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2.1.1. A JORNADA DA HEROÍNA
10. Estrada de volta: nesta fase, o herói inicia o caminho de volta ao mundo comum, porém agora com uma grande transformação adquirida no processo. Aqui ele pode ser testado novamente para ver se realmente “aprendeu a lição”. 11. Ressurreição: é neste momento que o “inimigo” do herói ressurge, para um novo combate ou conflito ainda maior e com mais coisas em jogo. O herói recebe uma oportunidade de testar e aplicar o que aprendeu, e enfrenta um desafio final antes de retornar totalmente à sua vida cotidiana. 12. Retorno: o herói oficialmente retorna ao mundo comum. Isso permite que o público entenda o significado da jornada e traz uma sensação de conclusão à história. A essa altura se nota que o uso da palavra herói refere-se ao protagonismo que uma pessoa comum toma a respeito de sua própria história. Ela se distingue por suas ações extraordinárias e seus feitos brilhantes. Como essa estrutura tem como origem os mitos, que geralmente envolvem histórias com divindades, o herói é esse ser que após se provar, após atos de coragem, se transforma em alguém excepcional.
2.1.1. A JORNADA DA HEROÍNA
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Visto que as narrativas são reflexos do mundo e seus habitantes, que moldam gerações e mudam o curso da história, é importante frisar aqui que o masculino é a régua para o mundo. O ideal masculino em si não é o problema. O problema está no excesso de masculino e na despriorização – ou quase ausência – do ideal feminino no que criamos, desenvolvemos e participamos. Na tradição chinesa milenar do Tao, a totalidade do universo e da natureza manifesta-se com o equilíbrio harmonioso e dinâmico entre energias de dois pólos opostos: Yin e Yang, sendo Yin a energia do feminino e Yang a do masculino.
Fig. 5 - Yin e Yang. Fonte: claudiamelo.org
Maureen Murdock, discípula de Joseph Campbell, vem então questionar a jornada do herói do ponto de vista feminino, ou seja, qual seria a jornada da heroína?
“Escrevi a jornada da heroína, há 30 anos, para descrever uma alternativa ao estereótipo egoico da jornada do herói masculino, tão admirado na cultura dominante. Até então, não havia um padrão arquetípico reconhecível que se adequasse à experiência das mulheres”. (MURDOCK, 2022, p. 17).
Antes de de fato entrar na jornada da heroína, é preciso compreender a “questão da mulher”. Simone de Beauvoir é uma filosófa, raramente reconhecida como tal, e autora do livro O Segundo Sexo (1949). Ela desmembra uma filosofia
existencialista a fim de caracterizar questões de gênero, e descreve que há um caminho a se entender para enfim chegar ao cerne da questão. No existencialismo não há preocupação com o além, o que veio antes do nascimento e o que virá após a morte. Você de fato existe e está vivo, e caso decida que quer viver, deve definir como quer viver. Não havendo nada pré-determinado, somos nós que atribuímos sentidos à vida, baseados na liberdade e autenticidade. Entre o sujeito, o mundo e seus desejos existem obstáculos, lugares onde os valores do indivíduo são criados. São nesses obstáculos que a opressão surge, tornando as possibilidades pequenas ou mínimas. A figura do opressor faz suas ações se passarem por naturais, o que na verdade, não são. Entende-se aqui a diferença entre liberdade e livre arbítrio. A liberdade é a possibilidade de criar um novo caminho, trabalha para o coletivo e reforça a liberdade do outro. O livre arbítrio é escolher entre caminhos já prontos. O caminho para a liberdade é a desnaturalização da opressão, por isso entender a sociedade e por fim de que não se nasce mulher, mas torna-se mulher. Com o avanço dos movimentos sociais, essa tal “questão da mulher” ganhou força, e estereótipos femininos começaram a ser questionados. Pois a forma como o masculino é tido como o primeiro sexo, o referêncial, o absoluto, refletem nas histórias que contamos, e ajudam a perpetuar essa visão de mundo. Na bíblia sagrada, no livro de gênesis, temos:
"O Senhor Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só, vou dar-lhe uma auxiliar que lhe seja adequada’” (BÍBLIA, gênesis, 2, 18). Mais à frente, continua: “Eis agora aqui - disse o homem - o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem”(BÍBLIA, gênesis, 2, 23).
