Revista Oxente! - 9ª Edição

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Oxente!

FEVEREIRO 2023 | EDIÇÃO 09

O menino e a tela no chão

A Espiritualidade

Universalista: o amor é a resposta

QuintEssência, um quintal para se reconectar com a criança interior.

Salve a rainha de todes

Faces de um Sonhar

REVISTA
Expediente Agnes Moita Carlos Júnior Mikaela Ramos Letícia Benício Pedro Humberto Sabrina Alana . . . . . DIAGRAMAÇÃO E EDIÇÃO Pedro Humberto EDITORA CHEFE Ana Regina Rego CAPA João Elyo Reportagem O Menino e a tela no chão.................................................................... 03 A Espiritualidade Universalista: o amor é a resposta.............................................. 07 Salve a Rainha de Todes .................................................................... 15 QuintEssência, um quintal para se reconectar com a criança interior. ...................... 19 Faces de um Sonhar ........................................................................ 22
Índice

A Revista Oxente! chega a sua nona edição. Os tempos continuam difíceis, mas a projeção de cenários é positiva, só não sabemos o prazo necessário para que as coisas em nosso país começem a melhorar efetivamente. Na UFPI, no entanto, a tristeza, a dor e a revolta tem povoado nossos dias, desde o final de janeiro deste ano, quando a nossa aluna Janaína Bezerra teve sua vida interrompida por um crime de feminicídio impensável e que ocorreu dentro das instalações da universidade pública.

Universidade pública que deve ser local de acolhimento e sociabilidades, interações e troca de conhecimento e de afetos. Infelizmente, muito infelizmente, estes não são dias felizes.

A nona edição da Oxente! é talvez, a menor de todas até agora. Nossos discentes sofrem as consequências da violência e se afastam da universidade.

Mas a nossa nona edição é uma linda Oxentinha, nome carinhoso que as alunas e os alunos que a construíram terminaram por “batizá-la”. A Oxentinha nos chega com matérias de um jornalismo literário que encanta pelas palavras que por sua vez, traduzem a emoção dos nossos futuros jornalistas ao se lançarem em narrativas sobre as pautas culturais que escolheram.

A Oxentinha é, portanto, um convite para que o elo entre a UFPI e a sociedade se fortaleça e se estabeleça para além de nossos muros. A primeira matéria de Letícia Benício e Sabrina Alana conta a história de um menino artista, o João Elyo, que inclusive já realizou exposições na Europa. Linda e comovente narrativa. A matéria seguinte é de Mikaela Ramos que desvenda a Espiritualidade universalista e expõe o trabalho de acolhimento que a Fundação Servos de Maria realiza em uma comunidade teresinense. A Fernanda Rodrigues nos revela os bastidores e um pouco da história do movimento/tecnologia social Salve Rainha que marcou gerações no Piauí e que retorna em 2023 com muitas propostas interessantes. Carlos Júnior e Agnes Moita dão visibilidade a um espaço cultural que se coloca como ideal para conectar vivências e pessoas, o QuintEssência e, por fim, Pedro Humberto nos brinda com uma resenha crítica do HQ Sandman.

Portanto, motivos não faltam para que os leitores se debrucem e se percam nas páginas da nossa Oxentinha que é uma pequenina amostra do que produzimos de muito, muito bom no Jornalismo da UFPI.

Boa leitura!

2 Oxente! EDITORIAL

O MENINO E A TELA NO CHÃO

No centro de um cômodo cheio de tintas e tubos espalhados, João Elyo se movimenta ao redor de uma tela posicionada no chão, em cima de um tapete felpudo. Em movimentos naturais, o garoto entra num vórtice enquanto cria imagens com as tintas ao redor. O menino reveza em diferentes posições, com pinceladas fortes e esguichos em um processo criativo introspectivo, onde o pequeno encontra suas obras e as transforma em telas. As expressões hora sérias, hora brincalhona, expõe o universo que se cria em torno do ambiente quando João pinta.

Por trás das lentes de uma câmera simples de um celular, a dona Elizete registra as criações do pequeno João Elyo com admiração. No olhar da professora é possível ver o brilho de orgulho do filho que com apenas

12 anos já expôs seus trabalhos até mesmo no Museu do Louvre, em Paris. Mas a magia que vem do olhar de Elizete ultrapassa o orgulho, em cada palavra, a mãe de Elyo deixa transbordar a admiração de um milagre. João é portador da Síndrome de Down e pinta desde os 8 anos de idade com uma sensibilidade de quem entende e se inspira na natureza. “Esse caminhar dele nas artes contribuiu demais para que ele adquirisse o respeito da sociedade. As que pessoas antes olhavam para ele com um olhar de preconceito, hoje mudaram essa visão, antes elas não acreditavam na capacidade intelectual do João Hélio para desenvolver algo diferente...”.

Afirmou a mãe do pequeno gênio.

As cores do menino impressionam, combinações surpreendentes transcrevem uma visão de fenômenos

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LETÍCIA BENÍCIO & SABRINA ALANA

que o menino admira. Seja o brilho e o reflexo da luz do sol, a imensidão das estrelas ou a beleza calmante da chuva. O jovem talento não passou despercebido! Espelha exemplos para outros pequenos gênios que talvez não se encaixem em padrões hostis de uma sociedade que repudia a diferença, mas carregam a sensibilidade e o poder de uma conexão com sentimentos mais profundos do que estamos acostumados a lidar e por isso nos fascinam.

