C&D Constituição & Democracia Nº 8 (Outubro de 2006) ARTE E DIREITO

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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | OUTUBRO DE 2006

A Amazônia

Nº 8 OUTUBRO DE 2006

R$ 2,00

C&D Constituição & Democracia

Boaventura de Sousa Santos

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screvo à beira do rio Negro, no coração da Amazónia, não muito longe do “encontro das águas”, onde os rios Negro e Solimões se juntam para formarem o Rio Amazonas. Perante a grandeza do que vejo e sinto, concentro-me na mais minúscula versão de mim para escrever à beira do esmagamento pessoal. São, de facto, muitas as Amazónias a pesar em mim e todas elas esmagadoras. Intrigantemente algumas delas são tão esmagadoras quanto frágeis. A Amazónia física: a maior reserva de água doce, de biodiversidade, de riqueza mineral e de madeira do mundo. É uma Amazónia ameaçada pela extracção desordenada dos minérios e da madeira e pelo desmatamento e queimadas ao serviço da expansão da fronteira agrícola, nos últimos anos centrada na monocultura da soja. Os danos ambientais causados pela soja – desertificação, assoreamento dos rios e poluição das águas pelos agrotóxicos e resíduos de adubos químicos – são incalculáveis para a humanidade no seu todo. A fiscalização ambiental é deficientíssima e a punição dos infractores da legislação só em 2005 ganhou alguma credibilidade. A Amazónia mítica é a Amazónia do imaginário das populações ribeirinhas, das cidades encantadas por serpentes - como Abaetetuba, tão brilhantemente descrita pelo grande poeta João de Paes Loureiro - e das mulheres engravidadas pelo bôto, espécie de golfinho que percorre os rios loucamente atraído por mulheres menstruadas. Há também a Amazónia histórica do Museu do Seringal da Vila Paraíso assente numa reconstrução fidelíssima baseada na Selva de Ferreira de Castro. Aí se detalha a engrenagem da escravidão por dívida dos seringueiros, hoje reproduzida sob outras formas igualmente infames, nomea-

damente no Estado do Pará. A Amazónia epistemológica é a Amazónia dos conhecimentos ancestrais, da medicina à alimentação, da astronomia à construção naval, das floras e das faunas das realidades chãs e das encantarias. É uma sabedoria tão profunda e corrente quanto a correnteza dos rios. E há finalmente a Amazónia social, económica e política. É a Amazónia dos conflitos agrários e da violência, envolvendo comunidades ribeirinhas e indígenas, latifundiários, grileiros (invasores de terras públicas), políticos conservadores, empresários do sector pesqueiro, madeireiros, empresas de mineração, etc. Como assinala o sociólogo

Luís António de Sousa, trata-se de conflitos decorrentes do modelo clássico de ocupação do solo rural brasileiro: grilagem violência assassinatos concentração fundiária pauperização impunidade grilagem. Foi às mãos desse modelo que morreu Gedeão Silva, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Sul da Lábrea, emboscado e assassinado em 26 de Fevereiro de 2006. Teve a mesma sorte que os 1399 trabalhadores rurais assassinados entre 1985 e 2004 segundo os cálculos da Comissão Pastoral da Terra. A medida da impunidades está em que apenas 7% desses crimes foram levados a julgamento. Um dos mais hediondos foi o mas-

sacre de Eldorado dos Carajás, há precisamente 10 anos, quando três mil trabalhadores rurais sem terra protestavam pela desapropriação da Fazenda Macaxeira. É possível que o governador do Pará que ordenou o massacre volte a ganhar as eleições para governador no próximo mês de Outubro. A mais sombria de todas as Amazónias é a Amazónia militar. Trata-se de um plano norte-americano com a serviçal lealdade das Forças Armadas da Colômbia (Plano Colômbia), Equador, Perú e Brasil para proteger (de quem?) as riquezas da Amazónia. Não me surpreenderia se dentro de algumas décadas o Médio Oriente se mudasse para aqui.

OS NOVOS CAMINHOS DA ARTE E DO DIREITO


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EDITORIAL

UMA VIDA SEM DIREITOS Paulo Henrique Blair de Oliveira – Juiz do Trabalho, mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito

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Observatório da Constituição e da Democracia

O DIREITO COMO OBRA LITERÁRIA Bistra Stefanova Apostolova – Professora da UnB e do UniCEUB

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Surrealismo Jurídico, Arte e Direito: novos caminhos Marta Gama – Mestranda em Direito e Sociedade pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Direito e Arte, do programa de pós-graduação em Direito da UnB

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CIÊNCIA DO DIREITO OU MITOLOGIA JURÍDICA? Alexandre Araújo Costa – Mestre e doutorando em Direito pela UnB, advogado e pesquisador do Instituto Pensamento Social – IPS

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ROBERTO LYRA FILHO: O JURISTA E O ARTISTA Adriana Miranda – Mestranda em Direito pela UnB, integrante dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua e Sociedade, Tempo e Direito Mariana Veras – Mestranda em Direito pela UnB, integrante dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua e Direito e Arte

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as diretrizes estabelecidas para o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), para a área de Direito, contidas na Portaria INEP nº 125, de 2006, que será aplicado no final deste ano, manteve-se o objetivo já experimentado no modelo anterior do chamado “Provão” de avaliar, para além dos conteúdos de qualificação técnica, também as habilidades e competências que os alunos devem desenvolver, no seu processo de formação, necessárias para uma boa educação jurídica. Dentre as habilidades e competências descritas nessas diretrizes, ganham relevo as que se referem à utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica e sensível, bem como capacidade metafórica e analógica (letra f, art. 6º). Está claro que este modelo indutor de avaliação não se volta apenas para forjar um perfil artístico para o jurista, nem somente de o investir de uma disposição sensível para que saiba se colocar no lugar do outro quando tenha que exercer a condição de julgamento. Ele denota igualmente uma orientação de base epistemológica, apta a descortinar possibilidades cognitivas decorrentes da integração de diferentes modos de conhecer constituídos na experiência artística, científica, filosófica ou mística. Dessas experiências trata esta edição de Constituição & Democracia. A entrevista do Professor Luis Alberto Warat mostra como Direito e Arte podem amplificar as formas de interpelação do novo e de apreensão do real. Seguindo a orientação do notável pensador, o texto de Marta Gama trabalha a conexão entre Direito e Arte pela mediação do Surrealismo para indicar perspectivas emancipatórias para o jurídico. Guardando também relação com esta influência, o Professor Alexandre Araújo Costa, entretanto com um viés de questionamento paradigmático, põe em confronto as abordagens da Ciência e da Arte no texto Ciência do Direito ou Mitologia Jurídica. Por sua vez, a Professora Bistra Stefanova, dando continuidade a estudos anteriores, aborda o direito como obra literária para sugerir o caráter criador do imaginário jurídico. Algo, diga-se, que já foi trabalhado na própria UnB, por um dos fundadores da sua Faculdade de Direito, firme no entendimento de que a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de um outro discurso. Isso fica assinalado no texto de Adriana Miranda e de Mariana Veras (Roberto Lyra Filho: o jurista e o artista), com o qual as autoras homenageiam o notável professor da UnB como registro de 20 anos de sua morte. Ainda no conjunto temático que forma a edição, os textos de Paulo Blair (Uma Vida sem Direitos) e de Henrique Smidt Simon (Rock’n roll, direito e modernidade). Completam a edição os textos dos Observatórios do Ministério Público, do Legislativo, do Judiciário e dos Movimentos Sociais, o artigo livre do Prof. Virgílio de Mattos (Tem saída! – Louco infrator: a reforma psiquiátrica construindo saídas) e a coluna mensal do Professor Boaventura de Sousa Santos, com um instigante artigo A Amazônia. O que está em causa, portanto, com os temas desta edição de Constituição & Democracia, é armar a disposição ativa do jurista para abrir-se a outros modos de compreender o Direito e as normas jurídicas.

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EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB - Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Comissão de redação Adriana Miranda Giovanna Maria Frisso Janaina Lima Penalva da Silva Leonardo Augusto Andrade Barbosa Marthius Sávio Cavalcante Lobato Paulo Henrique Blair de Oliveira Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Alexandre Araújo Costa Aline Lisboa Naves Guimarães André Rufino do Vale Carolina Pinheiro Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniel Barcelos Vargas Fabio Costa Sá e Silva

Francisco Schertel Ferreira Mendes Guilherme Cintra Guimarães Guilherme Scotti Henrique Smidt Simon Jan Yuri Amorim Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliano Zaiden Benvindo Laura Schertel Ferreira Mendes Lúcia Maria Brito de Oliveira Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marcelo Casseb Continentino Maurício Azevedo Araújo Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´anna Renato Bigliazzi Rochelle Pastana Ribeiro Vitor Pinto Chaves

Contato observatorio@unb.br www.unb.br/fd

Sindicato dos Bancários de Brasília

Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS) Editor assistente Rozane Oliveira Diagramação Gustavo Di Angellis Ilustrações Flávio Macedo Fernandes

SindPD-DF

ENTREVISTA com o professor Luís Alberto Warat ARTE E DIREITO COMEÇAM A VIRAR A PÁGINA Marta Gama – Mestranda em Direito e Sociedade pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Direito e Arte, do programa de pós-graduação em Direito da UnB

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ROCK, O DIREITO E O MODERNO Henrique Smidt Simon – Mestre em Direito e Estado pela UnB, professor do IESB e do UniCEUB, advogado

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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO STRIPTEASE NO JUDICIÁRIO Pedro Teixeira Diamantino – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB e advogado

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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO O DIREITO AUTORAL E A LIVRE INFORMAÇÃO Paulo Rená da Silva Santarém – Bacharel em Direito pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Rodrigo Lobo Canalli – Bacharel em Direito pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Pensamento Social

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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS LOUCOS ARTISTAS OU ARTISTAS LOUCOS Janaína L. Penalva da Silva – Mestranda em Direito e Estado na Universidade de Brasília-UnB

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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E OMISSÃO DO ESTADO Nicolao Dino C.Costa Neto – Procurador Regional da República, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; professor na UnB

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TEM SAÍDA! - LOUCO INFRATOR: SOLUÇÕES DA REFORMA PSIQUIÁTRICA Virgílio de Mattos – Professor de Criminologia na Escola Superior Dom Helder Câmara (BH), onde coordena o Grupo de Estudos sobre Violência, Criminalidade e Direitos Humanos. Editor da revista Veredas do Direito, do Programa Pólos de Cidadania, da UFMG. Mestre pela UFMG e doutor em Direito pela Universidade de Lecce, IT

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A AMAZÓNIA Boaventura de Sousa Santos – Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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Loucura e direito: ação sem saída ? Louco por quê? Quem irá dizer a loucura, a imantar exclusão e “tratamento”, até que venha a cura, sabidamente impossível a priori? “Loucura é ausência de obra”, dizia Foucault. A obra do louco é o estorvo. O saber desses dizeres passa pela idéia de controle total. Os loucos que eram mantidos sob o cuidado familiar, são notados apenas quando passam a estorvar a precária produção doméstica de sobrevivência. Milhares os Pierre Rivière que não foram, obviamente, retirados da poeira do esquecimento dos arquivos. Mas o aparecimento de seu enigmático caso pela equipe de Foucault faz pensar numa coisa: desde então a junção da loucura com o direito é uma ação sem saída. Onde só saem mortos, o que não deixa de ser uma ausência de saída. Paradoxalmente é curiosa a última perícia realizada por L. Vastel em Pierre Rivière, em 25/10/1835: “se ele não é culpado, é no mínimo perigoso, e deve ser isolado em seu próprio interesse e sobretudo no da sociedade”. Mas era preciso dar conta dessa criminalidade, era preciso prever, classificar, contar e conter o perigo. Re-formar? Aqui, em Minas, há exemplo claro de que, mesmo saindo, não saem. Se a saída é a existência do exame de cessação de periculosidade, se o poderoso laissez-passer é conseguido, nem assim existe garantia de que o portador de sofrimento mental, que cometeu fato definido como crime e é internado, poderá sair. Para o portador de sofrimento mental que comete algum ato que a lei considera como crime, muita vez uma violência praticada contra familiares próximos, já semeia o medo pânico nos demais de que viessem os loucos infratores, quando soltos, a cometer qualquer outro ato violento; perpassando, esse medo, pela vizinhança e pela localidade onde cometido o crime. Haveria uma espécie de “sem controle” por perto, acendem-se todos os sinais de “alarme social”. Re-formar pode ser apenas reconstituir a antiga forma de alguma coisa. Pode ser, no entanto, dar forma nova, corrigir, emendar. A corre-

ção, no sentido duplo que enxergo na “Reforma psiquiátrica”, não é só de rumo e modelo, é também a de enterrar o modelo hospitalocêntrico de controle; é substituir a segregação pela atenção, o descaso pela atenção continuada, é dar enfim, a transformação de raiz - e a raiz do homem é o próprio homem! - que os séculos de modelo hospitalocêntrico não conseguiram. Veja-se a organização da contra-reforma. Têm recursos e espaços amplos, agentes políticos, assessorias. A saída é pela porta É fundamental que tenhamos sempre viva a advertência de Basaglia, sobre a impossibilidade de convivência do modelo substitutivo com a atuação do modelo manicomial, ao mesmo tempo. Temos em Belo Horizonte, funcionando desde 2001, a porta de saída do sistema prisional/hospitalocêntrico que é o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário, idealizado, construído e gerido por Fernanda Otoni de Barros. Formalmente criado por Portaria Conjunta da Presidência e Corregedoria do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com apoio de centro universitário privado e suporte de várias entidades, o programa conseguiu tornar possível a “responsabilização” do próprio “paciente” que cometeu conduta definida como crime. Não vale dizer que não há lei. Porque temos leis demais, genéricas, específicas, “boas”, “más” - como se as leis nesse país sempre sem rei, fossem personagens de novelas, que o caldo de cultura de classe-média e o lumpem acham “uma gracinha”. Temos lei específica, exatamente a 10.216/01, sobre o tema e que vem sendo reiteradamente ignorada pelos próprios operadores do direito. Mas mesmo que não tivéssemos lei alguma, temos a Constituição Federal, que em seu artigo 1º, estabelece que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (inciso III). Entre o manicômio e a atenção especializada, em equipamento criado pelo próprio Judiciário, entendemos que além de inconstitucional, a internação em chamado hospital de

custódia e tratamento psiquiátrico, hoje, em Minas Gerais, viola a própria Portaria Conjunta n. 25/2001, da Corregedoria e Presidência do Tribunal de Justiça do Estado. Não só norma constitucional, como lei federal, lei estadual (a chamada Lei Carlão - Lei Estadual/MG n. 11.802, de 18/01/1995) e Portaria que tem força de “lei” internamente - , já existem. Se não falta lei, falta vontade política. Vontade política se constrói com organização e luta. Isso nós temos de sobra, falta o quê? Conclusão A “periculosidade”, que vai lastrear a imposição de medida de segurança para o inimputável por sofrimento mental, é conceito do final de século XIX. A sciencia que encarcera o louco infrator é baseada no preconceito, na intolerância, no biologismo ultrapassado. A periculosidade é conceito indefinível, quase oracular, impregnado de condições a priori,sem possibilidade de mensuração. Produz resposta padronizada a comportamento padronizado de crise, fato definido como crime e reclusão para sempre no espaço manicomial/prisional. Impossível entender como “natural”, quer seja direito, quer seja delito, toda e qualquer ação de segregação em uma sociedade de alta complexidade. A segregação do portador de sofrimento mental, via medida de segurança, não tem mais qualquer possibilidade de ser aplicada, pelos motivos anteriormente expostos, em Minas, mas não só. Também no DF, no Espírito Santo, Ceará, Paraná,

Pernambuco, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul e nos estados onde não exista ainda legislação específica, a aplicação imediata da lei, com a acolhida do louco infrator nos moldes do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário PAI-PJ. Ao encaminharmos a extinção das medidas de segurança e dos manicômios judiciários, propomos uma responsabilização que possa levar o portador de sofrimento ou transtorno mental que comete crime ao julgamento de seus atos, significando que deverão ser-lhe garantidos todos os direitos, previstos nas normas penais e processuais penais, até então sonegados. Todos os cidadãos devem ser considerados imputáveis, com todas as garantias atinentes. Direito ao processo como reconstrução dos eventos que nele culminaram. Direito ao contraditório e à ampla defesa. Em havendo condenação, imposição de pena com limites fixos - dentro dos intervalos de mínimo e máximo previstos, possibilitando-se a detração, a progressão de regime, o livramento condicional, e, em sendo o caso, a transação penal, a suspensão condicional do processo e a extinção da punibilidade, pela prescrição. É preciso ampliar as possibilidades de atenção e cuidado substitutivos ao modelo manicomial. Porque quando possuem laudo de cessação de periculosidade, mas não amparo familiar ou de serviços substitutivos, os portadores são remanejados e permanecem inseridos na mesma lógica. Sempre para sempre.