Joseph Campbell dedicou toda a sua vida à compreensão dos mitos e de como eles ditam nossos imaginário, nossa sociedade, nossa humanidade. No mito da criação do cristianismo a mulher é gerada como uma assistente, uma auxiliar; o segundo sexo desde a sua concepção. Numa discrepância de sua própria gênese, quem gera a mulher é o homem, sendo que é o feminino quem gera a vida. Muitos anos mais tarde, Mary Shelley no século XIX cria uma das mais aclamadas obras de horror de todos os tempos: Frankenstein, a história de um estudante de ciências naturais que cria um monstro
em seu laboratório. Um monstro, pois quem gera a vida é o feminino, não o masculino. Em O Poder do Mito, livro que é uma transcrição de uma conversa/entrevista de Bill Moyers com Joseph Campbell, Campbell ressalta a importância dos ritos e as consequências da falta deles nos dias atuais. Num determinado momento, ele descreve um ritual pelo qual passavam os meninos aborígenes na Austrália. Era físico e doloroso. Isso o impactava psicologicamente e ao retornar esse menino sabia que era um homem. Moyers então questiona sobre as fêmeas: “Moyers: E quanto à fêmea? Quase todas as figuras nas cavernas-templos são machos. Essa era uma espécie de sociedade secreta dos machos? Campbell: Não era uma sociedade secreta, é que os meninos precisavam passar por isso. É claro que não sabemos exatamente o que acontecia às fêmeas nesse período, devido à escassez de informações a respeito, mas hoje, nas culturas primárias, a menina se torna mulher com a primeira menstruação. É algo que acontece a ela, a natureza faz isso a ela. E assim ela supera a transformação - mas qual é a sua iniciação? Normalmente é sentar-se no recesso de uma cabana, por alguns dias, e tomar consciência de quem é ela. (CAMPBELL, 2014, p. 87) As falas de Campbell são dignas de algumas constatações, como, o feminino sempre foi negligenciado e por isso parece ser algo tão misterioso, porque é para dentro. A história sempre foi contada por parâmetros masculinos, então essa jornada interior pode não ter parecido tão interessante e passamos a aceitar explicações do tipo: “é algo que acontece a ela”, é raso e tira seu aspecto humano. Colocando-as sempre como místicas, musas e deusas, algo que pintores durante boa parte da história da arte o fazem, acabam por reforçar as mulheres dentro destes estereótipos. Dessa maneira, sentar e tomar consciência de quem é, não parece ser uma aventura com tons heróicos. Moyers: Como ela chega a isso? Campbell: Ela se senta lá. Agora é uma mulher. E o que é uma mulher? Uma mulher é um condutor de vida. A vida surpreendeu-a. A mulher é tudo o que importa à vida: conceder o nascimento e a nutrição. Seus poderes a tornam idêntica à deusa-terra, e tem de tomar consciência disso. O menino não vive nenhum acontecimento desse tipo, por isso precisa ser transformado em homem e voluntariamente tornar-se um servidor de algo maior que ele. (CAMPBELL, 2014, p. 87)
É aqui que Campbell deveria ter se dado conta das divergências da jornada do herói e da heroína. Mas não é sua culpa viver o privilégio masculino de ser o primeiro sexo. Afinal, quando nos referimos ao ser humano, sempre usamos a expressão “O homem”. Quando queremos dizer que alguém é incrível, ele é “o cara”.
Parafraseando uma frase do filme As Virgens Suicidas (1999), de Sofia Coppola: “Você claramente nunca foi uma menina de 13 anos”.
Todos os autores de referência de manuais de roteiro e storytelling aqui citados são homens: Joseph Campbell, Christopher Vogler, Robert Mckee. E todos com acesso e condições para tornarem-se mestres e até mesmo gênios. Virgínia Wolf no livro Um Teto Todo Seu (2014) exemplifica didaticamente o porquê de nossos mestres, na maioria das vezes, serem do sexo masculino. Tanto para escrever manuais ou histórias de ficção, homens e mulheres geralmente não possuem as mesmas alternativas e/ou oportunidades.