A arte abstrata de João Elyo também comoveu a artista plástica piauiense mundialmente famosa, Naza. Ela que é conhecidíssima por seu estilo único e criadora do conceito “Abstracted Realism”, se expressou com sentimento de orgulho ao saber que João Elyo está tendo um imenso apoio dos seus familiares nessa jornada no mundo da arte. Naza, que já tem carreira estabelecida com os trabalhos aclamados, observa a arte do garoto

com olhar de artista que vislumbra o início de uma trajetória. Ela, que ganhou o mundo, se impressiona com as possibilidades que aguardam o pequeno no futuro, já que o apoio à arte na família de João é massivo.

“Eu achei super incrível o apoio que ele está recebendo da família. Isso é fantástico, porque a medida que o tempo passar ele vai ter condições de desenvolver mais ainda o talento dele. É muito interessante a forma como ele se expressa com as cores”. Contou a artista que, assim como João Elyo, também começou cedo nas artes. Ela conta que por volta de 8 ou 9 anos começou a pintar, em Santa Cruz, interior do Piauí e pedir ao pai que enviasse suas pinturas para um programa nos Estados Unidos. Desde cedo a arte chamou alto por Naza, que agora admira os quadros de João Elyo com a comoção de quem já trilhou este caminho.

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Arquivo pessoal João Elyo

A mãe do menino filma, edita, posta e atende à imprensa. Sempre com muito orgulho ela transborda a alegria que a arte proporcionou para o pequeno. Nas fotos o menino posa com sorriso largo e feliz, em diferentes exposições, ao lado de diferentes quadros que expressam as emoções do jovem artista. Ela conta que a pintura chegou cedo na vida do menino, lidando com uma fase escolar conturbada, João Elyo estava triste com um episódio de expulsão de uma escola, e como forma de lidar com as emoções, a pintura aflorou de vez no garoto.

Para João Elyo, o início foi uma torrente de criações que renderam mais de dez quadros apenas no primeiro ano. Os quadros logo chamaram a atenção de artistas e estudiosos da arte. Então pipocaram os convites, quadros do pequeno Esperantinense ocuparam exposições na capital do Piauí e logo seguiram para outros estados, passaram pelo Pará e pelo Rio de Janeiro. Ocuparam programas de TV e portais de notícia e saíram do país, foram expostos na Califórnia nos Estados Unidos até alcançar o mais renomado museu de arte moderna, o Louvre, em Paris, abrigou a exposição “xyz” do garoto.

“Quando eu estava olhando os quadros e o pequeno rapaz aí pintando eu fiquei com uma emoção de muita alegria por ver ele tão feliz fazendo a arte dele

Arquivo pessoal João Elyo foi essa a emoção, os quadros parecem como umas explosões de de cor. Deve ter alguma alguma, claro, que cada cor que ele usa, cada mancha que ele faz deve ter algo a ver com o que está, o sentimento que está dentro dele, né?”. Concluiu Naza, que também viu a atmosfera cativante e familiar em que o artista está envolvido, conhecer o trabalho de João e não notar o quanto sua família contribui na evolução artística do garoto é quase impossível. Para alguém como ele, as portas tendem a se fechar e o poder da família de não medir esforços na garantia do sucesso do pequeno é parte essencial do sucesso que ele já alcançou.

Quando a possibilidade de exposição na França surgiu, era um sonho bonito, porém distante da realidade econômica da família. Mesmo assim, apoiadores começaram a surgir quando a família assumiu o compromisso de levar a marca do menino para o Louvre. A

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família organizou uma vaquinha e divulgou ao máximo até que a viagem se concretizou e com ela, a carreira promissora do pequeno decolou de vez.

“A arte rompe barreiras mesmo! Ele quebrou paradigmas, né? Então ele é um incentivo muito grande para famílias que têm crianças com algum tipo de talento, mas que pelo fato de ter uma deficiência a família não acredita. Agora elas podem acreditar por conta do João Elyo.” Diz emocionada a mãe do garoto.

O jovem João chegou até a França, mas está longe de ter chegado ao topo, o talento do pequeno se aprimora e o jovem pintor cria os quadros com uma frequência exemplar para qualquer artista. A imensidão e a grandeza das emoções que João Elyo traduz em seus quadros destoam da feição inocente de uma criança feliz e impressionam espectadores que contemplam as combinações de cores e técnicas que compõem o trabalho do pequeno, que se assemelha a obras de Pollock, pai do expressionismo abstrato. Assim como Pollock, o pequeno João Elyo não usa cavaletes ou pincéis, ele é autodidata e cria de forma orgânica utilizando vários instrumentos que maneja com as duas mãos, já que também é ambidestro.

causa nas pessoas que conhecem seu trabalho, são componentes de um universo que transforma em magia a história de um menino artista que não cabendo apenas em vencer desafios se encontrou na pintura e segue deixando sua marca em um mundo que não o compreende, mas admira a grandeza das suas criações.

