e não vi uma pessoa. Parecia
sua beleza, elegância, char-
ensaios de bateria. Só quem
Oxente!
43
CARNAVAL desfilou, participou de uma
Mas, o mundo com suas
escola de samba, tem uma
decisões, fizeram com que
noção do que de fato é
Germana mais uma vez tra-
aquilo ali. Quando dizem
çasse um novo caminho, e
que a bateria é o coração
assim deixou os bons mo-
da escola, eu concordo”,
mentos que viveu na Skin-
Mas, afinal, onde está o Carnaval?
P
assaram-se anos de desfile, tudo muito lindo.
A Skindô seguia entre as maiores escolas de samba da cidade. Em 2016, a escola proporcionou um verdadeiro show de alegoria, alas e muita animação na avenida.
Foto: 180 Graus
O público, com olhar vidrado, clamava por mais. O sonho de 2017 carregava um mar de expectativas. O caminho estava sendo
descreveu minunciosamen-
dô para que outros pudes-
te.
sem desfrutar.
trilhado e tudo já na fase de
Rainha eterna
tes em claro, foram dias de
A
dade.
E foi assim, dançando em frente ao coração, que Germana Chaves, hoje uma das maiores jornalistas políticas do Piauí, passou mais de uma década. Uma felicidade sem igual e um movimento
doçura e malemolência da talentosa Joana D’arc
conclusão. Tânia passou noipesquisa, de emoção e ansie“O que seria deste carna-
marcou a volta da Skindô às
val?”, questionavam as men-
avenidas. “Joana foi o sím-
tes inquietas.
bolo da nossa escola, nossa
E pouco tempo antes do
rainha eterna. Começou aos
espetáculo, um balde de água
14 anos desfilando e logo
fria: Não terá Carnaval! E as-
O ano era 1999, e Germa-
chamou atenção. Ela inven-
sim foi pelos anos seguintes.
na, a então grande Rainha
tava passos e todo mundo
E então 2022 chegou, e com
de Teresina, passou a desfi-
admirava, tinha um excelen-
ele, mais uma vez aquela ve-
lar e encantar na Skindô, vi-
te desempenho da avenida.
lha saudade.
vendo um mágico carnaval,
Ela era espetacular”, deta-
“Eu podia me expressar
desfrutando de momentos
lha Tânia, com um sorriso de
artisticamente. Eu podia me
únicos.
canto inevitável.
expressar! Eu sinto falta dis-
que lhe proporcionou muito reconhecimento.
Oxente!
44
so. É um trabalho
adiado nas 26 capitais
incessante e tem
brasileiras e no Dis-
que ter muita garra
trito Federal. Mas é
para fazer Carnaval.
chegado o momento
Nada que seja mara-
de sacudir a poeira
vilhoso consegue ser
das fantasias e abu-
feito sem trabalho. A
sar da purpurina, por-
gente é apaixonado
que o carnaval está
por Carnaval. É lindo!
de volta. Em Teresina,
Não tem nada que
por enquanto, ainda
pague a sensação de
não, mas no país, a
quando você percebe que passou noites em claro e está tudo lindo na avenida. É impagável. É tudo! Só sei sentir saudade!”, diz.
Foto: Arquivo pessoal
CARNAVAL
chama volta a queimar no mês de abril. As escolas do Rio de Janeiro e de São Paulo já anunciaram que vai ter muito samba na avenida. Tânia, assim como todos os
O retorno gradativo
carnavalescos apaixonados de Teresina, se
D
esde 2020 os foliões precisaram
agarram à esperança
trocar as máscaras
breve a nova geração
alegóricas por másca-
também possa ter o
ras de proteção facial.
gostinho de saber o
Pelo segundo ano
que é o verdadeiro
consecutivo o carna-
carnaval teresinense.
val foi cancelado ou
◢
de que muito em
Oxente!
45
Foto: Reprodução
CHAPÉU Jéssica Carvalho e Geovana Sousa
CRESCIMENTO DE CLUBES LITERÁRIOS Conheça a história de pessoas que viveram essa realidade na pandemia
Oxente!
46
E
LITERATURA ra março de 2020, a pandemia do novo coronavírus chegou de forma repentina e afetou o mundo
disso, há um tempo para a
de outros estados. O clube
leitura ser realizada e então é
que fundei com meus ami-
feito um debate sobre o tema
gos foi iniciado com a leitura
tratado na obra. Os livros e
de livros de ficção, mas com
os novos formatos digitais,
tempo acabamos nos direcio-
inteiro. A vida e a rotina das
como programas de podcasts
nando para a literatura clássi-
pessoas foi bruscamente afeta-
e lives literárias, facilitaram o
ca. No outro grupo participei
da pelo distanciamento social
acesso de várias temáticas e
com de pessoas de outros
obrigatório desse modo, nos-
gêneros literários e ajudam a
estados, que também era
sas relações e atividades tive-
valorizar o hábito de ler, além
voltado aos clássicos. Eu des-
ram que ser adaptadas para as
de abrir espaço para o deba-
cobri o grupo pelas redes so-
plataformas onlines. Depois de
te.
ciais, quando o fundador fez
um certo tempo de isolamento, um forte movimento de revalorização da leitura e clubes de livro se iniciou, as pessoas tentavam se reinventar e ter novas formas de lazer em suas casas. Em Teresina, houve um crescimento no número de leitores de aproximadamente 32% apenas nos meses iniciais da pandemia.
Mas o que é e como funciona um clube do livro?
O
s clubes de leitura são grupos de pessoas, que
se reúnem em uma sala de videochamada para debater
Que leitor nunca sentiu falta de ter alguém com quem conversar sobre livros? As redes sociais ajudam a solucionar essa situação. No Instagram, por exemplo, vários clubes possuem perfis e realizam lives e leitura coletiva, através desse fator é possível encontrar os mais varia-
a divulgação pelo Instagram e foi agregando pessoas de lugares diferentes. Era muito interessante, porque além de você está lendo com pessoas que não conhece, acaba também conhecendo e debatendo sobre a cultura e cotidiano de cada integrante”, revela.
dos temas. A estudante de eco-
Álvaro Antônio Marques, 22
nomia, Janaysa Costa, 22 anos,
anos, possui o hábito da leitura
é uma leitora assídua desde a
desde a infância, mais especifi-
sua infância. Durante o período
camente desde os 7 anos quan-
de quarentena, como forma de
do trocou os gibis pelos livros,
manter constância, decidiu par-
ele nos revelou que a leitura
ticipar de um grupo, logo após
compartilhada e os encontros
fundou um com seus amigos
virtuais foram fundamentais
próximos.
para sua saúde mental durante o isolamento.
sobre a história presente no
“Participei de dois clubes
livro. Geralmente funcionam
de leitura, um no qual criei
“A leitura conjunta foi
da seguinte forma: o livro é
com amigos próximos e outro
como um remédio para a mi-
escolhido por todos e depois
que participava com pessoas
nha saúde mental, devido aos
Oxente!
47
LITERATURA encontros periódicos e às dis-
Muitas vezes nos sentimos
cussões calorosas que eram
desanimados e sem incentivo
realizadas. Os encontros onli-
para ler, uma das vantagens de
ne serviram para evitar a sen-
um clube do livro é a expecta-
sação de solidão”, destaca.
tiva e vontade de falar sobre
As discussões sobre a temática em questão, para Álvaro são essenciais no desenvolvimento de nossas mentes curiosas e atentas. “É muito interessante a forma como em um clube do livro, um personagem pode ser personificado e interpretado de várias maneiras diferentes, de acordo com a imaginação e a opinião de cada leitor”.
determinada obra e o poder de debater diferentes interpretações vindas dos outros leitores, o que é um ótimo estímulo para continuar lendo. “Quando a gente lê sozinho, às vezes nos sentimos desmotivados a continuar a leitura até o final, mas quando sabemos que tem outras pessoas ali fazendo a mesma coisa que você, nos sentimos motivados a terminar e debater o que foi lido com seu grupo. Foi legal perceber que
Como a leitura pode ajudar na
qual todo mundo estava passan-
saúde mental?
do, ainda assim havia pessoas
L
que estavam perdurando em
mento em que a incerteza pesa, essas reuniões se tornaram um ponto de fuga da realidade. Nesse sentido, com a falta do cotidiano e do contato físico, o meio
de vício tecnológico. “Os clubes são uma boa ferramenta para inserir o jovem atual no mundo da literatura, porque eles participam com os amigos evitando uma leitura monótona e diminuindo a desistência no meio da
apesar do momento crítico no
er pode até ser uma atividade solitária, mas em um mo-
portância em nossa realidade
uma motivação em comum. Dessa maneira, isso faz você ter ânimo para poder vivenciar o cotidiano e as mudanças que a gente sofreu com essa pandemia”, conta Janaysa.
leitura, além de também desenvolver a retórica e a diplomacia em rodas de conversa”, pontua Álvaro. Fenômeno ou tendência?
A
lgumas pessoas acreditam que os clubes de livro
são uma prática exclusiva da pandemia que pode deixar de existir quando a situação estiver melhor. No entanto, depois desses quase dois anos e com os inúmeros benefícios que os livros oferecem no desenvolvimento da mentalização, raciocínio lógico e imaginação, a tendência é que com a ajuda da
virtual serviu para aproximar
Manter-se ativo nas redes
tecnologia e baseado nos com-
pessoas de diferentes lugares,
sociais, é quase uma necessi-
portamentos que adquirimos
aliviando um pouco o dia a dia
dade nos dias de hoje, para o
no isolamento, as reuniões vir-
repleto de notícias sobre o ví-
estudante de direito, a leitura
tuais evoluam e fiquem de vez
rus da Covid-19.
em conjunto é de extrema im-
em nossas vidas.◢
Oxente!
48
MEMÓRIAS DA BATALHA: EDUCAÇÃO COMO ARMA DE GUERRA
Foto: Thiago Santos
CHAPÉU
Praça Bona Primo, centro de Campo Maior
Luna Santana e Thiago Santos Conheça a repercussão da batalha do jenipapo para além dos livros
Oxente!
49
O
BATALHA DO JENIPAPO O fruto nativo das Américas batizou uma das mais sangrentas batalhas por indepenFoto: Thiago Santos
d i a a m a n h e c e cidade há 62 anos. Cheia de t í m i d o n a p e - vida, sustenta-se com o que q u e n a c i d a d e arrecada em sua banquinha piauiense. O céu de frutas e verazul é constante- duras. Todos os mente arranhado pelos feixes dias, maria se de luz, que rasgam o horizon- aventura nas te como uma fagulha de es- ruas da cidade perança. Esperança que alça na esperança voou nas asas da liberdade, de conseguir como os pássaros no horizon- dinheiro sufite. ciente para por Independentes e astutos, a mesa. Bataos pássaros dançam o balé da lhadora, revela vida, e lá em baixo, distante o perfil de muido céu, repousa a selva de tas Marias desconcreto, ainda despertando de os tempos primários. com o romper do dia.
