itadina C
Rio da Bulha
história no asfalto e no concreto
Como o maior córrego do centro desapareceu sob o concreto Cronologia A ilha que virou cidade Cotidiano Bicicleta: o modal invisível Vida Urbana Crônica de um cotidiano comum
Universidade Federal de Santa Catarina
Curso de Jornalismo
Laboratório de Produção Gráfica
Profa. Janaíne Kronbauer dos Santos
Citadina
História no asfalto e no concreto
Edição 1 - Dezembro de 2022
Editor: Mateus H. R. Spiess
Projeto gráfico-editorial: Mateus H. R. Spiess
Textos: Mateus H. R. Spiess
Imagens: Mateus H. R. Spiess, Vilnius (disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6238305) Casa da Memória Anita Hoepcke, Vicky Ng (disponível em: https://unsplash.com/photos/8hCcjf2BxTk), Jon Tyson (disponível em: https:// unsplash.com/photos/FlHdnPO6dlw)
Esse trabalho é experimental, sem fins lucrativos e de caráter puramente acadêmico, criado e editado pelo acadêmico Mateus H. R. Spiess como exercício de projeto gráfico-editorial para a disciplina de Laboratório de Produção Gráfica do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no semestre 2022-2. Não será distribuído, tampouco comercializado. Seu conteúdo e suas opiniões são de inteira responsabilidade dos acadêmico(a)(s), isentando assim a UFSC e a docente da disciplina de qualquer responsabilidade legal por essa publicação.
Editorial
Por baixo do asfalto e do cimento que revestem toda cidade há história. Ecos das vidas de outras pessoas, de outros tempos, cujos pés marcaram o mesmo chão que hoje é marcado por nós. Mais do que um aglomerado de habitações, uma cidade é um ser vivo, que guarda suas memórias e contradições nas marcas deixadas nas paredes de seus edifícios e de suas ruas.
É na urbe - ou se você preferir o grego, na polis - que a maior parte da vida humana se desenrola. São esses aglomerados de concreto armado, asfalto e dióxido de carbono que concentram o poder político, econômico e cultural do ser humano. Concentram também memórias coletivas, marcas do passado em meio às rachaduras no revestimento do novo.
A Citadina tem como missão escancarar essas rachaduras e expor as memórias permeadas no asfalto impermeável. Nesta edição, traz a história, senão toda, mas um valioso fragmento, do que um dia foi Meiembipe, em outro, Desterro, e hoje, Florianópolis. A cidade insular, berço desta publicação, ganha nestas páginas uma homenagem temperada a muitas críticas, fruto de uma longa história que não tem previsão para se encerrar.
2 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022
Apresentação
Sumário 4 8 14 20
Sumário
Cronologia
A ilha que virou cidade
Muito antes de ser conhecida como Florianópolis, a cidade insular teve outros nomes e outras histórias
Capa
O Rio Sepultado
Como o maior córrego do centro de Florianópolis desapareceu sob o concreto
Cotidiano
O Modal Invisível
Sem estrutura adequada, pedalar nos arredores da UFSC exige coragem
Vida urbana
Hora Extra
Uma crônica de um cotidiano comum
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Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina
A ilha que virou cidade
Muito antes de ser conhecida como Florianópolis, a cidade insular teve outros nomes e outras histórias
Mateus H. R. Spiess
Ahistória de Florianópolis teve início muito antes das primeiras casas do período colonial terem sido construídas, muito antes mesmo dos primeiro europeus se interessarem pelas terras que haviam além do Atlântico. De fato, os primeiros sinais de povoamento na Ilha de Santa Catarina datam de 4800 a.C., quando os chamados Homens de Sambaqui caminharam por estas paragens - e deixaram rastros que podem ser percebidos ainda hoje, em localidades como o Costão do Santinho.
Nos milênios posteriores, povos indígenas de etnias tapuia habitaram a região.