A pureza no sorriso do menino, os vídeos registros caseiros das criações e o impacto que a arte de João Elyo

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Arquivo pessoal João Elyo

A Espiritualidade

Universalista: o amor

é a resposta

Ao chegar no bairro Cerâmica Cil e perguntar para um dos moradores onde fica a Fundação Servos de Maria, a resposta é que fica próximo à Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e ainda ao ser questionado sobre o que é tal fundação, com um sorriso no rosto, o idoso diz: “-ah, é um lugar que ajuda muita gente aqui”. Na frente do “Servos de Maria”, a aparência é de uma casa comum, se não fosse pelo muro branco estampado com o nome da fundação, porém, assim como a cada passo que se dá ao entrar no mar, entra-se cada vez mais nas

profundezas, é do mesmo modo com o local, que na verdade é tudo, menos uma casa comum.

Dirigindo-se aos fundos da propriedade, observa-se uma estrutura gigantesca, repleta de distintos e acolhedores espaços. À direita, um conglomerado de salas em que mais de 500 crianças e adolescentes frequentam quase que diariamente, diante dos projetos de música, dança, distribuição de alimentos, informática, judô, arteterapia, entre tantos outros desenvolvidos. À esquerda, um ambiente de socialização com cadeiras,

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em que conversam voluntários que trabalham nos projetos sociais da instituição e pessoas assistidas pelos projetos. Mais à frente, observase uma quadra semelhante a uma poliesportiva, na qual o palestrante fala para dezenas de pessoas sobre assuntos relacionados a fé.

Os trabalhos espirituais acontecem nos dias de quarta-feira. Começam com cerca de 80 médiuns rezando o tradicional terço da Igreja Católica. Depois, eles se encaminham para os espaços onde ocorrem os atendimentos com os pacientes das religiões espiritualistas. Enquanto uns médiuns ficam auxiliando a população na quadra, que assiste a palestra, outros dirigem-se para a sala de fluidoterapia, onde os pacientes receberão o passe energético deitados

em uma maca, semelhante ao passe no espiritismo. Já o outro grupo de médiuns se dirige para o singelo espaço de chão batido e estrutura de taipa, chamado “Congá de Pai João”, repleto de retratos de orixás e de imagens de Jesus Cristo, de Santos da Igreja Católica e de entidades da Umbanda Sagrada. É no congá que eles vão receber os passes com as entidades pretos-velhos e a desobsessão com as entidades caboclos, da Umbanda Sagrada.

Comércio troca-troca na parte interna. Foto: Tatiele Sousa.

Os sentidos são inundados de percepções, com o cheiro da defumação com as ervas de alecrim, arruda, guiné, alfazema, benjoim, incenso e mirra, que tomam conta do ambiente e o cântico “defuma com as ervas da Jurema, defuma com arruda e guiné. Benjoim, alecrim e

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Projetos sociais desenvolvidos na instituição

alfazema, vamos defumar filhos de fé” é entoado ao som da batida de tambores, maracás, instrumentos de percussão, e com a voz do pai de santo e criador da Fundação Servos de Maria, Marcos Régis, destacandose em meio aos seus filhos de fé. Marcos é um homem alto, forte e de presença absolutamente notável. Com feições simpáticas e acolhedoras, mas firmes, que logo demonstram a figura importante que ele representa para a Fundação, para os cerca de 80 filhos espirituais dele, assim como para os seus 23 filhos adotivos, concedidos a ele por Deus.

Em todos os dias da semana, todos os meses e todos os anos, o fundador Marcos Régis concilia o desenvolvimento de inúmeros projetos sociais com a paternidade de dezenas de filhos e somado ainda ao sacerdócio de distintas religiões, o que para muitas pessoas parece ser uma conciliação deveras dificultosa.

Contudo, ele atribui o decorrer do que considera ser sua missão de vida não a uma dificuldade, mas sim a uma realização possível devido a integração que tais esferas de sua vida tem, pois em seu ponto de vista, elas se complementam e a espiritualidade universalista é a liga que une todas as coisas e é, portanto, mais ampla do que somente o que pode compreender a religiosidade.

“A gente percebe que essa vivência de ordem íntima espiritual, esse despertar, potencializa também esse lado humano. Observe que as pessoas que tem esses caminhos, digamos assim, têm essa condição maior de se doar, elas têm uma base espiritual muito profunda. Eu não digo de religiosidade, eu digo de espiritualidade, porque quando a gente fala de espiritualidade é preciso que a gente dissocie de religiosidade porque é uma coisa muito mais ampla”, introduziu o sacerdote espiritualista

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Atendimentos espirituais no Servos de Maria

Mas como falar da cultura, da crença tão ampla sobre a espiritualidade universalista para crianças, adultos e idosos leigos sobre o assunto? Para o sacerdote, este é o cerne da questão. “Nós temos como princípio de trabalho a universalidade do atendimento, então, nós atendemos todas as pessoas porque nós compreendemos que o nosso papel até mesmo como uma casa que tem um cunho espiritual, é de promover uma consciência coletiva de fraternidade universal, onde a gente possa fazer com que as nossas crianças, adolescentes entendam que é preciso que ele se veja como irmão do evangélico, do umbandista,

do católico... Então, em respeito às consciências que nós chamamos de consciências incipientes das crianças que estão chegando, que vem de base de formação religiosa distintas, a gente trabalha de uma forma em separado o social do espiritual, neste sentido. Então durante toda a semana temos apenas trabalhos de ordem social, com exceção de um dia em específico onde a casa inteira se volta para o atendimento espiritual. Onde se deixa à vontade a comunidade, onde se deixa à vontade as famílias para que busquem [atendimento espiritual], se assim entenderem, conforme a sua crença e a sua religiosidade. Se entenderem que nós podemos