Ozinete FaA pacata cidade de Campo Maior, à 84km da capital do ç a n h a é u m a Piauí, acorda sob um sol ame- d e l a s . O s 6 6 no, onde a vida exala o aroma a n o s e x a l a m doce, diferente do ardor expi- um espirito jovem, mas cheio rado nos tempos de guerra. Nas ruas, o movimento d e h i s t ó r i a s lembra a calmaria dos dias p a r a c o n t a r . santos. De braços abertos es- Com um passapera o padroeiro da cidade na do difícil, Ozientrada do município. Santo nete herdou do Antônio bendiz quem por ali bisavô um enpassa, sempre que é percebi- redo dramático, que subsiste do pelos bem aventurados. as sombras da Dona Maria do Rosário é batalha do jeni- Estátua de Santo Antônio, padroeiro da exemplo de boa aventurança. cidade papo. Devota, a católica mora na
Oxente!
50
BATALHA DO JENIPAPO dência no Brasil. Estimulante
batalha do jenipapo aconte-
nha, sou vencedora. Maria
natural do apetite, o jenipapo
ceu.
Ozinete Façanha; é assim
matou a fome de muitos nor-
Desde pequena, as crôni-
que me chamo!”, afirmou
destinos, mas foi às margens
cas da batalha atravessam o
orgulhosa de sua ancestra-
do rio de mesmo nome, no
imaginário de Ozinete e seus
lidade.
dia 13 de março de 1823, que
irmãos. Além da história, seu
o conceito de jenipapo tomou
Bisavô deixou no sobrenome
outro rumo. No ritmo do bra-
da família um legado, que
As histórias contadas oralmente, mantiveram vivas as lembranças da batalha do jenipapo na família façanha e em muitas outras na cidade. Na época. para os mais velhos, repassar essas vivências aos mais novos era como pintar um novo quadro, pincelando a tela com as cores do saber popular, do conhecimento adquiri-
Foto: Luna Santana
do na prática, compondo a cultura primária, memória, existência de vida. Gerações a fio escutaram as rodas de conversas dos familiares tecendo a novela da
Ozinete Façanha - campo-maiorense do de independência, o Piauí
reflete a vida de quem obser-
escreveu um capítulo decisivo
vou de perto a potência de
de sua história.
resistir por liberdade e inde-
Os antepassados de Ozinete estiveram por perto quando a batalha ainda era um rumor no pequeno vilarejo. A família Façanha possui, desde aquela época, um pedaço de terra bem do lado de onde a
pendência.
vida, enquanto o som agraciava os sentidos, e o narrar de histórias revivia o ardor dos sentimentos. A oralidade concebe a ex-
“Façanha é a pessoa que
periência, costurando a vida
vence, no jogo, na vida, ou
com sabedoria. O fio invisível
na guerra. É como aquele
do conhecimento sempre
ditado que todo mundo fala ‘fulano conseguiu uma
esteve ali, no cantarolar de cantigas, no assobio ritmado,
façanha’. Eu sou uma faça- no vai e vem de ideias da ta-
Oxente!
51
BATALHA DO JENIPAPO Foto: Luna Santana
garelice familiar. Mas não é todo campo-maiorense que conhece bem o passado do seu povo. Por aqui, do mais velho ao mais novo; há quem não conheça a trama. Os ventos que uivam como lobos da independência, não ecoaram os gritos de emancipação nos ouvidos de todos, em especial das gerações mais novas. Naele Perreira sabe bem o que isso quer dizer. Aos 32 anos a nordestina nutre o sentimento regionalista na esperança de ver o filho crescer e entender suas raizes. “Eu nunca tive nenhuma instrução na escola sobre batalha do jenipapo. Por lá nunca foi repassado esse conhecimento, e hoje eu sinto falta. Hoje como mãe, eu vejo que o meu filho sabe e eu não sei. Ele estuda sobre isso na escola, são trabalhadas diversas atividades educativas, mas no meu tempo infelizmente a gente não tinha isso. O que eu sei da batalha é bem pouco, e por conta do monumento que tem aqui na cidade”, Memorial Heróis da Batalha do Jenipapo
explicou com o olhar imerso em pensamentos ao perceber
Oxente!
52
BATALHA DO JENIPAPO que amor também se nutri com educação.
À alguns passos de distân-
eles levam a gente até o me-
cia de Naele e Valdirene, gera-
morial, explicam a história e mostram pra gente como
Foto: Thiago Santos
tudo aconteceu”, revela o jovem estudante. A lembrança dos dias em sala de aula transbordam a tela viva. Tanto para Natanael, como para a caravana da turma do colégio Ensa, que resolveu alçar voou mais altos, que nenhuma barreira física pode conter. Situada em Teresina, a esMoradores de Campo Maior na praça Bona Primo - Miguel, Naele, Valdirene e Paulo Sua colega de trabalho, que servia de companhia enquanto espaireciam, não conteve a emoção, “Hoje eu me sinto orgulhosa por essa batalha ter acontecido aqui”, expressou Valdirene Fontenele, no ponto alto de suas emoções, que mais pareciam um eco do grito de indepen-
ções se cruzam. Na ponta da praça Bona Primo, um grupo de jovens chama atenção
cola fez parada obrigatória nos principais pontos de Campo Maior. O objetivo é um só; levar aos pequenos e aos grandinhos uma boa dose de aprendizado. A ideia surgiu
pelas risadas. O mais jovem
pela carência, mas hoje trans-
deles; pelo tamanho.
borda bons resultados. A aula
Grande na estatura e gigante nas lembranças. Natanael Nunes é teresinense mas mora em campo maior desde pequeno. Aos 15, aque-
brinca com a imaginação dos alunos, e também dos professores, que encontram na criatividade o casamento perfeito da teoria com a prática.
ce a memória na tentativa de
“Aqui no nosso estado isso deveria ser mais bem traba-
A conversa acolhedora foi
relembrar do que se trata a batalha do jenipapo. Os res-
lhado, por que a formação
um convite para o mergulho
quícios de história estão nas
histórica do povo piauiense
profundo nas lembranças de
lembranças da sala de aula.
deixa a desejar. Mas o que
um passado histórico vivo, or- “Eu lembro de ter estudado
a gente, como professor e
sobre a batalha, na escola
educador, tenta fazer é tra-
dência.
gânico.
Oxente!
53
BATALHA DO JENIPAPO zer eles pra esses pontos tu- conhecimento, mas criar as rísticos, acompanhados de possibilidades para a construalguém que seja habilitado
ção do pensamento crítico.
para falar sobre o assunto,
Os alunos são como terras
pra que eles tenham conta- férteis, já os professores; são to com o relato e também como sementes do amanhã. com a construção do co- Afinal, a educação é um ato nhecimento, por que o fazer de amor, por isso, também é histórico é uma ciência. Na sala de aula a gente ensina
um ato de coragem. Coragem que fez Lara Be-
a teoria, mas é importan- atriz pular cedo da cama, ante trazer eles para sentir a siosa pra conhecer aquilo que cidade, vivenciar a cultura
já tinha aprendido nos livros.
ganha cheiros e texturas que os livros ainda não conseguem expressar. “Assim a gente aprende mais rápido, dá pra entender tudo facinho. Aqui a gente pode aproveitar os nossos professores e também as outras pessoas, por que nem tudo tem nos livros né?”, alfinetou a garota, que aos 13 anos revela uma mente curiosa, cheia
oral e o acervo vivo de fon- As páginas cheias de palavras tes”, explicou a historiadora e nomes alheios, ganham vida
de vida.
e professora Bianca Moura.
O professor e Historiador,
A turma é prova vida de
bagagem de mão é pequena, Shi takeshita, acompanha de mas a da memória é enorme;
Foto: Luna Santana
que ensinar não é transferir
nas ruas de Campo Maior. A
Estudantes Teresinenses durante aula prática
perto os olhos curiosos de seus alunos. No papel de guia
Oxente!
54
BATALHA DO JENIPAPO histórico, Shi revela em suas
Novas percepções iluminam
“Conhecer mais do mundo,
palavras uma verdadeira enci-
o cenário do embate travado
também é conhecer mais a
clopédia temática; traduzindo
por camponeses e pequenos
si mesmo” foi o que incitou
as narrativas em fatos reais.
latifundiários na cidade das
José ao perceber a dimensão
carnaubeiras. José Mateus,
e importância da história na
atento as explicações de
prática. Os mais sábios dizem
seu professor, não esconde
o seguinte ditado; “conhecer,
o interesse em reaprender a
para que não possamos re-
história, para reescrever o
petir novamente”. Esse é um
passado com um olhar mais
dos grandes saberes da vida.
“As notícias chegam muito atrasadas e geralmente muito confusas. A primeira obra que a gente tem sobre a batalha de Jenipapo é do Abdias Neves, ainda no finalzinho do século deze-
crítico e curioso.
Para além da história, passado e herança, se codifica
nove, onde publica a Guer-
“O aprendizado é a
ra do Fidié. Depois, já nos
maior lição pra gente aqui.
anos 70, surge um bum do
Na sala de aula a gente
crescimento econômico do
foca muito no ENEM, e vim
cem na educação e brotam
governo militar, quem está
pra cá mostra que a pre- nos corações, como o de José sença é importante, conhe- e Lara, faíscas de transforma-
governando o estado nesse
cer e visitar também faz
ção.
momento é o Alberto Silva e
parte do estudo”, afirma o
é aí que a gente vai ter uma
jovem estudante.
Piauí e do Brasil durante o
uma nova realidade, onde a vida e o conhecimento flores-
As metamorfoses são constantes e eternas, esse é Foto: Thiago Santos
releitura da batalha do Jenipapo onde se cria toda uma romantização, apontando que a população lutou pelo patriotismo. Mas na verdade eram pessoas bastante simples, iletradas, levadas por um objetivo maior que era conseguir proteger suas terras.”, esclarece o historiador. Os esclarecimentos dão evidência à uma nova compreensão sobre a batalha.
Lara Beatriz, estudante Teresinense
Oxente!
55
Foto: Thiago Santos
Shy Takeshita - Historiador e professor o ciclo natural da vida. Assim
cristaliza ou é esquecida.
leva à Piripiri, a instalação dos
como as pessoas, o conhecimento também se transforma, se reinventa diariamente,
MEMORIAL
O
s caminhos são longos embora a cidade seja
Heróis do Jenipapo, chama atenção. Subimos a escadaria que guarda o monumento, a
Foto: Thiago Santos
e a memória de um povo se
pequena. Na estrada que
José Mateus - estudante Teresinense
Oxente!
56
Foto: Luna Santana
BATALHA DO JENIPAPO
Memorial Heróis da Batalha do Jenipapo experiência é como encher o
Nos aproximamos, ron-
domésticos, como pilões de
coração de expectativa por
damos o local e o que o
grãos. Armamento militar e
encontrar um lugar mágico,
professor Shy havia dito
armamentos improvisados.
místico, reluzente. Mas, não é
começou a fazer sentido; há
A cena se monta com facili-
bem esse o sentimento.
uma certa romantização em
dade na mente de qualquer
torno de todo esse episódio
visitante.
Os tempos são de distanciamento, e a impressão que
da história do Brasil.
Apesar da idade e da ri-
se tem é de que a distância
A homenagem aos com-
queza de detalhes, as peças
entre aquele lugar e o povo
batentes expõe objetos da
não aparentam tanto zelo.
está cada vez maior.
época, cédulas, materiais
Parecem estar perdidas no
Oxente!
