C&D Constituição & Democracia Nº 5 (Junho de 2006) O QUE O POVO DEVE FAZER PARA LEGISLAR

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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JUNHO DE 2006

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Os desafios da campanha: "Quem não deve não teme" ção tem grande potencial emancipatório se a consideramos na sua dimensão capacitante, o que se tem chamado de empoderamento dos cidadãos e grupos. Do mesmo modo temos que as contas públicas são, em verdade, o orçamento público que foi efetivamente executado; logo a fiscalização possibilita uma leitura política dos gastos e revela as prioridades do gestor, desmascarando discursos vazios do marketing político. Vemos ainda que a fiscalização e divulgação ampla dos dados mesmo que posteriormente podem vir a influenciar na redistribuição de recursos servindo também de efeito pedagógico para o gestor público que deve se acostumar com a prática da fiscalização (e assim com o combate ao desvio de recursos públicos) e avaliação (e assim com combate o mau uso do recurso público) pela sociedade civil. Sendo assim, a Campanha propõe, combatendo a pobreza política combater também a material, além de buscar mudar a cultura política do clientelismo e da compra de votos na Bahia, pois o cidadão bem informado faz o julgamento político nas urnas. A iniciativa esteve voltada diretamente para o exercício do direito de acesso às contas públicas pelo(a) cidadão(ã) - garantido pelo artigo 31 § 3ºº da Constituição Federal de 1988 -, alcançou mais de 100 municípios, através de uma extensa rede de parceria e articulação entre entidades da sociedade civil e movimentos sociais.

Sara Côrtes e Juliana Neves Barros

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omo vemos ao redor a democracia não concretizou o seu potencial de realização de justiça social. Apesar disso, reforçamos aqui a posição de Boaventura Santos que aposta na democracia: “Eu, que vivi durante alguns anos em período de fascismo, nunca critico a democracia por ser uma fraude, critico por ser pouca. Eu quero é mais.” Pretendemos neste texto dar notícia da constituição de um novo tipo de movimento social denominado de “movimento cidadão”, composto dos chamados movimentos populares, organizações voluntárias, sejam Ongs ou grupos de mútua ajuda ou associativismo de bairro e comunitários, que reivindicam o controle social do Estado. Importante afirmar na linha do Direito Achado na Rua que nosso interesse aqui gira menos em torno das formas de direito e mais nas práticas jurídicas do Estado e da sociedade civil no que tange a transparência e responsabilização, partindo da hipótese central, qual seja, do controle social como estratégia eficaz para estimular a emancipação social e qualificar a democracia participativa. Neste contexto se insere a experiência da campanha de articulação e mobilização para democratização do acesso às contas públicas municipais na Bahia denominada de Campanha “Quem Não Deve Não Teme” que acaba de entrar no seu segundo ano e de ganhar o Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2006 concedido pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), na categoria Ações e Experiências. O prêmio foi entregue dia 06 de abril, durante a abertura, na Câmara, do 14º Encontro Nacional do MNDH, uma organização com 400 entidades filiadas, que conta com o apoio da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. A Campanha é uma iniciativa da

AATR - Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, Cáritas Brasileira/Regional Nordeste 3, CAA - Centro de Assessoria do Assuruá, ESPASSO - Espaço de Participação Social, FASE/Bahia - Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional na Bahia e MOC – Movimento de Organização Comunitária, todas organizações não-governamentais que atuam em diferentes regiões do Estado da Bahia

na área de Políticas Públicas e Controle Social do Poder Público, com apoio da CESE - Coordenadoria Ecumênica de Serviço, Ministério Público do Estado da Bahia, Controladoria Geral da União e Associação Bahiana de Imprensa. Esta experiência tem como fundamento principal o enfrentamento da pobreza política e material através da formação política/capacitação e redistribuição de riqueza. A fiscaliza-

A premiada Campanha "Quem Não Deve Não Teme" busca a democratização do acesso às contas públicas municipais na Bahia

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PCC: movimento social ou organização criminosa? José Geraldo de Sousa Junior e Cristiano Paixão

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o desenrolar dos acontecimentos recentes de São Paulo, as primeiras reações se dividiram entre a perplexidade e as respostas habituais nas situações de crise no sistema criminal-penitenciário. A recuperação das matérias jornalísticas do período revela a descrição do cenário espetacular de “barbárie”, “pânico”, “anormalidade”, “ataques”, “rebeliões”, “medo”, “execuções”, “atentados”, “caos” e “incompetência”, que estimula as respostas simplistas de incremento da lei e da ordem e suas alternativas repressivas. E é na esteira desse modelo de reação que surgem os primeiros “pacotes” legislativos, sob a forma de projetos de lei e de propostas de emenda à Constituição, todos em variante criminalizadora. Foram apresentados ou já tramitavam, somente no Senado, vários projetos que formam um amplo catálogo de medidas punitivas ou restritivas: alteração do Código de Processo Penal para disciplinar a reparação de danos decorrente da prática de infração penal; alteração do Código Penal para aumentar o limite de cumprimento de penas privativas de liberdade; alteração do Código Penal para aumentar prazos prescricionais; alteração da legislação de execução penal para criar regime penitenciário de segurança máxima, instalar bloqueadores de celulares, instituir inteligência penitenciária, implantação de presídios federais, deslocamento de presos entre unidades da federação. Há projetos que prevêem a indisponibilidade de bens de criminosos; que estipulam ser falta grave a posse e utilização de telefones celulares ou outros equipamentos de comunicação por presos no interior de estabelecimentos penais, com a previsão de isolamento do faltoso; propõe-se que o juiz possa interrogar o réu ou inquirir detentos na condição de testemunha por meio de videoconferência; procura-