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Uma vida sem direitos Paulo Henrique Blair de Oliveira

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Tem saída! Louco infrator: soluções da reforma psiquiátrica Virgílio de Mattos

Sob o nome de “A Reforma Psiquiátrica que queremos: Por uma Clínica Antimanicomial”, no campus da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, nos dias 13 a 16 de julho último, vivemos alucinantes 36 horas de produção de saídas para um problema onde só encontrávamos mais incógnitas: o portador de sofrimento mental. Se a atenção e o cuidado ao portador de sofrimento ou transtorno mental parecem uma tarefa grandiosa, o trato com o louco infrator fica ainda carente de espaço de discussão ampliada na sociedade. Este é um bom momento para anotarmos algumas impressões aqui no Constituição & Democracia. É que, numa das mesas temáticas, juntamente com José Geraldo de Souza Junior e Fernanda Otoni de

Barros, tivemos oportunidade de discutir a questão do louco infrator e as saídas construídas pela reforma psiquiátrica. Os portadores de sofrimento mental infratores, conforme preferimos chamá-los, ou loucos infratores, como são mais conhecidos, são sempre os mesmos alvos: os pobres de todo o gênero. Os sem pai, os sem nome, os sem pátria, os sem lei e os sem rei, os sem religião, os sem freios à sexualidade, os sem nada; seja teto ou terra, seja pão ou trabalho. Bem verdade que alguns poderosos, sejam aprendizes ou filhotes, desviam e deslizam para o controle especial do controle total que é a segregação imposta pela medida de segurança penal. Mas são raros. A entrada cobra-lhes o preço da razão. No final do século XIX, Karl Stoos irá descobrir a pólvora do “tratamento” - leiam contenção - daquele que,

além de louco, infringe a norma. Infringir é também violar. O pacto, o trato, o contrato social de bem viver em coletividade que o louco não pode perceber e, se não pode perceber, não pode respeitar. Se não pode respeitar, deve ser “contido” de outra forma. Não tem ação pelo livre-arbítrio indispensável pela Escola Clássica. Se não tem escolha, não pratica algo possível de vir a ser apenado. Deve haver uma medida de segurança, entretanto, para e por ele mesmo. Com ele. Contra ele. Para proteção dos que estão próximos e também para acautelar que seja mantido o pacto, o trato, o contrato, mesmo entre os que dele não podem participar por terem alguma perturbação na sua capacidade de querer e de entender. Embuste ou burla das etiquetas: sob o pretexto de resguardar, a verdadeira insânia do duplo trilho, ou doppio binario: pena + medida de segu-

rança por um mesmo fato que o legislador penal vai dizer que é crime. Continua a ilegalidade da lei: ao fingir que trata, na verdade pune. Segregando, pensa estar imune. Pobre lei que nem sequer consegue fazer nascer lírios... Pune de forma pior do que a punição reservada ao não portador de sofrimento mental. Não há possibilidade de “cumprir” a medida de segurança, com um limite definido ou definível entre mínimo e máximo. Com possibilidade de acessos legais à liberdade condicional, ou progressão de regime de cumprimento, para dizermos o mínimo. Aliás, é ponto pacífico que as medidas de segurança não foram recepcionadas pela Constituição da República de 1988. Para o louco, embora se diga que lhe foram ofertadas “garantias”, na prática elas garantem o quê? Só conseguimos enxergar exclusão. Para sempre.

ill Eisner foi o mais importante nome da arte dos quadrinhos. Foi criador de um personagem que marcou época entre os anos de 1930 e 1950, o Spirit. Mas sua importância é descrita melhor pelo fato de que, após a sua obra, as “histórias em quadrinhos” foram reconhecidas como forma de arte, a arte seqüencial ou “nona arte”. Na maturidade artística, ao final da década de 1970, Eisner foi o primeiro a conceber um álbum tão profundo e tão próximo da literatura que a expressão “romance gráfico” foi criada para definir, daí em diante, obras daquele porte. Estes exemplos já explicam por que o mais prestigioso prêmio mundial nesta forma de arte seja chamado “Prêmio Eisner”. Como freqüentemente ocorre, a maturidade artística de Eisner iniciou-se quando ele fez de sua arte a crítica às experiências mais dolorosas de sua vida. Tendo servido no exército norte-americano entre 1942 e 1945 (como repórter de uma publicação oficial do exército), Eisner continuou a colaborar com as forças armadas norte-americanas até 1972, em publicações utilizadas para fins oficiais. Nesta condição, esteve em inúmeras bases militares e cidades, travando contato pessoal com os envolvidos diretamente no conflito do Vietnam. Este conflito o marcou tão fortemente que, na segunda metade da década de 1970, Eisner produziu cinco histórias pequenas, porém muito impactantes sobre ele. Eisner convidou seus leitores a passarem um dia no conflito do Vietnam, e o fez com uma sobriedade e um poder crítico realmente poéticos. Em seus textos e imagens, somos inseridos nos fatos como observadores e participantes. Eisner sabia que não é possível observar sem intervir. Sua crítica ao conflito armado nunca foi feita por obviedades ou apelos a cenas banhadas de sangue. Eisner tornou o horror da guerra muito mais presente ao abrir janelas para vidas encarceradas no conflito. Em uma história descreveu a embriaguez silenciosa de um homem

comum que, em um bar, escuta o relato casual e distante de repórteres sobre um episódio da guerra no dia anterior - incidente no qual seu filho foi despedaçado por uma bomba. Em outra, olhou a face de um soldado raso que teve sua mão amputada por uma granada posta sob sua cama por uma guerrilheira vietnamita que o atraiu com promessas de sexo. Viu o paralelo na vida de dois soldados: um transferido para uma unidade administrativa após atos de matança indiscriminada (e, que, nas horas vagas, trabalhava voluntariamente em um orfanato vietnamita); e outro que sempre trabalhou em uma unidade administrativa e, embriagado, preencheu uma requisição de transferência para a unidade completamente exposta ao combate (onde acaba sendo morto e condecorado postumamente). O que estas vidas possuem em comum? Para Eisner, a guerra não lhes retira a sua humanidade, mas as despe das garantias e limites mínimos para o efetivo exercício desta humanidade. É neste momento que as reflexões de Eisner tocam frontalmente o direito. Nas situações extremas, em que a vida e a dignidade humanas são subordinadas às conveniências da política ou da economia, vê-se melhor a importância dos direitos, em particular dos direitos fundamentais. Criados em uma era em que, por definição, não é mais possível o apelo a uma moral ou a uma religiosidade universais, eles são chamados de fundamentais porque se fundamentam a si mesmos. Tal como a arte, são uma criação nossa. Isto pode parecer pouco, mas não. Neles repousam nossas esperanças de liberdade e de igualdade. Embora uma carta de direitos não possa fisicamente deter um ato de violência, ela pode por a violência a nu. Pode demonstrar que o apelo à violência já começa negando o que afirmamos sobre nós mesmos: que somos dotados de uma dignidade intrínseca e que não pode ser alienada. Compreendido o papel do Direito, e não se abdicando dele, é impossível subordiná-lo a imperativos ex-

ternos sem negá-lo. Se a lógica da economia ou da política é vinculada à escassez de meios ou à força de uma maioria, o Direito cumpre seu papel quando pode ser reivindicado por minorias, ainda que em oposição aos argumentos de necessidade. Soluções de conveniência ou compromissos conciliatórios sobre nossa liberdade ou nossa igualdade podem parecer pragmaticamente sensatas em momentos críticos. Porém, uma carta de direitos fundamentais traz uma questão ainda mais básica: de que valem direitos se não como garantias que podemos invocar precisamente nestes momentos de crise? Se a resposta a esta pergunta for construída de modo “absolutamente

pragmático”, alguém poderá dizer que de fato direitos de nada valem nestes momentos. Mas, se nada valem naqueles instantes, também não valerão nada mais em qualquer outro. Isto nos remete então novamente às situações descritas por Eisner: as de vidas nuas porque despidas de seus direitos. Vidas aprisionadas pela violência, violência que praticam e violência da qual são também vítimas, em um ciclo de autodestruição que alimenta a si próprio. Eisner concordaria com a afirmação de que há algo de fundamentalmente errado com estas vidas. A arte revela que é possível pensar nossa condição humana para além dos direitos. Porém, não se deve pensá-la para aquém deles.


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O Direito como obra literária Bistra Stefanova Apostolova

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que a ficção literária pode nos revelar sobre o direito e o que ganha o direito no confronto com o campo literário? Na segunda metade do século XX, a literatura emerge e se consolida como uma via de renovação da cultura jurídica ocidental e, entre outros fatores, articula algumas estratégias acadêmicas em condições de abrir novas possibilidades teóricas para a compreensão do direito. O hábito mental que marca o pensamento jurídico moderno diferencia o espaço jurídico do espaço literário com base na distinção intransponível entre fato e ficção, entre real e possível, entre ser e dever-ser. Acentuar a diferença entre os respectivos espaços e os seus discursos acaba obscurecendo o campo das suas trocas recíprocas, limitando, com isso, a compreensão do direito enquanto fenômeno histórico e cultural que desempenha funções instituintes na sociedade. Diante da supremacia dominadora do modelo clássico de cientificidade, a arte, com o seu caráter assumidamente ficcional, já inicia a sua jornada em desvantagem no que diz respeito às suas finalidades cognitivas. Sabe-se que, desde o pensamento de Aristóteles, a dimensão estética foi rebaixada em relação às atividades dedicadas à vida política, à filosofia e à contemplação. E, mesmo a partir desse lugar secundário, a literatura vem desempenhando relevantes papéis no Ocidente, que vão da sensibilidade à ciência, da formação da subjetividade, à educação pública. A matéria prima da literatura é o mundo possível, que se configura a partir do mundo real por meio da uma forma lingüística esculpida pelo estilo próprio do seu autor. A arte literária constrói os seus possíveis olhares sobre a vida na medida em que estranha aquilo que nos é familiar e coloca em perspectiva o real, focando, assim, o seu caráter acidental. A arte, como estranhamento e, justamente, por estar enraizada na ficção, revela as suas funções cognitivas, uma vez que se aproxima por

outra via à experiência humana, alcançando-a na extensão, profundidade e ambivalência do seu significado. Nessa perspectiva, sem estar limitada a uma mera descrição dos dados empíricos, a arte apresenta-se como uma concorrente da ciência ou, poderia ser, como uma aliada, já que está irmanada nos mesmos propósitos da ciência no campo do conhecimento. Em especial, a compreensão do direito como arte nos permite ir além do normativismo. A noção de imaginário jurídico, criador de novas práticas e discursos que emergem da reavaliação dos significados sociais e jurídicos dados, corrói a qualificação diferenciada que é atribuída ao direito oficial decorrente do seu status de norma vigente num determinado período histórico. Afastada a idéia da produção da realidade jurídica nos moldes de uma evidência analítica, os juristas se vêem na necessidade de responder como constroem as interpreta-

ções dos fatos e dos textos jurídicos, com que parâmetros fazem as suas escolhas entre as possibilidades imaginativas latentes no direito, de que estratégias se utilizam para tornar os seus discursos hegemônicos e como ocorrem as mudanças nas interpretações do direito, sem que haja mudança nos textos. O direito como narrativa Para a compreensão da passagem de uma possibilidade da existência ao status de realidade jurídica e, conseqüentemente, para o entendimento das trocas entre a literatura e o direito, o conceito de narrativa, parece-nos apropriado. A narrativa estabelece uma organização dos fatos no tempo, por meio da qual o diverso e o acidental entram em uma ordem que decorre do próprio ato da escrita e que é constitutiva do seu objeto. A nossa proposta compreende a aproximação do direito com a literatura por meio do estudo das narrativas jurídicas, constitutivas da pró-

pria realidade narrada, o que pode nos levar a algumas idéias sobre os modos de construção dos fatos e das normas em juízo e sobre as formas de produção dos conceitos utilizados pela doutrina jurídica. São vários os elementos que constroem a passagem da cientificidade clássica para o conhecimento como narrativa, entre as quais destacamos: a objetividade do fato é substituída pelo princípio da interpretação e seleção; no lugar da visão substancialista da verdade essa aparece como uma maneira interna da organização do relato e não como algo externo ao próprio discurso. Os relatos abrigam segundas intenções, enviam mensagens normativas cifradas e, em conseqüência, acabam integrando o processo de construção da realidade e da sua regulação. Ciente dessa categoria, a nossa atenção volta-se para a escuta das narrativas que perpassam o campo do direito, sendo estas um caminho seguro para se chegar à norma.

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Cabe ao MP suprir as omissões do Estado Nessa moldura fática, cabe ao Ministério Público papel ativo na verificação da regularidade de políticas públicas. Cabe, também, a adoção de medidas tendentes ao suprimento de omissões do Estado quanto à sua implementação. Nesse sentido, a ação civil pública é importante instrumento de afirmação de interesses transindividuais e, sendo a proteção do patrimônio cultural um interesse de matriz difusa, tem-se a atuação do Ministério Público com vistas à sua observância. No silêncio da administração diante da relevância de um bem ou conjunto de bens revestidos de valor cultural, é indeclinável o dever de promover medidas judiciais ou extrajudiciais voltadas ao seu reconhecimento e à sua proteção. Afirmam alguns que essa postura implica intromissão na administração, pois cabe a esta decidir, no exercício de sua discricionariedade, se e quando determinado bem deve ser detentor de especial proteção por meio de tombamento. Tal posicionamento encontra-se inteiramente dissociado da realidade contemporânea e despreza o papel político a ser desempenhado pelo Ministério Público e pelo Judiciário. O ordenamento jurídico, vale lembrar, encontra-se repleto de cláusulas gerais e de conceitos indeterminados veiculadores de aspirações de bem estar social. Noutras palavras, a construção de uma ordem social justa acha-se quase que plenamente traduzível em temas juridificáveis, trazendo para a esfera da atividade jurisdicional a difícil tarefa de proceder à sua materialização. O Ministério Público, então, deve ser protagonista desse papel político de realização de políticas públicas, atuando não no campo da formulação, mas sim no espaço de sua implementação, mediante a promoção de ações públicas nos casos em que a omissão estatal, configuradora de abuso de poder, frustrar a realização de metas sociais constitucionalmente estabelecidas. Voltando ao texto constitucional, sendo dever do Estado promover e proteger o patrimônio cultural brasi-

leiro, o não cumprimento dessa prestação positiva deve submeter-se ao controle judicial, por meio de ação civil pública ou de ação popular. Dito de outra forma, se o poder público não realizar o tombamento de um bem dotado de relevância cultural, oportuna será sua proteção pela via judicial, cabendo ao Ministério Públi-

co promover ação civil pública com o fim de declarar, no interesse da coletividade, a existência desse valor. E ao Judiciário caberá adotar a medida tendente à preservação desse bem, atento ao fato de que o tombamento é apenas uma das formas de tutela do patrimônio cultural, não excluindo outras modalidades de acautelamen-

to e preservação (CF, art. 216, §1°). Isso representa, sem dúvida, a assunção e o exercício de indiscutível função política, o que torna o Judiciário e o Ministério Público igualmente responsáveis pela operacionalização de políticas públicas necessárias à realização dos valores veiculados na Constituição.

O Ministério Público deve ser protagonista da realização de políticas públicas, atuando não no campo da formulação, mas sim no espaço de implementação, mediante a promoção de ações públicas


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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Proteção do patrimônio cultural e omissão do Estado Nicolao Dino C.Costa Neto

A

Constituição da República dedicou especial atenção aos bens de natureza material e imaterial, considerados individual ou conjuntamente, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade, os quais integram o patrimônio cultural brasileiro. Incluído na categoria dos direitos difusos, do qual é titular toda a coletividade, o patrimônio cultural é uma das facetas do meio ambiente. De fato, não só os elementos constitutivos do meio ambiente natural são relevantes para a preservação da espécie humana. É necessário assegurar ao indivíduo um referencial histórico-cultural revelador de sua identidade, vinculando o presente ao seu passado e garantindo, desta forma, o embasamento indispensável à edificação de seu futuro. Nos termos da Constituição, o poder público tem o dever de proteger, com a participação da comunidade, o patrimônio cultural brasileiro. Sendo objeto de especial proteção do direito, cabe à administração adotar políticas públicas para adequada promoção do patrimônio cultural. Nesse campo, o instrumento clássico de atuação da administração é o tombamento, operando-se, por meio deste, uma intervenção no domínio particular, ou seja, uma restrição parcial na propriedade privada para demarcar o interesse público na proteção de determinado bem, sob a perspectiva de seu valor cultural. Infelizmente, contudo, verifica-se sensível déficit na atuação estatal, seja na completa identificação dos bens que devem constituir o rol do patrimônio cultural, seja na garantia de sua higidez. Diante da omissão na implementação de políticas públicas, o que se deve esperar ou exigir das demais esferas do poder público? Como devem comportar-se Ministério Público e Judiciário em face da ausência de medidas e programas estatais des-

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Por que o direito não assume o seu caráter ficcional? O direito possui as suas tradições narrativas que mudam no decorrer da história de uma comunidade política, mas essas existem como lugares ocultos que, embora presentes na produção do direito, não aparecem como elementos de confrontação aberta. Para alguns, admitir o caráter ficcional do discurso jurídico talvez revele ou estimule a arbitrariedade. Cremos, porém, que afastar do debate público as escolhas políticas e culturais que estruturam as narrativas das quais nasce o direito é que alimenta o exercício arbitrário do poder. Buscando um outro entendimento da rejeição dos fundamentos ficcionais do direito, é oportuno indagar se, na origem dessa, não está a consciência de o direito ser uma obra literária de segunda qualidade. Existem vários indícios nesse sentido, como a falta de coerência narrativa da doutrina e da jurisprudência ou a produção de peças processuais e obras jurídicas em linha de montagem, pistas que nos levam a um novo questionamento sobre o perfil e as condições de produção de um outro direito que possa ser apreciado como literatura de primeira qualidade.

