Por George França
Fotos: Divulgação
Professor do Colégio de Aplicação da UFSC; doutor em Literatura pela mesma instituição
sim, esses perfis de mulheres, mães, filhas, avós, talvez todas elas um caleidoscópio de um mesmo rosto impossível, incontemplado, incontemplável. Ana Davenga, tão doce, tão gozo, tão dor, que enxugava os olhos d’água do gozo-pranto de seu homem e sabia que a vida era um risco, e risco maior era não tentar viver; Duzu-Querença, cujo tentar-viver foi do tentar estudar ao entrar-entrando nos quartos das moças da pensão de Dona Esmeraldina, sua primeira cafetina, até que seu delírio, que a levou à rua, umedecesse os sonhos da neta-sobrevivente para que florescessem e se cumprissem; Maria, cujo comezinho sonho de levar ao filho um beijo e um carinho de um pai ausente se reduz tão rápido, tão breve à massa informe que ela, pisoteada e linchada, se torna diante de um grupo (tão real, tão possível, tão nosso) que resolve agredi-la por julgar que seria cúmplice de um roubo; Natalina e seus quantos filhos, os filhos que não queria, negando que o destino natural do ser mulher seja a maternidade, mas que ao fim resolve conceber um filho concebido nos frágeis limites entre a vida e a morte, só seu; Salinda, que queria suas roupas úmidas de desejo mofando no tempo de sua esperança de encontrar novamente o mergulho da outra nela e o encontro não apenas de suas fendas-mulheres, mas um beijo na face, que ficasse marcado na pele; Luamanda, procurando o amor que talvez já não suportasse o tempo de uma longa espera enquanto viajava no tempo-evento de sua vida; Cida, fazendo diariamente seu cooper diante do mar no qual nunca pousara seus olhos, e que, depois de tanto correr, tem a epifania de poder dar um tempo para ela mesma; Zaíta, a criança que, em seus sonhos, perseguindo a figurinha de uma menina que carregava uma braçada de flores, esquecera de guardar os brinquedos; Di Lixão, um desses rebentos abandonados, morto encolhido qual um feto enjeitado, explodindo em sangue e febre, esperando a dor só do encontro de suas dores; Lumbiá, outro dos garotos que perambulava pela rua, que sabia chorar quando preciso, mas que ele, apenas ele, podia se ver no menino pobre, nu, vazio e friorento do Jesus do presépio, espatifado como ele; Kimbá, movimentando a vida até a morte, desejoso de sair do morro, desejado igualmente por um amigo e uma amiga, mortos os três em um pacto selado de desejos impossíveis; Ardoca, e seu réquiem de trilhos de trem; as vozes entrelaçadas de A gente combinamos de não morrer, conto em que a polifonia dessas vozes do jogo de espelhos-olhos-d’água explode, e em que “a morte incendeia a vida, como se estopa fosse” ao som de “Quem não tem colírio usa óculos escuros”. O que nos resta de todas essas mortes-vidas que contemplamos, que passam na velocidade de um curso d’água, é que “escrever é uma maneira de sangrar”. E sangrando, fluindo, chorando, brotando, as vidas que Conceição nos apresenta nos impactam, também, com o fato de que não morrer nem sempre é viver.
CONTEXTO:
A inclusão de Olhos d’água de Conceição Evaristo na lista do Vestibular UFSC 2017 é um gesto afirmativo muito importante. Os exames e as escolas sempre tiveram não apenas muita dificuldade em lidar com a literatura contemporânea – e isso começa pela maneira como a literatura é apresentada no Ensino Médio, linearmente, lendo algo do presente se der tempo – mas principalmente com as vozes da margem. Temos, aqui, um livro escrito há dois anos, por uma escritora, negra e nascida na favela. Cabe a pergunta: ao longo de sua formação na escola, quantos livros de mulheres você leu? Quantos autores africanos e afro-brasileiros? A inserção dessas vozes marca um momento, contemporâneo, de questionamento de nossos padrões culturais: por que a escola insistiu e insiste, durante tanto tempo, em afirmar apenas a cultura que vem de nossa colonização europeia? Graças a muita luta dos movimentos negros, feministas, LGBTQIA, entre outros, estamos diante da possibilidade de multiplicar as vozes que são ouvidas pelas instituições. A inserção dessa e de outras obras de escritoras e escritores é um passo muito importante de valorização das múltiplas formas de nossa cultura e de nossa formação histórica. Durante muito tempo, tratou-se a periferia como se não tivesse voz. A história de nosso país sistematicamente silenciou os escravos, os pobres, os que foram empurrados morro acima para as favelas, os marginalizados de nossa “ordem e progresso”. A literatura de Conceição Evaristo, com a inserção que alcançar, chama a atenção para a necessidade de ouvir essas vozes, essas histórias, essas pessoas.
CONCEIÇÃO EVARISTO Aos 69 anos, Conceição Evaristo é das mais conhecidas escritoras negras brasileiras. Nascida em uma favela da zona sul de Belo Horizonte, Conceição trabalhou como empregada doméstica desde os oito anos de idade, e, com muita luta e determinação, tornou-se doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Colaborou com os históricos Cadernos negros, do grupo Quilombhoje, tem também publicados romances, como Ponciá Vicêncio, de 2003, e Becos da memória, de 2006, livros em que ressalta a voz da mulher negra e o legado de sofrimento da escravidão brasileira e da marginalização do povo negro e pobre. Essas lágrimas, no entanto, para adotar uma expressão de Gabriela da Silva em seu recente trabalho de conclusão de curso sobre a escritora, são “lágrimas de dor e insubmissão”, de um tempo em que, historicamente silenciadas, vozes como a dela se fazem ouvir, gritar, vertendo sangue, com a força e o impacto que é necessário para não apenas compreendamos a dureza áspera da realidade que vivemos, mas pensemos o que podemos fazer por outras realidades possíveis.
FACEBOOK.COM/REVISTAITS
17