Sua ocupação se estendeu até por volta do ano 1000, quando foram expulsos por povos tupis, especialmente indígenas carijó, que migraram da região da Amazônia para o sul do Brasil. Foram os carijó quem deram o primeiro nome registrado
para a ilha. A chamaram de Meiembipe, que significa montanha ao longo do mar, em alusão ao relevo acidentado da região. Com a chegada dos europeus ao Novo Mundo, no século XVI, a ilha de Meiembipe passou a ser usada como parada pelas embarcações que se dirigiam à Bacia do Prata, para reabastecimento de água e suprimentos. Mas apenas no ano de 1673 a Ilha foi oficialmente ocupada pelos europeus, sob a liderança do bandeirante Francisco Dias Velho. Foi Dias Velho quem deu o nome de Ilha de Santa Catarina a Meiembipe, pois aportou por essas águas no dia de Santa Catarina. Ele trouxe consigo a família e agregados, e fundou o povoado de Nossa Senhora do Desterro - que, no futuro, iria se tornar Florianópolis. O vilarejo foi o segundo a ser fundado no estado, atrás apenas da vila de Laguna. Oficial-
Cronologia 4 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022
mente, Desterro fazia parte da vila de Laguna, tendo se desmembrado apenas em 15 de março de 1726. No dia 26 de março do mesmo ano, Nossa Senhora do Desterro foi elevada à categoria de vila.
Com a vinda de Dias Velho, a quantidade de migrantes do sudeste do território brasileiro aumentou. Por conta da posição estratégia que a Ilha de Santa Catarina ocupa no litoral, a meio caminho da Bacia do Prata e no extremo sul dos domínios portugueses, serviu de posto avançado da colônia. Ocupada militarmente, a partir de 1737 sua paisagem passou a ser marcada por uma série de fortalezas para a defesa de seu território. Na Baía Norte da Ilha, três formavam um triângulo defensivo - as fortalezas de Santa Cruz de Anhatomirim, São José da Ponta Grossa e de Santo Antônio de Ratones, as maiores dessas edificações. Além dessas, outras oito fortificações pontilharam a costa de Meiembipe, protegendo o território português das naus espanholas. Os migrantes açorianos, incentivados pela coroa portuguesa, começaram a chegar em maior quantidade à ilha no século XVII. Com eles, boa parte das características que hoje marcam a cultura de Florianópolis chegaram pela primeira vez: os engenhos de farinha de mandioca e a manufatura das rendas de bilro. Apenas no século XIX, em 24 de fevereiro de 1823, a vila de Desterro foi elevada
Bandeirante nascido em São Vicente, no ano de 1622, foi o fundador e capitão-mor do povoado de Nossa Senhora do Desterro, posição que ocupou até 1687, quando foi assassinado por piratas ingleses que atacaram a ilha.
Francisco Dias Velho
5 Cronologia Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina
IMAGEM: VILNIUS | WIKIMEDIA COMMONS
à categoria de cidade, tornando-se capital da Província de Santa Catarina, agora no Brasil Imperial. Esse período foi marcado pela modernização a paisagem, em virtude do investimento de recursos provenientes do governo central. O porto foi expandido e inúmeros prédios públicos foram inaugurados, na preparação para uma visita do imperador D. Pedro II, realizada em 1845.
No final do século XIX, na esteira das instabilidades do início da República, Desterro teve seu nome alterado. Em 1891, o então presidente, marechal Deodoro da Fonseca, renunciou à presidência por conta da Revolta Armada. Seu vice, Floriano Peixoto assumiu o poder, sem realizar as eleições exigidas pela Constituição da Velha República. Esse ato teve como resultado o surgimento de duas revoltas: a Segunda Revolta Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, encabeçada por fazendeiros gaúchos. Em Desterro, as colunas rebeldes participantes das duas insurreições se encontraram em Desterro, apoiados por catarinenses que, na época, eram contrários à república. Floriano Peixoto, no entanto, conteve as revoltas ao aprisionar os seus líderes e, em 1894, executou quase trezentos revoltosos presos na Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim - episódio que ficou conhecido como Chacina de Anhatomirim. Com a execução dos ilhéus rebeldes, restaram na cidade apenas os simpati-
Uma ilha de vários nomes Ilha de Santa Catarina 1670 Nossa Senhora do Desterro 1673 Desterro 1822 Florianópolis 1894 Meiembipe Até o século XVI Cronologia 6 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022
zantes ao novo presidente, liderados pelo então governador Hercílio Luz. Em homenagem a Floriano, e em busca de aplacar o clima de terror que reinava na ilha em decorrência da pesada repressão, o nome da cidade foi alterado de Desterro para o atual Florianópolis - a cidade de Floriano.