57
BATALHA DO JENIPAPO tempo, empoeirando-se sob os olhos do esquecimento. Não é de se espantar, afinal; Não contam muito sobre a história da batalha nas escolas e se fala pouco sobre ela na cidade onde tudo aconteceu.
História, que sempre foi chave para a porta da revolução. A batalha foi símbolo da defesa do direito à terra, moradia e ao sustento. O historiador Shy relata os fatos pivôs para o início do movimento. “O boato era de que as tropas portugue-
Foto: Luna Santana
Por trás das narrativas de
guerra, se esconde a maior motivação daquele povo; a subsistência. Os guerrilheiros encontraram nas armas brancas e de fogo, o refúgio para suas liberdades.E tudo isso é contado ali, no memorial que sustenta 199 anos de história.
Artefatos do memorial Heróis da Batalha do Jenipapo
Oxente!
58
sas já tinham conhecimento de que na cidade de Campo Maior já tinha muita resistência contra portugueses, então, o que se espalhou era justamente de que haveria uma vingança, uma justiça pelo que houve contra os portugueses na cidade. Então, as pessoas saem nas ruas para a batalha não apenas pela questão do patriotismo, ou conquistar a independência do Piauí em relação a Portugal, mas é também pra defender a Vila de Campo Maior, o lugar em que vivem, suas terras e subsistência.” Hoje a memória é vida, e também vive no presente. Atravessamos toda aquela área, cercada por vidros, e de longe os ventos assobiavam resistência. Seriam aqueles nossos heróis? Descansando em paz, talvez? Difícil em terras brasileiras. Ontem e hoje, pelo menos. Falar de luta no Brasil contemporâneo é relembrar que no próprio nome já se carrega um legado. Em origem Tupi, Brasil quer dizer “vermelho como brasa”, mas no vocabulário histórico, podemos chamar; “vermelho como sangue”.◢
Oxente!
Foto: Luna Santana
BATALHA DO JENIPAPO
Foto: Reprodução / internet
CHAPÉU
A ARTE DOS QUADRINHOS ENTRE FOICES E FACÕES
QUADRINHOS Yury Pontes e Ramila Gomes
A
s Histórias em Quadrinho são ainda hoje palco para um universo fictício com aventuras, desafios, perseverança e quaisquer outros atributos que definem a identida-
de e personalidade de seus heróis.
“Submeti o projeto a um edital do governo do estado, e para realizar esse projeto eu precisei me afastar por um ano do meu emprego. O desenvolvimento do roteiro levou cerca de 4 meses, as ilustrações, realizadas com meu irmão Caio, levou cerca de
Diferentemente de outros países como Es-
seis meses, e a pós-produção 2 meses.”
tados Unidos da América, que tem uma enor-
As armas utilizadas pelos guerreiros nessa
me produção de HQs ao longo de vários anos,
dura batalha foram facas, foices, paus e pe-
como Marvel Comics e Detective Comics (DC), o Brasil mesmo que apresente clássicos do gênero como Turma da Mônica, de Maurício de Souza, ou Menino Maluquinho de Ziraldo, ainda tem um cenário muito tímido.
dras, contra as poderosas armas de fogo do império português, e esse acontecimento deu vida ao título da obra. A ideia para o título veio a partir da sugestão de seu outro irmão, Bruno, que deu a ideia de colocar o título, pois a frase já havia
No Piauí, a História em Quadrinho “Bata-
sido utilizada em um dos versos de um música
lha do Jenipapo: Foices e Facões”, criada por
composta pelo autor, e que faz alusão ao tipo
Bernardo Aurélio e seu irmão Caio, traz uma
de equipamento que a população utilizou para
rica narrativa acerca de um dos conflitos mais
se defender das tropas portuguesas.
violentos da história, e que hoje é símbolo de resistência e da independência brasileira. Bernardo, em entrevista a Oxente!, relatou que escolheu trabalhar com este tema, pois
O desenvolvimento da HQ passou por alguns percalços. A Batalha do Jenipapo ocorreu no início do século XIX. O acervo de imagens e fotografias da época, são escassos, e por isso houve muita dificuldade em reprodu-
ele é formado em História, e que a partir des-
zir o vestuário da época, o que levou os cria-
se conhecimento, desenvolveu o roteiro para
dores da HQ, a criarem e adaptarem alguns
a HQ da Batalha do Jenipapo.
desses cenários e da vestimenta. Contudo, al-
Oxente!
61
Foto: Reprodução / internet
QUADRINHOS
guns detalhes também foram
renças entre a primeira e a
senhos e um espaço maior na
recuperados.
segunda edição, foi a adição
história.
Estruturas que não existem mais foram incorporadas, e puderam ser acessadas a partir de pesquisas. Uma igreja em Campo Maior, der-
de mais páginas, como novas artes e desenvolvimento de personagens. Como por exemplo, um que o autor nos confidenciou gostar muito,
rubada em meados de 1950,
mas para não dar um spoiler,
é um exemplo desse resgate.
me reservo a não revelar seu
Muitos personagens também
nome.
“Me senti um pouco como o diretor e roteirista George Lucas, modificando várias etapas de sua obra. Espero que nas próximas edições eu não precise alterar o conteúdo, para que seja mais padronizado”.
foram desenvolvidos a par-
Esse personagem que
tir das histórias reais, como
morreu na primeira edição,
Simplício Dias, João Cândido
A Batalha do Jenipapo,
e a partir de uma técnica de
mesmo considerada um dos
diagramação de Histórias
conflitos mais violentos no
em Quadrinhos, Slash Page
Brasil, durou poucas horas. O
(desenho em duas páginas
conflito começou cerca das 9
abertas), teve seu enredo
horas da manhã e se encerrou
incrementado, com mais de-
às 17 horas da tarde. Não se
e Leonardo Castelo Branco. Outros personagens fictícios foram incorporados ao desenrolar da história.
Foto: Reprodução / internet
Uma das principais dife-
Oxente!
QUADRINHOS Foto: Reprodução / internet
tem conhecimento de quantas pessoas, de fato, morreram nesta batalha. “Alguns falam em centenas, outros falam milhares de pessoas, mas não se tem precisão quanto a essas informações”, como destaca Bernardo. O que se tem conhecimento, e que inclusive foi incorporado na HQ, foi o acontecimento após a batalha. O governo local leu um informe da época sobre o conflito, alertando, inclusive, sobre as mortes de portugueses que ocorreram em território nacional. Essa nota foi incorporada em sua totalidade na HQ, através da transcrição literal na obra. Outro fato que não se discute muito quanto a essa temática, é que após a Batalha do Jenipapo, também ocorreram outros conflitos pequenos, nas cida-
sam narrar o nosso cotidiano e
O cenário da produção de
des próximas, e foram encabe-
transformá-lo em arte. E essa
HQ no Piauí ainda anda em rit-
çadas pela liderança restante
realidade não pode ser diferen-
mo lento, lamenta Bernardo.
do conflito.
te com as Histórias em Quadri-
De certo, a nossa rica história pode ser alicerce para muitos contos e lendas, mas
nhos, afinal a mesma também faz parte da lista de expressões artísticas, mesmo não incor-
Há 13 anos, ele desenvolvia uma feira que reunia os criadores de HQ da região, e com isso tinha um reconhecimento e identidade mais fortes, e
para que elas transpassem ho-
poradas na lista original de
rizontes, é necessário que se
Ricciotto Canuto, responsável
dê as ferramentas necessárias
pela popularização da nomen-
de quem são as pessoas que
para que obras como essa pos-
clatura das artes.
produzem essas obras. Atual-
Oxente!
mais organizados. Porém, hoje em dia, é até difícil ter noção
63
QUADRINHOS Foto: Reprodução / internet
produção cultural. É fácil perceber, por exemplo, que existem muitas escolas de música no estado, escolas de teatro, que recebem investimentos por parte do governo para seu devido funcionamento, mas para as HQ’s não temos esse tipo de incentivo, e isso dificulta esse progresso e organização, até mesmo em receber algum tipo de retorno financeiro, seja para criar ou para se sustentar mesmo”, destaca Bernardo. Alguns criadores de HQ do Piauí, criam esse tipo de conteúdo para fora, outros estados e até outros países como os Estados Unidos, por exemplo, porém, “não são todos que conseguem esse espaço no mercado de Histórias em Quadrinhos”. Diversos problemas podem mente, com as novas tecno-
divulgam através da internet, e
ser verificados e rodeiam esse
logias da informação, esses
por isso é mais complexo ava-
gênero. Ele já pode escutar de
produtos estão desvinculados
liar o cenário atual.
alguns professores, que o conhe-
do processo de impressão, até
cem, que não abordam muito
mesmo para que haja um ba-
“Por vezes falta tam-
rateamento na criação desses
bém investimento por par-
das salas de aula, pois as HQs,
conteúdos. Os criadores de HQ
te das instituições para que
em sua maioria, apresentam
no Piauí fazem seu trabalho e
se consolide esse tipo de
enredos mais fictícios, mesmo
Oxente!
esse tipo de conteúdo dentro
64
QUADRINHOS “Eu sei que não foi exatamente assim. Existe um debate acerca dessa fala, desse local, que Dom Pedro I na verdade estava com problemas intestinais em cima de um jumento, diferentemente do que é falado, que ele estava em um cavalo branco.
Foto: Reprodução / internet
quando abordam temáticas mais históricas. Bernardo inclusive cogitou retirar as primeiras 13 páginas da HQ, pois elas abordavam a história da independência do Brasil, com Dom Pedro I gritando às margens do Ipiranga, “Independência ou Morte!”.
Oxente!
Seria mais cômodo até inserir a história assim, mas eu não queria que tivesse esse alívio cômico, afinal estamos falando sobre uma batalha violenta que fez muitas vítimas, não seria o enredo ideal para abordar esse caso”, finaliza Bernardo.◢
Chapéu
Foto: Arquivo pessoal Último Coelho
Ádria Viana e Lara Matos
E
UMA VIAGEM À QUATRO RODAS PELO PIAUÍ ra cedo da tarde, próximo às 15h quando conseguimos contato com a Carina Furlanetto e João Paulo Mileski. Percorriam a estrada de volta para o Piauí, prontos
para conhecer mais cidades do estado. A voz pelo telefone demonstrava animação, era fácil notar que estavam ansiosos pelo que encontrariam pela frente. Através dos pequenos trechos de áudio que con-
Oxente!