Admitir o carácter ficcional do discurso jurídico pode levar ou estimular a arbitrariedade?

tinados à proteção dos bens culturais? Para ser mais específico, na ausência de ato de tombamento, caberia ação civil pública para, por meio de decisão judicial, reconhecer-se seu valor cultural e assegurar sua proteção? Ou, ao revés, isso configuraria indevido alargamento da função jurisdicional, com a substituição dos poderes próprios da administração? Para responder a essa questão, é importante sublinhar que: 1) o restabelecimento do regime democrático abriu espaço a novas demandas sociais e à possibilidade/ necessida-

de de sua afirmação perante o Estado; 2) a Constituição de 1988 converteu inúmeras expectativas de construção de uma ordem social justa em pretensões jurídicas; 3) relações sociais multicomplexas transformaram o quadro de conflituosidade inter-individual em um cenário de litigiosidade de massa, no qual a busca do interesse coletivo é tão importante quanto a satisfação de pretensões subjetivas; 4) interesses de matriz difusa ou coletiva são freqüentemente lesionados pela inação do Estado.

O que seria, então, o direito literário? Interesses de matriz difusa ou coletiva podem ser lesionados pela inação do Estado

Como Marcuse e Adorno colocaram, toda verdadeira obra de arte é revolucionária, na medida em que modifica as formas dominantes de percepção e cognição e abre os horizontes para mudanças. Desnaturalizando práticas e discursos jurídicos, nos quais se apóiam as instituições, o direito narrado põe em

evidência a sua função subversiva, uma vez que alcança a voz do outro e se coloca na escuta daquele que teve a sua silenciada. E o direito literário, o que seria? Em tese, deveria ser um direito transparente porque se assume como narrativa e se faz no espaço público do diálogo com o diferente, no

terreno da negociação aberta e da escolha consciente. Esse direito problematizaria as avaliações subjacentes aos fatos, assumindo a sua função de nomeação, que somente pode ser entendida no ambiente interno das narrativas jurídicas que a sustentam. François Ost, no seu livro Contar a lei. As fontes do ima-

ginário jurídico, aponta no sentido de que o direito, como a obra de arte, poderia ser um desafio ao mundo herdado e ao poder, exercendo, desse modo, a função de crítica política à realidade. O êxito dessas funções, é claro, pressupõe condições sociais favoráveis, pois o direito é produto da sociedade.

Um direito transparente porque se assume como narrativa e se faz no espaço público do diálogo com o diferente, no terreno da negociação aberta e da escolha consciente


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O delírio que emancipa o homem Os incômodos que a loucura impõe à convivência, a necessidade de uma abertura à diferença que ela cria são exigências que demandam mais do que sensibilidade artística, são especificidades que demandam respeito. A vinculação entre doença mental e violência, entre loucura e perigo privou os loucos de liberdade e igualdade e nesse sentido foi estratégica a valorização de um lugar simbólico para a loucura: o espaço lúdico do belo, da arte, da descoberta. Nada mais opressor do que aceitar somente uma espécie de loucura, aquela que proporciona prazer e alimenta a alma, aquela que recompensa bem a permissão que lhe foi dada de existir, de se manifestar entre nós.

Surrealismo Jurídico, Arte e Direito: novos caminhos Marta Gama

N

o presente artigo tratarei de abordar, ainda que preliminarmente, as possibilidade de conexão entre Direito e Arte, na perspectiva de uma concepção emancipatória do Direito, a partir do Surrealismo Jurídico tal como proposto por Luiz Alberto Warat, no seu Manifesto do surrealismo jurídico. Warat, propõe o retorno ao Surrealismo como possibilidade de ruptura com o imaginário moderno e capitalista representado pela fé na razão, na ciência, no aumento da produção e no consumo, como meios capazes de construir a emancipação do homem. E com o imaginário que constitui o Direito moderno, representado no mito da neutralidade dos juízes, na distinção entre Direito, moral e política e na lei como única fonte do Direito, que denominou de senso comum teórico dos juristas. Para Warat somente uma Revolução Surrealista poderá devolver ao homem o desejo, a imaginação, a sensibilidade e a capacidade crítica, que lhe foram subtraídos pela

sociedade moderna através do aumento do controle racional sobre a vida dos indivíduos, da racionalização do trabalho e da fé na produção e no consumo. Enfim, somente uma Revolução Surrealista poderá conduzir a humanidade rumo a uma nova sociedade, onde todos os indivíduos possam livremente criticar as instituições herdadas e conscientemente criar outras, novas. E novas leis, novas formas de viver: uma sociedade autônoma. Passos dos Surrealistas Paris, 1919: a humanidade ainda está perplexa diante dos horrores e da destruição da Primeira Guerra Mundial. O fantasma não se dissipou e denuncia a falência de uma sociedade que se propôs realizar o sonho da autonomia por meio da razão e do progresso da ciência. A promessa moderna de libertação do reino da necessidade e de todas as formas de opressão, através da razão e da técnica... A ciência e a razão haviam sido capazes de colocar a humanidade nos trilhos da prosperidade tecnológica. O que não progrediu da mesma

forma foi o conhecimento do homem sobre si mesmo, que soube aplicar a razão, as faculdades lógicas, para tranformar o mundo, mas se viu incapaz de construir uma sociedade onde os indivíduos pudessem constituir a sua autonomia e reconhecer-se em seus afetos. Na esteira desse progresso, testemunhamos a expansão ilimitada do controle racional sobre a vida dos cidadãos, a vida familiar, a educação e a informação. Pouco ou nada então restou da proposta de autonomia: a ciência havia falido, como também a filosofia, a arte e a literatura. Aos olhos dos Surrealistas, o campo estava aberto apenas para uma revolução que realmente se alastrasse a todos os domínios da vida do homem, uma revolução radical. Seguindo os passos do Movimento Dadaísta, os Surrealistas aderiram ao projeto sem precedentes de destruição de todos os valores tradicionais que escravizavam o homem, que o impediam de viver segundo os seus desejos: a razão, a família, o Estado, a religião e a moral. Uma outra forma de pensar e viver deveria se constitu-

ir, um novo conjunto de valores e significações: uma forma de ser que finalmente pudesse realizar o projeto da autonomia. A Revolução Surrealista proclama assim a total transformação da vida. Uma tentativa de completa revolução do espírito, através da poesia, do amor, da loucura. Proclama a necessidade de trazer a arte para a vida, viver poeticamente. Todos somos poetas, afirmam. Apelam ao poder do inconsciente, valem-se da irracionalidade, da vida onírica e inclusive da loucura para revelar os territórios inexplorados do espírito humano. O olhar para o inconsciente, revelará o seu ser verdadeiro, os seus verdadeiros desejos. A realização desses desejos é a liberdade. Os Surrealistas proclamam a onipotência do desejo e a legitimidade de sua realização. À objeção de que os homens vivem em sociedade, respondem com a vontade de destruição total dos laços impostos pela família, pela moral, pela religião. A destruição das relações tradicionais dos homens entre si levaria a instituição de novas relações sociais, de um novo tipo de homem.

A flexibilidade e a liberdade que a produção artística permite têm a forma exata dos limites e potencialidades que o sofrimento mental impõe

Apesar dessa leitura desviante, a arte também é aproveitada em um movimento reativo, como forma de emancipação da loucura. Trata-se da invenção de formas de trabalho e de convivência nos espaços públicos que os portadores de sofrimento mental travam diariamente, valendo-se dessa mesma sensibilidade e criatividade tão associadas a sua condição. A flexibilidade e a liberdade que a produção artística permite têm a forma exata dos limites e potencialidades que o sofrimento mental impõe. Dessa forma, os movimentos sociais que atuam no fortalecimento da cidadania dos portadores de sofrimento mental valorizam o potencial criativo e produtivo desses

sujeitos como forma de inclusão social e publicização das capacidades e habilidades desses indivíduos. Na prática, criam-se oficinas de artesanato, pintura, redação, dança, etc, que capitalizam o resultado dos trabalhos e possibilitam a circulação ativa e autônoma desses

sujeitos na cidade. Pelo caminho da cidadania, a arte sai da excepcionalidade de artistas loucos para a habitualidade de loucos artistas. A obra da loucura deixa de se identificar com as obras geniais e passa a significar a produção artística diária, a inclusão social,

o auto-sustento, a independência de pessoas comuns que, apesar de seu sofrimento, lutam para viver em liberdade, unidas em um movimento público de busca pela aceitação da diferença e pela implementação de seus direitos fundamentais.

Pelo caminho da cidadania, a arte sai da excepcionalidade de artistas loucos para a habitualidade de loucos artistas


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O encontro com o Surrealismo Jurídico

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Loucos artistas ou artistas loucos?

Desconstruindo mitos Janaína L. Penalva da Silva

D

epressão, angústia, melancolia, agitação, mania são vivências comumente narradas como sintomas de loucos e traços da personalidade de pintores, atores, músicos e poetas. Da mesma forma, grandes nomes da ciência foram considerados insanos ao divulgarem idéias que, pela carga inovadora, representavam razões suficientes para considerá-los sujeitos sem razão. A enunciação do que não pode (ou deve) ser dito sempre foi uma das maneiras de ser louco, da mesma forma que a criação de algo que nunca antes fora imaginado é a única possibilidade de se fazer arte. Se-

rá que a criatividade e a sensibilidade - essências da arte - são potencializadas na loucura? A equiparação entre loucura e arte e entre genialidade e loucura não se fez impunemente. Uma visão “romântica” do que é ser louco, focalizada nessa suposta sensibilidade e criatividade artísticas, contribuiu para a consolidação de um imaginário opressor que só é capaz de aceitar a loucura quando ela nos brinda com a arte. Essa referência ao louco como um gênio ou como um artista, avalizada por casos históricos nos quais esse encontro foi real, camufla com cores a leitura excludente e violenta que se faz da loucura. Por trás da excepcio-

nalidade de sujeitos que conseguiram lidar com seu sofrimento utilizando a arte, esconde-se a opressão cotidiana da loucura. Seja pela permanência de um tratamento médico que segrega e aprisiona, seja pelas interdições impostas pelo Direito, essa suposta beleza ou criatividade intrínseca à loucura perdem sentido. A vivência diária dos ditos loucos, daqueles tantos incapazes de fornecer ou contribuir para o prazer estético do público, só se apequena quando sua condição é pensada nesses limites restritos, nos quais a “falta de razão” é identificada com a liberdade e potencialidade de criação, invenção e produção.

Os incômodos que a loucura impõe à convivência são exigências que demandam mais do que sensibilidade artística

Seguindo o caminho traçado pelos Surrealistas, Warat propôs o Surrealismo Jurídico. Uma revolução pedagógica no ensino do Direito rumo a transformação do homem. Um convite ao rompimento com a razão totalizante, com o controle racional, que subtraiu do homem sua imaginação, seus desejos, em troca de um mundo normalizado, conformista, povoado de clichês e de lugares comuns. Uma revolução do homem, das formas de viver, dos sentidos e significados que povoam o mundo, através da arte, do fazer artístico, da poesia. E essa revolução é uma revolução pedagógica porque começa a partir de uma nova visão sobre o que é o conhecimento jurídico e sobretudo sobre suas formas de transmissão; começa a partir da mudança de atitude do professor que deixa de ser o “mestre” de um suposto saber técnico-científico e passa a ser aquele que auxilia os alunos a encontrar um sentido para a vida, a contruírem a sua identidade. O conhecimento sobre si mesmo e sobre o mundo sensível ganha campo sobre o conhecimento tecnicista, como forma do ser humano se hominizar. Essa é a proposta do Surrealismo Jurídico que proclama a necessidade de despertar os sentidos, de recuperar a vida no desejo, de inscrever a poesia na vida. Uma proposta pedagógica para a revolução do homem, que rompe com o imaginário do Direito moderno fundado na crença de que o Direito é só a norma; e possibilita a formação de novos profissionais capazes de realizar suas práticas com fundamento na alteridade e na função pedagógica do conflito.

A possibilidade da instituição do novo O Surrealismo é mais que uma expressão estética, é uma concepção de vida, um olhar diferente para o mundo, longe das convenções e dos lugares comuns. Uma radical busca da alteridade, do reconhecimento do outro em sua expressão poética. Propõe a revolução da vida em todos os seus planos, nos seus valores, nas suas significações a partir da imaginação, do sonho, do inconsciente. O Surrealismo Jurídico, ao propor

uma revolução da forma de ensino do Direito, através da arte, abriu caminho para uma macro revolução, já que a revolução poética, dos sentidos, de libertação dos desejos, aponta para a própria revolução do homem e do mundo. Da palavra libertada, da imaginação descolonizada, pela magia dos sonhos, pelo ato poético de viver, emerge irresistivelmente uma nova forma de existir, novas maneiras de significar a vi-

da, as relações humanas, uma nova significação imaginária, que rompendo, enfim, com os grilhões de uma racionalidade totalizante, seja capaz de construir a autonomia individual e coletiva. Compreendo, assim, que o Surrealismo Jurídico abre caminho para uma nova concepção do Direito ao criar as possibilidade de instituição de um novo imaginário instituinte de uma nova sociedade.

Somente uma revolução surrealista poderá devolver ao homem o desejo, a imaginação e a sensibilidade


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Ciência do Direito ou Mitologia Jurídica? Alexandre Araújo Costa

O

s antigos explicavam o mundo por uma série de narrativas mitológicas, histórias que transmitiam valores morais (como a dignidade da coragem e o desvalor da vaidade) e esclareciam as origens das regularidades naturais (como o ciclo das estações e o movimento do sol). Assim, era contando as aventuras de deuses e mortais que essas sociedades atribuíam sentidos ao homem e ao cosmos. Com o tempo, a explicação mitológica foi sendo transformada em doutrina, convertendo-se gradualmente de relato em metáfora. A mitologia não se mantinha pela crença efetiva nos mitos, mas pela carga simbólica que eles portam: o símbolos de Hércules e de Narciso conferiam sentido ao mundo dos homens pelo seu caráter exemplar e pedagógico, e não pela sua existência histórica, que, afinal de contas, era irrelevante para o cumprimento da sua função simbólica. Com Platão, que escrevia sempre na forma de diálogos, a explicação se assumiu definitivamente como metáfora: os debates que ele narra e os mitos que ele inventa não pretendem contar as origens do mundo, mas oferecer um relato pleno de significação filosófica. Porém, essa forma literária de fazer filosofia logo perdeu espaço para um novo tipo de discurso: a teoria, que explica a realidade de modo abstrato e conceitual. Assim, no discurso teórico, a explicação do mundo deixou de ser narrativa e passou a ser descritiva: a teoria limita-se a descrever a realidade, esclarecendo a essência de tudo o que existe no mundo físico (astros, corpos, animais) e no mundo metafísico (justiça, verdade, beleza), bem como as relações entre esses elementos. Purificando o mundo dos personagens mitológicos, a teoria buscava esclarecer a própria estrutu-

ra da realidade, que era percebida como uma ordem orgânica: o cosmos era visto como um grande organismo, cujo funcionamento adequado dependia de que cada coisa realizasse devidamente as suas funções. Na tradição medieval, essa ordem passou a ser também normativa, pois as finalidades do homem e das coisas eram estabelecidas pelas leis naturais fixadas pelo Deus cristão. Então, a realidade já não mais era guiada pela volátil vontade de deuses antropormóficos, mas era regida por um conjunto de regras imutáveis e eternas, cabendo ao teórico desvelar as leis naturais que definem o modo de ser do mundo. Essas teorias normativas explicavam acontecimentos evidenciando relações de causa e efeito dos fatos entre si, mas também relações entre os fatos e as suas finalidades dentro da ordem natural. Com o tempo, porém, as explicações finalísticas foram sendo gradualmente abandonadas,

na medida em que se tornou hegemônica a noção cartesiana de que a ciência se resume a uma explicação mecânica do mundo. Essa tradição está na origem de um processo de cientifização, que foi do século XVII ao XIX, que nos ensinou a não mais perceber a realidade como uma ordem normativa, mas apenas como uma ordem meramente causal, a ser explicada com uma precisão e um rigor que só a matemática é capaz de conferir. Esse tipo de perspectiva nos legou a física, a química, a genética, disciplinas cujo conhecimento ampliaram imensamente as possibilidades de o homem modificar a si mesmo e de intervir no ambiente que o cerca. Porém, tudo o que não era conversível em números foi sendo relegado ao campo da poesia, e a racionalidade foi sendo gradualmente reduzida à capacidade de manipulação lógica de fatos empíricos e conceitos abstratos. Portanto, essa nova

sensibilidade não reconhecia como fontes de conhecimentos válidos a literatura, a arte, a retórica e tudo o mais que não fosse um discurso metodologicamente controlado sobre fatos empíricos. Para essa ciência moderna, apenas poderia haver uma Verdade, uma Racionalidade, um método, um único conhecimento científico, ainda que disperso em várias disciplinas igualmente racionais.

