2022 | EDIÇÃO 08
PARTE 03
Memórias de Teresina e seus reflexos hoje
Monumento Gregório: Histórico & Macabro
“Jericoroa”: Teresina tem praia de água doce
Por dentro do Multiverso musical da
202 Produções
Há uma casa de memórias no Centro de Teresina
Mural
pintado no Flash Day do Júpiter Atelier. Foto: Rebeca Louise Lima. REVISTA Oxente! OUTUBRO
Índice
Expediente
Reportagem
Bárbara Fogaça
Caio Henrico
Dhara Leandro
Eliane Carvalho
Juliene Santos
Eric Medeiros
Airton Lima
Glenda Muryelle
Isadora Holanda
Izaura Martins
James Jarrel
John Myke
Celeste Ribeiro
Clara Magalhães
Mariella Aguiar
Nathan Rangell
Raissa Gonçalves
Rebeca Louise
Roberta Laurindo
Sarah D’arc
Tatiele Sousa Vanessa Kelly
Wilka Paz
Yara Pereira
Dhara Leandro
James Jarrel
EDITORA CHEFE
Ana Regina Rego
Pinheiro
Meneses
Lourrany
Thalita Desidério
DIAGRAMAÇÃO E EDIÇÃO
ILUSTRAÇÃO DE CAPA Rebeca Louise
MEMÓRIAS DE TERESINA E SEUS REFLEXOS HOJE ............................................................................. 03 HÁ UMA CASA DE MEMÓRIAS NO CENTRO DE TERESINA ..................................................................... 07 1, 2, 3... GRAVANDO! ................................................................................................................. 11 UM FLASH DAY NO JÚPITER ATELIER ............................................................................................ 19
Nas páginas do tempo, as escritas da história presentes nos espaços de memória
Esse bem que poderia ser o título de uma dissertação de mestrado, mas é tão somente a abertura da oitava edição da Revista Oxente! Um veículo de comunicação que destaca o jornalismo cultural e se utiliza de uma narrativa de um jornalismo literário, mais livre, mais ousado.
Outubro de 2022 tem sido um mês complexo, em meio a um processo eleitoral polarizado, com muita desinformação e violência, não só simbólica, mas física. Outubro de 2022 reflete no Brasil, a fotografia de um tempo, um tempo sombrio, onde os direitos dos cidadãos tem sido retirados e questionados, sobretudo, das consideradas minorias em direitos, mas que nem sempre se configuram como minorias em número, como mulheres, comunidades LGBTQIA+ , negros, indígenas e outros.
Outubro de 2022 queima aos nossos olhos, quando o sol chega ao meio do céu e as temperaturas marcam 38º, o mundo parece parar, provavelmente, cansado da humanidade desumana que aqui reside. O que resistirá ao tempo e chegará aos anais da história? História que hoje apresenta versões negacionistas e paralelas. História que até o terraplanistas querem revisar.
O impensável e o imponderável tomou conta das mentiras vendidas nos mercados das redes sociais, como versões da verdade.
Mas felizmente, nem tudo é sombrio neste outubro de 2022. A Revista Oxente chega a sua oitava edição trazendo um interessante percurso pela Teresina do presente e do passado que ativa tempos entre tempos, memórias e se coloca para a história.
O percurso do leitor pode ser o que melhor lhe convier. Podemos começar conhecendo o Troca-troca na beira do rio Parnaíba e de lá pegar um barco para a Jericoroa, onde tradição e belezas aguardam os visitantes. Mas também é possível iniciar a trajetória pela praça Pedro Segundo, conhecida como P2 e lá percorrer os sebos que resistem às transformações mercadológicas temporais. A visita aos monumentos do Gregório e do Cabeça-de-cuia também pode ser realizado nas páginas da oitava edição da Revista Oxente! Sem contar um mergulho nos festivais de música e nas exposições de artes plásticas, para além de outras possibilidades de entrar em contato com a cultura local, nacional e internacional.
Então, outubro de 2022 é também vida que avança, é também cultura que resiste, é também afeto e acolhimento.
Nossos futuros jornalistas já estão prontos para contar ótimas histórias com suas narrativas instigantes e intrigantes. Boa leitura!
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MEMÓRIAS DE TERESINA E SEUS REFLEXOS HOJE
Yara Lays & Juliene Santos
Teresina é terra de muitas histórias, encantos e surpresas. E como não se surpreender com a beleza oculta do centro de nossa capital do sol?
Casarões imensos, mas abandonados. O passado e o presente estão de mãos dadas, mas ainda não percebemos (ou sabemos) as histórias que existem em cada parede, rua e fotos.
Alguns anos atrás, aprendendo a história da minha família, conheci a seguinte frase: “Descobrimos algo sobre nós mesmos quando aprendemos sobre nossos antepassados.” (Thomas Spencer Monson)
Enquanto abria pesados envelopes carregados de fotos, em sua maioria tamanho 10x15, em uma sala superior do Arquivo Público do Piauí, nós conhecemos a Teresina das décadas de 70, 80 e 90. Conhecemos um pouco
mais da amada terra do sol, que embora não seja minha terra natal, a reconheço como meu lugar. Foi como se eu já tivesse encontrado aquelas pessoas, passado por aquelas praças e ruas. Foi como se eu conhecesse um pouco mais de mim. Um pouco de cada teresinense.