As mudanças na paisagem da Ilha de Santa Catarina se aceleraram com a passagem do século XIX para o século XX. Nesse período ocorreu um extensivo esforço de modernização da capital, que refletiu na construção da Ponte Hercílio Luz, inaugurada em 1949, na revitalização do centro da cidade, caracterizada pela canalização dos córregos da região e a construção do sistema de fornecimento de água e da rede de coleta de esgoto.
A Florianópolis que hoje vemos sofreu transformações significativas no passado recente. Nos anos 70 o litoral oeste da ilha, em torno de sua região central, foi aterrado para a instalação de uma avenida que atendesse às demandas do automóvel - que começou a se popularizar neste período. Além disso, mais duas pontes foram erguidas: a Colombo Sales, inaugurada em 1975, e a Pedro Ivo Campos, aberta no ano de 1991. Este processo de modernização acelerou o crescimento populacional da ilha, o que refletiu na urbanização acelerada de bairros afastados do centro, principalmente no Norte, como os Ingleses, Canasvieiras e Jurerê.
Hoje, o que um dia foi Meiembipe se transformou em uma metrópole, uma das três únicas capitais insulares do Brasil. Em meio à mata ainda virgem de suas encostas e das reservas naturais que cobrem grande parte de seu território, Florianópolis se vê cercada das contradições que afetam outras tantas cidades do país - a desigualdade social, a violência, o alto custo de vida. O asfalto que cobriu seus centros urbanos espalhados ao longo da ilha tenta, em vão, apagar as marcas da história que a cidade carrega, marcada por violência e beleza, mais antiga que os homens que a pisoteiam podem atestar lembrar. Nossa Senhora do Desterro e Meiembipe ainda resistem por baixo do concreto e do asfalto, ecos da memória de todos que um dia passarame passarão - pela Ilha de Santa Catarina.
Origem incerta
O nome “Nossa Senhora do Desterro”, ou apenas Desterro, como ficou conhecida durante o período imperial, tem duas possíveis origens. A primeira é baseada na crença de que o nome havia sido escolhido de modo a evidenciar o projeto colonial da Ilha: receber bandidos e miseráveis rejeitados da metrópole. Já a segunda versão diz respeito a uma homenagem realizada à fuga da Sagrada Família de Jesus para o Egito.
7 Cronologia Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina
O Rio Sepultado
Como o Rio da Bulha, o maior dos córregos do Centro de Florianópolis, desapareceu sob o concreto da cidade insular
IMAGEM: MATEUS H. R. SPIESS Capa 8 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022
Mateus H. R. Spiess
Em meio ao concreto da capital catarinense, um rio corre sufocado. Hoje transformado em avenida, suas margens de pedra cinzenta cobertas de asfalto ainda mostram as curvas do seu traçado. Suas águas correm silenciosas por baixo de uma alameda arborizada que, a cada noite, é ocupada pelos boêmios da Ilha de Santa Catarina. É a Avenida Hercílio Luz, no centro-leste de Florianópolis (SC). A única lembrança da existência de um rio ali vem das rajadas de vento sul que, canalizadas pela memória de seu leito, sopram desde sua foz, na Prainha. Antes de ser conhecido pelo nome da avenida que ocupou seu lugar, esse curso d’água tinha nome próprio. Era chamado de Rio da Bulha, ou Rio da Fonte Grande, pelas pessoas que habitavam a então cidade de Nossa Senhora do Desterro, no início do século XX. O maior dos seis córregos que cortam o centro de Florianópolis, corria a céu aberto, suas margens ocupadas por cortiços e casebres precários pertencentes às classes baixas da cidade. Ali ficavam os antigos bairros da Pedreira, da Tronqueira, da Toca e do Campo de Manejo, em uma área que, de acordo com a professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), Ana Luíza Mello Andrade, era relegada à periferia. “Nossa cidade tinha uma vida maior na praça do Palácio, que hoje é a Praça XV de Novembro”, conta a
professora, ao relembrar o desenho urbano de Florianópolis no início do século XX. “A área do Rio da Bulha era habitada pelas classes populares, sem dinheiro”.
O Rio da Bulha percorria uma área de banhado a leste da Catedral, habitada pela população pobre da cidade. Ali moravam lavadeiras, marinheiros e pescadores, que construíam suas casas nos barrancos em suas margens. As águas do rio eram usadas para o descarte de esgoto proveniente das moradias da jovem Florianópolis que, até meados do século XX, não possuía sistema centralizado de tratamento de dejetos.