Está em causa a noção cartesiana de que a ciência se resume a uma explicação mecânica com o mundo

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Normas distantes da realidade social Por outro lado, a produção legislativa nacional permanece vinculada à perspectiva meramente econômica da propriedade intelectual como fim em si mesmo, levantando bandeiras dissociadas das transformações sociais. Em declarações dos membros da Frente Parlamentar de Combate à Pirataria, verifica-se a indistinção no tratamento da violação do direito autoral, do contrabando e da sonegação fiscal. Em compromisso com os setores que lucravam confortavelmente com a escassez de informação, propõe-se o combate implacável contra tudo o que se identifica como “pirataria”, marginalizando as novas formas sociais de produção e reprodução de arte e saber. É sintomático que no ordenamento brasileiro a criminalização de condutas, em 1830, tenha precedido à própria definição legal dos direitos de autor, só ocorrida com a promulgação da primeira Constituição Republicana. Devido a pressões internacionais sofridas no âmbito da OMC, a atual Lei dos Direitos Autorais restringiu as hipóteses de uso justo de obras protegidas. Além disso, com apoio e subsídios do setor privado, foram aprovadas propostas para aumentar a pena mínima para violações de direitos autorais e facilitar a apreensão e a destruição de produtos piratas. Os esforços legislativos, centrados na repressão, esquecem o que realmente está em jogo. O objeto do direito autoral é a própria matéria-prima da comunicação. A preocupação limitada aos aspectos patrimoniais contraria o princípio da liberdade de “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Do ponto de vista constitucional, não é democrático legislar represando a informação circulante quando os meios tecnológicos disponíveis permitem sua livre difusão em escala sem precedentes. Em termos econômicos, no passado os bens culturais eram escassos, pois a demanda não era atendida pelos meios de difusão existentes, cujos donos podiam controlar a comunicação e obter lucro, transformando-a em mercadoria. Essa tônica ainda move os mercados editorial

e fonográfico. Na prática, ao tornar fácil e rápido o compartilhamento de informação, a tecnologia de comunicação diminuiu seu valor econômico, pois alterou a razão entre necessidade e escassez. Essa redução de valor econômico não implica em redução de valor intrínseco. O ar, ainda que extremamente necessário, não tem valor econômico expressivo em condições normais, por ser abundante. No entanto, sua escassez nas profundezas dos mares e oceanos o torna uma mercadoria para mergulhadores. O ataque da indústria cultural, contra os benefícios proporcionados pela tecnologia, visa a forçar,

A Internet surgiu como promessa de revolução no espaço e no tempo da comunicação, tornando livre e ampla a circulação de informação por meio da legislação, a criação artificial de um ambiente de escassez. O desenvolvimento tecnológico, cada vez mais intenso, não só amplia o acesso da sociedade a uma quantidade crescente de informação, cultura e conhecimento, como também permite a constituição e definição de novas formas de interação. É so-

cialmente interessante que a regulação dos direitos autorais mantenha abertas essas possibilidades, em vez de criminalizar condutas para atender a uma perspectiva incompatível com a atualidade. De outra forma, essa incessante efervescência cultural continuará a se reproduzir à margem da legalidade.


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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

O Direito Autoral e a livre informação Paulo Rená Santarém e Rodrigo Lobo Canalli

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conjunto de alguns episódios atuais evidencia a crise por que passa a propriedade intelectual. Escoteiros foram processados nos EUA por tocar e cantar músicas populares ao redor de fogueiras sem prévia autorização dos titulares dos direitos autorais; gravadoras demandaram indenização milionária de uma menina de doze anos que usou a Internet para copiar arquivos de música; países em desenvolvimento ameaçaram violar patentes de uma série de medicamentos, alegando que a saúde pública não pode se curvar a interesses econômicos de laboratórios. Transformações tecnológicas alteraram o volume e a velocidade das comunicações e conta-se com um acesso virtualmente instantâneo a obras musicais, cinematográficas e literárias. Em descompasso com essa realidade, as leis vigentes rotulam criminosas diversas práticas maciçamente difundidas e crescentes na sociedade. Se tais normas surgiram para promover o desenvolvimento intelectual e fomentar a criação artística, hoje a estrutura legislativa emperra as novas possibilidades de preservação e difusão da produção cultural. Primeira lei sobre o tema, o Estatuto da Rainha Anna estabeleceu em 1709 no Reino Unido a proteção por 14 anos do direito do autor sobre a impressão de sua obra, substituindo o monopólio perpétuo dos editores. Desde então, tal lapso vem sendo estendido e hoje no Brasil é de 70 anos após a morte do autor. Ironicamente, a restrição de uso e reprodução explica porque obras ar-

tísticas e culturais de menor interesse comercial acabam se deteriorando e desaparecendo, mesmo tendo inestimável valor como patrimônio cultural de um povo ou era. A proteção no tempo somente é benéfica para as obras que mantém duradouro apelo econômico. A grande parte perde esse atrativo em menos de cinco anos, e a demora até alcançar o domínio público leva à sua perda completa, prejudicando a própria sociedade. A Internet surgiu como uma promessa de revolução no espaço e no tempo da comunicação, tornando livre e ampla a circulação de informação. Mas a legislação nacional e internacional se ocupa em esterilizá-la. Pelos critérios atuais, os monges medievais que possibilitaram nosso acesso a obras-primas da Antigüidade seriam facilmente considerados “piratas”. Como alternativa, numerosas ex-

periências de sucesso, no Brasil e no exterior, mostram ser viável pensar formas diferentes de ver e lidar com os direitos decorrentes da autoria de obras artísticas e intelectuais. Em oposição ao copyright, literalmente “direito de cópia”, criou-se o conceito de copyleft, “permissão de cópia”, que se espalha e alimenta uma infinidade de projetos pelo mundo, propondo a inversão das leis de propriedade intelectual: ao licenciar uma obra, o titular permite expressamente a qualquer um sua livre utilização, reprodução, divulgação e mesmo modificação, ressalvando que ninguém poderá adicionar restrições, inclusive a obras derivadas que vier a produzir. Essa idéia impulsionou o movimento do software livre, que desenvolve programas de computador sem proprietários, de código-fonte aberto e de livre reprodução, uso e modificação, desde que conservadas essas li-

berdades. A idéia atinge ainda obras literárias, musicais e científicas, licenciadas sob modelos inspirados no copyleft. Exemplo de viabilidade concreta dessas alternativas, a Wikipedia é hoje a mais completa e acessível enciclopédia no mundo. O Brasil não está alheio a este cenário. Sensível ao impacto que as novas possibilidades de difusão do conhecimento e da cultura provocam no marco legal dos direitos autorais, o Ministério da Cultura tem se mostrado interessado em participar do debate sobre a necessidade de uma reformulação da legislação que, em vez de marginalizá-las, estimule o seu desenvolvimento. Exemplo dessa abertura é a criação do portal www.dominiopublico.org.br, propiciando fácil e irrestrito acesso a obras artísticas e científicas que estejam sob o regime jurídico do domínio público ou de divulgação autorizada pelo titular.

Não é democrático legislar represando a informação circulante, quando os meios tecnológicos disponíveis permitem sua livre difusão em escala sem precedentes

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A ciência, o mito e o reencantamento do mundo Desde Nietszche, porém, isso tem se modificado. Em vez de fazer uma teoria unificada, ele realizou uma série de reflexões tão fragmentárias como as narrativas mitológicas. Em vez de priorizar a razão, ele priorizou a estética, a ação e o desejo, como constituintes do que há de humano no mundo. E, em vez de procurar na ciência os conceitos com base nos quais poderia compreender o homem, foi buscá-los na mitologia e na literatura gregas, recuperando as figuras dos deuses Apolo e Dionísio. Também a psicanálise, na busca de compreender o inconsciente, encontrou na mitologia arquétipos como os de Édipo e Narciso, que nos servem como poderosas ferramentas para a autocompreensão do imaginário fundante dos indivíduos modernos e das sociedades que eles compõem. E o discurso psicanalítico, assumidamente não-científico, nos ajuda a formular narrativas nas quais sejamos capazes de elaborar nossa própria subjetividade. O imaginário inconsciente fala por meio de símbolos, e é sobre este pano de fundo que conferimos sentido às nossas ações e pensamentos. Por isso, os modos de composição dos nossos mundos simbólicos se aproximam das narrativas mitológicas e literárias. Assim, embora a formação de um universo simbólico até possa admitir uma explicação causal, que mostre as suas origens históricas, o comportamento das pessoas dentro desse universo não se explica mediante relações de causa e efeito, pois os homens se comportam como se fossem reais os sentidos que eles atribuem ao mundo. Essa dimensão simbólica, que o positivismo cientificista é incapaz de desvelar adequadamente, pode abrir-se aos nos-

O comportamento da pessoa, no universo simbólico, não se explica mediante relações de causa e efeito

sos olhos por meio da arte. É esse universo simbólico social que instaura o imaginário jurídico, em que são definidos os argumentos dogmaticamente relevantes, a função da lei, o papel dos juízes, a finalidade do direito: explicá-lo exige reencantar o mundo com os fantasmas contemporâneos, tais como o contrato social, o poder constituinte originário, os direitos humanos e outros deuses e heróis das nossas modernas mitologias. A arte diz muito pouco do mundo objetivo, pois ela é assumidamente uma perspectiva criativa e arbitrária sobre o mundo. Mas que resta da objetividade, quando o relativismo historicista nos roubou a

Verdade e, ensinando-nos a olhar reflexivamente nossa própria atividade cognitiva, legou-nos a noção de que todo discurso sobre o mundo da vida é uma espécie de narrativa mitológica? Resta-nos, pois, reconhecer o caráter mitológico da objetividade científica e buscar compreender simbolicamente o imaginário social, o que nos inspira a ler a realidade humana como um conjunto de narrativas fragmentárias e simbólicas, e não como um sistema de fatos causalmente entrelaçados. Com isso, abre-se o caminho de ler o direito como uma narrativa, como um discurso que não apenas esclarece fatos e estabelece nor-

O Direito como narrativa, como relato mitológico que reflete imaginários e/ou consolida arquétipos mas, mas como um relato mitológico que simultaneamente reflete imaginários e os funda, que cria e consolida os arquétipos com os quais constituímos o nosso universo simbólico, que é a realidade na qual vivemos.


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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

Striptease no Judiciário Pedro Teixeira Diamantino

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Roberto Lyra Filho

O jurista e o artista Adriana Miranda e Mariana Veras

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oberto Lyra Filho, jusfilósofo brasileiro, desenvolveu seu trabalho intelectual fundado no estudo crítico do direito. Nas horas vagas, dedicava-se àquilo que em suas próprias palavras definiu como algo que lhe dava imenso prazer: o estudo da literatura, prosa e poesia, a tradução e crítica de textos e a composição de suas próprias obras de arte. Para o direito ele era Lyra Filho. Nas artes era Noel Delamare. A leitura integral de sua obra nos mostra que a dimensão poética e artística transcende o campo lúdico e estético. Arte e direito se confundem. O lírico e o jurídico se complementam na construção de uma só

concepção sobre o mundo e sobre o homem. Um diálogo se estabelece entre o direito, sinônimo de liberdade, e a arte, como caminho genuíno para emancipação. A arte é o fio condutor para uma apurada reflexão sobre política, direito, ciência e vida. Uma reflexão vinculada à luta contra todas as formas de opressão e injustiça. Mas não se trata de qualquer arte, de qualquer poesia. Há que ser a superior poesia. Do mesmo modo, não estamos falando de qualquer direito, mas de um direito em movimento. A superior poesia é aquela que se relaciona com a solidariedade, solidão e transcendência. Solidariedade como expressão de uma eterna luta por liberdade. Solidão porque impregnada pela problemática in-

dividual e concreta sem se desvincular da esfera coletiva. E transcendência enquanto busca pelo absoluto, onde o poeta, assim como o solista, compõe, ao mesmo tempo, o coral da humanidade na busca de uma verdade. Essas três categorias estão presentes também nas reflexões lyrianas sobre o discurso técnico-científico. Enquanto a ciência nos reporta à explicação, a arte nos conduz à pura intuição, isto é, a tentativa de apreensão da realidade a partir de um conhecimento intuído. E, no entanto, o discurso científico, por mais demonstrativo e explicativo que seja, sempre revela, ao final, um conhecimento também intuído, uma emoção humana e certa iluminação poética.

O discurso científico, por mais demonstrativo e explicativo que seja, sempre revela uma emoção humana e certa iluminação poética

m fevereiro de 2003, a revista Veja publicou reportagem intitulada Vestidos para o Sucesso, trazendo a importância do vestuário para os juristas. Os entrevistados revelaram que já na faculdade vêem todo mundo se produzindo e lembram dos fortes obstáculos enfrentados pelos profissionais que não se vestem conforme as expectativas estéticas da comunidade jurídica. Uma advogada, exalando poder em sua figura, confirma que o cuidado com as roupas é arma na hora de conquistar clientes. De outro lado, em nossos tribunais pululam portarias, resoluções e circulares inconstitucionais, condicionando o acesso de qualquer pessoa às sessões públicas de julgamento ao uso de terno ou tailleur (“terninho”). O Estatuto da Advocacia reivindica para os Conselhos Seccionais da OAB o monopólio da definição dos critérios para o traje dos advogados. Por que tais adereços são tão indispensáveis num espaço forense tropical? Por qual motivo a falta do terno ou do tailleur impede o acesso cidadão a certos atos públicos no interior do poder judiciário? A preocupação dos personagens da reportagem é o acesso à ordem de uma vestimenta hierarquizada, transmissora da segurança e certeza de que estamos diante de quem está autorizado a falar das leis e do direito. Trata-se da compulsiva busca de enquadramento na tipologia do doutor bacharel, identificado com o discurso competente que, por outro lado, despersonaliza e desautoriza a fala dos pobres mortais destinatários dos serviços forenses. A sobrevida da violência simbólica depende de uma aquiescência quase inconsciente, acobertada por um manto ideológico que nos impede de enxergar: homens e mulheres “de preto” acenando para valores concatenados por Max Weber na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. No Ensaio sobre a cegueira, José Saramago sugere: se podes olhar, vê, se podes ver, então repara. A imagina-

ção pode, pelo buraco da fechadura dos lugares comuns, fazer strip-tease dos simulacros da ordem. Entrar em contato com a mística que circunda os personagens da justiça é reparar máscaras sociais em desenhos cristalizados de roupas que delimitam o espaço formalista, hermético e elitista do poder judiciário no Brasil. Um sentido comum indumentário seria horizonte da transpiração da legalidade introjetada no corpo dos juristas, como celebração do ideário solipsista do indivíduo de Kant, misturado ao proselitismo acrítico da elite bacharelesca. Vestuário é linguagem que vai tecendo personalidades, acrescentando valores, identidades e significados à nossa nudez, distinguindo-nos e formando dialetos. Como não há significados isentos da atuação ideológica na linguagem, que sempre constitui jogos de poder, as roupas, colocadas em processos ritualizados de comunicação, mitificam-se como fios condutores de mensagens e vontades de poder. Vestir-se é tramar intencionalidades que definem a eficácia e a identidade do discurso. As vozes do terno, da gravata, do tailleur e da toga podem ser vozes da técnica-formal, da noção de ordem e

hierarquia como germens de um mundo fundado em sujeitos da altacultura, postados como fonte privilegiada das escolhas econômicas, sociais e políticas de toda sociedade. Uma razão formalista que, firmada em meio à necessidade de legitimar a condição paradoxal do progresso excludente, traz do gabinete os odores da violência impessoal, seletiva e “universalmente válida”. Passarelas do formalismo As vestes dos personagens do palco jurídico tecem a hegemonia estética da burguesia positivista e um ser/parecer com austeridade, sobriedade, neutralidade e primazia da forma sobre o conteúdo. Como tecelagem do “ser” da civilização ocidental capitalista sobre todas as outras formas de vida, a linguagem indumentária articula um conjunto de adereços identificadores de uma casta. A mentalidade positivista deu a roupagem mais sóbria do monastério dos sábios. Não seria o terno e a gravata, o “terninho”, o tailleur, simulacros expressivos do Código Napoleônico e da Revolução Industrial? No Brasil, o striptease é dança ao som dos estertores coloniais de um

aparato judicial que até hoje resiste à imaginação criativa da diversidade. Denota subserviência e lealdade à Corte em troca de acesso exclusivista ao poder. É Razão oficial marcada pela arrogância e aversão à diversidade cultural, pintando territórios íntimos com tintura de territórios desconhecidos. Quem veste toga não demonstra sensibilidade ao frio, nem vaidade estilística. A toga é papel social de juiz togado, que significa não-leigo. No rito mágico da audiência judicial ela é o lugar da palavra final autorizada pelo governo das leis. Diferencia o togado de outros personagens e, como arquétipo, projeta o universo jurídico romano da propriedade privada e da burocratização do poder político para o direito de nossos tempos. Nas passarelas judiciárias as roupas são teias da assimilação do hábito que fala pelo monge. O lugar europeu desta moda e o século XIX são clarividentes. Sua linguagem contribui com a poderosa ordem do sentido comum profissional, dando coesão a uma comunidade que insiste em se fechar. A eficácia da forma jurídica deve muito à edificação de um saber forjado nele mesmo, num universo independente em que a autoridade da violência simbólica é produzida e exercida como pano de fundo da legitimidade estatal. A aderência ao perfil estilizado traduz o grau de adesão ao patrimônio do mundo jurídico, em que a legitimidade da burocracia é o outro lado do imobilismo social e estético. O striptease aponta para uma tradição dependente. Imaginar as roupas no mundo jurídico é perceber a seletividade e hegemonia do individualismo possessivo do século XIX que ainda domina. As relações da indumentária com processos de concentração de saber-poder são inegáveis. A compreensão histórica do mito é um desafio para a postulação de uma coesão interna entre direito e democracia. Não é por mera coincidência que tal padrão indumentário passou por poucas modificações nos dois últimos séculos.