Ao conhecer as histórias através das imagens, viajamos fundo na memória do que já foi um momento, uma vivência, uma experiência em cada lar que hoje tornou-se desconhecido. Um lar de momentos diversos, abrigo de vivências únicas.
A memória esquecida. Confuso, afinal, como algo que lembramos pode ser ao mesmo tempo esquecido? É
isso que se tornou viver de Teresina, o que tem sido viver de momentos, logo serão trazidos à tona apenas como memórias, mas esquecidos das experiências nos dias atuais.
Oxente! 3
Foto por Yara Lays.
Durante uma aula de campo no início de setembro, vimos de perto o abandono e descaso que nós, como população teresinense, temos em relação à nossa Teresina de antes, nosso passado.
Inúmeros casarões abandonados formam a imagem da Teresina de hoje. Casarões que abrigaram experiências que agora estão esquecidas. Momentos, segredos, amores e tudo o que pode ter acontecido, ficam agora apenas em memórias. Ou nem isso.
A cultura do novo, de ter tudo novo e esquecer o antigo fez com que histórias e lembranças fossem deixadas de lado, dentro dessas belíssimas casas que passamos a vista por onde andamos.
Sem contar na arte esquecida! Cada uma dessas residências é arte pura, em seu estado de conservação ou não. Uma arte material, que podemos ver e tocar, mas não vivenciar, apenas imaginar o que teria acontecido em cada lar. A arte deu lugar ao vazio, e vemos isso sempre que passamos o olhar para dentro do que já foi um lar.
Dos costumes do teresinense, o de substituir a sua cultura é o que mais me intriga. E não se trata apenas dos belos casarões abandonados, não. Há muito em Teresina que foi deixado de lado e trazê-los a memória se torna apenas um aconchego nos corações dos que já puderam viver desses momentos.
E pensar que Teresina já teve praças
com fontes e até peixes... ah! Me deixa com saudade do que eu nem vivi.
“Pois ‘bora’ conversar logo, porque dessa hora em diante só fica aqui bandido” , disse o senhor ‘Zé’ Wilson, sapateiro de uma tradicional sapataria na praça Rio Branco, por volta das 17h, enquanto eu, Yara, explicava sobre a pauta.
E não é que ele, infelizmente, ele está certo?! Durante as 3 horas que estive no centro a procura de fontes, eu era um olho no peixe e outro no gato! Meus olhos e meu cérebro já estavam lotados com a preocupação de “encontrar um idoso lúcido para me falar sobre a antiga Teresina” , mas ainda precisava de cuidados com meus pertences na mochila, ao mesmo tempo que observava minha moto, que estava estacionada de uma forma não muito segura no canteiro da praça.
Com muita agilidade em organizar as ferramentas de trabalho, o senhor José Wilson também falou, com muito carinho, sobre os tempos de menino, quando ia para a sapataria Os Três Irmãos com o pai, e lá trabalhava. Falou da fonte que “esfriava a praça” , da calmaria das pessoas e segurança no lugar:
“Há 44 anos que com conserto de sapatos, bola, chuteira. Meu pai trabalhou mais de 60 anos aqui. Ele foi pioneiro na praça Rio Branco. [...] A praça era mais bonita do que é hoje. Tinha um
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pureto ali, uma fonte luminosa. Uma hora dessa a praça ‘tava’ fria, porque ligava a fonte. Ficava tudo ‘friinho’. Eu trabalho desde criança aqui, a minha vida é aqui.”
Com muito orgulho ele também contou do sucesso familiar na educação, em sua esposa ser formada em pedagogia, seu irmão em engenharia e sua filha estar estudando arquitetura.
Enquanto aquele ágil senhor relembrava o passado, minha mente vagava entre sua descrição e detalhes do presente, com perguntas como “e será se ele comia os peixes que pescava na fonte?”, “Mas onde será que estão os outros dois irmãos? Ou será se não são os irmãos dele, mas do pai, falecido?”. Infelizmente não tínhamos mais tempo para concluir a agradável conversa e, enfim, esclarecer minhas
dúvidas. Mas combinamos de eu levar umas sandálias para ele consertar, e aí farei todas as minhas perguntas.
Quando falamos dessa história, dos costumes, não podemos esquecer dos momentos inesquecíveis que tornou Teresina a cidade que é hoje. De costume à cultura, a cidade sempre foi palco para as convivências sociais, dentre elas, os eventos costumeiros em praças, o que formou parte da sua história.
“O museu do Piauí - a casa de Odilon Nunes - tem uma importância muito grande para a história do Piauí, a história do nosso povo! Grande parte da história está aqui representada por esses objetos, que retratam momentos importantes da história do Piauí e nossa gestão tem essa preocupação em estar sempre dinamizando a casa para o povo em geral, em especial para o público
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Retirada do Site Teresina Antiga
estudantil. Sempre estamos com uma atividade educativa. Sempre a gente tem uma novidade.”
Percebi o amor que Dora Medeiros, diretora do Museu do Piauí, tem pelo Piauí e sua história, quando reservou seu horário de almoço para conversar comigo. O sorriso no seu rosto, brilho nos olhos ao olhar para as janelas, piso e teto, revelam sua dedicação à função.
“Acho que não é só Teresina não isso acontece, mas em nível de Brasil, com raríssimas exceções, que com o passar dos tempos as pessoas não estão tendo aquele cuidado de louvar o passado. O patrimônio histórico (o centro histórico da cidade) [...] deve ser preservado.”