ajudar neste campo, nós estamos ali prontos para isso. Portanto, a gente procura dividir para que essa grande engrenagem que é o Servos de Maria possa funcionar de uma maneira que satisfaça a todos indistintamente”, esclareceu “Pai Marcos”, como carinhosamente o Marcos Régis é chamado por seus filhos, pelas pessoas da comunidade do bairro Cerâmica Cil e pelos seus filhos espirituais. Com esse entendimento exposto por ele, é possível compreender que justamente devido aos fundamentos da espiritualidade universalista cultivarem essa consciência de fraternidade universal, para que isso vigore na prática, todas as diferenças

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Sacerdote Marcos Régis Marcos Régis.

de credo e valores são respeitadas indistintamente.

A Alessandra é uma mulher alta, de cabelos castanhos, olhos dóceis e fala mansa. Ela é esposa, mãe, cursa enfermagem e pedagogia, estagia em uma escola com pessoas com deficiência e é voluntária nos projetos sociais desenvolvidos no Servos de Maria. Muito embora ela não seja participante dos trabalhos espirituais que acontecem nos dias de quarta-feira, Alessandra se considera espiritualista universalista e, portanto, ela simboliza o exemplo do que Marcos Régis

indicou quando disse que “é preciso que a gente dissocie [a espiritualidade universalista] de religiosidade porque é uma coisa muito mais ampla”. A voluntária dos projetos sociais não se declara propriamente dita pertencente a nenhuma religião, mas se considera espiritualista porque para além do ambiente religioso, a universalidade no seu ponto de vista é uma cultura e um modo de viver a vida com base no amor e na prática da caridade, do bem servir ao próximo.

“Essa espiritualidade universalista tem muito a ver com o doar, com o se doar. As religiões têm uma função importante na sociedade e ao meu ver, cada uma delas tem um papel e importância, mas o que eu acredito é que dentro de cada religião o que a une com todas as outras é a crença em Deus e a busca por se conectar com Deus. Quando você observa a espiritualidade universalista, o que eu vejo é que ela é uma soma, não dessas várias religiões, mas uma soma de várias pessoas que tem um intuito em comum, que buscam o caminho aonde além de viver, ela possa se doar ao outro, porque nós não estamos aqui meramente por acaso, estamos aqui porque temos um papel importante. Nós estamos aqui por um motivo e o ser humano que desperta para essa realidade, começa a enxergar além dos muros das religiões, começa a comungar da universalidade da espiritualidade e o Servos de Maria

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Alessandra Karla com crianças assistidas pelo Servos de Maria

é onde tem pessoas que comungam comigo desse modo de viver a espiritualidade universalista. Sobre essa espiritualidade algumas pessoas dizem assim: -’a universalidade da espiritualidade é a união das religiões’ e como eu disse, cada religião tem um contexto e tem uma opinião e a de cada pessoa vai divergir da outra. Então, não é uma união de religiões, é uma união de pessoas libertas de preceitos, dogmas, de pressões religiosas que determinam que só há um caminho. O caminho que leva ao divino é o caminho do amar, do se doar, do servir, é algo que une todos os caminhos religiosos e que transforma a vida, a sua e a do próximo. Dentro do Servos [de Maria], existem várias pessoas que independente de religião estão lá em prol de se doar

e ajudar o próximo. A caridade é a minha concepção de espiritualidade universalista”, expressou Alessandra.

Por meio da Fundação Servos de Maria foi que a Alessandra Karla conheceu a Marinete Vieira, que é adepta desse modo de viver a espiritualidade há 6 anos. Para a artesã Marinete, que é filha espiritual de Marcos Régis, a espiritualidade universalista representa uma virada de chave na sua consciência, no seu modo de viver, de ver e absorver a própria vida. Ao longo de seus 46 anos de existência, ela refletiu que os últimos 6 anos em que viveu a universalidade significou um agente transformador da sua jornada. “Na minha vida quando comecei a desenvolver a minha espiritualidade,

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Alessandra Karla com crianças assistidas pelo Servos de Maria

eu senti uma mudança como se eu fosse uma pessoa antes e agora sou outra depois. Buscando ser um pouquinho melhor a cada dia. Por exemplo, no meu trabalho eu busco em cada peça que faço, pensar no que aquela peça pode representar e simbolizar de positivo na vida do cliente, quais melhores intenções posso colocar durante o feitio daquela arte. Já na minha vida pessoal percebi que ganhei mais forças para compreender as coisas, mudar o que pode ser mudado, aceitar o que não posso mudar e fazer bem a quem eu puder”, refletiu Marinete.