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cultura popular é capaz de compreender a sociedade na qual se insere e o rock é uma das formas de manifestação dessa cultura. Assim, é capaz de pensar, criticar e narrar a realidade social. O rock mostra, com sua criatividade, a capacidade que a sociedade tem de oferecer alternativas a modelos tidos como únicos. Num mundo globalizado, regido, de certa forma, por meio das forças da propaganda e da mídia, tem sido cada vez mais difícil encontrar espontaneidade. E esses veículos de massa acabam por dominar todos os espaços, retirando do mundo o sentimento, a vitalidade e a originalidade, substituindo-os por sexualidade barata e consumismo. Nesse sentido, expurgam a chamada música erudita, criam a música pop e pretendem determinar o que é música popular, moldando o gosto das pessoas conforme as necessidades de mercado. Mas, ao mesmo tempo em que o rock não escapa a isso, ele oferece focos de resistência a esse domínio. É interessante que bandas e artistas que não são sequer tocados em rádios ou na televisão consigam arrebanhar milhares de fãs. E isso se torna mais curioso quando esses artistas não estão dispostos a falar de bunda, peitos ou a cantar letras prontas pré-aprovadas por suas gravadoras. Ora, o rock é mais que um estilo musical, é uma forma de movimento social. Determina moda, atitudes e comportamentos (foi assim com os movimentos hippie, glam e grunge nos Estados Unidos e com o punk na Inglaterra), serve de forma de contestação política (as bandas dos finais dos anos 1960 e de 1970 foram as porta-vozes do movimento hippie e se opuseram à Guerra do Vietnã; recentemente, várias bandas americanas saíram pelos Estados Unidos em campanha contra a reeleição de Bush) e cria brechas na estrutura social que propiciam mudanças a partir da contestação de valores estabelecidos, como a revolução sexual nos EUA – movimento hippie – e a valorização dos jovens desempregados e operários das periferias da Inglaterra

– movimento punk. Além disso, pode ser encarado como uma forma de narrativa da contemporaneidade. É possível ver isso a partir de alguns exemplos aleatórios. Problemas contemporâneos estão presentes na fúria e na sentimentalidade do rock pesado. A igualdade forçada do socialismo foi criticada na metáfora “The Trees”, do Rush (“And the trees are all kept equal/ By hatchet, axe and saw” – E as árvores são mantidas todas iguais/ por machadinha, machado e serrote). A queda do muro de Berlim, que simbolizava uma pretensa dicotomia entre liberdade e igualdade, foi cantada como momento de esperança pelo Scorpions em “Wind of Change” (“Did you ever think/ That we could be so close, like brothers” – Você alguma vez pensou/ Que poderíamos estar tão próximos, como irmãos?). Mas o fim da guerra fria marcou também o chamado fim das ideologias, a incapacidade de se pensar modelos alternativos. E isso está presente nas letras de várias bandas. A perda de controle das nossas vidas e de nossas liberdades dentro de uma realidade manipulada na qual somos apenas marionetes é o tema da música “Be Quick Or Be Dead”, do Iron Maiden (“See what’s ruling all our lives/ See who pulls the strings” – Veja quem está controlando nossas vidas/ Veja quem mexe as cordinhas). Faith No More indica a transformação do sujeito em elemento de lucro e exploração na letra de “Everything’s Ruined” (“Things worked out better then we had planned/ Capital from boy, woman and man” – As coisas funcionaram melhor do que planejamos/ Capital de menino,mulher e homem) e Metallica narra a submissão da individualidade em “Unforgiven”. Essas questões podem ser enquadradas em um contexto mais amplo: aquilo que se chama de “crise da modernidade”, que diz respeito, grosso modo, a essa incapacidade de se pensar meios de vida alternativos ao capitalismo, o fim das ideologias e a aceitação de que o modelo de vida ocidental é o único viável. Enfim, a idéia de crise da modernidade está ligada à incapacidade de se pensar alternati-

vas ao modelo hegemônico imposto pelo discurso economicista do capitalismo, que fala em indivíduos retirando suas individualidades, pois fala em igualdade sem considerar diferenças. Ora, essa crise da modernidade pode ser vista nas músicas de várias bandas de rock. As mais emblemáticas são, creio, as letras de “Segundafeira Blues” (I e II), dos Engenheiros do Hawaii, que cantam a tristeza da perda dos sonhos por um mundo melhor e a falta de discursos “racionais” capazes de recuperá-los (“Onde estão as provas, onde estão os fatos?/ As boas novas eram só boatos?”). Mas a crise é cantada também por Pearl Jam em “Do the Evolution”, que faz uma sátira à sede de progresso e ao egoísmo humano que levam às guerras e à destruição da natureza, portanto, levam à destruição da própria humanidade (“I’m ahead, I’m a man/ I’m the first mammal to wear pants/ I’m at peace with my lust/ I can kill cause in God I trust” – Estou à frente, sou um homem/ Sou o primeiro mamífero a usar calças/ Estou em paz com minha luxúria/ Posso matar pois em Deus eu confio). Que justiça podemos ter dentro dessas condições narradas? Obviamente uma que não consegue encontrar um critério único do que é justo. Uma justiça que reconhece a sua relatividade e não é capaz de produzir um discurso sobre o bom e o justo que seja coerente. Incapaz, por-

tanto, de enxergar especificidades que demandam reconhecimento ao negarem a inserção no discurso hegemônico dos vencedores da guerra fria. Enfim, uma justiça falida, tal qual a denunciada pelo Metallica em “And Justice For All” (“Justice is lost/ Justice is raped/ Justice is gone/ Pulling your strings/ Justice is done/ Seeking no truth/ Winning is all/ Find it so grim/ So true/ So real” – A Justiça está perdida/ A justiça está violentada/ A Justiça se foi/ Mexendo suas cordinhas/ Justiça está feita/ Sem procurar a verdade/ Vencer é tudo/ Encontre-a tão severa/ Tão exata/ Tão real). Mas, ao mesmo tempo em que identificam as vicissitudes e trazem para a superfície a crueza da nossa realidade, servindo como voz da consciência social, essas bandas nos exortam à resistência e à superação desses problemas. Assim é que Humberto Gessinger responde a pergunta “Pra que(m) cantar?”: “pra quem não tem a senha/ pra quem não teve acesso/ e vive do lado de fora da ordem e progresso/ (...) pra quem mantém a fé ardendo na fogueira/ sob um céu de viaduto, alimentando a caldeira/ (...) porque é preciso perguntar sem esperar resposta” (Humberto Gessinger Trio, “Pra que?”) e canta que vale a pena continuar sonhando e tentando, nem que seja “por amor às causas perdidas” (Engenheiros do Hawaii, “Dom Quixote”).

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Interpretar é remontar quebra-cabeças A arte de interpretar consiste em remontar o grande quebra-cabeça de significantes-significados e suas unidades expressivo-comunicativas. A poesia não estaria nos termos e expressões, mas num toque mágico, num relâmpago intuitivo. Um bailar dos signos que se destina a dizer o indizível, um bailar de sentidos que vai sendo descortinado. Neste exercício a liberdade é fundamental, mas o intérprete deve lançar mão de um recurso, uma liberdade controlada, que resguarda o literalismo e só o abandona quando este se torna prejudicial. Uma liberdade controlada para evitar as distorções hermenêuticas que insiste em ocultar o óbvio ou minimizar o que não pode ser escondido. Artistas e juristas podem ser comparados, cada um com seu objeto, a um jardineiro. Este antes de cuidar das flores precisa estudálas, compreender seu contexto, história, origem, limitações e possibilidades. O esforço literário e jurídico consiste na colocação real, concreta, histórica e social da poesia e do direito. Distanciar tanto o direito como a poesia do real e do concreto significa deformá-los, castrálos, matá-los. Tocar o pensamento de Lyra Filho, em sua árdua tarefa de desvelar fragmentos do real, é ter em mente a força criadora do artista e do jurista. Artista, não apenas por escrever suas próprias poesias, mas por acreditar que ao traduzir poesias de outros estaria (re)criando a partir do existente, fazendo arte sobre arte. Jurista, não apenas por refletir e escrever sobre o direito, sobretudo, por tentar compreender o antidireito. Nomes diferentes, ora Roberto Lyra Filho, ora Noel Delamare, de dois personagens que se bifurcam em seu destino compassado. Assim como na poesia o ritmo dita todo o processo, no pensamento jurídico lyriano sempre foi possível escutar também o pulsar de um ritmo, ritmo cadenciado nas ruas, nos reclames sociais, no mundo da vida, um mundo cheio de poesia e de lirismo.

A arte é o fio condutor para uma apurada reflexão sobre política, direito, ciência e vida. Uma reflexão vinculada à luta contra todas as formas de opressão e injustiça


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Arte e direito começam a virar a página M

arta Gama, mestranda em Direito pela UNB, entrevistou o jusfilosofo Luis Alberto Warat sobre as suas recentes incursões no campo da estética e sua pesquisa em torno das condições de possibilidade de conexão entre Direito e Arte. Professor Luis Alberto Warat, seu pensamento é extremamente complexo, sua obra é marcada por rápidas mutações e deslocamentos, nem sempre assimilados pela comunidade jurídica brasileira...Poderíamos dizer que voce é um homem além de seu tempo? De maneira alguma. Porém sua pergunta é muito pertinente. É muito provável que eu tenha deixado essa sensação, mas garanto que não há uma atitude minha que a justifique. Posso concordar com você pelo fato de meu discurso ser visto, pela maioria, como além dos discursos jurídicos geralmente produzidos e aceitos como tais. Os juristas, às vezes, têm uma atitude um tanto fóbica em relação a toda forma de conhecimento que cheire, ainda que um pouco, à interdisciplinariedade. Fecham-se numa concepção normativista que ainda postulam como produtora de um saber científico. Ignoram ou se despreocupam em sintonizar seu discurso com o resto dos chamados saberes das ciências sociais. Daí decorre, por exemplo, a incompatibilidade do que se afirma nos saberes dogmáticos do direito com relação ao funcionamento e caracteres das linguagens jurídicas e as análises elementares sobre o funcionamento das linguagens naturais produzidas pela lingüística após Saussure. Eu sempre tentei produzir um tipo de discurso que abrisse a compreensão e a produção do Direito aos saberes de outras áreas. Tive uma atitude transdisciplinar que, por isso mesmo, deixou nos juristas mais normativistas uma sensação de visão antecipatória, quando na realidade, meu discurso é, antes de qualquer coisa, a projeção de outras áreas de conhecimento sobre o Direito.

A sua constante inquietação marca diversos momentos em sua obra. Assim, poderíamos identificar uma preocupação epistemologica na sua obra A ciência jurídica e seus dois maridos, uma incurssão no Surrealismo no Manifesto para uma ecologia do desejo, entre outros. Atualmente quais temas tem sido objeto de suas reflexões? No momento que publiquei A ciência jurídica e seus dois maridos, acredito ter produzido uma ruptura com os modos de refletir o Direito que vinha desenvolvendo desde Buenos Aires. Preocupava-me introduzir no Direito uma dimensão de epistemologia das ciências sociais, que sentia, salvo o caso de Kelsen, um tanto ausente no pensamento dogmático. A ciência Jurídica e seus dois maridos representa minha primeira incursão no Surrealismo, minha tentativa (que é uma constante em mim), de romper com o positivismo e seus efeitos fálicos. Estou falando dos anos 80! Agora, a partir de 2004 volto a revisitar o Surrealismo, acompanhando um movimento que se está produzindo no Brasil de maneira, por enquanto, bastante silente, no sentido de tentar articular a arte com o Direito. Uma trasdisciplinariedade, diria, mais hermenêutica que científica. Em 2004, os estudantes da Universidade de Fortaleza-UNIFOR organizaram uma semana de Arte e Direito que me permitiu perceber que estava ocorrendo uma virada de página nas preocupações da academia jurídica brasileira. Senti que era im-

Sempre tentei abrir a compreensão do Direito aos saberes das outras áreas

portante acompanhar essa virada de página retornando ao Surrealismo, expressa e manifestamente. Já que nunca abandonei uma atitude surrealista para olhar criticamente as concepções do Direito e como meu próprio devir. Sempre estive preocupado pelo modo como os processos de ensino tradicional do Direito terminavam roubando a sensibilidade do corpo dos futuros bacharéis que saiam dos cursos, com o canudo na mão, bastante ou absolutamente “pinguinizados”. Tenho cada vez

mais claro que, através de uma pedagogia artística, é possível evitar a continuação do espólio da sensibilidade dos estudantes de direito. Está sugerindo a possibilidade de relação entre Direito e Arte? Quais são essas possibilidades? As relações são de vários tipos, vários caminhos se abrem. Estamos em um ponto de interseção, desde onde podemos partir para vários caminhos diferentes. Um primeiro caminho, quase uma grande avenida, nos

A relação entre Direito e Arte tem uma grande avenida a ser descoberta e explorada

direciona a pensar numa pedagogia da arte. A relação entre arte, docência e teoria permitem antever a emergência de novas concepções de ensino e aprendizagem. Uma educação integral que permita transcender os estreitos limites formais e a obsessão informativa. Aqui podemos indicar outro caminho: através da união entre arte e pedagogia na aprendizagem do Direito, podemos vislumbrar o surgimento de uma concepção do Direito que possa ir além do nor-

mativismo, refiro-me a uma concepção emancipatória do Direito. O terceiro caminho é o do próprio Surrealismo. Ajudar a construir uma metodologia da aprendizagem e uma concepção surrealista do Direito que permita aprender a fugir dos lugares comuns do social e do próprio Direito. Aprender a viver nossas relações e conflitos à margem dos lugares comuns e das crenças estereotipadas. Finalmente, a arte permite nos encontrarmos de outra maneira com as relações de alteridade. A possibilidade de nos encontrarmos com as zonas de inacessibilidade do outro se logram, unicamente, através da sensibilidade. A arte me mostra que é o melhor caminho para a inclusão social dos excluídos. A recuperação da autonomia, a descoberta de um sentido para a vida é sempre através da arte, porque não pode haver outro modo de fazê-lo que através da poesia. Evidentemente, uma nova concepção do Direito deve ser transdisciplinar, porém de uma transdiciplinariedade que seja mais que uma simples interseção, que habilidades oriundas de diferentes lugares de saber. Precisamos falar de um lugar “trans” que agregue uma nova dimensão no espaço pedagógico: o espaço da sensibilidade e das artes. Assim, a arte nos abre uma infinidade de mundos e ajuda a encontrarmos nosso sentido da vida. Nosso lugar na vida como sentido. A arte nos ajuda a construir um caminho pessoal e único. Creio que a arte também tem um papel muito importante no processo de construção da emancipação individual e coletiva. Na verdade, penso que a única forma de fazemos uma revolução existencial é através da arte. A única forma de fazermos as revoluções moleculares no século XXI. E o papel do Direito na sociedade? Diria que temos que falar em plural, pois o Direito tem vários papéis na orientação de nossas ações em

O Surrealismo pode ajudar a construir metodologias de aprendizagem e construção do Direito sociedade: ajudar a construir relações baseadas na alteridade e não num enfrentamento dos individualismos com a fome de possuir; contribuir nos processo de emancipação; ajudar na instrumentalização parcial dos direitos humanos, entre outras funções que no momento seria demasiado extenso de enumerar. Como define o Surrealismo? O Surrealismo é a fuga dos lugares comuns para pegar o caldo da onda da existência. Por que retornar ao Surrealismo? Eu retornei ao Surrealismo por uma necessidade de sentido de minha própria existência. Quando me dei conta que o falso caminho que havia me levado à busca da compreensão epistemológica do Direito me havia roubado a vida. Quais as condições de relação entre epistemologia e estética? Não creio possível. A estética e a epistemologia apontam para coisas diferentes. A estética requer um trabalho de hermenêutica; a epistemologia é uma instância de controle das condições de produção dos enunciados científicos. Epistemologia se preocupa em dar resposta às condições de produção dos sentidos semânticos. A estética tem relação com as formas. E, a arte em geral, tem que ver com as condições de interpretação e atribuição dos sentidos poéticos na ação humana. Como é possível inscrever o poético no corpo e na ação dos homens.