Entre encontros marcados, namoricos, apenas prosear e curtir os locais públicos como um segundo
lar, podemos destacar que esse costume era o prazer vivido pelas gerações passadas. Agora a história fica gravada eternamente, apenas em fotografias ou na memória. O que antes era considerado prazeroso para se curtir, hoje é perigoso e nem mesmo a empolgação de antes consegue se sobressair aos males que tais costumes podem trazer agora. A falta de segurança, a distância entre os demais, as comunicações curtas (…) vivenciar tudo hoje não tem mais o mesmo gosto.
Conhecer pessoas se tornou mais fácil, mesmo que superficialmente. A vontade é de manter o celular por perto e de se manter o mais distante possível das gentes. Os mais velhos se reviram vendo essa nova cultura do distanciamento. Nunca estivemos tão perto e tão longe ao mesmo tempo.
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Há uma casa de memórias no centro de Teresina
Por John Myke
Essa lembrança que me vem às vezes... de uma ex-cidade verde, de uma cultura vívida que pulsava pelas praças do centro de Teresina. Os microfones rasgavam as tardes em saraus e em shows gratuitos. Agora, aos poucos, se ecoa o silêncio num centro que já foi repleto de eventos e de artistas das profundezas do underground aos incongruentes, porém reais e talentosos, do mainstream teresinense. De exposições e performances à deslumbres e quadros empoeirados nas paredes da memória. E de memória entendemos muito, pois é somente nela que preservamos os patrimônios
materiais e imateriais de nossa cidade.
Há uma casa de memórias no centro de Teresina, inclusive. Um enorme casarão localizado em frente a Praça Saraiva, a segunda maior praça da cidade. Uma edificação construída entre os anos de 1870 e 1880 por João do Rego Monteiro, o Barão de Gurguéia, para servir como residência dele e de sua família, e que também é um exemplar da arquitetura eclética piauiense da segunda metade do século dezenove, lugar que já foi quartel, enfermaria, residência episcopal, colégio e que alguns anos depois de sua construção abrigou inúmeros
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Entrada Principal da antiga Casa da Cultura Foto: John Myke.
eventos culturais; locais, nacionais e até internacionais. Digo de memória porque é somente por esse parâmetro que ela tem serventia atualmente. O imaginário coletivo das e dos artistas piauienses reconhece a Casa da Cultura, como ficou amplamente conhecida a residência do Barão de Gurguéia por volta da década de noventa, como um dos mais importantes palcos culturais de Teresina. Ali se via uma coleção quase infinda de fotografias que narravam expressivamente a história da cidade, seus marcos sociopolíticos, étnicos, culturais e artísticos. Ali também se destacava um museu de artes plásticas riquíssimo, além de espaços para o
cinema, o teatro, a dança, a literatura, o carnaval, a reciclagem, duas bibliotecas com acervos com mais de oito mil exemplares e mil e duzentos periódicos, mostras de Geologia, Paleontologia e Numismática, entre outras narrativas e campos que tornavam a cidade especial. Era um espaço de produção e exposição da essência da cultura teresinense. E que lamentavelmente está há mais de um ano abandonado.
Escadas altas para o acesso a entrada principal. Dentro se tinha um grande pátio com esculturas, um corredor central direcionado a um grande avarandado e alcovas nas laterais. Tudo completamente observável à luz
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Fachada da antiga Casa da Cultura. Foto: John Myke.
de todos os dias da semana em que a Casa da Cultura se mantinha aberta. A noite era ainda mais linda. As peças tomavam forma. As performances transitavam pelos cômodos e alimentavam as paredes amarelas e as obras dispostas e suspensas exalavam vida e movimento. Quando não se via, se ouvia. A orquestra sinfônica se apresentava e contagiava. Os poetas rugiam nos saraus e as bailarinas compassavam e gingavam com densidade. Por trás do casarão havia um palco onde acontecia os shows. O público se transfigurava. Era diverso, belo, exímio.
Anos passaram. As paredes rachadas e cheias de musgo com pichações contra a ditadura e outras de subjetividade, o
despencar do corrimão da escadaria principal, as janelas de madeira de tom verde escuro já frágeis e amareladas pelo tempo traduzem a situação melancólica em que se encontra o maior símbolo da arte na capital. A Casa da Cultura foi responsável por pavimentar inúmeras transformações sociais desde seu surgimento, principalmente no setor cultural. O prédio que era símbolo das múltiplas linguagens da esfera artística se transformou em um imóvel sem alma que geralmente passa despercebido pelas pessoas que por aquela região transitam.
Depois de uma quebra contratual entre os responsáveis, o extenso acervo museológico da casa do Barão de Gurguéia foi transferido para à nova
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A Casa da Cultura de Teresina recebia em média 150 visitantes por dia. Foto: Josy Brito/Arquivo Pessoal.
Casa da Cultura Fundação Monsenhor Chaves, localizada em outro prédio tombado e da prefeitura em frente a praça João Luís Ferreira. A mudança se deu principalmente pela degradação do prédio, sobretudo ao sistema elétrico que colocava em risco, inclusive, todo o acervo.