A preocupação com o saneamento da capital surge apenas na década de 1910, na esteira das obras de higienização e embelezamento realizadas nas principais cidades do Brasil, como no Rio de Janeiro.
O Rio da Bulha no ano de 1912, com suas margens ocupadas por moradias populares
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Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina
IMAGEM: CASA DA MEMÓRIA DE FLORIANÓPOLIS
Capa
Vista àquele momento como uma cidade provinciana e antiquada, Florianópolis foi palco de uma série de reformas urbanas nesse período, que tinham como objetivo a erradicação de doenças epidêmicas como a febre amarela e a malária, muito comuns entre a população. Por conta disso, em 1919, tiveram início as obras de canalização do Rio da Bulha, sob o argumento da “sanitização” da cidade. A canalização do Rio da Bulha representa um dos capítulos da segregação do centro de Florianópolis. Para Ana Luiza, as obras nessa região tinham como principal objetivo a abertura de uma avenida nos moldes europeus, larga, arborizada e limpa: “essa coisa de abrir avenidas largas faz parte de um projeto de embelezamento da cidade de acordo com os moldes burgueses”. A professora conta que, para a construção do canal da então chamada Avenida do Saneamento, foi necessário remover a população pobre da região - que também era vista como a culpada pela disseminação de doenças. Essas pessoas foram forçadas a ocupar áreas precárias nas encostas do Morro do Antão, hoje conhecido como Morro do Mocotó, o que intensificou a ocupação no local. Para a professora, no entanto, a erradicação das doenças na região foi apenas uma construção argumentativa elaborada pela elite da época. “As doenças não foram erradicadas, foram afastadas dos
Em 1919 tiveram início as obras de canalização do Rio da Bulha
A avenida Hercílio Luz em 1923, após o término das obras de canalização
IMAGEM: CASA DA MEMÓRIA DE FLORIANÓPOLIS
10 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022
IMAGEM: CASA DA MEMÓRIA DE FLORIANÓPOLIS
Capa
centros urbanos por conta das obras. As populações pobres continuaram sem acesso às medidas sanitárias”, ela explica. O resultado foi um rio domado por concreto, com as margens adornadas por árvores espaçadas e cercado por asfalto nos dois lados. A Avenida do Saneamento, inaugurada em 1922, logo passou a ser conhecida por seu nome atual, Hercílio Luz, em homenagem ao governador que modernizou a capital de Santa Catarina.
A canalização do rio da Bulha representou também o início da morte desse curso d’água. Suas águas ainda eram tocadas pelo sol, mas corriam sob concreto. O ambientalista Lauro Bacca, presidente da Associação Catarinense de Proteção da Natureza, afirma ser quase impossível que os peixes que habitavam o rio tenham sobrevivido à canalização. Ele explica que “não há mais remansos, cobertura vegetal ou variação da paisagem do rio, que oferece aos peixes locais para descansar. Nenhum peixe consegue viver ali”. De acordo com Lauro, a canalização de um rio faz aumentar sua correnteza, visto que a cobertura de concreto instalada em seu leito oferece pouca resistência à água. Isso prejudica o crescimento de algas e a presença de moluscos e crustáceos de água doce, além de prejudicar a população de peixes. “A partir do momento que um rio é canalizado, sua biodiversidade despenca”, afirma o ambientalista.
11 Capa Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina
“A partir do momento que um rio é canalizado, sua biodiversidade despenca”
“Hoje, as únicas formas de vida que podem habitar o rio são fungos e insetos.”
O rio da Bulha correu ao ar livre por mais 90 anos até o seu sepultamento completo. Contaminado pelo esgoto e pelo lixo urbano do centro de Florianópolis desde o início da urbanização da cidade, a principal memória que muitos dos moradores da Ilha têm do rio é de seu cheiro. É o que afirma Ana Luiza: “com a verticalização da cidade, com a construção daquele paredão de prédios, o cheiro do rio não era dos melhores”.