66
Foto: Carina Furlanetto e João Paulo Mileski
TURISMO seguiam enviar enquanto
de Barra Grande lhes deram
se aproximavam da sua
boas-vindas, e a expectativa
próxima parada, desta vez
do que se encontraria de tão
indo em direção ao interior
impressionante por terras
do estado, eles descreve-
piauienses foi tomando espa-
ram sobre o calor, falaram
ço nessa bagagem que muito
da comida, das sensações,
já havia descoberto.
das paisagens e do que os
Barra Grande, no Piauí,
olhos gravaram em tanto
é um destino bastante esti-
tempo vivenciando essa
mado. Famoso ou não, quem
aventura dentro de um
passa uns dias pelo tranquilo
carro, enquanto conhecem
vilarejo, conhece de perto
cada canto do país tropi-
o viver de um sertanejo que
cal. Foi um contato curto,
não vive no sertão, e sim nas
de primeira, pois era difí-
muitas águas que invadem a
cil manter a conexão em
pequena faixa de praia per-
certos pontos da viagem,
tencente ao Piauí, a menor
mas foi o suficiente para
do país. Flores, resorts,
embarcarmos junto a eles
pousadas, kitesurf. O visual
nessa história.
rústico, a calmaria, dentre
Carina e João Paulo chega-
tantas coisas, mesmo com o pouco que puderam viven-
ram no Piauí há pouco menos
ciar, foi o que mais chamou
de uma semana, a cada passo
atenção do jovem casal. Para
os olhos ficavam encantados
quem já viu de perto diversos
com a terra, o sol, o mar e a
paraísos, olhar para a imen-
tranquilidade por onde passa-
sidão no litoral piauiense
vam. Como todas as rotas fo-
era saber que ali tinha, sim,
ram previamente planejadas,
um “quê” especial pouco
o casal dividiu sua passagem
explorado pelos brasileiros.
pelo estado em dois perío-
Um pouco de sombra e um
dos. “Como um zigue-zague”
mar calmo. Após passar por
disseram. Vindo do Ceará,
pontos turísticos de grandes
foram direto ao encontro
movimentações e aquela mu-
do nosso litoral. Os ventos
vuca, no Piauí se depararam
Oxente!
67
trocávamos ideia com João e Carina sobre as riquezas da nossa faixa litorânea, conversamos um pouco sobre o que se estava ali por perto: Parnaíba, segunda maior cidade do Piauí, uma das mais importantes
Foto: Carina Furlanetto e João Paulo Mileski
com serenidade. Enquanto
regiões do estado desde a época colonial. Durante os dias em que seu sandero estava estacionado por essas bandas, deram um breve “pulo” nas praias de Luís Correia seguindo até a Lagoa do Portinho. “Era diferente das outras praias na qual passamos, que estavam sempre cheias”. Talvez poderia ser por terem chegado em um período de chuva. O clima, neste tipo de viagem, acabava influenciando as
gasto máxi m o todos os dias e esse valor, R$ 70 reais, com o preço das coi-
paradas e forçava a constante adaptação no itinerário. Desde que chegaram no Nordeste, as mudanças climáticas impediam certas visitas à praia. E por outro lado, a falta de sombra no calor escaldante atrapalhava o descanso dos viajantes que adaptaram seu carro popular para comportar várias funções, como até mesmo a de cozinha. Uma das regras do casal para essa viagem era manter um
a cumprir o orçamento, prepasas por aqui, não representava
rando a própria comida dentro
a liberdade de sair por ai fazen-
do carro, através de uma pan-
do um tour gastronômico. Mas
ela elétrica. Apesar disso, as
como ninguém passa pelo Nor-
delícias da terra apresentadas
deste sem provar do cuscuz e da carne de bode, entre uma refeição e outra os dois experimentavam algumas iguarias ou conheciam o nome de uma fruta regional, e logo voltavam
Oxente!
a eles não passaram batidas. Como, por exemplo, a carne de sol. O alimento típico da época em que os sertanejos precisavam passar dias na estrada e era preparada de forma que a
68
TURISMO cisavam desacelerar, e escol-
acolhedora casa em que des-
heram justamente uma das
cansavam, caiu como uma
praias do Piauí para isso.
luva naquele momento. Eles
“A gente roda o mundo para procurar, mas descobre que o que importa não está em um lugar específico, mas nos caprichos da natureza que se apresentam a todo momento quando nos permitimos enxergar”, escreveu João
então pararam em uma casa simples. Teto de palha, redes na varanda. Preferiram estas à cama, a fim de sentirem a brisa no rosto. Até cessar a febre, o cansaço, e então era chegada a hora de colocar as malas no sandero e seguir viagem. Após as primeiras ex-
Paulo.
pedições pela pontinha do
Nestes dias eles não fiz-
estado, aceleraram rumo ao
eram nada a não ser ver o
Maranhão já com ânsia para
movimento das marés, indo
retomar as descobertas pelo
e voltando. Em dias anteri-
Piauí na segunda parte da via-
ores, Carina havia passado
gem, essa prevista para dia 29
mal, o que os levou ao pronto
de março. Como conhecer um
atendimento. Afinal, até as
estado nordestino envolve
viagens mais planejadas es-
muito mais que seguir pela
tão propensas a imprevistos.
orla da praia, os jornalistas
Desconfiavam ser sintomas
esperam encontrar, agora
da Covid, mas o diagnóstico
seguindo a estrada norte
viria a ser uma dengue, e as-
rumo ao sul do estado, muita
sim percebiam, que talvez
história e tradição. Desde
esse era mais um sinal de que
o alto da serra da capivara,
aquela aventura os tomava
pinturas rupestres, às sete ci-
também a força física. Foi
dades, que resgatam o tempo
Após os 28.948 km roda-
quando um casal que acom-
que o sertão era mar, ou à
dos, era hora de descansar.
panha a página nas redes
visita na nossa antiga capital
Em uma de suas elaboradas
sociais, os ofereceu um lugar
Oeiras.
crônicas, os passageiros re-
para se acomodarem por
No momento em que es-
latam que vez ou outra pre-
uns dias. E assim fizeram. A
tamos escrevendo, o casal já
carne não estragasse, com muito sal e sol. Assim, ela secaria e não se perderia, alimentando os viajantes por vários dias. “Não é do nosso costume, mas achamos incrível”.
Oxente!
69
TURISMO deve estar de volta ao Piauí. A rota planejada para esta etapa inclui um rápido passeio por Cocal, o suficiente para conhecer uma de suas belas paisagens naturais e seguir as trilhas por entre pedras. Seguir viagem até Piracuruca onde fica localizado o Parque das Sete Cidades, dar uma passada em Pedro II para admirar a terra do Opala e assim continuar… Barras, Campo Maior, Altos, Teresina, Castelo do Piauí, Buriti dos Montes e Monsenhor Gil, um tour completo, uma aventura que nem mesmo muitos piauienses tiveram o privilégio de viver. Em direção ao sul, a viagem seguirá também uma longa lista: Oeiras, São José do Piauí, Picos, Jaicós, Coronel José Dias, São Raimundo Nonato, Guaribas, Bom Jesus e Redenção do Gurguéia. Cidades estas onde conhecerão lugares como a Capadócia Nordestina, Serra da Capivara, os Cânions dos Viana e por onde com certeza encontrarão outras maravilhas. “Conhecemos muito pouco do Piauí”. Não só eles. Seria fácil encontrar uma centena
de piauienses que também conhecem muito pouco do Piauí e mal sabem todas as suas riquezas. Agora, João e Carina, serão parte do seleto grupo que poderá dizer: Eu conheci o Piauí. Mesmo que sempre existam cantos não frequentados e riquezas não descobertas, agora, era diferente, durante esses dias eles poderão sentir na própria pele, a experiência piauiense.
Conhecendo os passageiros e o início dessa aventura
V
amos voltar para onde tudo isso começou. Ao comando desta viagem peculiar temos dois indivíduos que compartilham de várias coisas em comum. De um lado, Carina Furlanetto e do outro, João Paulo Mileski. Ambos jornalistas, gaúchos, 34 anos e o mesmo espírito viajante. O sonho de viajar o mundo sempre foi algo importante para os dois, porém, mantendo uma vida tradicional, acabaram adormecendo a ideia até que um certo dia, em 2015, deram os primeiros passos para o
Oxente!
que, hoje, os trouxe ao solo piauiense. Carina pediu demissão do emprego como repórter e João foi demitido do trabalho quatro meses antes da viagem. Largaram seus cursos superiores. Ele em Filosofia e ela em Psicologia. Os planos cresceram e o que um dia foi um roteiro de viagem de carro para o Uruguai acabou se tornando uma expedição por dez países, feita entre 2018 e 2019. Durante a expedição pela américa latina, os gaúchos davam vida ao sonho de toda uma vida descobrindo novas culturas, fazendo passeios especiais e como se não bastasse as dificuldades naturais da viagem, o casal ainda se desafiava a manter um determinado valor máximo para suprir todos os gastos diários, o mesmo aqui no Brasil, com seu saldo de 70 reais por dia, já antes mencionado. Os 14 meses de viagem resultaram na obra “Crônicas na Bagagem: 421 dias na estrada uma jornada de despedimento pela América do Sul”, criado a partir dos escritos compartil-
70
Foto: Carina Furlanetto e João Paulo Mileski
TURISMO
hados entre stories e publicações em uma rede social, onde acumularam mais de 135 mil de acompanhantes. Após tal experiência, João e Carina então resolveram redescobrir o Brasil. “Conhecemos praticamente todo o nosso subcontinente e só agora estamos conhecendo de verdade o nosso próprio país. Nesse tempo na estrada, pudemos constatar a riqueza da diversidade cultural”. E foi nesses passos, ou melhor, quilômet-
ros, que nossos descobridores chegaram ao nosso território, e essa história você já sabe. “Saber que nem tudo é como as pessoas nos contam. Que o sertão não é só seca, que a Venezuela não é só pobreza, que o argentino é muito receptivo, que o nordeste até faz um friozinho… Isso de conhecer o mundo com os próprios olhos é o que nos motiva.”◢
Oxente!
71
Foto: Reprodução
CHAPÉU
CARTOGRAFIA DO AFETO: A MATÉRIA VIVA DA MEMÓRIA Ilanna Serena e Maria Teresa
Oxente!
72
CHAPÉU
A
história, irremediavelmente, relaciona-se ao cenário. Para quem vive ali, rodeado de livros e dialetos, contemplar o fim de tarde pode ser uma cartada de mestre.
De volta à sala, o professor Marcelo Sá sentou-se à sua mesa. Guardou algumas apostilas em uma gaveta e mudou outras de lugar. Ao virar a cabeça para o lado oposto ao da janela,
O que mais há de ser? “Eu acabei aceitando. Comecei aparentemente só para passar o tempo, mas aí me identifiquei. Praticamente a vida inteira aqui. É minha segunda casa. Passo muito tempo, às vezes mais tempo do que passo em casa. O colégio tem essa cara de Teresina. É uma daquelas maravilhas da natureza’”, rabiscou em uma das inúmeras apostilas. Desde então,
moveu os braços e, de um jeito tímido, vibrou.
embora tudo mudasse em volta de si, o pro-
Avistara o passado. Ali, numa das principais
fessor nunca interrompeu seu percurso. Após
avenidas de Teresina, constantemente, vozes
décadas, continua a caminhar pelo corredor
ressoam. Todas parecem vir do mesmo lugar.
central, rumo à escada que o leva ao terceiro
Um prédio, notável e vistoso, construído em
andar, enquanto assobia, tranquilo. Quase
1906.
como se nunca houvesse aprendido, sequer,
Marcelo começara a rezar bem ali, na cape-
como sair dali.
la do complexo jesuítico, onde muitos se ajo-
Um prédio centenário, custeado por cam-
elham de forma habitual, diante de um altar
panhas de doação de recursos financeiros e
adornado com adereços e ilustrações. Onde
materiais durante parte da primeira metade
esteve e acompanhou, ao lado de grandes
do século XX. Uma trajetória de muitas lutas. E
amigos, dezenas de celebrações.
como em todo prédio antigo, no CSCJ, existe
O batismo marca, oficialmente, a trajetória
uma lenda. Na fachada, em frente à capela, há
de Marcelo com o Colégio Sagrado Coração de
uma estátua de Cristo, que, de braços abertos,
Jesus – para os práticos, CSCJ. Uma tia, já fa-
acolhe a cidade. Erguido sobre um pedestal e
lecida, trabalhara no local. Lembranças fortes
com um de seus pés à frente do outro. Nas in-
da vida, em muitas salas de aula. Na gruta, nos
stalações internas, alunos declaram, eufóricos,
corredores, na capela, nas quadras...Ah, as
que, ano após ano, a estátua troca de pé. Um
quadras. Como em passeio, encanta-se. Volta
samba arrastado e, certamente, marcante.
e meia, suspira. Um passe certo, um passo em
Tais palavras e percepções, que brotam
falso. Dos dois aos dezessete anos, Marcelo
no seio da capital, infundem de forma semel-
esteve no CSCJ. Passou os dezoito, os deze-
hante no coração de uma viajante. Maria da
nove, os vinte, os vinte e um. Aos vinte e dois,
Conceição Leite Lages chegou em Teresina,
era licenciado em Matemática. Os resultados
onde Socorro, sua irmã, estava, em 1945. Sua
logo se difundiram, formalizando um convite.
cidade de origem, Barras, fica a pouco mais
Oxente!