Mesmo que uma nova casa tenha sido inaugurada e o acervo esteja intacto, as memórias e as sensações do antigo prédio sempre persistirão. A antiga residência do Barão de Gurguéia carrega intrinsecamente a história da cidade e dos artistas. A casa transmitia a sensação de sala de visitas que gerava orgulho na população, principalmente para aquela parcela
que dependia do espaço seja para criar, ensaiar, lançar ou expor seus trabalhos. E para essas e esses, resta se acotovelarem na nova e minúscula Casa de Cultura FMC ou dispor da boa vontade do setor empresarial e mercadológico da cidade, como já é de praxe. Resta a expectativa de que um prédio importantíssimo para cultura e a história da cidade não se configure em mais um estacionamento, como foi o fim de muitos casarões distribuídos pelo centro. A cultura local resiste!
Teresina é uma cidade de memória frágil.
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Nova Casa da Cultura Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Foto: John Myke.
Extra! Extra! ANTIGA CASA DA CULTURA SOBREVIVE AO LÉU!
Wilka Paz
Era mais um desses meus fins de semana em que eu queria descansar, mas tinha que fazer alguma outra coisa muito dispendiosa. Nesse dia especificamente eu estava gravando alguns takes pro meu primeiro documentário sobre a Arte Santeira Piauiense.
A arte santeira é diferente da arte sacra. Segundo o pai dos burros modernos, Dr. Google, a arte sacra é “toda produção artística qualificada e destinada ao culto sagrado”, mas a arte santeira tem um caráter mais popular e regional. A arte santeira piauiense, inclusive, foi reconhecida como patrimônio imaterial do Piauí em 2006
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). As obras são feitas em madeira, principalmente em cedro “porque é amargo e o cupim não come” segundo um dos Mestres entrevistados.
Eu não fui nada a favor desse tema. Só pensava nas dificuldades. Primeiro que esse tema não era uma paixão na minha vida, segundo que eu teria que rodar a cidade toda. Tinha mestre na zona sul, mestre na zona norte e os artistas de cerâmica no Poti Velho. Pensava só na gasolina, fora os custos de locação de equipamento, edição, o tempo investido, tudo se esvaindo do meu bolso e da minha vida.
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Gravando!
REC
Fazendo um documentário sobre arte santeira e santos feitos em argila em Teresina
Infelizmente, o documentário era em grupo e a professora gostou do tema, ou seja, só me restava guardar minhas reclamações.
Foram 3 dias de gravações. No primeiro dia fomos conhecer o simpático Mestre Dito, no segundo dia o tímido Mestre Costinha e no último dia conhecemos dois artistas interessantíssimos do Poti Velho. Eu juro que esses adjetivos são 100% sinceros.
Como fazer o documentário não era algo do topo do meu interesse, digamos assim, eu sai de casa para conhecer o mestre Dico sem afã, sem um grande desejo ou empenho nisso. No dia, cheguei na casa dele com um total de ZERO costume ou experiência em fazer documentário. Não sabia como me comportar, não sabia o que perguntar, nem como enquadrar as imagens nem de nada. Deixando praticamente todo o trabalhado para a minha colega Nathalia. Que deu simplesmente uma aula sobre como um jornalista deve agir. As expressões faciais e corporais dela passam muita segurança. Como uma jornalista de verdade deve ser.
Não sei ao certo se foi a Nathalia que conquistou o Mestre Dico ou se foi o Mestre Dico que conquistou a Nathalia, mas no final, a entrevista foi um sucesso. O mestre contou detalhadamente muitas histórias. A nossa conversa foi quase como um
avô narrando suas histórias para as netinhas. À medida em que ele expunha tudo, com tanta simpatia, eu fui me encantando pelo mestre.
Mestre Dico
Raimundo Soares Cavalcanti, aos 17 anos, trabalhava no centro como camelô, vendendo roupas, quando um artista já reconhecido, o mestre Manoel Martins, percebeu que ele tinha talento para desenho e o chamou para riscar um vaqueiro correndo atras do boi na madeira que se tornaria um baú. Com desenho feito, o Mestre mostrou como segurar o formão e a faquinha. Na primeira vez que o então aprendiz talhou na madeira, seu professor disse algo que ele nunca iria esquecer: “Você tem um talento que já nasceu com ele. Você manuseia o formão como se já soubesse fazer. No futuro você vai ser um grande artista”, essas palavras emocionaram Raimundo e serviram de inspiração para ele se tornar o famoso Mestre Dico.
Falando em inspiração, perguntamos ao M. Dico qual mestre havia inspirado ele. Ele respondeu que seu Mestre (Manoel Martins) foi sua principal inspiração, mas que o mais importante naquele começo era criar um estilo único: “Meu estilo não imita meu mestre, não imita ninguém. Meu estilo é um estilo próprio” contou. O estilo do M. Dico é diferente porque ele
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sempre busca fugir do comum. Se ele quer fazer uma Santa, ele sabe que muita gente já faz uma nuvem na base, então ele acrescenta também anjos segurando a nuvem porque, segundo ele, chama a atenção do comprador. Dico nos confidenciou que o carro chefe dele é a Santa Ceia, mas também tem feito muitos santos como São Francisco e Nossa Senhora Aparecida que são facilmente vendidos devido a devoção dos fiéis.
Contudo o que fazia os olhos de Raimundo brilhar, lá atrás, quando ainda era só um aprendiz, era a fama. Quando o Mestre Dico falou que o que queria mesmo era ser famoso como o Mestre Manoel e o Mestre Dezinho uma parte de mim se divertiu
com tamanha sinceridade. “Eles me inspiravam pela fama, pelo que eles eram na mídia da época, porque eles eram muito convidados e eu também queria entrar naquele hall e ser famoso um dia.” mencionou M. Dico.
