
3 minute read
Lavagem daescadaria
from Revista Capoeirando no. 3 (Ago/23)
by Revista Capoeirando - um tributo à cultura popular; UNICAMP
“A cidade de Campinas (SP) é um espaço vivo da manifestação do povo de matriz africana, seja por meio de fragmentos urbanos, seja pelas formas de uso e de manutenção de suas raízes culturais latentes, mesmo quando aparentemente estas não são vistas pela maioria de sua população. As marcas estão lá imbricadas nas transformações urbanas e sociais, sendo necessário, para observar a ritualização dessa memória, manter diálogos com os mais velhos dessa matriz africana, que preservam nas lembranças e em suas ações cotidianas essa materialidade ofuscada no espaço físico como âncora na transformação de um tipo de representação nas cidades atuais ”
RIBEIRO, Alessandra, 2017
Advertisement
O trecho do artigo da Alessandra abre de maneira muito precisa a discussão sobre o impacto e a importância de acontecimentos como a Lavagem da Escadaria da Catedral Central de Campinas, que neste ano teve suas atividades retomadas, após 2 anos de pandemia.
A cidade é marcada por um histórico escravocrata cruel, uma vez que era reconhecida como referência de tortura das pessoas escravizadas - muitas vezes eram tranferidos para este território aqueles que se rebelaram ou tentaram fugir, como punição - além de ser a última cidade do Brasil a abolir a escravidão. Os impactos desse passado ainda ressoam por Campinas, e como bem colocou a mestra Alessandra - que está no quadro “Fala, mestra” dessa edição -, é necessário dialogar e entoar a presença dessa história e das culturas que aqui foram marcadas, para que se rompa o silêncio que paira sobre a população acerca de nossa história. Entretanto, apesar de ser imprescindível rememorar as feridas gigantescas que o racismo da história campineira provocou e provoca, ressoar o canto, as cores e a fé das religiosidades de matriz africana é garantir que a reestruturação da imagem não seja apenas pautada no sofrimento, mas afirme a presença das formas, cores, crenças e alegrias que já fazem parte da nossa cultura de maneira tão enraizada, mas ainda perseguida.
A procissão se iniciou na Estação Cultura, outro local importante para a população campineira - que reúne diversas atrações culturais, como festivais, apresentações, exposições e até cursos -, e seguiu seu caminho até a catedral, localizada no Largo do Rosário
A Rua 13 de maio - que tem eu seu nome o dia da luta contra o racismo e o dia da falsa abolição - foi tomada por um mar de branco, onde se encontravam mulheres segurando vasos de flores na cabeça, marcados com os nomes de suas famílias. O maracatu celebrava no meio da multidão e a capoeira abria o caminho para o cortejo passar.


A lavagem da escadaria, do começo ao fim, é uma experiência emocionante que enche os olhos de beleza, música e, principalmente, de ancestralidade.

Se inicia com o encontro dos nossos, exibindo todo o seu talento com a roda de capoeira, e depois partindo para a caminhada rumo à igreja, impactando as pessoas que olhavam, surpreendidas com tanta força e delicadeza. Parece que os guardachuvas coloridos nas ruas sabiam que ali iria passar uma multidão vestida de branco, onde tudo iria se harmonizar naquele instante. Os cantos continuam até o encontro da igreja, e o cheiro de lavanda começa a aparecer. Todos se preparam para o grande momento e ele de repente acontece: cada varrida, cada jorrar de água é um ato de resistência.

“É pra lavar mesmo”, foi o que uma das mulheres que direcionam o ritual afirmou com força e certeza, para certificar que aquilo que precisasse fosse limpo e renovado, para dar espaço e bençãos para uma nova realidade.


Reforçando que essa manifestação da fé permite a observação da ritualização da memória, como coloca Ribeiro, mas também afirma dentro da subjetividade e da perspectiva cosmológica a vivacidade dessa fé. Abrir um espaço seguro para cultivar a fé é abrir espaço para corações vivos, corpos identificados e com mais autoestima, para além de promover a articulação da comunidade. É garantir saúde para o povo.
Por fim, o final do ritual foi marcado por um show belíssimo de Leci Brandão, que veio para selar as bênçãos daquele dia. Além de nos encantar com sua arte, a cantora entoou a importância da arte e da educação, celebrou a abertura de um novo tempo, onde vamos poder respirar um pouco mais depois de tanta barbárie, e continuar trabalhando e resistindo por um mundo menos regido pela monocultura.