73
MEMÓRIA de 108 km. Naquele período,
comportamento. O desperta-
partir daí tudo se constrói. Os
o Brasil era governado por
dor, previsto todos os dias
tradicionais desfiles cívicos, em
Getúlio Vargas, que, à propósi-
para as 5h30, anunciava a ida à
que vestiam uma farda branca,
to, visitara, em 1933, o Colégio
capela e ao refeitório. Depois,
excepcional, e eventos es-
Sagrado Coração de Jesus,
iniciavam as aulas. Até 1925, as
portivos também estão entre
referência no ensino de garo-
disciplinas foram ministradas
as lembranças que Maria car-
de mangas compridas com um
exclusivamente por freiras e
rega por aí. Lembranças que,
emblema do colégio, e uma
sacerdotes. Por volta do meio-
extraordinariamente, partilha
saia abaixo do joelho, de cor
dia, as alunas, mais uma vez
com a família. Maria mal sabia,
azul marinho, com dois suspen-
eufóricas, corriam para enfren-
mas encararia, com leveza,
sórios. O emblema era definido
tar a fila do almoço. Às 13h30,
a intensidade do tempo. Ela,
por grau de escolaridade.
os estudos eram retomados,
repetidamente, agradeceria,
Quem estivesse na primeira sé-
encerrando somente às 16h.
numa brecha no tempo, num
rie, uma tirinha, segunda série,
“Um rigor muito grande e eu,
curto bater de asas, por hoje e
duas tirinhas...
apesar de ser rebelde, aceitei.
pelos velhos tempos.
tas, até então. Para Maria, as emoções eram facilmente controladas. Acostumara-se a começar o dia sem ingerir nada quente, como café ou chá. Ao longo do dia, tinha aula de português, latim, francês, geografia, economia doméstica e canto oceânico. Entre tantas coisas, os jornais noticiavam um grande conFoto: Reprodução
flito militar. A menina por lá ficou até 1950. Hoje, carrega e exibe, com carinho, imagens de quando tinha entre dez e dezesseis anos. Utilizava blusas
Por muitas décadas, ninguém deixara o prédio sem au-
Minha irmã não, é diferente”, revelou Maria.
O coreógrafo Renan Caldas conhecia o que os pais e a avó
torização. Apenas uma vez por
Os pequenos gestos, os
Maria lhe haviam dito. Ele se
mês, se aprovada por nota de
olhares do outro, o dia a dia. A
tornou a terceira geração da
Oxente!
74
MEMÓRIA família a estudar no Colégio Sa-
teve contato com o primeiro
mundo se divertiu, a gente or-
grado Coração de Jesus. Com
contato com a dança. Um mês
ganizou tudo e foi um sucesso.
olhos despertos, atravessou
após concluir os estudos, en-
Quando foi no ano seguinte, já
as portas de madeira em Par-
quanto passeava de bobeira
começaram a me ligar ‘soube
naíba, no litoral do Piauí, onde
pelo colégio. Tinha esse hábito
que tu é coreografo’ e eu ‘que
localiza-se o Colégio Nossa
de ir só para ficar lá, sempre
negócio é esse?’ e o pessoal
Senhora das Graças, da mesma
gostou de fazer isso. Uma
‘é, tu que fez ano passado’ e
congregação do CSCJ. Naquela
vez aluno, uma vez ex-aluno,
eu ‘nãããão’, mas aí eu topei.
época, irmãs da Itália foram
você sempre se sente em casa.
Aí foi indo, indo, indo e eu lar-
designadas para atuar
guei meu trabalho, eu
no Piauí – algumas di-
cursava Engenharia
retamente do país eu-
Mecânica e até estag-
ropeu, outras estavam
iava”, frequentemente
alojadas no Pará ante-
conta aos amigos.
riormente. Somente
Descobriu o que o
em 2004 chegou à
fazia feliz.
instituição teresinense,
“Em todos os
para cursar a sétima
lugares, todos ares,
série.
todos os caminhos,
As lembranças,
onde dão?” – Em 2015,
passadas de boca em
os artistas paulistas
boca, pareciam se aconchegar. O soar
Lívia Humaire e Markus Foto: Reprodução
Thomas escreveram
das campas, as fichas
esse verso em uma canção. As-
redondas com uma estrela do
Na ocasião, faltavam apenas
sim como o primo Renan, Raísa
lanche e os detalhes que lhe
quatro dias para a abertura
Caldas encontrou, no antigo
rodeavam. Via as paredes, os
das Olimpíadas – o evento
prédio, um amor. Ela e Felipe
livros, o chão, ouvia um som
cultural mais esperado pelos
se conheceram em 2005, no 2°
de fora, vago, próximo ou
alunos. Uma prima ensaiava
ano do ensino médio. Nenhum
remoto. Todas as portas que
quando descobriu que o então
dos dois sabe bem quando se
se abriram na vida de Renan
coreógrafo desfizera o combi-
cruzaram os olhares, mas, cer-
estão relacionadas ao colégio.
nado. Renan a viu chorando,
tamente, o encanto surgiu do
Contatos profissionais, equipe
deu apoio e, sem perceber, a
detalhe. Entre as aulas, durante
de futebol, sonhos e amores.
guiou. “Vem para cá, fica ali,
o recreio, antes, com tal zelo, e
faz isso. “E ficou nessa e todo
sempre.
Ali, no prédio centenário,
Oxente!
75
MEMÓRIA
No dia 13 de maio de 2023, irão se casar na capela do CSCJ. Não haveria outro lugar, a não ser onde tudo começou. Memória, que se faz carne, cor, consonância. Qual a importância da memória e qual sua relação com a construção de uma identidade cultural? A memória estimula o olhar patrimonial. E em uma via de mão dupla, o patrimônio é uma forma de preservar a memória. Um papel significativo no desenvolvimento da formação identitária de grupos, constituída por processos sociais e legitimada a partir da ideia de pertencimento.
indivíduo esteja e enfrente uma situação sozinho, seus referenciais são estruturas simbólicas e culturais de um grupo social. E a relação entre memória e lugares é sempre estreita. Não há como evocar eventos passados sem que venham junto com eles os lugares a partir dos quais essas memórias foram vivenciadas. Por anos, Rebecca, exsaviniana - como chamam os ex-alunos - manteve um diário. Não um diário habitual, feito com papel, escrito com caneta. Mas um diário mental, onde
alocou boas memórias. “Escrevia” para capturar a cena, como um prelúdio da paixão por cenários que a levaria ao curso de Arquitetura. Na escrita guardava o riso, e as lembranças cujas raízes estão na infância. As trajetórias de uma vida escolar inteira vivenciada em paredes históricas, refletiram em um olhar preocupado com a questão patrimonial. Rebecca Lopes seguiu carreira e especializações levantando questões que lhe surgiram ainda criança, mapeando lugares ao brincar, criando cartografias afetivas.◢ Foto: Reprodução
Quando a viu pela primeira vez, Pedro sentiu o coração palpitar. Quem diria, contudo, que um abrupto nervosismo tornaria-se paixão? Em 2006, um beijo aconteceu. De lá pra cá, 17 anos se passaram, já não escutam os mesmos discos, cresceram uns centímetros e construíram novas ideias.
Uma construção social, uma vez que os indivíduos lembram daquilo que consideram, por alguma razão, valioso. As lembranças, então, são sempre coletivas, pois, ainda que o
Oxente!
76
Foto: Arquivo pessoal Último Coelho
PEDRO II
CAFÉ ART BAR: VIVÊNCIA E AFETO NA PEDRO II Jeyson Moraes e Gabriela Varanda
Oxente!
77
E
PEDRO II la nasceu no período imperial. Já teve vários nomes, mas encontrou sua identidade como: Pedro II.
do mundo, mas também por
nense. O local em questão, que
um centro de artesanato, que
muitos não conhecem, se trata
fica no lado oposto ao teatro e
do Café Art Bar, um ponto de
que traz nele anos da história
encontro que permaneceu vivo
da cidade de Teresina, seja ele
mesmo com o encerramento
E não, nós não estamos falando
como uma cadeia no passado,
das cenas culturais do antigo ci-
de alguém, mas sim de um lugar.
ou como é atualmente, um local
nema.
Lugar este que já foi morada, já
de arte da terra que transborda
foi passadouro, mas hoje e sem-
talento e carinho de quem passa
pre, é e será coração. De todas
por ali, seja trabalhando ou visi-
as nossas passagens, algo em es-
tando.
pecial sempre nos chamou aten-
No Art Bar, tivemos o prazer de conhecer e conversar com Eli Santos, que frequenta o local desde os tempos de escola,
Também importante e im-
quando era ainda adolescente,
pactante, a histórica praça conta
há cerca de 13 anos. Simpática,
com o antigo Cine Rex, hoje
ela nos detalhou que viveu gran-
desativado, mas que foi um dos
des experiências da sua vida ali
principais responsáveis pelo
na praça, especificamente nas
É inevitável não pontuar as
crescimento da cena cultural
mesas do Art Bar. Experiências
características arquitetônicas
da capital piauiense. O cinema
essas que passam desde início e
originais do início do século XX
funcionou por, nada mais nada
término de namoros até come-
que estão presentes na Praça
menos, que 65 anos, o que fez
moração por projetos e traba-
Pedro II. As diversas áreas, com
com que ele entrasse para a his-
lhos aprovados.
diferentes níveis, escadarias, e
tória do país como o cinema de
ainda um coreto, tornam o local
rua com maior longevidade do
um verdadeiro e monumentoso
Brasil.