Um sonho que foi realizado. M. Dico já ganhou vários prêmios e teve diversas exposições em salões de arte. Suas obras já foram exibidas não apenas no Brasil, como também no exterior. Na Argentina, a convite do SEBRAE, Dico participou da XIII Feira Internacional do Artesanato Tradicional e concorreu com 22 países, ganhando o segundo grande prêmio, atrás apenas de um artesão Argentino. O mestre ainda disse que outros mestres sugeriram que ele merecia o primeiro. “É o único
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Mestre Dico e painel de Arte Santeira
lugar que santo de casa faz milagre” disse M. Dico.
Essas feiras oferecem espaço para divulgação e venda das obras. O Mestre observou que existe um apoio da Secretaria de Cultura e do Sebrae para que os artesãos consigam levar e mostrar seus melhores trabalhos. Ele citou três feiras importantes: o FENACE – que ocorreu em setembro em Fortaleza, FENEART – que aconteceu em julho em recife, e o Salão do Artesanato – que já em sua 15ª edição e é a maior feira do país, realizado no início do ano em Brasília. O apoio oferecido ajuda principalmente no translado do artesão e de suas peças.
Para finalizar a conversa, perguntamos ao mestre Dico o que é a arte santeira para ele, depois de pensar por alguns segundos ele respondeu: “a arte para mim é amor”. Essa frase sintetiza muito da personalidade do mestre, que definitivamente ama cada parte do seu trabalho. O olhar dele, o orgulho que ele tem da sua história e trabalho, mostram o amor que ele sente que é representado em cada obra.
Mestre Costinha
Conhecer o Mestre Costinha foi bem interessante. No dia da entrevista fui com outra colega, a Bruna. A casa do Costinha era mais simples, e um longo corredor levava até sua oficina. Logo
atras da oficina, tinha um cachorro, um filhotinho, que vez ou outra chorava pedindo atenção. Entramos na oficina e conversamos com ele e percebemos que ele era mais tímido. O mestre contava das suas premiações com modéstia, mesmo tendo ganhado tantos prêmios e tendo uma obra no vaticano.
Costinha nos contou que foi discípulo do Mestre Dezinho por cerca de 13 anos até que o mestre, com bastante idade, veio a falecer. Em seu início, Costinha lixava obras, desenhava e ajudava no acabamento das obras do mestre. Com o tempo, desenvolveu seu estilo próprio, e costumava trabalhar nas suas obras autorais em casa, mais a noite.
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Mestre costinha e sua obra
Suas obras são principalmente encomendadas para vários estados do Brasil. Ele nos contou que percebe que fora do Piauí a arte santeira é mais valorizada, que tem como cliente uma renomada colecionadora de arte, a Ana Maria Chindler, da Galeria Pé de Boi, no Rio de Janeiro, além de lojistas e clientes individuais que encontra nas feiras que participa.
Falando em feiras, Costinha se fez presente em muitas feiras e exposições realizadas tanto na capital do Piauí quanto em outros estados. O VII Salão de Artes Plásticas do Piauí, a Mostra de Presépios em Teresina, Mestres do Piauí em Brasília e a Exposição de Arte Popular Santeira em Teresina são alguns exemplos de participações do mestre. O mestre falou que a arte santeira tem um bom futuro pela frente “mas precisa de incentivo do governo” opinou.
Finalizamos a entrevista pedindo para ele falar algo interessante da sua história e ele nos contou, com a voz embargada, da sua gratidão ao mestre dezinho e todos os outros com quem ele trabalhou. Para ele, arte santeira é seu sustento e é através dessa prática que ele sobrevive até hoje.
Poti Velho
Um dos lugares que eu mais gosto em Teresina é o Poti Velho. Quando mais nova meus pais me levavam para
lá para mostrar um pouco da cultura da cidade e minha tia Meire é uma assídua compradora de lá, já comprou várias peças para enfeitar seu jardim. Mas, o leitor lembra que eu fui contra esse tema por motivos inclusive de distância. Bom, eu gosto do lugar? Gosto! Mas é tão cansativo dirigir até lá... Para driblar a minha preguiça eu tive a ideia de chamar dois amigos. A intenção era passar a manhã por lá e almoçar no encontro dos rios com eles. Aproveitava o embalo para fazer o que um jornalista mais gosta: fofocar.
Cheguei lá sem conhecer muito sobre produção de santos em barro, então fui perguntando. Outros ceramistas me indicaram falar com o Jimmy Presley e lá fomos os três procurar este homem.
O Jimmy tem uma lojinha linda, bem organizada, com várias peças de São
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Jimmy moldando
esposa, conversei um pouco com ela e ela foi me mostrando as obras até o Jimmy voltar, pois ele havia saído para deixar a filha em algum lugar. Quando Jimmy chegou, ele nos contou varias histórias. Segundo ele, quando ele chegou no Poti Velho, os ceramistas faziam mais vasos e peças para decoração do jardim (alô tia Meire), mas ele queria fazer algo diferente e aprendeu praticamente sozinho a fazer esculturas.
O início para Jimmy foi bem complicado. Filho de professor, ninguém esperava que ele fosse trabalhar com barro por ser muito cansativo. A labuta envolve misturar a argila com enxada e outros processos pesados. O ceramista teve que lidar com as críticas do próprio pai e até conseguiu emprego em outras áreas,
tentou vender planos funerários “passei dois dias e não vendi nenhum plano”, tentou vender jornal no semáforo “passei o dia todo no semáforo e não vendi um jornal” então, o jeito foi voltar para a argila.