Foi apenas em 2005, durante a gestão do então prefeito Dário Berger, que o canal da Avenida Hercílio Luz foi fechado, transformando-se na alameda arborizada de hoje. Dominada por bares e restaurantes, ela é o coração da vida noturna de Florianópolis, que pisoteia o que antes foi o maior dos cursos d’água do Centro. Quem caminha pela avenida que serpenteia pelo centro de Florianópolis está alheio à história debaixo de seus pés. O rio da Bulha corre sem vida no subterrâneo da cidade insular, sufocado por concreto, asfalto e pela vida urbana.
IMAGEM: MATEUS
H. R. SPIESS
12 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022
A memória do Rio da Bulha resiste nas curvas da avenida em que ele se transformou
Capa
13 Capa Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina
O modal invisível
Sem estrutura adequada, ciclistas disputam espaço com automóveis e pedestres para se locomover na principal via na região da UFSC
Mateus H. R. Spiess
14 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022
Cotidiano
Na principal via que liga o Centro-Norte de Florianópolis ao Sul da Ilha, cicistas precisam dividir espaço com automóveis, ônibus e caminhões
Para sair do bairro Pantanal, seja para ir em direção ao centro ou ao sul da Ilha, o ciclista precisa percorrer a extensão da rua Deputado Antônio Edu Vieira - a principal via arterial da região. Com quase 2 quilômetros de comprimento, a rua de mão dupla e calçadas irregulares é quase sempre tomada pelo trânsito intenso de veículos, que competem entre si por espaço na faixa de rolagem apertada. Não há ciclovia, nem ao menos a sua alternativa mais barata e perigosa, a ciclorrota. Se você quer pedalar por ali, precisa se juntar ao caos constante que é o trânsito na região.
Fábia Busatto é uma das pessoas que se aventura por essa rua sobre duas rodas, não por divertimento, mas por necessidade. Estudante de Relações Internacionais na UFSC, ela tem na bicicleta o seu principal meio de transporte. “É com ela que costumo me locomover, principalmente se preciso ir a algum lugar mais perto”, ela conta. Fábia mora no Pantanal e precisar constantemente se deslocar ao longo da Edu Vieira. De acordo com ela, pedalar por ali é intimidador, mas inevitável: “é o único jeito de sair da UFSC e ir em direção ao sul da Ilha, por exemplo”.
Apesar da sua importância para a mobilidade urbana na região, a rua Deputado Antônio Edu Vieira nunca contou com uma estrutura adequada ao fluxo de veículos que recebe. Em horários de pico, é comum que se leve mais de trinta minutos para percorrer apenas um quilômetro de sua extensão. Desde que começaram suas obras de duplicação, em 2017, a situação não parece melhorar - e se para os automóveis é ruim, para os ciclistas é ainda pior. “Você precisa lutar por espaço, porque os motoristas não respeitam”, descreve Fábia. Hoje sem calçada devido às obras realizadas no entorno da universidade, a situação da rua força os ciclistas a transitarem em um espaço apertado, entre os veículos e os anteparos de cimento que separam o canteiro de obras da pista. Uma receita perfeita para acidentes.
15 Cotidiano Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina
IMAGEM: MATEUS H. R. SPIESS
Cotidiano
Fábia Busatto (23) é estudante de Relações Internacionais na UFSC, e tem na bicicleta um de seus principais meios de transporte
Consciente do riscos de pedalar pela Edu Vieira, Fábia não abre mão de equipamentos de segurança como o capacete
IMAGEM: MATEUS H. R. SPIESS
IMAGEM: MATEUS H. R. SPIESS
16 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022
O projeto de duplicação da rua prevê a instalação de quatro pistas para os veículos comerciais, duas vias exclusivas para o transporte público, além de ciclofaixas, calçada e um canteiro dividindo a rua ao meio. No entanto, a data de sua conclusão ainda é objeto de especulações. De acordo com o prefeito de Florianópolis, Topazio Neto, prevê-se que as obras sejam finalizadas até o segundo semestre de 2023. Até lá, o que se observa é o caos usual na região, que gera descontentamento tanto para moradores quanto para os motoristas e usuários de transportes alternativos.
Não é apenas a região do Pantanal que carece de estrutura adequada para o trânsito de ciclistas. A cidade de Florianópolis conta com um total de 121,56 km de ciclovias e ciclofaixas, cuja grande maioria concentrada em sua região central. A capital ocupa o segundo lugar no ranking de capitais com maior quantidade de vias exclusivas para bicicletas por habitante no Brasil, de acordo com uma pesquisa da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike). Apesar desse fato, muitas vias de maior tráfego, que ligam bairros ou regiões inteiras da ilha à sua área central, não possuem equipamentos que garantam o trânsito seguro de ciclistas.