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Arte e direito começam a virar a página M

arta Gama, mestranda em Direito pela UNB, entrevistou o jusfilosofo Luis Alberto Warat sobre as suas recentes incursões no campo da estética e sua pesquisa em torno das condições de possibilidade de conexão entre Direito e Arte. Professor Luis Alberto Warat, seu pensamento é extremamente complexo, sua obra é marcada por rápidas mutações e deslocamentos, nem sempre assimilados pela comunidade jurídica brasileira...Poderíamos dizer que voce é um homem além de seu tempo? De maneira alguma. Porém sua pergunta é muito pertinente. É muito provável que eu tenha deixado essa sensação, mas garanto que não há uma atitude minha que a justifique. Posso concordar com você pelo fato de meu discurso ser visto, pela maioria, como além dos discursos jurídicos geralmente produzidos e aceitos como tais. Os juristas, às vezes, têm uma atitude um tanto fóbica em relação a toda forma de conhecimento que cheire, ainda que um pouco, à interdisciplinariedade. Fecham-se numa concepção normativista que ainda postulam como produtora de um saber científico. Ignoram ou se despreocupam em sintonizar seu discurso com o resto dos chamados saberes das ciências sociais. Daí decorre, por exemplo, a incompatibilidade do que se afirma nos saberes dogmáticos do direito com relação ao funcionamento e caracteres das linguagens jurídicas e as análises elementares sobre o funcionamento das linguagens naturais produzidas pela lingüística após Saussure. Eu sempre tentei produzir um tipo de discurso que abrisse a compreensão e a produção do Direito aos saberes de outras áreas. Tive uma atitude transdisciplinar que, por isso mesmo, deixou nos juristas mais normativistas uma sensação de visão antecipatória, quando na realidade, meu discurso é, antes de qualquer coisa, a projeção de outras áreas de conhecimento sobre o Direito.

A sua constante inquietação marca diversos momentos em sua obra. Assim, poderíamos identificar uma preocupação epistemologica na sua obra A ciência jurídica e seus dois maridos, uma incurssão no Surrealismo no Manifesto para uma ecologia do desejo, entre outros. Atualmente quais temas tem sido objeto de suas reflexões? No momento que publiquei A ciência jurídica e seus dois maridos, acredito ter produzido uma ruptura com os modos de refletir o Direito que vinha desenvolvendo desde Buenos Aires. Preocupava-me introduzir no Direito uma dimensão de epistemologia das ciências sociais, que sentia, salvo o caso de Kelsen, um tanto ausente no pensamento dogmático. A ciência Jurídica e seus dois maridos representa minha primeira incursão no Surrealismo, minha tentativa (que é uma constante em mim), de romper com o positivismo e seus efeitos fálicos. Estou falando dos anos 80! Agora, a partir de 2004 volto a revisitar o Surrealismo, acompanhando um movimento que se está produzindo no Brasil de maneira, por enquanto, bastante silente, no sentido de tentar articular a arte com o Direito. Uma trasdisciplinariedade, diria, mais hermenêutica que científica. Em 2004, os estudantes da Universidade de Fortaleza-UNIFOR organizaram uma semana de Arte e Direito que me permitiu perceber que estava ocorrendo uma virada de página nas preocupações da academia jurídica brasileira. Senti que era im-

Sempre tentei abrir a compreensão do Direito aos saberes das outras áreas

portante acompanhar essa virada de página retornando ao Surrealismo, expressa e manifestamente. Já que nunca abandonei uma atitude surrealista para olhar criticamente as concepções do Direito e como meu próprio devir. Sempre estive preocupado pelo modo como os processos de ensino tradicional do Direito terminavam roubando a sensibilidade do corpo dos futuros bacharéis que saiam dos cursos, com o canudo na mão, bastante ou absolutamente “pinguinizados”. Tenho cada vez

mais claro que, através de uma pedagogia artística, é possível evitar a continuação do espólio da sensibilidade dos estudantes de direito. Está sugerindo a possibilidade de relação entre Direito e Arte? Quais são essas possibilidades? As relações são de vários tipos, vários caminhos se abrem. Estamos em um ponto de interseção, desde onde podemos partir para vários caminhos diferentes. Um primeiro caminho, quase uma grande avenida, nos

A relação entre Direito e Arte tem uma grande avenida a ser descoberta e explorada

direciona a pensar numa pedagogia da arte. A relação entre arte, docência e teoria permitem antever a emergência de novas concepções de ensino e aprendizagem. Uma educação integral que permita transcender os estreitos limites formais e a obsessão informativa. Aqui podemos indicar outro caminho: através da união entre arte e pedagogia na aprendizagem do Direito, podemos vislumbrar o surgimento de uma concepção do Direito que possa ir além do nor-

mativismo, refiro-me a uma concepção emancipatória do Direito. O terceiro caminho é o do próprio Surrealismo. Ajudar a construir uma metodologia da aprendizagem e uma concepção surrealista do Direito que permita aprender a fugir dos lugares comuns do social e do próprio Direito. Aprender a viver nossas relações e conflitos à margem dos lugares comuns e das crenças estereotipadas. Finalmente, a arte permite nos encontrarmos de outra maneira com as relações de alteridade. A possibilidade de nos encontrarmos com as zonas de inacessibilidade do outro se logram, unicamente, através da sensibilidade. A arte me mostra que é o melhor caminho para a inclusão social dos excluídos. A recuperação da autonomia, a descoberta de um sentido para a vida é sempre através da arte, porque não pode haver outro modo de fazê-lo que através da poesia. Evidentemente, uma nova concepção do Direito deve ser transdisciplinar, porém de uma transdiciplinariedade que seja mais que uma simples interseção, que habilidades oriundas de diferentes lugares de saber. Precisamos falar de um lugar “trans” que agregue uma nova dimensão no espaço pedagógico: o espaço da sensibilidade e das artes. Assim, a arte nos abre uma infinidade de mundos e ajuda a encontrarmos nosso sentido da vida. Nosso lugar na vida como sentido. A arte nos ajuda a construir um caminho pessoal e único. Creio que a arte também tem um papel muito importante no processo de construção da emancipação individual e coletiva. Na verdade, penso que a única forma de fazemos uma revolução existencial é através da arte. A única forma de fazermos as revoluções moleculares no século XXI. E o papel do Direito na sociedade? Diria que temos que falar em plural, pois o Direito tem vários papéis na orientação de nossas ações em

O Surrealismo pode ajudar a construir metodologias de aprendizagem e construção do Direito sociedade: ajudar a construir relações baseadas na alteridade e não num enfrentamento dos individualismos com a fome de possuir; contribuir nos processo de emancipação; ajudar na instrumentalização parcial dos direitos humanos, entre outras funções que no momento seria demasiado extenso de enumerar. Como define o Surrealismo? O Surrealismo é a fuga dos lugares comuns para pegar o caldo da onda da existência. Por que retornar ao Surrealismo? Eu retornei ao Surrealismo por uma necessidade de sentido de minha própria existência. Quando me dei conta que o falso caminho que havia me levado à busca da compreensão epistemológica do Direito me havia roubado a vida. Quais as condições de relação entre epistemologia e estética? Não creio possível. A estética e a epistemologia apontam para coisas diferentes. A estética requer um trabalho de hermenêutica; a epistemologia é uma instância de controle das condições de produção dos enunciados científicos. Epistemologia se preocupa em dar resposta às condições de produção dos sentidos semânticos. A estética tem relação com as formas. E, a arte em geral, tem que ver com as condições de interpretação e atribuição dos sentidos poéticos na ação humana. Como é possível inscrever o poético no corpo e na ação dos homens.


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cultura popular é capaz de compreender a sociedade na qual se insere e o rock é uma das formas de manifestação dessa cultura. Assim, é capaz de pensar, criticar e narrar a realidade social. O rock mostra, com sua criatividade, a capacidade que a sociedade tem de oferecer alternativas a modelos tidos como únicos. Num mundo globalizado, regido, de certa forma, por meio das forças da propaganda e da mídia, tem sido cada vez mais difícil encontrar espontaneidade. E esses veículos de massa acabam por dominar todos os espaços, retirando do mundo o sentimento, a vitalidade e a originalidade, substituindo-os por sexualidade barata e consumismo. Nesse sentido, expurgam a chamada música erudita, criam a música pop e pretendem determinar o que é música popular, moldando o gosto das pessoas conforme as necessidades de mercado. Mas, ao mesmo tempo em que o rock não escapa a isso, ele oferece focos de resistência a esse domínio. É interessante que bandas e artistas que não são sequer tocados em rádios ou na televisão consigam arrebanhar milhares de fãs. E isso se torna mais curioso quando esses artistas não estão dispostos a falar de bunda, peitos ou a cantar letras prontas pré-aprovadas por suas gravadoras. Ora, o rock é mais que um estilo musical, é uma forma de movimento social. Determina moda, atitudes e comportamentos (foi assim com os movimentos hippie, glam e grunge nos Estados Unidos e com o punk na Inglaterra), serve de forma de contestação política (as bandas dos finais dos anos 1960 e de 1970 foram as porta-vozes do movimento hippie e se opuseram à Guerra do Vietnã; recentemente, várias bandas americanas saíram pelos Estados Unidos em campanha contra a reeleição de Bush) e cria brechas na estrutura social que propiciam mudanças a partir da contestação de valores estabelecidos, como a revolução sexual nos EUA – movimento hippie – e a valorização dos jovens desempregados e operários das periferias da Inglaterra

– movimento punk. Além disso, pode ser encarado como uma forma de narrativa da contemporaneidade. É possível ver isso a partir de alguns exemplos aleatórios. Problemas contemporâneos estão presentes na fúria e na sentimentalidade do rock pesado. A igualdade forçada do socialismo foi criticada na metáfora “The Trees”, do Rush (“And the trees are all kept equal/ By hatchet, axe and saw” – E as árvores são mantidas todas iguais/ por machadinha, machado e serrote). A queda do muro de Berlim, que simbolizava uma pretensa dicotomia entre liberdade e igualdade, foi cantada como momento de esperança pelo Scorpions em “Wind of Change” (“Did you ever think/ That we could be so close, like brothers” – Você alguma vez pensou/ Que poderíamos estar tão próximos, como irmãos?). Mas o fim da guerra fria marcou também o chamado fim das ideologias, a incapacidade de se pensar modelos alternativos. E isso está presente nas letras de várias bandas. A perda de controle das nossas vidas e de nossas liberdades dentro de uma realidade manipulada na qual somos apenas marionetes é o tema da música “Be Quick Or Be Dead”, do Iron Maiden (“See what’s ruling all our lives/ See who pulls the strings” – Veja quem está controlando nossas vidas/ Veja quem mexe as cordinhas). Faith No More indica a transformação do sujeito em elemento de lucro e exploração na letra de “Everything’s Ruined” (“Things worked out better then we had planned/ Capital from boy, woman and man” – As coisas funcionaram melhor do que planejamos/ Capital de menino,mulher e homem) e Metallica narra a submissão da individualidade em “Unforgiven”. Essas questões podem ser enquadradas em um contexto mais amplo: aquilo que se chama de “crise da modernidade”, que diz respeito, grosso modo, a essa incapacidade de se pensar meios de vida alternativos ao capitalismo, o fim das ideologias e a aceitação de que o modelo de vida ocidental é o único viável. Enfim, a idéia de crise da modernidade está ligada à incapacidade de se pensar alternati-

vas ao modelo hegemônico imposto pelo discurso economicista do capitalismo, que fala em indivíduos retirando suas individualidades, pois fala em igualdade sem considerar diferenças. Ora, essa crise da modernidade pode ser vista nas músicas de várias bandas de rock. As mais emblemáticas são, creio, as letras de “Segundafeira Blues” (I e II), dos Engenheiros do Hawaii, que cantam a tristeza da perda dos sonhos por um mundo melhor e a falta de discursos “racionais” capazes de recuperá-los (“Onde estão as provas, onde estão os fatos?/ As boas novas eram só boatos?”). Mas a crise é cantada também por Pearl Jam em “Do the Evolution”, que faz uma sátira à sede de progresso e ao egoísmo humano que levam às guerras e à destruição da natureza, portanto, levam à destruição da própria humanidade (“I’m ahead, I’m a man/ I’m the first mammal to wear pants/ I’m at peace with my lust/ I can kill cause in God I trust” – Estou à frente, sou um homem/ Sou o primeiro mamífero a usar calças/ Estou em paz com minha luxúria/ Posso matar pois em Deus eu confio). Que justiça podemos ter dentro dessas condições narradas? Obviamente uma que não consegue encontrar um critério único do que é justo. Uma justiça que reconhece a sua relatividade e não é capaz de produzir um discurso sobre o bom e o justo que seja coerente. Incapaz, por-

tanto, de enxergar especificidades que demandam reconhecimento ao negarem a inserção no discurso hegemônico dos vencedores da guerra fria. Enfim, uma justiça falida, tal qual a denunciada pelo Metallica em “And Justice For All” (“Justice is lost/ Justice is raped/ Justice is gone/ Pulling your strings/ Justice is done/ Seeking no truth/ Winning is all/ Find it so grim/ So true/ So real” – A Justiça está perdida/ A justiça está violentada/ A Justiça se foi/ Mexendo suas cordinhas/ Justiça está feita/ Sem procurar a verdade/ Vencer é tudo/ Encontre-a tão severa/ Tão exata/ Tão real). Mas, ao mesmo tempo em que identificam as vicissitudes e trazem para a superfície a crueza da nossa realidade, servindo como voz da consciência social, essas bandas nos exortam à resistência e à superação desses problemas. Assim é que Humberto Gessinger responde a pergunta “Pra que(m) cantar?”: “pra quem não tem a senha/ pra quem não teve acesso/ e vive do lado de fora da ordem e progresso/ (...) pra quem mantém a fé ardendo na fogueira/ sob um céu de viaduto, alimentando a caldeira/ (...) porque é preciso perguntar sem esperar resposta” (Humberto Gessinger Trio, “Pra que?”) e canta que vale a pena continuar sonhando e tentando, nem que seja “por amor às causas perdidas” (Engenheiros do Hawaii, “Dom Quixote”).

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Interpretar é remontar quebra-cabeças A arte de interpretar consiste em remontar o grande quebra-cabeça de significantes-significados e suas unidades expressivo-comunicativas. A poesia não estaria nos termos e expressões, mas num toque mágico, num relâmpago intuitivo. Um bailar dos signos que se destina a dizer o indizível, um bailar de sentidos que vai sendo descortinado. Neste exercício a liberdade é fundamental, mas o intérprete deve lançar mão de um recurso, uma liberdade controlada, que resguarda o literalismo e só o abandona quando este se torna prejudicial. Uma liberdade controlada para evitar as distorções hermenêuticas que insiste em ocultar o óbvio ou minimizar o que não pode ser escondido. Artistas e juristas podem ser comparados, cada um com seu objeto, a um jardineiro. Este antes de cuidar das flores precisa estudálas, compreender seu contexto, história, origem, limitações e possibilidades. O esforço literário e jurídico consiste na colocação real, concreta, histórica e social da poesia e do direito. Distanciar tanto o direito como a poesia do real e do concreto significa deformá-los, castrálos, matá-los. Tocar o pensamento de Lyra Filho, em sua árdua tarefa de desvelar fragmentos do real, é ter em mente a força criadora do artista e do jurista. Artista, não apenas por escrever suas próprias poesias, mas por acreditar que ao traduzir poesias de outros estaria (re)criando a partir do existente, fazendo arte sobre arte. Jurista, não apenas por refletir e escrever sobre o direito, sobretudo, por tentar compreender o antidireito. Nomes diferentes, ora Roberto Lyra Filho, ora Noel Delamare, de dois personagens que se bifurcam em seu destino compassado. Assim como na poesia o ritmo dita todo o processo, no pensamento jurídico lyriano sempre foi possível escutar também o pulsar de um ritmo, ritmo cadenciado nas ruas, nos reclames sociais, no mundo da vida, um mundo cheio de poesia e de lirismo.

A arte é o fio condutor para uma apurada reflexão sobre política, direito, ciência e vida. Uma reflexão vinculada à luta contra todas as formas de opressão e injustiça


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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

Striptease no Judiciário Pedro Teixeira Diamantino

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Roberto Lyra Filho

O jurista e o artista Adriana Miranda e Mariana Veras

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oberto Lyra Filho, jusfilósofo brasileiro, desenvolveu seu trabalho intelectual fundado no estudo crítico do direito. Nas horas vagas, dedicava-se àquilo que em suas próprias palavras definiu como algo que lhe dava imenso prazer: o estudo da literatura, prosa e poesia, a tradução e crítica de textos e a composição de suas próprias obras de arte. Para o direito ele era Lyra Filho. Nas artes era Noel Delamare. A leitura integral de sua obra nos mostra que a dimensão poética e artística transcende o campo lúdico e estético. Arte e direito se confundem. O lírico e o jurídico se complementam na construção de uma só

concepção sobre o mundo e sobre o homem. Um diálogo se estabelece entre o direito, sinônimo de liberdade, e a arte, como caminho genuíno para emancipação. A arte é o fio condutor para uma apurada reflexão sobre política, direito, ciência e vida. Uma reflexão vinculada à luta contra todas as formas de opressão e injustiça. Mas não se trata de qualquer arte, de qualquer poesia. Há que ser a superior poesia. Do mesmo modo, não estamos falando de qualquer direito, mas de um direito em movimento. A superior poesia é aquela que se relaciona com a solidariedade, solidão e transcendência. Solidariedade como expressão de uma eterna luta por liberdade. Solidão porque impregnada pela problemática in-

dividual e concreta sem se desvincular da esfera coletiva. E transcendência enquanto busca pelo absoluto, onde o poeta, assim como o solista, compõe, ao mesmo tempo, o coral da humanidade na busca de uma verdade. Essas três categorias estão presentes também nas reflexões lyrianas sobre o discurso técnico-científico. Enquanto a ciência nos reporta à explicação, a arte nos conduz à pura intuição, isto é, a tentativa de apreensão da realidade a partir de um conhecimento intuído. E, no entanto, o discurso científico, por mais demonstrativo e explicativo que seja, sempre revela, ao final, um conhecimento também intuído, uma emoção humana e certa iluminação poética.