ção nesse lugar: a arquitetura e em como o sol, propositalmente, ilumina de forma carinhosa toda a praça.
complexo cultural. Unindo todas
“Eu tenho várias histórias marcantes aqui no Art Bar, já comemorei aniversário,
Nessa verdadeira jornada
já fui pedida em namoro,
pela Praça Pedro II, ao fim de
já comemorei término de
uma bela tarde, paramos ali
namoro, mas o mais mar-
em frente ao antigo Cine Rex e
cante mesmo foi a primeira
Para agregar mais ainda valor
presenciamos algumas pessoas
vez porque estava saindo do
cultural e histórico à praça, ela é
conversando e trocando vivên-
mundo em que vivia, muito
cercada não só por um teatro
cias enquanto bebiam em mesas
fechado. Quem anda aqui
impetuoso, o 4 de Setembro,
e cadeiras amarelas, ali mesmo,
pela Praça Pedro II se sente
que há mais de 100 anos recebe
na calçada histórica da Pedro II,
acolhida pelo Art Bar, eu
atrações de todos os lugares
durante o belo pôr do sol teresi-
digo isso por mim, mas o Art
as classes, cores, idades e estilos. Do rico ao pobre, do hip hop ao chorinho.
Oxente!
78
PEDRO II do bar. Ela sorriu, desconfiada
garçom do Art Bar, talvez uma
mãe, porque ela vinha aqui
com a pergunta, e desconver-
das personalidades mais famo-
no cinema, além dos meus
sou como quem não queria
sas atualmente da Praça Pedro
tios e toda minha família. É
revelar o nome de alguém im-
II. Não poderíamos deixar de
um lugar meio romântico,
portante que marcou sua vida,
aproveitar a oportunidade para
já tiveram shows na chuva,
mas ao que parece, de forma
falar com ele sobre sua relação
bandas, saraus, paradas de
passageira. Gargalhando, Eli
e história com o Art Bar, já que
cinema e muitos eventos
fala logo depois que, entre
sentimos que todos que estão
culturais, que é minha área.
muitos amigos que fez no local,
ali, independente de frequen-
Vários projetos meus foram
um dos que ela tem muito cari-
tadores ou trabalhadores, têm
feitos aqui, na mesa do bar,
nho é ‘Didi’ – “Ah o Didi”, disse
uma conexão especial com a
e vários desses projetos fo-
ela rindo de orelha a orelha.
praça e com o estabelecimen-
Foto: Reprodução
Bar tem histórias da minha
ram aprovados e comemorados aqui”, comenta.
Curiosos, questionamos
to.
quem era o tal ‘Didi’ e logo o
Antes do anoitecer, fomos
Perguntamos para Eli sobre
conhecemos, até porque to-
conversar com ‘Didi’. Aprovei-
alguém especial que ela conhe-
dos que frequentam o bar o
tamos que o movimento do
ceu em uma daquelas mesas
conhecem de primeira. Didi é
bar estava fraco e ele estava
Oxente!
79
PEDRO II aguardando algum novo clien-
violência, as vezes eu saia
bre o abandono do Cine Rex,
te chegar.
daqui meia-noite ou uma
que ele tanto frequentou quan-
hora da manhã. O povo
do era menino. A conversa vai
tinha mais amor pelo ou-
se prolongando e ele, insatis-
tro, você chegava em uma
feito com a situação atual do
mesa, mesmo que sem
antigo cinema, saúda importân-
conhecer as pessoas, as
cia de se valorizar o patrimônio
pessoas davam boa noite
presente no centro histórico
para você, diferente de
da capital piauiense, que tanto
hoje, que não se deve con-
transformou a vida de muitos
fiar em ninguém. Era um
teresinenses e piauienses.
‘Didi’, na realidade, é Diomedes José Carvalho. Curioso o nome Diomedes, não? Também achamos, talvez por isso o apelido de ‘Didi’ caiu mais fácil na boca do povo. O garçom, sempre alegre, inicia a conversa relembrando de forma saudosa a época em que conheceu o Art Bar, ainda como cliente. Ele também fala que naquele tempo, entre as décadas de 1980 e 1990, as pessoas eram mais amáveis.
tempo muito bom, sem violência, o amor reinava mais entre as pessoas”.
“Hoje, mesmo com a falta do cinema aqui, o prédio deveria estar fun-
Apesar da mudança no
cionando com galeria de
mundo e nas pessoas, ‘Didi’ diz
arte, bibliotecas, salas de
que continua sendo a mesma
dança, cinemas de arte.
“Eu comecei a frequen-
pessoa e detalha como é tra-
Hoje está abandonado,
tar o Café Art Bar ainda
balhar no local onde passa a
é uma grande saudade
com 12-14 anos, porque eu
maior parte do seu dia-a-dia.
de ter não só a arte, mas
tinha um tio que sempre
“Eu sou uma pessoa que gos-
também o público que
me trazia para o cinema, e
to de tratar bem as pessoas,
hoje está reduzido devido
quando a gente saia ele fi-
tenho que fazer de tudo para
ao abandono que o prédio
cava tomando a cervejinha
que as pessoas gostem e para
tem”.
dele e eu tomando a Coca-
que elas estejam voltando e
-Cola. Depois disso, eu
frequentando o bar. O meu
comecei a adolescência e
modo de ser, sempre vai ser
minha primeira cerveja eu
assim, tratar bem as pessoas,
tomei aqui, escondido dos
tem clientes que desabafam os
meus pais”, disse sorrindo.
problemas comigo e na manei-
“Conheci o café em 1983. Naquele tempo a
ra do possível, quando eu posso ouvi-los, eu dou conselhos”.
Ao pensar sobre futuro, ‘Didi’ prevê a não tão distante aposentadoria, mas narra que sempre irá frequentar o Art Bar e toda a Pedro II, mesmo que não esteja mais trabalhando por lá. Nesse momento, ao pensar no futuro, ele retira por
gente podia ficar mais
Percebemos, no entanto,
um momento seu boné e olha
tranquilo, por não ter tanta
angústia do garçom ao falar so-
para todos os cantos da praça,
Oxente!
80
PEDRO II de cada prédio a cada árvore,
praça Pedro II ainda está
sentimos que a Pedro II é
demonstrando no olhar todo o
viva devido ao café Ar Bar.
mais que uma praça, mais que
carinho que tem pela Pedro II.
Quero dizer que o café
um complexo cultural, ela é
está de portas abertas
abraço, é casa, é história, é
e que a gente possa ter
Teresina. É o centro de uma
“Daqui 10 anos só Deus pode dizer o que eu estarei fazendo, mas eu espero trabalhar aqui muito tempo ainda, apesar de que nada é eterno. Um dia eu vou ter
pensamento positivo para que isso aqui possa voltar ao que era antes, tempos de muita gente”.
que sair. As vezes quando
Ao deixar a Praça Pedro
eu penso em sair daqui, eu
II e encerrar nossa jornada,
pequenos infinitos de cada um que por ali sorriu, chorou, amou, e apreciou a subida do sol, ou o descanso dele no Rio Parnaíba. ◢ Foto: Reprodução
penso em vir visitar, tomar
imensidão, sustentada por
uma cervejinha e relembrar todo o tempo em que trabalhei por aqui e as infinitas lembranças. Tem muita coisa para acontecer, mas eu pretendo ficar muito tempo para depois que sair voltar como cliente”. Antes de atender um cliente que acabara de chegar, o garçom destaca que o Café Art Bar sempre estará aberto a todos que queiram deixar a correria do dia-a-dia um pouco de lado e vivenciar a praça com mais história e vida de Teresina. “Eu só tenho a dizer que o Café Art Bar está de portas abertas, continua sendo um bar tradicional e acolhedor da cidade. A
Oxente!
81
CHAPÉU
VÁRZEA QUEIMADA: O POVOADO QUE TRANÇA A CARNAÚBA Millena Brito e Rodrigo Alves
Cantando elas levam a vida e fazem artesanato, com a habilidade das mãos que notoriamente parecem trabalhar sozinhas, como se não fizessem esforço, assim como um mágico que ilude com tamanha destreza.
Oxente!
82
Oxente!
83
Foto: Reprodução / Tatiane Cardeal
Foto: Reprodução / Tatiane Cardeal
CHAPÉU
E
ARTESANATO ntoando o xote das meninas, a artesã vai fazendo a sua arte com a palha da carnaúba, suas
“O dia vem radiante e Maria
são chamados pelo seu José
Bonita já está de pé”, canta a
Ivan, geralmente o período de
artesã enquanto trança a palha,
extração do pó vai de julho a
algumas mulheres fazem um
setembro e é realizado somente
círculo e movendo as mãos com
uma vez ao ano.
peças já saíram mundo afora e
a carnaúba, movem também a
hoje são reconhecidas tanto no
economia daquele povoado. As
Brasil quanto no exterior. Dona
ruas são de terra, e a melodia
Antônia Barbosa conta que há
das artesãs se mistura com
muito tempo, um morador disse
os sons das galinhas, vacas e
que deveriam plantar carnaúba,
demais bichos de criação, o
pois daqui um tempo ela traria
desenvolvimento ainda não
prosperidade ao povoado, a
chegou em Várzea Queimada
profecia do antigo habitante
mas a esperança e a fé já são
parece estar se cumprindo.
habitantes antigas desse lugar.
As artesãs são moradoras
A seca os forçou a procurar
do povoado Várzea Queimada,
outros meios de sobrevivência
um local cercado por vegetação
e no artesanato encontraram a
rasteira e com poucos
esperança, que veio das mãos
habitantes, cerca de 900
das mulheres artesãs.
Sobre o processo de produção, as artesãs relatam que o trabalho é todo feito em conjunto. “Os trabalhadores tiram a palha na roça, descarreira e a gente estende, e seca, e a gente tira o ‘olho’, vai lascando com a faca e tira o pó (sic)”, diz Emília Barbosa, artesã e moradora de Várzea Queimada. O pó citado pela artesã, é retirado para fazer a famosa cera, que é usada como matériaprima para vários produtos, por causa de suas propriedades
pessoas vivem lá onde todos
Sentado na porta de casa
são parentes, isso é claramente
e olhando a mulher trançar a
observado nos sobrenomes
palha, o seu José Ivan Barbosa
“Carvalho” e “Barbosa” que
fala da importância da Carnaúba
se repetem tanto entre os
para o povoado, ele conta
moradores. A razão disso foi
que não é só de artesanato
porque duas famílias vizinhas
que vive Várzea Queimada, o
que habitavam a região,
município também vende o pó
casaram-se entre si, formando
da Carnaúba para empresas,
o povoado de uma só linhagem,
que chegam a arrendar toda
neste luagr que é pequeno em
a plantação. O processo de
tamnho, mas grandioso em
extração do pó da carnaúba
arte, onde hoje, os moradores
é feito por alguns moradores
trabalham juntos com a
que já são conhecidos na região
Após a extração do pó, as
carnaúba.
como “tiradores”, é como
artesãs aproveitam a palha
Oxente!
impermeabilizantes e também a sua capacidade de dar brilho, que também é encontrado nos olhos das artesãs quando relatam como a carnaúba é protagonista na comunidade Várzea Queimada. Um interior árido e que antes jazia esquecido, mas agora seu nome é reconhecido como potencialidade no território piauiense.
84
ARTESANATO produção não condiz
dos territórios piauienses e até
peças. “Para o artesanato a
com a complexidade das
mesmo das terras brasileiras.
gente trabalha com a palha
peças artesanais que antes
Esses projetos voltados para
branca (o olho), primeiro
não eram tão valorizadas
a produção, comercialização
a gente faz toda a trança
como hoje. A artesã Emília
e visibilidade do artesanato
e depois é que a gente vai
Barbosa conta que antes das
possibilitaram que as peças
produzir as peças. Algumas
capacitações e incentivos à
produzidas no interior do Piauí,
produzem as tranças e outras
produção e comercialização
tivessem projeção internacional.