Conformado que seu talento era trabalhar com o barro, Jimmy contou que sua primeira modelagem foi um sapo. Nesse período ele trabalhava nos tanques de argila, preparando a matéria prima bruta para que ficasse lisa e modelável para os ceramistas do Poti Velho. O tempo que ele usava para modelar suas obras era apenas nos intervalos e aos poucos ele foi observando outros ceramistas e aprimorando suas técnicas. “Os outros artesãos faziam a escultura com o olho grande, a boca grande, estilo Mestre Dezinho. Eu não. Eu gosto de colocar mais expressão, procuro fazer mais realista” comenta.
Com a clientela já estabelecida, Jimmy resolveu ouvir uma mulher que colecionava São Francisco, “Ela me disse: pode fazer São Francisco diferente que eu compro todos” contou o ceramista. Isso o incentivou a entrar no ramo dos santos e hoje ele é reconhecido principalmente pelas peças do padroeiro dos animais.
Jimmy contou também que as obras feitas em argila não são tão valorizadas quanto as peças em madeira. Uma peça em madeira custa cerca de 500 reais e as peças em argila por volta
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moldando São Francisco
de 50 reais, as menores podem custar até menos, 15 reais. Sem contar com os atravessadores. Jimmy explicou que os atravessadores são pessoas compram as peças direto do artista e levam para lojistas de outros lugares para revender. Obras que são vendidas para os atravessadores por 65 reais podem chegar a ser revendidas por 250,00 ao consumidor final.
Ele explica que isso acontece muito, principalmente porque não há tanto incentivo público para a participação dos ceramistas nas feiras. Participar dessas feiras, segundo Jimmy, é essencial. Além de ter a chance de mostrar para os lojistas de fora suas obras autorais, os participantes também passam a conhecer outros artesanatos e trocam experiências com artesãos de outros lugares.
Finalizamos a entrevista perguntando a Jimmy qual mensagem ele gostaria de deixar ao público, ele respondeu: “Valorizem o que é nosso. Aqui não é só barro. Aqui tem artesanato, tem arte, tem dedicação. Eu só queria que valorizassem o nosso trabalho. Pode ser de madeira, de argila, de palha..., mas é arte!” finalizou.
Energizados com esse grito pela valorização da arte seguimos em busca de outro artista. Encontramos o Jean, um artista de grandes esculturas. Enquanto outros artistas fazem pequenas peças, Jean foge do óbvio e produz peças de mais de metro.
Há cerca de 16 anos atras, Jean trabalhava como pintor comercial fazendo letreiros, fachadas de comércios, coisas mais comerciais. Certo dia, a convite da esposa, Jean foi até o Poti velho comprar peças de decoração para sua casa. Chegando lá ele se encantou pelo trabalho e decidiu aprender a fazer. Com muita dedicação e autodidatismo, Jean desenvolveu o próprio estilo e encontrou nas grandes esculturas seu espaço como artista.
Com peças de mais de um metro, as esculturas de Jean não cabem inteiras no forno, para fazê-las ele precisa dividir e assar os pedaços. Na finalização, ele mostra o talento de pintor com uma pintura impecável. Uma obra que me encantou foi o São Jorge e o Dragão pela riqueza de detalhes. Com uma capa esvoaçante São Jorge e o cavalo derrotam o dragão sob seus pés, quem pensaria que a técnica para fazer a capa partiria de uma flanela? Só Jean.
Depois de conversar sobre técnicas e sua história com o barro, o artista comentou que o que ele faz está perto do fim, “quando eu for embora, o que eu sei vai comigo. Isso me preocupa. Vários artesãos já fizeram a passagem e o que eles sabiam se foi com eles”. Jean chamou a atenção ao explicar um plano para que a arte se perpetue. Para ele, deveria existir uma escola de cerâmica para ensinar crianças a moldar o barro com intuito de não deixar a arte morrer.
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O espaço seria construído para os mestres da cerâmica passarem seus conhecimentos voluntariamente e com segurança. Observei que uma insegurança de muitos ceramistas é em relação a regularização do trabalho. Muitos não ensinam nem aos próprios filhos pois não há um espaço adequado e regularizado para tal finalidade. Como a escultura de barro é uma arte desvalorizada, é muito difícil pagar aprendizes e construir um espaço de trabalho adequado.
Finalizando a entrevista perguntei a Jean qual mensagem ele gostaria de deixar: “se você tiver na sua profissão por amor, aquilo que você faz vai te tornar um profissional feliz” disse o artesão.
Saí da sua oficina pensativa, refletindo sobre o futuro da tradição piauiense e o que cada mestre me ensinou. Com o Mestre Dico eu aprendi que para atingir os nossos objetivos é preciso, antes de tudo, ser sincero quanto a eles. Com o mestre Costinha, em sua timidez, entendi que a gratidão aos nossos mestres é um lindo sentimento a ser cultivado em nossos corações. Jimmy me ensinou a insistir no talento, mesmo que contrarie a família, o orgulho sempre vez depois de um trabalho bem feito. Por ultimo Jean mostrou a importância de se diferenciar no mercado, para que ser mais do mesmo se você pode ser único?