Em outro momento, quando a artesã foi refletir sobre o que a espiritualidade universalista, segundo seu ponto de vista, representa para a coletividade, quase que instintivamente ela direcionou o olhar para a parte de fora do muro do Servos de Maria, onde é possível observar as casas que circundam a Fundação Espiritualista. Marinete direcionou a visão para lá como se buscasse olhar para os próprios moradores do local que compõem a comunidade. Foi então que ela projetou e atribuiu significado ao que acredita que a espiritualidade universalista representa para os outros. “Para mim é a esperança de dias melhores para a humanidade, porque quando você enxerga o próximo como a si mesmo, você vai buscar fazer o bem indistintamente. Não será preconceituoso com os outros, vai se colocar no lugar do

outro e por meio da empatia, vai sentir a dor do outro, as alegrias também. Independente de religião, raça, credo. É a união. É a união em prol de um Deus que tem vários nomes, Deus, Oxalá, Jeová. É a consciência de que todos podem ‘sentar-se na mesma mesa e pedir pratos diferentes’”, ponderou Marinete Vieira, citando um cartum que mencionou ter visto há um tempo atrás e que a marcou profundamente.

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Atendimentos espirituais no Servos de Maria

As personalidades, vivências, credos e caminhos de Marcos Régis, Alessandra Karla e Marinete Vieira são tremendamente diferentes. Contudo, diante de seus relatos, observa-se que o que une suas histórias de vida é essa cultura que congrega para além de concepções de religiosidade, o próprio modo de ver e viver a vida.

De acordo com o sacerdote espiritualista, caso pudesse responder à pergunta sobre o que é a espiritualista universalista somente com uma frase, seria: o amor é a resposta. “Ame. Doe o seu amor, porque quem doa o amor transforma a si e ao outro. O que falta principalmente nas pessoas é só a

capacidade de amar ser potencializada, ser exercida, porque muito hoje se fala em amor, mas amor não é sentimento que se engaveta no coração. Ele se materializa nas palavras e sobretudo nas ações, então, eu sempre digo isso para as pessoas, a gente tem que acreditar e se convencer de que só o amor tudo pode transformar, porque quem ama, não consegue ver limitação, quem ama não consegue se ver vencido, quem ama não consegue se ver impedido, tudo pode! Quem ama, tudo pode! Quando a humanidade compreender isso, eu sei que a gente estará vivendo uma nova era de comunhão e fraternidade, em que o amor é a resposta”.

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Salve a rainha De todes

Era um sábado à tarde quando fui surpreendida com um convite incrível. Fui chamada para o ensaio fotográfico de divulgação do retorno do Salve Rainha. Fiquei muito alegre, pois infelizmente nunca tinha vivenciado esse evento, mas já o conhecia há muito tempo.

As fotos ficaram maravilhosas e me fizeram sentir um gostinho do que seria o Pré-Carnaval do Salve Rainha

2023. Uma semana de espera. Estava ansiosa para conhecer a imensidão

Fernanda Rodrigues

que esse movimento representa. O Salve se tornou um marco na cultura teresinense entre 2015 e 2017. Pouco tempo depois de eu me mudar para Teresina, em 2018, o Salve havia feito sua última ação pública.

Ao chegar na tão esperada festa, me deparei com uma fila enorme. Gente que estava louca por aquele momento. Felizmente, por conta da participação nas fotos, meu nome estava na lista vip e consegui adentrar o espaço logo que cheguei. Uma explosão de cores.

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Divulgação “Rainha de Todes”. Foto: Jonathan Dourado

É como posso descrever o que meus olhos sentiram.

Fui caminhando vagarosamente pelo corredor lotado de pessoas. Exposições de arte, feira de livros, bijuterias, roupas, acessórios e muito mais. Tudo formava uma composição com diversas camadas de cultura, arte e vida. Resolvi explorar a intervenção artística que ocorria em uma pequena sala do espaço. Me deparei com uma figura emblemática, representada por um manequim enfeitado…

Francisco da Chagas, Chagas, Chaguinha, Kency Porta… São os múltiplos nomes que se referem ao grande idealizador do Salve, uma alma artística que tinha sonhos diversos para revolucionar o fazer cultural da sua cidade, e que infelizmente não se

encontra mais entre nós (pelo menos, materialmente).

Pré-Carnaval “Rainha de Todes”.

Foto: Geirlys Silva

Tudo começou em 2014, na primeira edição da Parada de Cinema (importante evento do audiovisual do estado), como conta Sam Jales, cirurgião-dentista e integrante do Salve: “Chagas, com o apoio de amigos próximos, começou a fomentar a ideia de fazer um café, em que tivesse uma feira gastronômica, uma cozinha experimental, junto com uma galeria de arte. E veio a oportunidade de fazer isso no evento da Parada de Cinema, na praça Ocílio Lago, que acabou se transformando em algo maior do que o planejado, onde houve exposições de arte, músicos e essa cozinha

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Pré-Carnaval “Rainha de Todes”. Foto: Geirlys Silva

experimental. E foi naquele momento que surgiu o Salve Rainha”.

Sam me explicou que os primeiros eventos foram chamados de “ensaios”, por ser tratarem de testes, experimentações, do que se tornaria de fato o Salve Rainha, e em setembro de 2014 ocorreu o primeiro deles: “Ensaios de Primavera”, que durou quatro domingos consecutivos na praça Ocílio Lago. A cada domingo a movimentação era maior e o público passou a enxergar o potencial que aquela ocupação artística tinha.

Em 2015, vieram os “Ensaios de Carnaval” na Rua Climatizada, centro da cidade. “Teresina não tem um um centro histórico assim como outras cidades do nordeste. Você vai pra qualquer capital do nordeste e existe uma movimentação noturna no centro histórico. Então foi muita expertise do Chaguinha e dos colaboradores de levar esse olhar para o centro da cidade”, ressalta Sam Jales.