se instituir a “delação premiada” também para o condenado, com a possibilidade de redução de pena; requer-se a extinção da possibilidade do livramento condicional ao condenado reincidente em crime punido com reclusão. Entre as propostas de emendas à Constituição, há as que postulam reestruturar órgãos de segurança pública; tornar obrigatória a aplicação de recursos na área de segurança pública; dispor sobre a aplicação da receita resultante de impostos, para a organização e manutenção dos órgãos de segurança pública. Porém, entre várias alternativas, também aparecem as que chamam a questão da segurança para o campo de revisão de seus paradigmas numa sociedade democrática, desmilitarizada e que aceite discutir a passagem de um sistema repressivo para um modelo restitutivo de juridicidade. É preciso agir não só no campo criminal, mas também no campo social. Cabe, antes de tudo, lançar a discussão acerca da comunicação que teria sido estabelecida entre as forças de segurança do Estado e o comando do PCC. Uma conceituada revista de circulação mensal lançou edição extra com matérias que dariam sustentação ao reconhecimento de caráter político à construção do PCC, designando uma história externa de confronto com o estado por melhores condições carcerárias e uma história interna cheia de vítimas na luta pelo poder. Este tipo de interpretação abre ensejo para por em relevo um aspecto pouco analisado a partir dos acontecimentos. Teria o governo negociado com o PCC? Há na política espaço ético para negociar com facção criminosa? A mesma revista publicou um estatuto atribuído à organização, que é arrematado com um claro apelo político: “Conhecemos a nossa força e a força de nossos inimigos. Poderosos, mas estamos preparados, unidos e um povo unido jamais será vencido. LI-

BERDADE, JUSTIÇA E PAZ!!!”. Aliás, essas inscrições apareceram em cartazes toscos em várias cenas captadas por jornais e televisões. Antes que se possa responder à questão colocada com base na determinação teórica da legitimidade política de uma facção criminosa, um olhar ficcional sobre o mesmo tema pode abrir perspectivas inesperadas. Notícias sobre negociação Em seu último livro, no qual leva ao limite as circunstâncias que derivam das intermitências da morte, o prêmio Nobel José Saramago trabalha a situação difícil na qual um governo, numa ficção narrativa, põe em causa ter que negociar com facção criminosa. Deparando-se com a possibilidade de abrir interlocução com emissários de associação de delinqüentes, o Estado, que “não faz acordos com máfias”, pelo menos não “em papéis com assinaturas reconhecidas por notário”, se vê na contingência de estabelecer acordo de cavalheiros, para ceder sem que pareça ter cedido, até chegar ao ponto inexorável de não poder oferecer alternativas credíveis e ser forçado a avançar num terreno moralmente cedível, diz Saramago, quando o pragmatismo toma conta da batuta e dirige o concerto sem atender ao que está escrito na pauta. Nesta situação, avalia o escritor, o mais certo é que a lógica imperativa do aviltamento venha a demonstrar, afinal, que há ainda degraus éticos a descer. O Estado declarou não fazer acordo com bandidos. Pelo menos não

com formalidade legal ou com registros notariais. Mas, segundo noticiou a imprensa, uma plataforma conciliatória foi estabelecida para estancar a crise e reposicionar as partes em conflito: a hierarquia gerencial do aparato governamental e a facção criminosa. Tudo isso à custa de uma contabilidade macabra erguida como fachada para que o que aconteceu por trás dela se desobjetive numa responsabilidade difusa. A ficção parece antecipar aquilo que a teoria tenta explicar. A legitimidade de interlocução que atribuiu aos movimentos sociais um protagonismo apto a postular direitos e a designá-los politicamente pressupõe mais que a organização e a revolta. Ela pressupõe um sentido emancipatório para a ação. Pressupõe, para aludir ao que indica Boaventura de Sousa Santos – o autor sempre presente na página 24 de Constituição & Democracia –, uma disposição solidária para romper o círculo egoísta do fascismo social e uma determinação para ingressar num campo experimental de novo estatuto comunitário no qual os direitos possam se realizar, não como apropriação possessiva, mas como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade. Uma facção criminosa não é um movimento social. Porém, é fundamental afirmar: pertencendo ou não a organizações criminosas, os presos, em sua condição de exclusão, conservam uma reserva inalienável de cidadania, que deve encontrar formas de reconhecimento e de exercício.


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