Além de tudo isso, uma reflexão que ficou é que o tempo que eu estava tão preocupada em perder, na verdade, me deu ensinamentos e troca de experiências que eu nunca poderia imaginar. Hoje, eu entendo um pouco mais sobre arte santeira, mas mais do que isso, valorizo muito mais o artesanato da minha terra.
Para assistir o documentário pesquise:
“O divino pelas mãos do homem –Arte Santeira” no Youtube.
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Antes da pintura: São Jorge e o Dragão –Jean (registro pessoal)
Um FLASH DAY no Júpiter Atelier
Por Rebeca Louise Lima e Bárbara Fogaça
Não falava com Andréia direito há meses até perguntar nas redes se alguém sabia de algum evento cultural acontecendo em Teresina nos próximos dias. Foi quando ela sugeriu que fôssemos ao Flash Day do Júpiter Atelier, que aconteceria no sábado, 10 de setembro. O Júpiter é um estúdio de tatuagem bastante conhecido pela galera underground, com um time de artistas que extrapolam todos os níveis da criatividade; mas o Flash Day contaria com muito mais.
Pela divulgação no Instagram do atelier, o evento, além dos flashes autorais, ainda contaria com live painting, grafite, venda e exposição de arte – tudo que me chama a atenção,
até porque conheço (um milésimo) do talento do pessoal que faz parte da equipe do Júpiter. Ansiosas, chegamos bem cedo no atelier no sábado (talvez um pouco cedo demais). Fomos recepcionados pelo cheiro forte de tinta que tomava a primeira área do grande casarão.
Em todos os cantos havia arte. Da porta de entrada avistei uma piscina enorme. Estava tão quente que supliquei internamente para que alguém me empurrasse ali dentro – o que infelizmente não aconteceu, mas oportunidades virão. Atravessando-a, pude ver que o grafite havia começado: dois artistas já estavam viajando nas paredes, substituindo a textura branca
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Live painting no Júpiter Atelier. Foto: Rebeca Louise Lima.
sem graça e fazendo o muro alto ganhar vida e cor. Ao lado deles, uma escada cavalete, com degraus auxiliando no suporte de todos os equipamentos artísticos que os ajudassem a construir o desenho na parede. O chão havia sido tomado por latas e mais latas de tinta em spray, para que o grafite tivesse a explosão de cor necessária e tomasse forma.
Sob o deck coberto, o pessoal se preparava para mais tarde, quando apostavam que a maior parte do público compareceria. À direita, alguns estavam entorpecendo o freezer com inúmeros sacos de gelo por trás do balcão: aquela seria a área do bar. À esquerda, perto da entrada principal da casa, outro grupo de pessoas conversavam enquanto seguravam equipamentos musicais. Contornandoos, passei pela grande porta de madeira (um cedro brilhante, dando a sensação de envernizado recentemente).
Me deparei com mais equipamentos de som no final de um corredor à esquerda – amplificadores e mesas de som separadas, aguardando o momento certo de serem usadas outra vez. Do outro lado, avistei a cozinha bastante movimentada, com os preparativos sendo feitos na maior agilidade possível para que pudessem ser vendidos em massa quando o público chegar aos montes mais tarde. Atentei-me a cada detalhe, cada item que compunha a decoração e complementava o tom amadeirado do ambiente.
Logo a frente vimos a escada; resolvemos então subir até o primeiro andar da casa. Meus ouvidos já podiam escutar a música indie cercando o lugar, trazendo a sensação de calmaria a todos que estavam sentados na varanda, onde ficava o acesso ao estúdio de tatuagem propriamente dito. Notei que haviam tribos, que se
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Live painting no Júpiter Atelier. Foto: Rebeca Louise Lima.
reuniam em pequenas rodas, alguns em pé, outros no sofá. Presenciei alguns reencontros que rendiam sorrisos abertos, mas algo me dizia que todos ali já se conheciam por pertencerem à cena artística.
De cara me deparei com um aglomerado de gente de frente a um painel. As pessoas tentavam não parecer tão ansiosas olhando as artes disponíveis enquanto os artistas tentavam driblar o vento (que resolve sempre surgir em Teresina nas horas mais inusitadas) e deixar os flashes à mostra. Eram pelo menos cinco artistas, e seus desenhos podiam ser facilmente diferenciados uns dos outros. Achei incrível o que o Vitorino Caio, tatuador do espaço, criou; suas artes em sua grande maioria fazendo relação a religiões de matriz africana, como a entidade conhecida por “Zé Pilintra” da Umbanda.
Tudo isso acontecendo quando vou até as grades da grande varanda e tenho a visão inusitada de mais arte acontecendo. Lá de cima vi que mais três artistas coloriam o grande muro branco com seus desenhos a mão livre, preocupados em seguir à risca o esboço do papel que seguravam em mãos, estudando o próximo movimento a ser tomado e prosseguir com o processo.
Depois de contornado os problemas para expor os flashes no quadro de madeira, voltei minha atenção a eles. Me contive ao máximo para não escolher uma, mas quando vi os olhos do Gustavo Duarte sabia que voltaria pra casa com uma tatuagem nova. A que mais chamou minha atenção (e a de pelo menos mais dez pessoas no lugar) era o olho dentro de uma nuvem; olhei para os amigos que me acompanhavam e anunciei “essa é minha”.
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Gustavo Duarte mostrando seus flashes. Foto: Rebeca Louise Lima.