17 Cotidiano Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina
“Você precisa lutar por espaço, porque os motoristas não respeitam”
Cotidiano
Florianópolis possui um total de 121,56 km de ciclovias e ciclofaixas, mas na Edu Vieira a opção é dividir a pista com os carros ou transitar pela calçada
Esse é o caso da Rodovia Baldicero Filomeno, principal estrada do bairro Ribeirão da Ilha. Considerada a maior via urbana de Florianópolis, com 21 quilômetros de extensão, a rodovia não possui ciclovias ou ciclofaixas - nem projetos de revitalização previstos para o futuro próximo. Em alguns trechos de seu trajeto, faltam inclusive calçadas, o que força pedestres a compartilharem a via com automóveis e outros veículos em alta velocidade. Outras vias, como a SC-401, que liga a região central ao Norte da Ilha, também não possuem estrutura adequada - metade das mortes de ciclistas ocorridas em Florianópolis aconteceram na estrada estadual.
Esse cenário pode estar para mudar, no entanto. De acordo com dados da Secretaria Municipal de Mobilidade, a malha cicloviária de Florianópolis quase dobrou de tamanho nos últimos três anos. “Acho que esse é o caminho para melhorar a mobilidade urbana da cidade”, reflete Fábia. Para a estudante, o investimento em meios alternativos de mobilidade, como bicicletas ou o transporte público, são uma das soluções para o trânsito caótico que é cenário comum na cidade. “Quando se tem mais estrutura para andar de bicicletas, caminhar ou pegar ônibus, as pessoas são incentivadas a usar esses meios de transporte ao invés de dirigir”.
IMAGEM: MATEUS
H. R. SPIESS
18 Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022
Para fugir dos riscos constantes, muito ciclistas buscam caminhos alternativoscomo o canteiro de obras, onde a via ainda não está liberada para trânsito
IMAGENS: MATEUS H. R. SPIESS 19
Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina
Cotidiano
Vida Urbana
Hora extra
Uma crônica de um cotidiano comum
H. R. Spiess
Orelógio marcava nove e meia quando o carro parou em frente ao restaurante. Nós quatro descemos na travessa estreita, transversal à avenida Beira-Mar, iluminada por luzinhas penduradas em ziguezague sobre a via. Era o dia da colação de grau de Artur, meu amigo, e ele escolhera aquele restaurante para o jantar de comemoração. Um lugar pequeno, mas charmo-
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IMAGENS: VICKY
UNSPLASH
Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022 20
Mateus
so, com fachada de tijolos expostos, um letreiro minimalista em metal preto e uma placa de boas vindas escrita em giz logo na entrada. Paramos em frente à porta, receosos de não conseguir comer. Tínhamos pesquisado o horário de funcionamento e o restaurante fechava às dez. Resolvemos apostar na sorte, mesmo assim.
Artur foi o primeiro a entrar. “Boa noite, vocês ainda estão atendendo?”, perguntou
Vida Urbana
ao dono, que estava sentado atrás do balcão. Era um senhor coreano com cabelos salpicados de cinza e um esboço de sorriso no rosto. Os olhos no relógio do computador à sua frente, ele pensou um pouco antes de responder: “claro, podem me seguir”. Nos levou então até as mesas, no pavimento superior do restaurante. O cômodo tinha janelas amplas voltadas para a rua, para as luzinhas penduradas do lado de fora, e era iluminado por uma luz amarelada que parecia imitar a cor delas. Apenas uma mesa estava ocupada, por um casal de meia idade que apreciava os últimos goles de suas taças de vinho antes de ir embora.
Em frente à escada, duas garçonetes encaravam entediadas seus celulares, esperando os minutos finais do expediente passarem. Confesso que senti seu desapontamento quando nos viram subir os degraus e caminhar em direção a uma das mesas no canto. Entendo como são os minutos finais de um expediente, a pressa de ir embora misturada à preguiça de ter que iniciar qualquer nova tarefa, sabendo que, num trabalho como o delas, significa adiar a hora de ir embora. Olhei para meus amigos, sem saber se alguém partilhava meu sentimento. Impossível não sentir o olhar delas em nos-
Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina 21
sas nucas, ainda que disfarçassem seu desejo de que não tivéssemos aparecido.