(artesãs) fazem a costura (sic)”,
de artesanato, a realidade era
Essa iniciativa mudou a realidade
concluiu Emília.
muito diferente. Hoje suas
do povoado. Como diz Helena,
peças são levadas para além
“vai até pra Milão”.
Foto: Reprodução / Tatiane Cardeal
branca para fazerem suas
A simplicidade da
Oxente!
85
ARTESANATO A comunidade tem como principal dificuldade a água, por
de vida e prosperidade vem da
Secretária de Estado do
Carnaúba.
Meio Ambiente e Recursos
estar localizada em uma região
Hídricos (Semar), juntamente
com balanço hídrico negativo,
A Árvore da Vida é a Senhora
com a Universidade Estadual
ou seja, a quantidade de chuva
Carnaúba
do Piauí (UESPI) fez uma pesquisa para escolher qual
Foto: Aparecido Mota
é menor que a quantidade de
água que evapora. A água é considerada fonte de vida, mas em Várzea Queimada a fonte
A
carnaúba é realmente uma riqueza do Piauí,
árvore seria o símbolo do
tanto é que em 2017 a
a carnaúba foi eleita. E não é
Oxente!
estado, e com 49,1% dos votos,
86
ARTESANATO Foto: Reprodução / Tatiane Cardeal
índio avistou uma divindade em cima de uma carnaúba, que pediu para que ele e sua família talhassem a árvore para retirar sua seiva e saciar a sede; que cortassem e extraíssem de seu interior o palmito para matar a fome; que utilizassem o pó das suas folhas para extrair sua cera e iluminar a noite em dias sem lua; que usassem suas raízes como remédio natural e sua palha para construir um lar. A divindade poderosa para menos, a árvore além de
pela miséria trazida com a fúria
ser matéria-prima com 100%
do deus esquecido, porém
de aproveitamento, é também
poderoso.
mística.
Mas, ainda restava uma
era a Senhora Carnaúba, que fez uma única exigência àquele pequeno índio, que espalhassem seus coquinhos em toda a região, dando origem a um
A lenda diz que o Território
família que saiu daquele território
dos Cocais era habitado por
em busca de sobrevivência.
uma tribo indígena, um lugar
Depois de seis dias e sete noites
de fartura e misticismo, tal
andando por uma vastidão
abundância resultava da
desértica e exaustiva, os
adoração a vários deuses.
pais desta família dormiram,
Porém, havia um deus que foi
enquanto isso, um pequeno
esquecido por aquele povo, o
e esperto índio permaneceu
árvore da vida, a Carnaúba, que
Deus Sol, que decidiu castigar a
vigilante com receio de que seus
hoje representa prosperidade
tribo trazendo seca e fome, os
pais nunca mais despertassem.
para a comunidade Várzea
tempos de fartura findaram e
Durante aquela longa e
quase toda aldeia foi dizimada
angustiante noite, o pequeno
Oxente!
vale repleto de carnaúbas, para que nunca mais a miséria e a fome voltassem àquela terra. A família do jovem índio formou uma nova tribo, e ele seguiu em sua missão santa de espalhar por todo o Piauí, os coquinhos da
Queimada e também para o Piauí, a terra da Carnaúba. ◢
87
Foto: Chico Rasta
CHAPÉU
O OUTRO LADO DO MAR A vida das marisqueiras no litoral piauiense
Ana Carolina Dias e Bruno Chaves
Oxente!
88
LITORAL para as suas mulheres, morenas, chorosas, a esperar o sustento do peixe e do amor. Isso sempre me encantou. Mas, de alguma forma, na minha cabeça in-
nesse trecho: “Papai era pescador, mamãe lavadeira Eu ganhava meus trocados Vendendo beiju na feira Nunca me faltou o pão Comprava com meus trocados Carne, arroz e feijão”
fantil, eu nunca
As ganhadeiras fizeram
pensava nesses
história na Bahia e em todo
homens no mar.
o país por terem sido mu-
A minha imagem
lheres escravizadas que
e preocupação
conseguiram sua liberdade e
era sempre na
prestavam diversos serviços,
angústia dessa
especialmente como lava-
mulher olhando
deiras, e juntavam dinheiro
pela janela, ven-
para comprar a liberdade de
do a jangada se
outras pessoas escravizadas.
perder no infini-
O grupo de descendentes
to. O que é até
resiste até hoje e as mulheres
bonito, apesar
seguem com suas cantigas de
de problemáti-
mar. Hemingway nos mostra,
co, quando en-
em “O velho e o mar’’, que
tendemos que
ele também pode ser mulher:
nós, mulheres,
“O velho pensava sempre
somos aparelha-
no mar como sendo la mar,
das para isso. Já
que é como lhe chamam em
esde muito nova, ouvia na rádio Caymmi cantar sobre os homens do mar. Os que
adulta, eu conheci as Ganha-
espanhol quando verdadeira-
deiras de Itapuã. Não lembro
mente lhe querem”. E assim,
se procurando ou passando
entre mar e querer bem, as
esses infinitos aplicativos de
ondas vão nos mostrando
música, não sei, mas uma
que existe o lado de quem
iam com medo de não voltar
hora me peguei pensando
vive do mar para além da ja-
d
Oxente!
89
LITORAL nela. De quem não só espera
ra desde a infância, tempos ou-
É bonito pensar em Maria
barcos chegarem, mas que
tros, como ela mesma diz, não
correndo na beira da praia na
estuda a maré, a lua e o vento,
consegue lembrar de situações
para entrar de pés descalços e peito aberto. De mar em mar, tem vivido
que não envolvam o trabalho: desde as brincadeiras na rede de pesca do pai e avô, ou das
maré baixa e acompanhar seu crescimento. Como mil marias e, ainda assim única, casou e teve 5 filhos. Orgulhosamente explica que as 3 mulheres e 2
Foto: Chico Rasta
homens foram criados com tudo que veio do mar. Por também ser “pescadeira”, termo que Maria usou e que será repetido outras vezes sempre que pudermos contar sua história, a narrativa se confunde diversas vezes, exceto por um fato que faz toda a diferença: Nesta história, Maria é quem espera a maré baixar, vai com o grupo de marisqueiras da associação na qual é vice-presidenta, pega os mariscos, volta para a vila, tira as cascas, limpa, faz todo o processo necessário para a comercialização, separa, precifica e vende. Assim, sem ninguém a esperar na janela, sem nenhum canto sobre o coração doer de saudade e preocupação. Tudo Maria. Todas
pelos últimos 50 anos Maria.
cozinhas nas quais a mãe traba-
Marisqueira do litoral piauien-
Maria, todos os dias. “A vida de
lhava. Tudo tinha suor, sorrisos
uma marisqueira é muito pe-
e trabalho na infância da vila
sada. A gente vive dessa vida
se, aos 63 anos, Maria Luisa de Sousa Santos começa a conversa já afirmando: a gente depende da maré. Trabalhado-
de pescadores de ilha grande, Piauí, em 1970.
Oxente!
porque não tem outra coisa pra fazer. Assim mesmo, eu me sinto feliz. Nós somos umas
90
LITORAL marisqueiras muito felizes da
é pesada. Mas o fato de não
litoral é um local abastecido
vida, muito alegres. Todas as
estar só nela, tem feito a dife-
com recursos naturais, os quais
marisqueiras estão ali unidas
rença.
são, em grande escala, prove-
nessa hora de descer pro mar, de trabalhar. Eu acho bom, minha vida é boa”, diz Maria, não sei exatamente se para nós.
Crescer em Parnaíba era ir à praia nos fins de semana, às vezes passear no delta com os amigos. Adorava chegar na pe-
nientes do mar do e do Delta do rio Parnaíba, o que propicia há bastante tempo um meio estável de sobrevivência à população ribeirinha. O que eu
A força das marisqueiras
dra do sal e ver os pescadores
têm ecoado ainda mais na últi-
ancorando seus barcos e co-
ma década, com o associativis-
meçando a vender ali mesmo
era que além dos pescadores,
mo. A organização de mulheres
os peixes. Ficava ouvindo as
sempre existiram também as
conversas com meus amigos,
marisqueiras, que conseguiam
e sempre pude perceber que
o sustento da família, muitas
ali na região eles sobreviviam
vezes sendo a principal prove-
da pesca e do mar. O nosso
dora da casa.
ção dos mariscos, mas tem ido além disso. Tem sido sinônimo de apoio para as associadas. Maria nos conta que, com a
Foto: Chico Rasta
tem ajudado na comercializa-
não conhecia na minha infância
associação, passaram a conversar mais sobre as suas vidas e, partilhando, perceberam meios de conseguirem ajudar umas às outras: “associação das marisqueiras funciona assim: quando a gente se reúne para conversar, resolver o problema de outras, das que que estão com dificuldade, a gente vai apoiando, é assim que a vida das marisqueiras, porque a gente dá a mão umas pras outras. sem união ninguém faz nada”, nos conta por telefone. Entre risadas e contos de casos sobre os perigos do mar, Maria diz que essa vida
Oxente!
91
Foto: Chico Rasta
LITORAL
Outro dia me peguei pensan-
Sempre sobre o pescador
um maior envolvimento na
do: onde estão as cantigas sobre
que vai e a mulher que fica.
comunidade no aspecto do
as marisqueiras, as músicas so-
“Dorival, vai não, me ajuda a
desenvolvimento econômico,
bre as ‘pescadeiras’? Daí logo me
Mariscar”, podia ser assim,
cultural e social.
veio uma música da Academia
né? Porque é para onde pen-
da Berlinda, Dorival, que é mais
so que iria a esposa de Dorival
ou menos assim:
enquanto ele ia pescar e isso muda tudo. Na região do Del-
A atividade envolve diversas relações de trabalho entre esse grupo de mulheres e que vem perpetuando uma
“Dorival, vai não, vai não
ta do rio Parnaíba muitas mu-
‘Tá cheio de tubarão no mar
lheres assumem esse papel
Val, vai não
de liderança na mariscagem,
diversos aspectos próprios,
Arranja um emprego no
que é catar uma espécie de
referenciando uma luta pela
chão
molusco. Estas mulheres têm
sobrevivência dessas famílias.
Isso me destrói
uma participação ativa na
Por isso, elas não são só ma-
‘Cê vai, meu coração dói”
renda familiar, provocando
risqueiras, pescadeiras. São
Oxente!
tradição vivida por várias gerações e que é marcada por
92
LITORAL Foto: Chico Rasta
também cozinheiras, vendedoras, lavadeiras “e tudo mais que precisar fazer, sendo honesto, a gente vai fazendo”, como conta dona Maria. Colocar sentimentos em linhas é, por vezes, um exercício de rever infinitas dores. Mas sentar e ouvir a dona Maria, depois esperar a maré baixar para irmos, juntos, fazer nossa própria pesca e daí, só depois, tratar, separar e alinhar- ou tirar a linha- tem sido algo novo. Para quem, como nós, cresceu pertinho do mar, o balanço das ondas tem um som diferente e guia. É importante saber pedir licença para entrar nas águas, doces ou salgadas, assim como na história das pessoas. Afinal, não somos 70% água? Não parece sensato aceitar que também somos maré? Maria nos ensina isso, nos áudios com som de vento, que também somos mar. ◢
Oxente!