Havia falado com Gustavo antes de ir ao Atelier, e estaria mentindo se dissesse que não admirava o trabalho dele pelo portifólio publicado no seu perfil do Instagram. Decidida, o puxei de lado e disse que queria fazer o olho no antebraço. Pude notar que ele estava meio agoniado com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo; me pediu um tempinho para resolver algumas coisas para que o evento corresse bem e logo em seguida arrumaria a maca para começarmos. Dito e feito.
Enquanto tatuávamos, aproveitei para perguntar um pouco sobre o evento. Gustavo me disse que foi uma forma que o atelier viu de juntar várias manifestações artísticas, para que fossem valorizadas e vistas como um todo. Aquilo significou muito pra mim, especialmente por saber o quanto a arte ainda não tem a valorização que merece no cenário teresinense. Por tanto tempo foi marginalizada e vista como “coisa de quem não tem o que fazer”, e há ainda quem compartilhe esse pensamento ultrapassado nos dias de hoje.
Estamos saindo aos poucos de uma das maiores pandemias globais que, não suficiente em ceifar vidas, ainda resultou o estado de calamidade pública, prejudicando setores como a saúde, a segurança, a economia, com taxas de desemprego absurdas entre outras questões. A classe artística foi diretamente afetada pela (vital) quarentena aplicada para conter a Covid-19 ao máximo. Nove em cada dez artistas ligados ao mercado musical afirmam ter perdido dinheiro durante a pandemia de Covid-19. Este é um dos dados da pesquisa "Músicos e
Pandemia", realizada em parceria entre a União Brasileira dos Compositores e a ESPM, Escola Superior de Propaganda e Marketing.
Se fez necessário, inclusive, a criação de um auxílio financeiro destinado aos artistas teresinenses. O Projeto de Lei “Auxílio Cultura”, de autoria da vereadora Fernanda Gomes com o apoio do prefeito Dr. Pessoa, teve como objetivo beneficiar todos aqueles que exercem atividades artísticas de forma direta e/ou indireta em Teresina. Então, me deixa muito feliz ver colegas de profissão se ajudando e tentando vencer as barreiras da vida juntos. Pode não parecer muito, mas visibilidade é crucial – e de evento em evento, todos saem ganhando.
O cheiro de tinta ainda me invadia os sentidos, a música de fundo embalava os movimentos dos pincéis, enquanto tentava me concentrar em absorver as agulhadas da sessão de tatuagem. Depois de um pouco mais de uma hora, me acertei com Gustavo, que disse para eu ficar à vontade e curtir o evento. Saindo do estúdio, vi que já tinha escurecido. Fui até as grades da varanda novamente a fim de ver o resultado dos desenhos iniciados no começo da tarde, e me encontrei extasiada. O único esboço que vi mais cedo dividia o muro com mais duas pinturas, cada uma de um artista diferente. De todos, o que mais gostei foi o da lua, com o olhar penetrante e melancólico.
Percebi, em direção à escadaria, que foi posta uma mesa ali que não estava antes de eu entrar para a sessão.
Uma mesa estreita, sob iluminação amarela, com vários desenhos
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feitos em o que acredito ser papel cartão. Cuidadosamente embalados, etiquetados e expostos para venda. Em sua maioria, os desenhos, como os de Vitoriano, eram representações de figuras pretas. Ao lado, o @ de Maria Eugênia, ou Ignis, para quem quiser encomendar ou comprar além das peças apresentadas.
Voltei-me paras as mesmas escadas de madeira. Ia para o térreo ver como estava o movimento, mas minha atenção foi tomada pela materialização da criatividade em telas. Um rapaz estava pintando retratos com uma espátula – o ouvi dizendo que a intenção era realçar uma textura na barba do homem do quadro – e notei que era o seu terceiro quadro em produção. Auxiliado por um bastão de luz e com uma lona protegendo o chão de madeira dos materiais inteiramente marcados pela tinta, pude ver que, do uso daquela
pasta preta minuciosamente colocada, nasceu o rosto de um homem. Em breve conversa, ele me confessou que estava muito feliz com o evento. E que, na sua percepção, este é um grande momento para os artistas. De acordo com ele, há mais eventos culturais na cidade inteira agora, pós pandemia, e que isso pode ser resultado da “seca” cultural que sofremos nos últimos dois anos.
Assim que desci as escadas me deparei com a mesma criatura de luz que me recomendou visitar o Júpiter naquele sábado. Fã de carteirinha de todos, Andréia Barbosa me disse que o evento tinha sido incrível e a atraiu em todos os seus momentos, das tatuagens à música. “Mal posso esperar para que aconteça outro evento desse!”, revelou para mim. Thiago Sérgio, seu namorado, também era amigo de um pessoal do Júpiter, e elogiou muito a organização do
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Exposição de arte. Foto: Rebeca Louise Lima.
evento: “eles cumpriram com a proposta do evento, eu achei incrível! Muitas manifestações artísticas acontecendo ao mesmo tempo, e é importante que elas tenham espaço para que cresçam como devem no mercado cultural daqui de Teresina”. E, honestamente, gostaríamos muito de ver outras instituições com a mesma proatividade, gerando esse grau de visibilidade para outros artistas de Teresina. A imersão do Flash Day foi inesquecível, tanto para nós quanto para todos que participaram.
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Exposição de arte. Foto: Rebeca Louise Lima.
Quadros à mão livre no Flash Day. Foto: Rebeca Louise Lima.
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