Fábia e Laura escolheram para nós uma daquelas mesas com assentos acolchoados como um sofá, presos à parede.“Oi, tudo bem?”, uma das garçonetes nos cumprimentou. Explicou como funcionam os pedidos e que o cardápio poderia ser acessado por meio de um QR Code, colado à mesa. O problema é que nenhum de nós sabia o significado do nome de nenhum prato, por mais que a lista de ingredientes nos desse alguma ideia.
“Você pode explicar para a gente o que são esses três pratos especiais?”, novamente, foi Artur quem perguntou. A garçonete deu um meio sorriso, respirou fundo, e gastou quase dez minutos descrevendo cada um dos três pratos - todos eles com algum tipo de carne. Para Fábia e eu, esses não serviriam. Já passavam das nove e quarenta e cinco quando ela terminou e, para seu desespero, fizemos outra pergunta: “Tem alguma opção vegana?”. Foram mais alguns longos minutos de descrições a respeito de receitas com ingredientes asiáticos que eu nunca tinha ouvido falar, mas que pareciam deliciosos para meu estômago vazio. Quando decidimos, já se passavam das dez e lá fora, a garoa fina começava a engrossar.
Algo me fizera simpatizar imediatamente com o lugar quando entramos. Lá dentro, a simpatia apenas aumentou,
mas misturada com um sentimento azedo de estar incomodando os funcionários, atrapalhando seus planos para depois do fim do expediente. Artur parecia alheio a essa sensação, mas Laura e Fábia sorriam um tanto nervosas. Observavam a mulher correr com os pedidos em direção à cozinha, no andar de baixo. A comida chegou com uma velocidade fora do comum, carregada pelas duas garçonetes. Junto dela, chegaram três amigos nossos, que tinham planejado chegar junto conosco, mas ficaram presos no trânsito sempre ruim de Florianópolis. Sentaram-se à mesa e foram gentilmente pressionados a pedir. “É que a cozinha vai fechar logo”, uma das mulheres explicou, para então listar com calma todos os itens do complicado cardápio. Elegantes. Confesso que, no lugar delas, não seria capaz de esconder meu descontentamento. Nunca fui uma pessoa que gosta de trabalhar. Um trabalho que me forçasse a sair depois da hora combinada, à mercê dos clientes? É demais para mim. Digo isso sem medo de soar esnobe - somos todos pessoas diferentes, afinal, com gostos e talentos distintos. O delas, claramente, era a elegância de não nos mandar para a casa, quase uma hora após o final de seu expediente. Nesse caso, tínhamos apenas de agradecer e, óbvio, apreciar a comida. Meu prato acabou mais rápido do que eu esperava, no fim das contas. Não por
Citadina • Edição 1 • Dezembro de 2022 22
Vida Urbana
pouca quantidade - a tigela que me foi servida estava quase transbordando do arroz com legumes bem condimentado que eu havia escolhido. Minha cabeça ansiosa tinha pressa de ir embora. O sentimento de estar incomodando persistia no fundo da minha mente e, somado à fome, teve certo papel na cena deselegante que protagonizei à mesa. Me fez engolir cada bocado quase sem mastigar, como um personagem de desenho animado. Fez com que eu terminasse antes de todos, para aguardar de mãos - e boca - vazias enquanto meus amigos saboreavam os seus próprios pratos. Nos minutos finais daquela
refeição, acompanhei as garçonetes que encaravam o relógio, impacientes a contar cada segundo até poderem ir embora. Os ponteiros marcavam onze e meia quando o restaurante fechou. Debaixo da garoa fina e insistente, vimos as duas garçonetes se despedirem com um aceno e irem em direções opostas para casa. O dono, em uma perua verde água, foi logo depois, dobrando a esquina em direção ao norte. Ficamos apenas nós sob o brilho amarelado das luzinhas, em frente ao restaurante que, por nossa culpa, fechou uma hora e trinta minutos mais tarde que o normal.
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Dezembro de 2022 • Edição 1 • Citadina 23
IMAGENS: JON TYSON
UNSPLASH
Vida Urbana
Quem caminha pela avenida que serpenteia pelo centro de Florianópolis está alheio à história debaixo de seus pés.