O discurso científico, por mais demonstrativo e explicativo que seja, sempre revela uma emoção humana e certa iluminação poética

m fevereiro de 2003, a revista Veja publicou reportagem intitulada Vestidos para o Sucesso, trazendo a importância do vestuário para os juristas. Os entrevistados revelaram que já na faculdade vêem todo mundo se produzindo e lembram dos fortes obstáculos enfrentados pelos profissionais que não se vestem conforme as expectativas estéticas da comunidade jurídica. Uma advogada, exalando poder em sua figura, confirma que o cuidado com as roupas é arma na hora de conquistar clientes. De outro lado, em nossos tribunais pululam portarias, resoluções e circulares inconstitucionais, condicionando o acesso de qualquer pessoa às sessões públicas de julgamento ao uso de terno ou tailleur (“terninho”). O Estatuto da Advocacia reivindica para os Conselhos Seccionais da OAB o monopólio da definição dos critérios para o traje dos advogados. Por que tais adereços são tão indispensáveis num espaço forense tropical? Por qual motivo a falta do terno ou do tailleur impede o acesso cidadão a certos atos públicos no interior do poder judiciário? A preocupação dos personagens da reportagem é o acesso à ordem de uma vestimenta hierarquizada, transmissora da segurança e certeza de que estamos diante de quem está autorizado a falar das leis e do direito. Trata-se da compulsiva busca de enquadramento na tipologia do doutor bacharel, identificado com o discurso competente que, por outro lado, despersonaliza e desautoriza a fala dos pobres mortais destinatários dos serviços forenses. A sobrevida da violência simbólica depende de uma aquiescência quase inconsciente, acobertada por um manto ideológico que nos impede de enxergar: homens e mulheres “de preto” acenando para valores concatenados por Max Weber na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. No Ensaio sobre a cegueira, José Saramago sugere: se podes olhar, vê, se podes ver, então repara. A imagina-

ção pode, pelo buraco da fechadura dos lugares comuns, fazer strip-tease dos simulacros da ordem. Entrar em contato com a mística que circunda os personagens da justiça é reparar máscaras sociais em desenhos cristalizados de roupas que delimitam o espaço formalista, hermético e elitista do poder judiciário no Brasil. Um sentido comum indumentário seria horizonte da transpiração da legalidade introjetada no corpo dos juristas, como celebração do ideário solipsista do indivíduo de Kant, misturado ao proselitismo acrítico da elite bacharelesca. Vestuário é linguagem que vai tecendo personalidades, acrescentando valores, identidades e significados à nossa nudez, distinguindo-nos e formando dialetos. Como não há significados isentos da atuação ideológica na linguagem, que sempre constitui jogos de poder, as roupas, colocadas em processos ritualizados de comunicação, mitificam-se como fios condutores de mensagens e vontades de poder. Vestir-se é tramar intencionalidades que definem a eficácia e a identidade do discurso. As vozes do terno, da gravata, do tailleur e da toga podem ser vozes da técnica-formal, da noção de ordem e

hierarquia como germens de um mundo fundado em sujeitos da altacultura, postados como fonte privilegiada das escolhas econômicas, sociais e políticas de toda sociedade. Uma razão formalista que, firmada em meio à necessidade de legitimar a condição paradoxal do progresso excludente, traz do gabinete os odores da violência impessoal, seletiva e “universalmente válida”. Passarelas do formalismo As vestes dos personagens do palco jurídico tecem a hegemonia estética da burguesia positivista e um ser/parecer com austeridade, sobriedade, neutralidade e primazia da forma sobre o conteúdo. Como tecelagem do “ser” da civilização ocidental capitalista sobre todas as outras formas de vida, a linguagem indumentária articula um conjunto de adereços identificadores de uma casta. A mentalidade positivista deu a roupagem mais sóbria do monastério dos sábios. Não seria o terno e a gravata, o “terninho”, o tailleur, simulacros expressivos do Código Napoleônico e da Revolução Industrial? No Brasil, o striptease é dança ao som dos estertores coloniais de um

aparato judicial que até hoje resiste à imaginação criativa da diversidade. Denota subserviência e lealdade à Corte em troca de acesso exclusivista ao poder. É Razão oficial marcada pela arrogância e aversão à diversidade cultural, pintando territórios íntimos com tintura de territórios desconhecidos. Quem veste toga não demonstra sensibilidade ao frio, nem vaidade estilística. A toga é papel social de juiz togado, que significa não-leigo. No rito mágico da audiência judicial ela é o lugar da palavra final autorizada pelo governo das leis. Diferencia o togado de outros personagens e, como arquétipo, projeta o universo jurídico romano da propriedade privada e da burocratização do poder político para o direito de nossos tempos. Nas passarelas judiciárias as roupas são teias da assimilação do hábito que fala pelo monge. O lugar europeu desta moda e o século XIX são clarividentes. Sua linguagem contribui com a poderosa ordem do sentido comum profissional, dando coesão a uma comunidade que insiste em se fechar. A eficácia da forma jurídica deve muito à edificação de um saber forjado nele mesmo, num universo independente em que a autoridade da violência simbólica é produzida e exercida como pano de fundo da legitimidade estatal. A aderência ao perfil estilizado traduz o grau de adesão ao patrimônio do mundo jurídico, em que a legitimidade da burocracia é o outro lado do imobilismo social e estético. O striptease aponta para uma tradição dependente. Imaginar as roupas no mundo jurídico é perceber a seletividade e hegemonia do individualismo possessivo do século XIX que ainda domina. As relações da indumentária com processos de concentração de saber-poder são inegáveis. A compreensão histórica do mito é um desafio para a postulação de uma coesão interna entre direito e democracia. Não é por mera coincidência que tal padrão indumentário passou por poucas modificações nos dois últimos séculos.


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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

O Direito Autoral e a livre informação Paulo Rená Santarém e Rodrigo Lobo Canalli

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conjunto de alguns episódios atuais evidencia a crise por que passa a propriedade intelectual. Escoteiros foram processados nos EUA por tocar e cantar músicas populares ao redor de fogueiras sem prévia autorização dos titulares dos direitos autorais; gravadoras demandaram indenização milionária de uma menina de doze anos que usou a Internet para copiar arquivos de música; países em desenvolvimento ameaçaram violar patentes de uma série de medicamentos, alegando que a saúde pública não pode se curvar a interesses econômicos de laboratórios. Transformações tecnológicas alteraram o volume e a velocidade das comunicações e conta-se com um acesso virtualmente instantâneo a obras musicais, cinematográficas e literárias. Em descompasso com essa realidade, as leis vigentes rotulam criminosas diversas práticas maciçamente difundidas e crescentes na sociedade. Se tais normas surgiram para promover o desenvolvimento intelectual e fomentar a criação artística, hoje a estrutura legislativa emperra as novas possibilidades de preservação e difusão da produção cultural. Primeira lei sobre o tema, o Estatuto da Rainha Anna estabeleceu em 1709 no Reino Unido a proteção por 14 anos do direito do autor sobre a impressão de sua obra, substituindo o monopólio perpétuo dos editores. Desde então, tal lapso vem sendo estendido e hoje no Brasil é de 70 anos após a morte do autor. Ironicamente, a restrição de uso e reprodução explica porque obras ar-

tísticas e culturais de menor interesse comercial acabam se deteriorando e desaparecendo, mesmo tendo inestimável valor como patrimônio cultural de um povo ou era. A proteção no tempo somente é benéfica para as obras que mantém duradouro apelo econômico. A grande parte perde esse atrativo em menos de cinco anos, e a demora até alcançar o domínio público leva à sua perda completa, prejudicando a própria sociedade. A Internet surgiu como uma promessa de revolução no espaço e no tempo da comunicação, tornando livre e ampla a circulação de informação. Mas a legislação nacional e internacional se ocupa em esterilizá-la. Pelos critérios atuais, os monges medievais que possibilitaram nosso acesso a obras-primas da Antigüidade seriam facilmente considerados “piratas”. Como alternativa, numerosas ex-

periências de sucesso, no Brasil e no exterior, mostram ser viável pensar formas diferentes de ver e lidar com os direitos decorrentes da autoria de obras artísticas e intelectuais. Em oposição ao copyright, literalmente “direito de cópia”, criou-se o conceito de copyleft, “permissão de cópia”, que se espalha e alimenta uma infinidade de projetos pelo mundo, propondo a inversão das leis de propriedade intelectual: ao licenciar uma obra, o titular permite expressamente a qualquer um sua livre utilização, reprodução, divulgação e mesmo modificação, ressalvando que ninguém poderá adicionar restrições, inclusive a obras derivadas que vier a produzir. Essa idéia impulsionou o movimento do software livre, que desenvolve programas de computador sem proprietários, de código-fonte aberto e de livre reprodução, uso e modificação, desde que conservadas essas li-

berdades. A idéia atinge ainda obras literárias, musicais e científicas, licenciadas sob modelos inspirados no copyleft. Exemplo de viabilidade concreta dessas alternativas, a Wikipedia é hoje a mais completa e acessível enciclopédia no mundo. O Brasil não está alheio a este cenário. Sensível ao impacto que as novas possibilidades de difusão do conhecimento e da cultura provocam no marco legal dos direitos autorais, o Ministério da Cultura tem se mostrado interessado em participar do debate sobre a necessidade de uma reformulação da legislação que, em vez de marginalizá-las, estimule o seu desenvolvimento. Exemplo dessa abertura é a criação do portal www.dominiopublico.org.br, propiciando fácil e irrestrito acesso a obras artísticas e científicas que estejam sob o regime jurídico do domínio público ou de divulgação autorizada pelo titular.

Não é democrático legislar represando a informação circulante, quando os meios tecnológicos disponíveis permitem sua livre difusão em escala sem precedentes

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A ciência, o mito e o reencantamento do mundo Desde Nietszche, porém, isso tem se modificado. Em vez de fazer uma teoria unificada, ele realizou uma série de reflexões tão fragmentárias como as narrativas mitológicas. Em vez de priorizar a razão, ele priorizou a estética, a ação e o desejo, como constituintes do que há de humano no mundo. E, em vez de procurar na ciência os conceitos com base nos quais poderia compreender o homem, foi buscá-los na mitologia e na literatura gregas, recuperando as figuras dos deuses Apolo e Dionísio. Também a psicanálise, na busca de compreender o inconsciente, encontrou na mitologia arquétipos como os de Édipo e Narciso, que nos servem como poderosas ferramentas para a autocompreensão do imaginário fundante dos indivíduos modernos e das sociedades que eles compõem. E o discurso psicanalítico, assumidamente não-científico, nos ajuda a formular narrativas nas quais sejamos capazes de elaborar nossa própria subjetividade. O imaginário inconsciente fala por meio de símbolos, e é sobre este pano de fundo que conferimos sentido às nossas ações e pensamentos. Por isso, os modos de composição dos nossos mundos simbólicos se aproximam das narrativas mitológicas e literárias. Assim, embora a formação de um universo simbólico até possa admitir uma explicação causal, que mostre as suas origens históricas, o comportamento das pessoas dentro desse universo não se explica mediante relações de causa e efeito, pois os homens se comportam como se fossem reais os sentidos que eles atribuem ao mundo. Essa dimensão simbólica, que o positivismo cientificista é incapaz de desvelar adequadamente, pode abrir-se aos nos-

O comportamento da pessoa, no universo simbólico, não se explica mediante relações de causa e efeito

sos olhos por meio da arte. É esse universo simbólico social que instaura o imaginário jurídico, em que são definidos os argumentos dogmaticamente relevantes, a função da lei, o papel dos juízes, a finalidade do direito: explicá-lo exige reencantar o mundo com os fantasmas contemporâneos, tais como o contrato social, o poder constituinte originário, os direitos humanos e outros deuses e heróis das nossas modernas mitologias. A arte diz muito pouco do mundo objetivo, pois ela é assumidamente uma perspectiva criativa e arbitrária sobre o mundo. Mas que resta da objetividade, quando o relativismo historicista nos roubou a

Verdade e, ensinando-nos a olhar reflexivamente nossa própria atividade cognitiva, legou-nos a noção de que todo discurso sobre o mundo da vida é uma espécie de narrativa mitológica? Resta-nos, pois, reconhecer o caráter mitológico da objetividade científica e buscar compreender simbolicamente o imaginário social, o que nos inspira a ler a realidade humana como um conjunto de narrativas fragmentárias e simbólicas, e não como um sistema de fatos causalmente entrelaçados. Com isso, abre-se o caminho de ler o direito como uma narrativa, como um discurso que não apenas esclarece fatos e estabelece nor-

O Direito como narrativa, como relato mitológico que reflete imaginários e/ou consolida arquétipos mas, mas como um relato mitológico que simultaneamente reflete imaginários e os funda, que cria e consolida os arquétipos com os quais constituímos o nosso universo simbólico, que é a realidade na qual vivemos.


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Ciência do Direito ou Mitologia Jurídica? Alexandre Araújo Costa

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s antigos explicavam o mundo por uma série de narrativas mitológicas, histórias que transmitiam valores morais (como a dignidade da coragem e o desvalor da vaidade) e esclareciam as origens das regularidades naturais (como o ciclo das estações e o movimento do sol). Assim, era contando as aventuras de deuses e mortais que essas sociedades atribuíam sentidos ao homem e ao cosmos. Com o tempo, a explicação mitológica foi sendo transformada em doutrina, convertendo-se gradualmente de relato em metáfora. A mitologia não se mantinha pela crença efetiva nos mitos, mas pela carga simbólica que eles portam: o símbolos de Hércules e de Narciso conferiam sentido ao mundo dos homens pelo seu caráter exemplar e pedagógico, e não pela sua existência histórica, que, afinal de contas, era irrelevante para o cumprimento da sua função simbólica. Com Platão, que escrevia sempre na forma de diálogos, a explicação se assumiu definitivamente como metáfora: os debates que ele narra e os mitos que ele inventa não pretendem contar as origens do mundo, mas oferecer um relato pleno de significação filosófica. Porém, essa forma literária de fazer filosofia logo perdeu espaço para um novo tipo de discurso: a teoria, que explica a realidade de modo abstrato e conceitual. Assim, no discurso teórico, a explicação do mundo deixou de ser narrativa e passou a ser descritiva: a teoria limita-se a descrever a realidade, esclarecendo a essência de tudo o que existe no mundo físico (astros, corpos, animais) e no mundo metafísico (justiça, verdade, beleza), bem como as relações entre esses elementos. Purificando o mundo dos personagens mitológicos, a teoria buscava esclarecer a própria estrutu-

ra da realidade, que era percebida como uma ordem orgânica: o cosmos era visto como um grande organismo, cujo funcionamento adequado dependia de que cada coisa realizasse devidamente as suas funções. Na tradição medieval, essa ordem passou a ser também normativa, pois as finalidades do homem e das coisas eram estabelecidas pelas leis naturais fixadas pelo Deus cristão. Então, a realidade já não mais era guiada pela volátil vontade de deuses antropormóficos, mas era regida por um conjunto de regras imutáveis e eternas, cabendo ao teórico desvelar as leis naturais que definem o modo de ser do mundo. Essas teorias normativas explicavam acontecimentos evidenciando relações de causa e efeito dos fatos entre si, mas também relações entre os fatos e as suas finalidades dentro da ordem natural. Com o tempo, porém, as explicações finalísticas foram sendo gradualmente abandonadas,

na medida em que se tornou hegemônica a noção cartesiana de que a ciência se resume a uma explicação mecânica do mundo. Essa tradição está na origem de um processo de cientifização, que foi do século XVII ao XIX, que nos ensinou a não mais perceber a realidade como uma ordem normativa, mas apenas como uma ordem meramente causal, a ser explicada com uma precisão e um rigor que só a matemática é capaz de conferir. Esse tipo de perspectiva nos legou a física, a química, a genética, disciplinas cujo conhecimento ampliaram imensamente as possibilidades de o homem modificar a si mesmo e de intervir no ambiente que o cerca. Porém, tudo o que não era conversível em números foi sendo relegado ao campo da poesia, e a racionalidade foi sendo gradualmente reduzida à capacidade de manipulação lógica de fatos empíricos e conceitos abstratos. Portanto, essa nova

sensibilidade não reconhecia como fontes de conhecimentos válidos a literatura, a arte, a retórica e tudo o mais que não fosse um discurso metodologicamente controlado sobre fatos empíricos. Para essa ciência moderna, apenas poderia haver uma Verdade, uma Racionalidade, um método, um único conhecimento científico, ainda que disperso em várias disciplinas igualmente racionais.