E então chegamos ao grande ponto do que para muitos significa o sucesso do Salve: ocupar e acolher. O Salve Rainha passou a ser um movimento de ocupação de espaços públicos. Espaços que antes estavam sendo subutilizados ou abandonados pelo poder público receberam o olhar de pessoas que também foram esquecidas por muito tempo: a comunidade LGBTQIAPN+.

A parte do “acolher” vem justamente do ponto de que quando esses espaços foram ocupados, criou-se também

um local de apoio à comunidade, um ambiente confortável para todes, independentemente de cor, gênero, classe, orientação sexual etc.

Em 2016, o coletivo vivia seu auge de sucesso e a realização do grande sonho inicial de Chagas: O Café Sobrenatural, no Parque da Cidadania (definido também como Kency Park pelos integrantes), sonho que infelizmente foi interrompido por um crime de trânsito que tirou a vida dele e de seu irmão, Bruno, braço direito de chagas nas ações do Salve Rainha.

A tragédia abalou os integrantes do coletivo, assim como chocou boa parte dos Teresinenses. Era um banho de água fria para todas aquelas pessoas que estavam entusiasmados com o calor

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Pré-Carnaval “Rainha de Todes”. Foto: Geirlys Silva

de vida que o Salve proporcionava. O fato mudou os rumos do projeto, mas uma certeza era clara: nada ia acabar com a potência que o Salve Rainha havia criado dentro de quem o viveu.

Por conta da falta de financiamento público, em 2018 os integrantes resolveram iniciar uma pausa nas ações públicas do salve, mas o coletivo sempre se manteve ativo internamente, conta Sam Jales: “Passamos exatamente dois anos estudando, fazendo capacitações, formações…E isso estava em paralelo também com a vida pessoal de cada membro do coletivo. Muitos de nós estávamos em processos de formação acadêmica, e também fazíamos pesquisas sobre o Salve Rainha e sobre coletivos parecidos com o nosso em outras cidades. Buscamos fazer um networking em outras cidades, outros estados”.

A pandemia atrasou o retorno do Salve, assim como o massacre da cultura proporcionado pelo governo que estava no poder. O coletivo se viu então obrigado a aguardar mais alguns anos para finalmente em 2023, com boas notícias para o setor cultural vindas do novo presidente, voltar com tudo e com uma programação incrível durante o ano.

Para a felicidade de todes, o primeiro evento após a pausa “chegou, chegando”. O Pré-Carnaval do Salve Rainha, intitulado “Rainha de Todes”,

aconteceu no dia 15 de janeiro de 2023, no Centro Multicultural Stouradas.

Richard Henrique, integrante do Salve e idealizador do local que recebeu a festa, conta como foi a sensação desse momento: “Receber o coletivo no Stouradas é fruto de um trabalho árduo que eu venho fazendo há muitos anos. É um processo de construção que aos poucos vem fazendo sentido e trazendo novas oportunidades para a cena artística cultural local”.

O evento foi surreal. Nessa parte posso ser minha própria fonte, pois a sensação que vivi foi principalmente de esperança. Esperança de que o mundo tem jeito, de que existem pessoas boas e, acima de tudo, pessoas corajosas. Gente que quer e que vai atrás de mudar realidades, que luta contra as barreiras, que faz de um limão uma limonada. Que faz de um café uma salvação. Salve!

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Pré-Carnaval “Rainha de Todes”. Foto: Geirlys Silva Estátua do Cabeça de Cuia. Foto: Reprodução/Blog Lídia Brito.

Por Carlos Júnior e Agnes Moita

Na calmaria do Bairro de Fátima, na rua Júlio Mendes, tive o privilégio de poder brincar na calçada quando criança. Uma das minhas memórias mais bonitas era a de pegar urucum nos muros da casada frente e pintar meu próprio rosto. Uma linda casa, que ocupa um quarteirão inteiro e perfuma de dentro para fora com flores e limões cujas galhas repousam sobre os muros baixos, embelezando verdadeiramente aquele quarteirão.

Quando eu era criança até minha adolescência tive o privilégio de esperar ansiosa o mês de setembro para assistir os 3 ipês da casa florirem. Da janela do meu quarto fazia fotos e mais fotos. Aquela casa pertencia ao

professor Wilson Batista, amigo de meus avós. Em 2014, tive outra boa surpresa. A notícia de que sua filha, Ceiça Batista, amiga de minha mãe e mãe do Thiago, meu amigo de infância, se mudaria para lá com a família!

Fiquei muito feliz com aquela notícia. Aquele quintal enorme que eu só podia frequentar em alguns domingos quando vinha da missa na Igreja de Fátima, agora era a casa de um vizinho próximo. Era para mim a notícia de ter um amigo em frente de casa e a esperança de poder passear naquela natureza mais vezes!

Ao longo desses anos, seguimos trocando mangas de lá, com amoras de

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QuintEssência, um quintal para brincar e se reconectar com a essência artística e a criança interior dentro de nós.

cá e toda sorte de frutas, sobremesas e mimos que nossas mães faziam questão de preparar uma para outra. Sempre que eu entrava ali, pensava em como eu gostaria que todas as pessoas do mundo tivessem a oportunidade de conhecer aquele lindo espaço.