Ela diz: “Tudo o que poderia fazer seria oferecer lhes uma opinião acerca de
um aspecto insignificante: a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção” (WOOLF, 2014, p. 8).
Ela ainda adverte:
Sempre haverá interrupções. Isso quer dizer que a campainha irá tocar, o bebê vai chorar, a panela no fogo irá ferver. “A liberdade intelectual depende de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual” (WOOLF, 2014, p. 131).
Alguém precisa limpar a casa, fazer comida, levar as crianças para a escola. A mulher tem essas responsabilidades, enquanto o homem-gênio pode se trancar em seu escritório sem ser incomodado. Mesmo hoje, com muito direitos conquistados e maior acesso a informação, a mulher ainda se vê sobrecarregada pela vida doméstica. Pois a busca pelo direito de igualdade não assegura dividir as responsabilidades do lar para o qual todos usufruem. Ela ainda é uma auxiliar. Wolf nesse mesmo livro ressalta sobre o professor X, personagem de sua história:
“Ele adverte as mulheres de que ‘quando as crianças deixam de ser inteiramente desejáveis, as mulheres deixam de ser inteiramente necessárias’. Espero que vocês tomem nota disso” (WOOLF, 2014, p. 136).
Psicoterapeuta com orientação Junguiana, Murdock recorre a histórias extraídas de seu trabalho, assim o livro “A jornada da heroína” é narrado na primeira pessoa, onde a própria autora se inclui e reconhece sua própria jornada. Mesmo que não haja um padrão que se aplique a todas as mulheres, há uma compreensão da vida como mulher. O modelo que apresento aqui não se aplica necessariamente à experiência de todas as mulheres de todas as idades e tampouco se limita a elas. Ele aborda a jornada de ambos os gêneros, descrevendo a experiência de muitas pessoas que se esforçam para se manter ativas e oferecer uma contribuição ao mundo, mas que temem o que nossa sociedade voltada para o progresso vem causando à psiquê humana e ao equilíbrio ecológico do planeta. (MURDOCK, 2002, p. 24) Histórias com personagens femininas que vivem a jornada do herói plenamente e ignorando a jornada da heroína, tendem a ter mulheres muito masculinas, visto que seus valores ainda estão sistematizados no yang. São histórias pautadas na validação exterior, e na vida real, a mulher em algum momento se depara com esse vazio de ter caído numa propaganda enganosa.
“Aprenderam a ser bem-sucedidas de acordo com o modelo masculino, porém esse modelo não consegue satisfazer a necessidade de ser uma pessoa inteira”. (MURDOCK, 2022, p. 27).
Visto que Vogler vê a jornada do herói como uma compilação de instruções para a vida, Murdock chama o seu livro de “a busca da mulher para se reconectar com o feminino”. Essa busca é algo constante, os movimentos ao longo das etapas da jornada da heroína é cíclico e a pessoa pode estar em mais de uma etapa ao mesmo tempo. A jornada da heroína é um ciclo contínuo de desenvolvimento, crescimento e aprendizado. É também uma alternativa à jornada do herói. Meu desejo de compreender como a jornada da mulher se relacionava com a jornada do herói me levou primeiro a conversar com Joseph Campbell em 1981. Eu sabia que as etapas da jornada da heroína incorporavam aspectos da jornada do
herói, porém sentia que o foco do desenvolvimento espiritual feminino era sanar a divisão interna entre a mulher e a sua natureza feminina. Eu queria saber a opinião de Campbell a esse respeito. Fiquei surpresa quando ele me respondeu que as mulheres não precisavam realizar a jornada: “Em toda a tradição mitológica, a mulher já está lá. Tudo o que ela tem que fazer é entender que ela já é o lugar que as pessoas estão tentando alcançar. Quando uma mulher entende qual é o seu caráter maravilhoso, ela não se deixa confundir com a ideia de ser um pseudohomem”. (MURDOCK, 2022, p. 22)
São as etapas da jornada da heroína:
1. Separação do Feminino, em que a heroína inicia sua jornada buscando reconhecimento e sucesso em uma cultura patriarcal, definida por aspectos masculinos exacerbados. Começa a se distanciar de tudo que é considerado feminino, podendo se afastar até da mãe, que será uma representação de tudo que a heroína odeia em sua feminilidade. 2. Identificação com o masculino: a heroína encontra seu mentor, alguém que ela admira e que irá ajudá-la dando suporte, transmitindo valores, atitudes, conhecimento e encorajando-a nos momentos difíceis. Pode ser qualquer homem ou uma mulher com aspectos masculinos bem definidos. Então, depois que se afastou do feminino, a mulher passa a se identificar com os valores masculinos. Portanto, ela pode se aproximar do pai, que será uma representação da liberdade da mãe. 3. A Estrada das Provações. Assim como na Jornada do Herói, a mulher enfrenta obstáculos que levam ao seu desenvolvimento. Por isso, essas tarefas estarão relacionadas a obter sucesso. Mas, diferentemente do modelo de Campbell, a heroína também luta com conflitos internos, como noções de dependência, amor e inferioridade. 4. Encontrando o Apogeu do sucesso, nesta fase a heroína finalmente conquista tudo o que desejava (que pode ser fama, sucesso no meio acadêmico ou financeiro, roupas, bens materiais, popularidade ou até mesmo um par romântico, seu idealizado “príncipe encantado”). Apesar de ter tudo o que sempre quis, ela sente um profundo vazio. Ou seja, logo depois de superar os obstáculos e
experimentar o sucesso, a heroína perceberá que traiu seus próprios valores para atingir o objetivo. Por isso, se sentirá em conflito e limitada na nova vida. 5. Aridez Espiritual, ela não se reconhece mais, tem um sentimento constante de ter se perdido em sua luta pela conquista. A heroína perde sua vivacidade e se afunda na tristeza a cada instante. 6. Iniciação e Descida para a Deusa, a heroína passa por um período de introspecção, conhecido também como depressão, no qual ela começa a procurar pelas partes perdidas de si mesma. Posteriormente a crise de identidade, essa mulher deve se reconciliar com seu lado feminino. Ou seja, a heroína se encontra com uma figura de deusa, que representa todos os valores positivos que ela deixou para trás. 7. Anseio Urgente de Reconexão com o Feminino, na busca de reconectar-se com o poder feminino e sem instruções para alcançá-lo numa sociedade patriarcal, a heroína deixa sua intuição guiá-la para práticas artísticas, meditativas, artesanais e/ou de religiões matriarcais. Então, neste estágio da jornada da heroína, a mulher busca recuperar uma conexão com o sagrado feminino para entender melhor sua própria psique. Ela pode tentar reacender um vínculo com a mãe e passa a ver seus valores antigos sob uma perspectiva diferente. 8. Curando o Rompimento entre Mãe e Filha, a heroína cura suas feridas anteriores, se dissipa do rancor, perdoa (ou busca perdão) e então recupera os laços femininos que possuía antes de iniciar a primeira etapa da jornada. Apesar do nome desta etapa, o laço não é necessariamente com a mãe, pode ser também com pai, avó (ô), tia(o) , amiga(o) ou um responsável. O laço representa a comunidade que ela pertence. 9. Curar o Masculino Ferido, ela enxerga o machismo feminino e entende que o homem também vem sendo oprimido na sociedade patriarcal. Depois da primeira reconciliação, a heroína deve olhar para dentro e compreender a parte masculina de sua identidade. Ela vai reconhecer que existem pontos positivos e negativos deste aspecto. 10. Integração do Masculino com o Feminino, finalmente, na última fase da jornada, a mulher encontra o equilíbrio entre o seu masculino e feminino interior. É um momento de reconhecimento, uma lembrança daquilo que, no fundo, ela sempre conheceu: sua essência. A heroína aprende a integrar e equilibrar todos os aspectos