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O Rio Sepultado
from Revista Citadina
Como o Rio da Bulha, o maior dos córregos do Centro de Florianópolis, desapareceu sob o concreto da cidade insular
Em meio ao concreto da capital catarinense, um rio corre sufocado. Hoje transformado em avenida, suas margens de pedra cinzenta cobertas de asfalto ainda mostram as curvas do seu traçado. Suas águas correm silenciosas por baixo de uma alameda arborizada que, a cada noite, é ocupada pelos boêmios da Ilha de Santa Catarina. É a Avenida Hercílio Luz, no centro-leste de Florianópolis (SC). A única lembrança da existência de um rio ali vem das rajadas de vento sul que, canalizadas pela memória de seu leito, sopram desde sua foz, na Prainha. Antes de ser conhecido pelo nome da avenida que ocupou seu lugar, esse curso d’água tinha nome próprio. Era chamado de Rio da Bulha, ou Rio da Fonte Grande, pelas pessoas que habitavam a então cidade de Nossa Senhora do Desterro, no início do século XX. O maior dos seis córregos que cortam o centro de Florianópolis, corria a céu aberto, suas margens ocupadas por cortiços e casebres precários pertencentes às classes baixas da cidade. Ali ficavam os antigos bairros da Pedreira, da Tronqueira, da Toca e do Campo de Manejo, em uma área que, de acordo com a professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), Ana Luíza Mello Andrade, era relegada à periferia. “Nossa cidade tinha uma vida maior na praça do Palácio, que hoje é a Praça XV de Novembro”, conta a professora, ao relembrar o desenho urbano de Florianópolis no início do século XX. “A área do Rio da Bulha era habitada pelas classes populares, sem dinheiro”.
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O Rio da Bulha percorria uma área de banhado a leste da Catedral, habitada pela população pobre da cidade. Ali moravam lavadeiras, marinheiros e pescadores, que construíam suas casas nos barrancos em suas margens. As águas do rio eram usadas para o descarte de esgoto proveniente das moradias da jovem Florianópolis que, até meados do século XX, não possuía sistema centralizado de tratamento de dejetos.
A preocupação com o saneamento da capital surge apenas na década de 1910, na esteira das obras de higienização e embelezamento realizadas nas principais cidades do Brasil, como no Rio de Janeiro.
O Rio da Bulha no ano de 1912, com suas margens ocupadas por moradias populares

Vista àquele momento como uma cidade provinciana e antiquada, Florianópolis foi palco de uma série de reformas urbanas nesse período, que tinham como objetivo a erradicação de doenças epidêmicas como a febre amarela e a malária, muito comuns entre a população. Por conta disso, em 1919, tiveram início as obras de canalização do Rio da Bulha, sob o argumento da “sanitização” da cidade.
A canalização do Rio da Bulha representa um dos capítulos da segregação do centro de Florianópolis. Para Ana Luiza, as obras nessa região tinham como principal objetivo a abertura de uma avenida nos moldes europeus, larga, arborizada e limpa: “essa coisa de abrir avenidas largas faz parte de um projeto de embelezamento da cidade de acordo com os moldes burgueses”. A professora conta que, para a construção do canal da então chamada Avenida do Saneamento, foi necessário remover a população pobre da região - que também era vista como a culpada pela disseminação de doenças. Essas pessoas foram forçadas a ocupar áreas precárias nas encostas do Morro do Antão, hoje conhecido como Morro do Mocotó, o que intensificou a ocupação no local.


Para a professora, no entanto, a erradicação das doenças na região foi apenas uma construção argumentativa elaborada pela elite da época. “As doenças não foram erradicadas, foram afastadas dos centros urbanos por conta das obras. As populações pobres continuaram sem acesso às medidas sanitárias”, ela explica. O resultado foi um rio domado por concreto, com as margens adornadas por árvores espaçadas e cercado por asfalto nos dois lados. A Avenida do Saneamento, inaugurada em 1922, logo passou a ser conhecida por seu nome atual, Hercílio Luz, em homenagem ao governador que modernizou a capital de Santa Catarina. A canalização do rio da Bulha representou também o início da morte desse curso d’água. Suas águas ainda eram tocadas pelo sol, mas corriam sob concreto. O ambientalista Lauro Bacca, presidente da Associação Catarinense de Proteção da Natureza, afirma ser quase impossível que os peixes que habitavam o rio tenham sobrevivido à canalização. Ele explica que “não há mais remansos, cobertura vegetal ou variação da paisagem do rio, que oferece aos peixes locais para descansar. Nenhum peixe consegue viver ali”. De acordo com Lauro, a canalização de um rio faz aumentar sua correnteza, visto que a cobertura de concreto instalada em seu leito oferece pouca resistência à água. Isso prejudica o crescimento de algas e a presença de moluscos e crustáceos de água doce, além de prejudicar a população de peixes. “A partir do momento que um rio é canalizado, sua biodiversidade despenca”, afirma o ambientalista.
“Hoje, as únicas formas de vida que podem habitar o rio são fungos e insetos.”
O rio da Bulha correu ao ar livre por mais 90 anos até o seu sepultamento completo. Contaminado pelo esgoto e pelo lixo urbano do centro de Florianópolis desde o início da urbanização da cidade, a principal memória que muitos dos moradores da Ilha têm do rio é de seu cheiro. É o que afirma Ana Luiza: “com a verticalização da cidade, com a construção daquele paredão de prédios, o cheiro do rio não era dos melhores”.
Foi apenas em 2005, durante a gestão do então prefeito Dário Berger, que o canal da Avenida Hercílio Luz foi fechado, transformando-se na alameda arborizada de hoje. Dominada por bares e restaurantes, ela é o coração da vida noturna de Florianópolis, que pisoteia o que antes foi o maior dos cursos d’água do Centro. Quem caminha pela avenida que serpenteia pelo centro de Florianópolis está alheio à história debaixo de seus pés. O rio da Bulha corre sem vida no subterrâneo da cidade insular, sufocado por concreto, asfalto e pela vida urbana.