Até que após um ano de pandemia, soube que minha querida tia Ceiça iria abrir seu quintal para o público. Começava ali o projeto do espaço QuintEssência!

Conceição de Maria Vieira Batista é psicoterapeuta e proprietária da QuintEssência Espaço Cultural e Terapêutico. Ao conceder entrevista, ela ressalta a ideia pelo significado do nome do espaço:

“Atenção para a escrita do nome… tudo junto e com a letra “E” maiúscula no meio. O nome foi escolhido cuidadosamente para representar o espaço: QUINTA, de quintal, pé no chão, contato com a natureza (coisa rara nas casas atuais); ESSÊNCIA (natureza íntima de cada ser, que o torna único no mundo). A junção das duas palavras: QUINTESSÊNCIA é o quinto elemento da natureza, o éter ou espírito, a energia da criação. Que é o motivo pelo qual a QuintEssência foi criada: para ser um berço de criações, transformações e ressignificados!”

Ela conta como surgiu a ideia de transformar a própria casa em espaço artístico. ‘’A QuintEssência é o quintal

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onde eu cresci e brinquei! É também o quintal onde meus filhos cresceram e brincaram! Mas agora que eles são adultos, o espaço começou a ficar um pouco obsoleto e eu fui sentindo a necessidade de dar vida a ele novamente! Neste ínterim, chegou a pandemia trazendo uma outra necessidade: a de nos reinventarmos numa sociedade que agora gritava por saúde (física e emocional). Então eu casei uma ideia com a outra e resolvi abrir meu quintal para que crianças, pequenas e grandes (adultos), pudessem usufruir das delícias que ele oferece’’.

A classificação do espaço feita por ela também nos dá mais detalhes acerca da sua ideia. ‘’QuintEssência é um espaço cultural e terapêutico. Trata-se de um jardim-quintal com carinha de sítio, super aconchegante e localizado no coração da cidade, onde as pessoas poderão ter contato com a natureza, respirar um pouco de ar puro e relaxar em meio ao verde. Aberto para qualquer tipo de evento, como: piqueniques, dia de brincadeiras, oficinas, rodas de conversa, vivências, ensaios fotográficos, exposições, meditação, relaxamento e práticas de terapias integrativas’’.

Perguntada a respeito da possibilidade do surgimento de novos artistas através do espaço, ela é bem taxativa: ‘’no fundo, todo mundo é artista! E a QuintEssência é um espaço onde se

respira arte! Onde as pessoas são livres para ousarem e experimentarem com a certeza de que serão bem acolhidas e suas performances bem apreciadas’’.

A proprietária – que eu chamo de tia pela ligação tão sentimental outrora estabelecida – conta a experiência obtida na infância através das aulas de educação artística e como ela foi decisiva para a ideia do local. Imprimiu o gosto pela arte nela. O que uma boa experiência infantil não traz de direcionamentos nas fases seguintes da vida?

Eu tive a minha bem pertinho desse lindíssimo local. E, depois dessa experiência em presenciar a sua transformação, lembrei-me da minha em particular. Que o QuintEssência possa trazer boas lembranças aos seus frequentadores.

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Faces de um Sonhar

Eu me lembro como se fosse hoje de quando adquiri minha primeira edição da magnum opus de Neil Gaiman. Era 2014 e eu estava no ensino médio. Após quase 1 ano juntando moedas de um real em um cofrinho, consegui juntar o necessário para adquirir o primeiro volume encadernado da coleção, que em mais de 600 páginas compilava apenas os 19 primeiros capítulos da extensa obra. Eu já era um leitor de quadrinhos na época, entretanto minhas leituras se restringiam quase que exclusivamente ao gênero de “Super Heróis”, Sandman foi meu

primeiro contato com algo que, apesar de compartilhar o mesmo veículo, possuía um escopo completamente diferente. A HQ é um misto de filosofia, poesia, ocultismo, religião, misticismo, literatura, caos, dor, melancolia e pura arte. Vocês podem imaginar como essa combinação encantou aquele jovem sonhador.

A série em quadrinhos iniciou sua publicação originalmente nos Estado Unidos em 1988, pelo selo “Vértigo”, que era uma iniciativa da DC Comics que buscava publicar histórias voltadas a um público mais

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adulto, e durou até 1996, totalizando 75 edições. O Gibi conta a história de Sonho, um “Perpétuo”, uma entidade transcendental anterior aos deuses, que nasceu junto ao universo. Também chamado de Morpheus, Devaneio, Kaiku, mestre moldador, senhor do sonhar, joão pestana… Ele é a manifestação física dos sonhos, como seu nome sugere. Sandman é o irmão do meio entre os Perpétuos. Seus demais irmãos são Destino, Morte, Desejo, Destruição e Delírio. Eu pessoalmente acho uma pena que em português perca-se a aliteração de Seus nomes que no original seriam Dream, Death, Delirium, Desire, Despair, Destiny e Destruction, todos começados com D.

