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Uma lição da eleição

Passaram-se muito poucos dias desde que fomos às urnas para tomar parte naquela que muitos têm classificado como a mais importante eleição de nossas vidas. Embora compartilhe da sensação, não me considero qualificado para discutir essa classificação, mas também não desejo que a atual ou futuras gerações precisem vivenciar os riscos e as tensões por que ainda estamos passando. Seja como for, creio que algum distanciamento será necessário até que se possa produzir uma boa análise de tudo isso que está aí. Há aspectos de natureza menos conjuntural, no entanto, que por isso mesmo já podem ensejar algumas reflexões quiçá úteis para o exercício de direitos em outras dimensões de nossas vidas.

A eleição, como costumamos ouvir, é o momento mais sagrado das democracias representativas modernas. No Brasil, além de um direito, é uma obrigação do cidadão, durante a maior parte da vida de quase todos nós, comparecer periodicamente às seções eleitorais. O que obviamente implica em deslocamentos que para a imensa maioria dos eleitores não podem ser facilmente feitos a pé. Surgem aí os serviços de transporte público com um papel de imenso destaque, certamente acentuado neste ano por razões que podem estar associados a alguns daqueles fatores excepcionais a que me referi há pouco lá no início.

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A essencialidade do transporte público nas eleições já é reconhecida em cidades que aprovaram dispositivos assegurando sua gratuidade nos dias de votação. Mas as peculiaridades de 2022 levaram a um questionamento quanto à legalidade desses dispositivos. Fugindo também das motivações de quem questionou, vou direto para o fato de o Supremo Tribunal Federal ter decidido pela legalidade de tais leis e decretos. A corte chegou ao detalhe de indicar a responsabilidade dos governos e concessionárias dos serviços de transporte, deixando claro que se trata de assegurar o interesse público, não de beneficiar segmentos específicos — no caso, partidos ou candidatos.

A decisão, por sua vez, abriu caminho para que a demanda fosse apresentada de forma generalizada em todo o país e governantes estaduais e municipais adotassem a gratuidade em alguma medida, ainda que instados por decisões judiciais locais. Houve alguns preciosismos, para não chamar de bizarrices, como a exigência de comprovação do motivo da viagem com a apresentação título de eleitor (que não é obrigatória nem para votar) ou a gratuidade apenas na viagem de volta, contra a apresentação do comprovante de votação. Mas a regra geral foi a gratuidade.

Não está completamente claro o efeito real da gratuidade na redução da abstenção, que também pode ter sido afetada por outras medidas, tais como a quantidade inusual de blitze alegadamente de trânsito em rodovias e ruas urbanas. Mas também não é esse meu objetivo aqui.

Estou mais interessado em olhar para o que foi dito durante o debate sobre a legalidade da medida. De todos os argumentos usados tão fartamente nas justificativas de leis e decretos, nas manifestações de colunistas e jornalistas, nas petições e decisões judiciais, conclui-se que a tarifa que a população paga para usar o transporte coletivo urbano seria uma barreira ao exercício do voto.

A pergunta que já pode ser feita agora a todos os gestores municipais é: se isso vale para assegurar o direito de votar, por que não estender para os demais direitos? Para manter a coerência revelada no debate e a lucidez alcançada pelas decisões que valeram para o momento eleitoral, é preciso admitir que as tarifas pagas pelo usuário do transporte público são uma barreira para a mobilidade. Consequentemente, um elemento supressor de direitos e um obstáculo à própria economia das cidades, que precisa do deslocamento não só da força de trabalho, mas do próprio público consumidor.

Se é assim, senhores governantes e parlamentares, está mais do que na hora de colocar a Tarifa Zero na ordem do dia.

* Paulo Cesar Marques da Silva é professor da área de Transportes da Faculdade de Tecnologia da Universidade de Brasília. Possui graduação em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal da Bahia (1983), mestrado em Engenharia de Transportes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e doutorado em Transport Studies pela University of London (University College London) (2001).

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