93
Foto: Arquivo pessoal/Nallua
CHAPÉU
ENTRE O AMOR E A POESIA, MULHERES E A RESISTÊNCIA FEMININA NO RAP EM TERESINA Oxente!
Sane Araújo e Wallace Alves
94
V CHAPÉU
iver daquilo que se gosta de fazer é o sonho de todo artista, no entanto, o cami-
ter aprovação da minha
une as batidas do rap acústi-
família eu só estava com-
co com os elementos do pop.
pondo as canções e dava
Nallua é a primeira dupla de
para minha dupla gravar.
rap autoral composta por mu-
Às vezes era gravado com
lheres na capital, uma tarefa
nho até o almejado sucesso
outras pessoas, e foi aí que
difícil, seguir com o sonho
não é uma tarefa fácil, muitos
eu conheci a Luna, por uma
de uma carreira em um meio
obstáculos que por vezes se
participação que ela fez
onde as oportunidades sur-
mostram extremamente des-
em um dos singles” relatou
gem majoritariamente para
motivadores, manter o foco
a cantora.
o público masculino, mas as
no sonho exige sacrifícios e muita dedicação, para alguns é como pular de paraquedas, um salto na incerteza de onde se vai parar. Larissa Mesquita e Luna Kronenberger, duas jovens, que apesar da pouca idade, carregam em si muitas vivências, entendem bem disso, pois partilham de um mesmo sonho, viver de sua música, e levar sua mensagem através de sua melodia forte e letras impactantes.
Mas como nem tudo são flores, devido a uma série de problemas, a dupla inicial de Larissa acabou se desfazendo com o tempo, a jovem não desistiu de seu sonho e em certa ocasião, devido a alguns amigos em comum, as duas se encontraram em uma social e lá cantaram juntas, e o que podemos descrever como “o grande encontro” aconteceu. Após cantarem, os ouvintes que estavam na
Inicialmente apenas Laris-
festa, repararam uma certa
sa trabalhava com música,
conexão entre as duas jovens.
pegou gosto pela arte ainda
Os comentários ficaram na
muito jovem, na igreja. No en-
cabeça delas, que logo após,
tanto, por não ter a aprova-
começaram a conversar sobre
ção da família, não se sentia à
a possibilidade de tentar um
vontade para gravar.
trabalho juntas.
garotas seguem firmes, focadas na sua arte. Hoje, a dupla possui conquistas que podem parecer pequenas ao olhar de alguns, mas uma grande vitória para elas, possuir seus primeiros lançamentos autorais em plataformas de streaming como spotify e youtube foi uma grande vitória, que marca o que é apenas o começo de toda uma história de metas alcançadas. Nos últimos 30 anos o rap começou a exercer uma função social muito forte em todo país, durante os anos 80 as músicas de rap eram utilizadas para animar o público com uma batida dançante, sem muito foco na letra. Po-
“Eu já participava de
A “Nallua”, como é chama-
rém sem essa preocupação,
uma dupla, estávamos no
da a banda das duas garotas,
elas se tornaram extrema-
início ainda, mas por não
surgiu em setembro de 2019 e
mente machistas e degradan-
Oxente!
95
MÚSICA
Em todo o Brasil o rap é conhecido por ser um estilo musical dominado por homens, e que com o passar dos anos, mulheres estão conseguindo
ocupar seu lugar, uma luta árdua, tendo que enfrentar por vezes o machismo em um local que surgiu como voz para minorias mais afetadas pela sociedade, mas inspiradas na vontade de vencer, e na verdadeira essência do rap, não se deixam abater e adquirem cada vez mais forças e a vontade incessante de terem suas vozes ouvidas, expondo seus dilemas, vivências, seus ideais e até mesmo mostrando seus medos. As jovens teresinenses, vem conquistando sucesso em diversas regiões do país,
através das plataformas de streaming, mesmo enfrentando o preconceito de ser uma dupla feminina em um ambiente com um legado masculino elas não abaixam a cabeça e se jogam de peito aberto nos desafios, seguem lançando suas letras autorais, com temáticas da sociedade em que vivem, buscando sempre dar visibilidade a temas que não recebem a devida atenção social que necessitam. Embarcando em uma melodia do gênero mais acústica, cantada em voz e violão, a dupla se destaca por apresentar Foto: Arquivo pessoal/Nallua
tes e mesmo assim, as mulheres já faziam rap, ainda que em menor número. Atualmente o rap feminino normalmente abrange temas essenciais como racismo, gordofobia, LGBTfobia, misoginia, empoderamento feminino e amor. A dupla composta por mulheres LGBTQIA+ entende que podem fazer a diferença e trazer mais representatividade para o seu mundo.
Oxente!
Foto: Wallace Iago Alves
MÚSICA
uma música diferente da bati-
mais distante dele, próximo
moderno e nichado em um
da padrão e convencional e se
ao que poderíamos chamar
público específico, mas não é
entregam em uma apresen-
de raiz da sua forma. Para
bem assim. O rap, como ex-
tação mais intimista, estrei-
compreender isso temos que
plicado, é um conceito bem
tando o espaço entre plateia
entender que rap quer dizer
antigo. Os baudos da idade
e músicos. É até interessante
literalmente “ritmo e poesia”,
média meio que já faziam
de se pensar: se as integran-
aproximando a métrica do
tes não gostam do rótulo do
poema, ou seja, a rima ou até
isso, os nossos repentistas já
comum, por que a sua forma
mesmo a construção fonética
de se apresentar seria?
da palavra oral em um ritmo,
Um exercício de interpretação que a “Nallua” apresenta é a aproximação do rap,
um som, uma melodia que traz a essa poema a entonação de música.
experimentaram isso em nossas terras. A dupla, não reinventa o gênero para lutar por um espaço dentro do meio, elas voltam dentro da própria origem, repensam esses ter-
que originalmente compõem
Falando todas essas pala-
mos e acordes, para trabalhar
um dos quatros elementos
vras difíceis parece que é um
a sua arte e lutar por esse es-
do HIP HOP, aqui encontra-se
assunto complicado, e super
paço.
Oxente!
97
Foto: Wallace Iago Alves
MÚSICA
Por conta do preconceito,
adicionadas no festival e na
tam mais acolhidas, tendo
a dupla vivência muito a difi-
data em que se apresenta-
mais oportunidade de cantar
culdade de inserção de mu-
ram, todas as outras bandas
o que amam fazer, o rap. “Em
lheres nesse ambiente, “Teve
eram compostas apenas por
Teresina, a gente não tem
um festival em Teresina, que
homens, gerando um certo
pessoas que trabalhem com
fomos atrás de uma oportu-
desconforto e indignação nas
a gente, somos só nós duas e
nidade para nos apresentar-
jovens, que veem que muitas
só, a gente pretende mudar
mos, porque normalmente
mulheres tem talento de so-
para São Paulo por ver que lá
se você olhar o lineup desses
bra para o ramo, mas não re-
a gente teria mais suporte”. A
festivais, geralmente é só ar-
cebem oportunidades, ainda
força de vontade das jovens é
tistas homens, mas nesse fes-
que não cobrem no início da
tamanha que estariam dispos-
carreira, realizando apresen-
tas a embarcar em uma aven-
tações somente para ganhar
tura repleta de incertezas,
uma visibilidade inicial e con-
para batalhar em um local
quistar seu público.
onde, não por sorte, mas por
tival em questão tinha uma dupla feminina que ia tocar, então entramos em contato com a organização e pedimos pra Nallua participar do
talento, poderiam ter mais
festival, mesmo que fosse de
A dupla fala sobre mudan-
graça, pra gente adquirir co-
ças na carreira e até mesmo
nhecimento e eles não deram
de estado, com um sentimen-
Dessa forma as duas tem
muita bola pra gente”. Após
to de abandono da própria
que se reinventar em toda
muita insistência elas foram
terra, para que assim se sin-
apresentação na cidade “Se
Oxente!
oportunidades.
98
MÚSICA
você for contratar a Nallua
uma composição de Larissa,
artista, saber que aquilo que
a gente vai cantar de tudo,
“preta foi nossa primeira mú-
se tanto ama fazer, está sendo
sertanejo, pop, funk, a gente
sica na época eu já tinha feito
consumido por várias pessoas.
vai se organizar para cantar
ela estava guardada esperando
pro público do local, porque
o momento certo pra gravar
se a gente for cantar nossas
e lançar. Foi quando conheci a
e retorno positivo do público,
músicas, o nosso estilo, a
Luna, e a inspiração da música
veio o desejo de investir em
gente não é contratada para
foi um relacionamento que eu
novas músicas, o segundo
tocar”. A identidade de um
tive na época” afirma Larissa,
trabalho lançado por elas foi
artista é um de seus pontos
ressignificando o encontro das
a música “Feito Braille” que
mais determinantes, e a dupla
duas, como uma oportunidade
está disponível em uma ver-
de cantar o que sempre so-
são acústica, seguido por “Te
nhou. O single, além de marcar
Prometo Feliz” que veio na
esse primeiro passo para o
pandemia como uma súplica
sonho, ganhou destaque no
por dias melhores.
por vezes se veem tendo que reproduzir um conteúdo que não é o que tanto almejam reproduzir, mas tendo que assim fazer pelo simples teor
Após o primeiro trabalho,
mercado musical e atualmente a canção soma mais de 30 mil
Apesar de uma expressiva
reproduções em apenas uma
melhora na representativida-
plataforma de streaming, esse
de, cantoras do gênero ainda
A primeira composição
retorno do público é de extre-
sofrem muitos preconceitos e
da dupla, a música “preta” é
ma importância para qualquer
a grande maioria é de alguma
comercial, o que os contratantes querem vender.
Oxente!
99
MÚSICA que irá servir de porta para um futuro de mulheres com liberdade para produzirem o conteúdo que bem entenderem, sem que tenha que passar por dificuldades pelo simples fato
de serem mulheres. O rap é resistência em poesia, então que essa voz seja ouvida, se preciso, que seja gritado, para que a verdadeira mensagem do rap seja transmitida. ◢
Foto: Arquivo pessoal/Nallua
forma prejudicada pelas estruturas sociais. Através das suas letras, essas mulheres mudam diariamente suas realidades e de todos ao seu redor. A partir de suas vivências, escrevem músicas que externalizam seus sentimentos e desejos, como na música “E Aí, Cê Volta?” onde Larissa e Luna falam de saudades, amor, idas e vindas e sobre finais felizes. Mostrando a importância da necessidade de mulheres também serem ouvidas e admiradas quando debatem esses temas. A música traz na letra a decisão de deixar o amor livre para ir, apesar do desejo que ele fique, como no trecho “Te prometi o mundo, e te levar daqui, mas eu te deixo ir, mas eu te quero aqui”.A música da Nallua, tem servido de inspiração tanto para os fãs, como para aquelas garotas que também tem o sonho de se lançar no meio do rap e servir de inspiração e representação, para toda uma geração, tornando assim, o caminho menos árduo para as artista que virão mais a frente, para que elas possam desfrutar do fruto da luta de quem hoje não tem tantas oportunidades,
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CHAPÉU
COMUNICAÇÃO SOCIAL UFPI
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Oxente! REVISTA
ABRIL DE 2022 I EDIÇÃO 05
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