Em suas histórias Morpheus interage com Deuses mitológicos como Odin e Bastet, está presente em momentos como a revolução francesa, conhece figuras históricas como Shakespeare e Augustos e ocasionalmente até se encontra com personagens da própria DC comics como o Caçador de Marte (No brasil também conhecido como Ajax) e o Mago trapaceiro Jhon Constantine. E enquanto isso também vai nos contando um pouco mais sobre nós mesmos. Suas histórias são sobre

identidade, sexualidade, evolução pessoal, gênero, responsabilidades, liberdade, e é claro, sobre sonhos. Todos esses assuntos são sempre trabalhados com a delicadeza e elegância típicas de Gaiman, que nunca se deixa cair no pedantismo e não tenta ser mais do que realmente é: Uma ótima história em quadrinhos.

Dando vida os roteiros do escritor Britânico, vários artistas diferentes ilustraram as páginas de Sandman, cada diferente arco possui um ou mais ilustradores com traços completamente distintos,

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desde os desenhos mais “sujos”, anatomicamente desproporcionais e quase surrealistas de Sam Kieth até as linhas finas e delicadas de Jill Thompson. Essa variabilidade pode desagradar alguns leitores, que podem gostar mais de um artista e desgostar de outro, entretanto cada diferente estilo de ilustração ajuda a dar o devido tom e ambientação de cada história, que também variam bastante ao longo das edições.

Além das artes, por vezes a escrita de Gaiman também apresenta seus altos e baixos. Mesmo que o material

apresente uma qualidade muito acima da média como um todo, existem arcos mais arrastados e mais enfadonhos como “Um jogo de você” e arcos que são quase uma unanimidade entre os fãs, como o maravilhoso “Estação das Brumas”, onde Lúcifer desiste de governar o inferno e entrega a chave do Sheol para Sonho.

Recentemente encerrei minha leitura da saga, foi uma longa viagem pelas 75 edições, fora os spin offs e derivados, e posso dizer com certeza que durante esses nove anos Sandman se tornou um amigo querido. Sabe aquelas histórias que lhe acompanham por muito tempo e que acabam fazendo parte de você? Você cresce com elas, aprende com elas, e claro, como todo relacionamento, é possível que em alguns momentos até brigue com elas, discorde se afaste e fique até mesmo um tempo longe, mas no final vocês fazem as pazes e se reencontram; A história do Sonhar foi assim para mim.

Hoje, embora a minha jornada com os Perpétuos tenha encontrado seu fim, sei que a de muitas pessoas está apenas começando, e pelas mais variadas mídias, pois a HQ teve sua

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primeira adaptação para live action realizada em 2022, em formato de série com 11 episódios pela Netflix. A adaptação agradou bastante a maior parte do público e da crítica, abrindo assim a porta para uma segunda temporada que já está confirmada pelo serviço de streaming.

A série faz um trabalho de adaptação razoavelmente fiel aos dois primeiros arcos da obra original: “Prelúdios e Noturnos” e “Casa de bonecas”. Alguns fãs das HQs podem estranhar algumas mudanças em personagens, como a mudança étnica que a personagem “morte” sofreu, originalmente a personagem como todos os perpétuos possuía a pele muito alva, na série a simpática entidade recebe vida pela talentosa atriz negra Kirby Howell-Baptiste. Outros personagens ainda tiveram seu gênero trocado, como John

Constantine, que aqui é Johanna Constantine. Entretanto nenhuma dessas mudanças chega a estragar a série que conta com um elenco bem acima da média.

Ainda sobre as atuações e elenco, a maioria agrada bastante, dando destaque para Tom Sturridge que realmente encarnou o protagonista a quem deu vida de maneira espetacular; e a David Thewlis, que deu toda uma personalidade a mais a John Dee, que foi ao mesmo tempo inocente e assustadora. Uma das minhas poucas ressalvas em relação ao elenco é a Atriz Gwendoline Christie, que não transmite em sua atuação a imponência e personalidade que a personagem Lúcifer evoca na obra original.

Um fator que desagrada bem mais é uma certa “Higienização” da série em relação ao material original. Alguns personagens tiveram suas

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características alteradas para se tornarem mais palatáveis ao público geral, como a perpétua “Desespero” que enquanto nos quadrinhos é uma figura obesa sempre desnuda e descrita como tendo cabelo desgrenhado e úmido, dedos inchados, unhas roídas e quebradiças e dentes tortos e chanfrados, na série é representada apenas como uma moça desleixada e acima do peso, bem longe da figura capaz de evocar desespero da obra original. O próprio protagonista da série, Sandman, é uma figura que por vezes, no início da obra, tem atitudes questionáveis que podem ser consideradas cruéis, que são importantes para que possamos acompanhar o desenvolvimento da personagem, mas a série optou por amenizar ou remover isso.

Acho que posso concluir dizendo que por mais que Sandman seja uma

história que fala sobre conceitos antropomorfizados (Como o Sonho, Morte, Desejo, Destino…) ela é uma história, acima de tudo, muito humana. Talvez uma das mais humanas que se pode ter contato. Acho que pela primeira vez alguém conseguiu, por exemplo, transpor o conceito da morte com algo belo, algo que seja realmente parte da sua jornada, e não como algo terrível. A morte que é representada em Sandman é uma amiga que acalenta você após sua jornada.

Sandman é um quadrinho praticamente atemporal, escrito na década de 80, mas que ainda hoje tem um impacto gigantesco. Talvez ele seja um dos quadrinhos mais ousados, porque ele não se prende a conceitos como tempo e espaço, em cada uma das oníricas aventuras de Morpheus Gaiman dá um jeito de superar essa métrica.

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