Está em causa a noção cartesiana de que a ciência se resume a uma explicação mecânica com o mundo

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Normas distantes da realidade social Por outro lado, a produção legislativa nacional permanece vinculada à perspectiva meramente econômica da propriedade intelectual como fim em si mesmo, levantando bandeiras dissociadas das transformações sociais. Em declarações dos membros da Frente Parlamentar de Combate à Pirataria, verifica-se a indistinção no tratamento da violação do direito autoral, do contrabando e da sonegação fiscal. Em compromisso com os setores que lucravam confortavelmente com a escassez de informação, propõe-se o combate implacável contra tudo o que se identifica como “pirataria”, marginalizando as novas formas sociais de produção e reprodução de arte e saber. É sintomático que no ordenamento brasileiro a criminalização de condutas, em 1830, tenha precedido à própria definição legal dos direitos de autor, só ocorrida com a promulgação da primeira Constituição Republicana. Devido a pressões internacionais sofridas no âmbito da OMC, a atual Lei dos Direitos Autorais restringiu as hipóteses de uso justo de obras protegidas. Além disso, com apoio e subsídios do setor privado, foram aprovadas propostas para aumentar a pena mínima para violações de direitos autorais e facilitar a apreensão e a destruição de produtos piratas. Os esforços legislativos, centrados na repressão, esquecem o que realmente está em jogo. O objeto do direito autoral é a própria matéria-prima da comunicação. A preocupação limitada aos aspectos patrimoniais contraria o princípio da liberdade de “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Do ponto de vista constitucional, não é democrático legislar represando a informação circulante quando os meios tecnológicos disponíveis permitem sua livre difusão em escala sem precedentes. Em termos econômicos, no passado os bens culturais eram escassos, pois a demanda não era atendida pelos meios de difusão existentes, cujos donos podiam controlar a comunicação e obter lucro, transformando-a em mercadoria. Essa tônica ainda move os mercados editorial

e fonográfico. Na prática, ao tornar fácil e rápido o compartilhamento de informação, a tecnologia de comunicação diminuiu seu valor econômico, pois alterou a razão entre necessidade e escassez. Essa redução de valor econômico não implica em redução de valor intrínseco. O ar, ainda que extremamente necessário, não tem valor econômico expressivo em condições normais, por ser abundante. No entanto, sua escassez nas profundezas dos mares e oceanos o torna uma mercadoria para mergulhadores. O ataque da indústria cultural, contra os benefícios proporcionados pela tecnologia, visa a forçar,

A Internet surgiu como promessa de revolução no espaço e no tempo da comunicação, tornando livre e ampla a circulação de informação por meio da legislação, a criação artificial de um ambiente de escassez. O desenvolvimento tecnológico, cada vez mais intenso, não só amplia o acesso da sociedade a uma quantidade crescente de informação, cultura e conhecimento, como também permite a constituição e definição de novas formas de interação. É so-

cialmente interessante que a regulação dos direitos autorais mantenha abertas essas possibilidades, em vez de criminalizar condutas para atender a uma perspectiva incompatível com a atualidade. De outra forma, essa incessante efervescência cultural continuará a se reproduzir à margem da legalidade.


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O encontro com o Surrealismo Jurídico

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Loucos artistas ou artistas loucos?

Desconstruindo mitos Janaína L. Penalva da Silva

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epressão, angústia, melancolia, agitação, mania são vivências comumente narradas como sintomas de loucos e traços da personalidade de pintores, atores, músicos e poetas. Da mesma forma, grandes nomes da ciência foram considerados insanos ao divulgarem idéias que, pela carga inovadora, representavam razões suficientes para considerá-los sujeitos sem razão. A enunciação do que não pode (ou deve) ser dito sempre foi uma das maneiras de ser louco, da mesma forma que a criação de algo que nunca antes fora imaginado é a única possibilidade de se fazer arte. Se-

rá que a criatividade e a sensibilidade - essências da arte - são potencializadas na loucura? A equiparação entre loucura e arte e entre genialidade e loucura não se fez impunemente. Uma visão “romântica” do que é ser louco, focalizada nessa suposta sensibilidade e criatividade artísticas, contribuiu para a consolidação de um imaginário opressor que só é capaz de aceitar a loucura quando ela nos brinda com a arte. Essa referência ao louco como um gênio ou como um artista, avalizada por casos históricos nos quais esse encontro foi real, camufla com cores a leitura excludente e violenta que se faz da loucura. Por trás da excepcio-

nalidade de sujeitos que conseguiram lidar com seu sofrimento utilizando a arte, esconde-se a opressão cotidiana da loucura. Seja pela permanência de um tratamento médico que segrega e aprisiona, seja pelas interdições impostas pelo Direito, essa suposta beleza ou criatividade intrínseca à loucura perdem sentido. A vivência diária dos ditos loucos, daqueles tantos incapazes de fornecer ou contribuir para o prazer estético do público, só se apequena quando sua condição é pensada nesses limites restritos, nos quais a “falta de razão” é identificada com a liberdade e potencialidade de criação, invenção e produção.

Os incômodos que a loucura impõe à convivência são exigências que demandam mais do que sensibilidade artística

Seguindo o caminho traçado pelos Surrealistas, Warat propôs o Surrealismo Jurídico. Uma revolução pedagógica no ensino do Direito rumo a transformação do homem. Um convite ao rompimento com a razão totalizante, com o controle racional, que subtraiu do homem sua imaginação, seus desejos, em troca de um mundo normalizado, conformista, povoado de clichês e de lugares comuns. Uma revolução do homem, das formas de viver, dos sentidos e significados que povoam o mundo, através da arte, do fazer artístico, da poesia. E essa revolução é uma revolução pedagógica porque começa a partir de uma nova visão sobre o que é o conhecimento jurídico e sobretudo sobre suas formas de transmissão; começa a partir da mudança de atitude do professor que deixa de ser o “mestre” de um suposto saber técnico-científico e passa a ser aquele que auxilia os alunos a encontrar um sentido para a vida, a contruírem a sua identidade. O conhecimento sobre si mesmo e sobre o mundo sensível ganha campo sobre o conhecimento tecnicista, como forma do ser humano se hominizar. Essa é a proposta do Surrealismo Jurídico que proclama a necessidade de despertar os sentidos, de recuperar a vida no desejo, de inscrever a poesia na vida. Uma proposta pedagógica para a revolução do homem, que rompe com o imaginário do Direito moderno fundado na crença de que o Direito é só a norma; e possibilita a formação de novos profissionais capazes de realizar suas práticas com fundamento na alteridade e na função pedagógica do conflito.

A possibilidade da instituição do novo O Surrealismo é mais que uma expressão estética, é uma concepção de vida, um olhar diferente para o mundo, longe das convenções e dos lugares comuns. Uma radical busca da alteridade, do reconhecimento do outro em sua expressão poética. Propõe a revolução da vida em todos os seus planos, nos seus valores, nas suas significações a partir da imaginação, do sonho, do inconsciente. O Surrealismo Jurídico, ao propor

uma revolução da forma de ensino do Direito, através da arte, abriu caminho para uma macro revolução, já que a revolução poética, dos sentidos, de libertação dos desejos, aponta para a própria revolução do homem e do mundo. Da palavra libertada, da imaginação descolonizada, pela magia dos sonhos, pelo ato poético de viver, emerge irresistivelmente uma nova forma de existir, novas maneiras de significar a vi-

da, as relações humanas, uma nova significação imaginária, que rompendo, enfim, com os grilhões de uma racionalidade totalizante, seja capaz de construir a autonomia individual e coletiva. Compreendo, assim, que o Surrealismo Jurídico abre caminho para uma nova concepção do Direito ao criar as possibilidade de instituição de um novo imaginário instituinte de uma nova sociedade.

Somente uma revolução surrealista poderá devolver ao homem o desejo, a imaginação e a sensibilidade


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O delírio que emancipa o homem Os incômodos que a loucura impõe à convivência, a necessidade de uma abertura à diferença que ela cria são exigências que demandam mais do que sensibilidade artística, são especificidades que demandam respeito. A vinculação entre doença mental e violência, entre loucura e perigo privou os loucos de liberdade e igualdade e nesse sentido foi estratégica a valorização de um lugar simbólico para a loucura: o espaço lúdico do belo, da arte, da descoberta. Nada mais opressor do que aceitar somente uma espécie de loucura, aquela que proporciona prazer e alimenta a alma, aquela que recompensa bem a permissão que lhe foi dada de existir, de se manifestar entre nós.

Surrealismo Jurídico, Arte e Direito: novos caminhos Marta Gama

N

o presente artigo tratarei de abordar, ainda que preliminarmente, as possibilidade de conexão entre Direito e Arte, na perspectiva de uma concepção emancipatória do Direito, a partir do Surrealismo Jurídico tal como proposto por Luiz Alberto Warat, no seu Manifesto do surrealismo jurídico. Warat, propõe o retorno ao Surrealismo como possibilidade de ruptura com o imaginário moderno e capitalista representado pela fé na razão, na ciência, no aumento da produção e no consumo, como meios capazes de construir a emancipação do homem. E com o imaginário que constitui o Direito moderno, representado no mito da neutralidade dos juízes, na distinção entre Direito, moral e política e na lei como única fonte do Direito, que denominou de senso comum teórico dos juristas. Para Warat somente uma Revolução Surrealista poderá devolver ao homem o desejo, a imaginação, a sensibilidade e a capacidade crítica, que lhe foram subtraídos pela

sociedade moderna através do aumento do controle racional sobre a vida dos indivíduos, da racionalização do trabalho e da fé na produção e no consumo. Enfim, somente uma Revolução Surrealista poderá conduzir a humanidade rumo a uma nova sociedade, onde todos os indivíduos possam livremente criticar as instituições herdadas e conscientemente criar outras, novas. E novas leis, novas formas de viver: uma sociedade autônoma. Passos dos Surrealistas Paris, 1919: a humanidade ainda está perplexa diante dos horrores e da destruição da Primeira Guerra Mundial. O fantasma não se dissipou e denuncia a falência de uma sociedade que se propôs realizar o sonho da autonomia por meio da razão e do progresso da ciência. A promessa moderna de libertação do reino da necessidade e de todas as formas de opressão, através da razão e da técnica... A ciência e a razão haviam sido capazes de colocar a humanidade nos trilhos da prosperidade tecnológica. O que não progrediu da mesma

forma foi o conhecimento do homem sobre si mesmo, que soube aplicar a razão, as faculdades lógicas, para tranformar o mundo, mas se viu incapaz de construir uma sociedade onde os indivíduos pudessem constituir a sua autonomia e reconhecer-se em seus afetos. Na esteira desse progresso, testemunhamos a expansão ilimitada do controle racional sobre a vida dos cidadãos, a vida familiar, a educação e a informação. Pouco ou nada então restou da proposta de autonomia: a ciência havia falido, como também a filosofia, a arte e a literatura. Aos olhos dos Surrealistas, o campo estava aberto apenas para uma revolução que realmente se alastrasse a todos os domínios da vida do homem, uma revolução radical. Seguindo os passos do Movimento Dadaísta, os Surrealistas aderiram ao projeto sem precedentes de destruição de todos os valores tradicionais que escravizavam o homem, que o impediam de viver segundo os seus desejos: a razão, a família, o Estado, a religião e a moral. Uma outra forma de pensar e viver deveria se constitu-

ir, um novo conjunto de valores e significações: uma forma de ser que finalmente pudesse realizar o projeto da autonomia. A Revolução Surrealista proclama assim a total transformação da vida. Uma tentativa de completa revolução do espírito, através da poesia, do amor, da loucura. Proclama a necessidade de trazer a arte para a vida, viver poeticamente. Todos somos poetas, afirmam. Apelam ao poder do inconsciente, valem-se da irracionalidade, da vida onírica e inclusive da loucura para revelar os territórios inexplorados do espírito humano. O olhar para o inconsciente, revelará o seu ser verdadeiro, os seus verdadeiros desejos. A realização desses desejos é a liberdade. Os Surrealistas proclamam a onipotência do desejo e a legitimidade de sua realização. À objeção de que os homens vivem em sociedade, respondem com a vontade de destruição total dos laços impostos pela família, pela moral, pela religião. A destruição das relações tradicionais dos homens entre si levaria a instituição de novas relações sociais, de um novo tipo de homem.

A flexibilidade e a liberdade que a produção artística permite têm a forma exata dos limites e potencialidades que o sofrimento mental impõe

Apesar dessa leitura desviante, a arte também é aproveitada em um movimento reativo, como forma de emancipação da loucura. Trata-se da invenção de formas de trabalho e de convivência nos espaços públicos que os portadores de sofrimento mental travam diariamente, valendo-se dessa mesma sensibilidade e criatividade tão associadas a sua condição. A flexibilidade e a liberdade que a produção artística permite têm a forma exata dos limites e potencialidades que o sofrimento mental impõe. Dessa forma, os movimentos sociais que atuam no fortalecimento da cidadania dos portadores de sofrimento mental valorizam o potencial criativo e produtivo desses

sujeitos como forma de inclusão social e publicização das capacidades e habilidades desses indivíduos. Na prática, criam-se oficinas de artesanato, pintura, redação, dança, etc, que capitalizam o resultado dos trabalhos e possibilitam a circulação ativa e autônoma desses

sujeitos na cidade. Pelo caminho da cidadania, a arte sai da excepcionalidade de artistas loucos para a habitualidade de loucos artistas. A obra da loucura deixa de se identificar com as obras geniais e passa a significar a produção artística diária, a inclusão social,

o auto-sustento, a independência de pessoas comuns que, apesar de seu sofrimento, lutam para viver em liberdade, unidas em um movimento público de busca pela aceitação da diferença e pela implementação de seus direitos fundamentais.

Pelo caminho da cidadania, a arte sai da excepcionalidade de artistas loucos para a habitualidade de loucos artistas


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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Proteção do patrimônio cultural e omissão do Estado Nicolao Dino C.Costa Neto

A

Constituição da República dedicou especial atenção aos bens de natureza material e imaterial, considerados individual ou conjuntamente, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade, os quais integram o patrimônio cultural brasileiro. Incluído na categoria dos direitos difusos, do qual é titular toda a coletividade, o patrimônio cultural é uma das facetas do meio ambiente. De fato, não só os elementos constitutivos do meio ambiente natural são relevantes para a preservação da espécie humana. É necessário assegurar ao indivíduo um referencial histórico-cultural revelador de sua identidade, vinculando o presente ao seu passado e garantindo, desta forma, o embasamento indispensável à edificação de seu futuro. Nos termos da Constituição, o poder público tem o dever de proteger, com a participação da comunidade, o patrimônio cultural brasileiro. Sendo objeto de especial proteção do direito, cabe à administração adotar políticas públicas para adequada promoção do patrimônio cultural. Nesse campo, o instrumento clássico de atuação da administração é o tombamento, operando-se, por meio deste, uma intervenção no domínio particular, ou seja, uma restrição parcial na propriedade privada para demarcar o interesse público na proteção de determinado bem, sob a perspectiva de seu valor cultural. Infelizmente, contudo, verifica-se sensível déficit na atuação estatal, seja na completa identificação dos bens que devem constituir o rol do patrimônio cultural, seja na garantia de sua higidez. Diante da omissão na implementação de políticas públicas, o que se deve esperar ou exigir das demais esferas do poder público? Como devem comportar-se Ministério Público e Judiciário em face da ausência de medidas e programas estatais des-

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Por que o direito não assume o seu caráter ficcional? O direito possui as suas tradições narrativas que mudam no decorrer da história de uma comunidade política, mas essas existem como lugares ocultos que, embora presentes na produção do direito, não aparecem como elementos de confrontação aberta. Para alguns, admitir o caráter ficcional do discurso jurídico talvez revele ou estimule a arbitrariedade. Cremos, porém, que afastar do debate público as escolhas políticas e culturais que estruturam as narrativas das quais nasce o direito é que alimenta o exercício arbitrário do poder. Buscando um outro entendimento da rejeição dos fundamentos ficcionais do direito, é oportuno indagar se, na origem dessa, não está a consciência de o direito ser uma obra literária de segunda qualidade. Existem vários indícios nesse sentido, como a falta de coerência narrativa da doutrina e da jurisprudência ou a produção de peças processuais e obras jurídicas em linha de montagem, pistas que nos levam a um novo questionamento sobre o perfil e as condições de produção de um outro direito que possa ser apreciado como literatura de primeira qualidade.

Admitir o carácter ficcional do discurso jurídico pode levar ou estimular a arbitrariedade?

tinados à proteção dos bens culturais? Para ser mais específico, na ausência de ato de tombamento, caberia ação civil pública para, por meio de decisão judicial, reconhecer-se seu valor cultural e assegurar sua proteção? Ou, ao revés, isso configuraria indevido alargamento da função jurisdicional, com a substituição dos poderes próprios da administração? Para responder a essa questão, é importante sublinhar que: 1) o restabelecimento do regime democrático abriu espaço a novas demandas sociais e à possibilidade/ necessida-

de de sua afirmação perante o Estado; 2) a Constituição de 1988 converteu inúmeras expectativas de construção de uma ordem social justa em pretensões jurídicas; 3) relações sociais multicomplexas transformaram o quadro de conflituosidade inter-individual em um cenário de litigiosidade de massa, no qual a busca do interesse coletivo é tão importante quanto a satisfação de pretensões subjetivas; 4) interesses de matriz difusa ou coletiva são freqüentemente lesionados pela inação do Estado.

O que seria, então, o direito literário? Interesses de matriz difusa ou coletiva podem ser lesionados pela inação do Estado

Como Marcuse e Adorno colocaram, toda verdadeira obra de arte é revolucionária, na medida em que modifica as formas dominantes de percepção e cognição e abre os horizontes para mudanças. Desnaturalizando práticas e discursos jurídicos, nos quais se apóiam as instituições, o direito narrado põe em

evidência a sua função subversiva, uma vez que alcança a voz do outro e se coloca na escuta daquele que teve a sua silenciada. E o direito literário, o que seria? Em tese, deveria ser um direito transparente porque se assume como narrativa e se faz no espaço público do diálogo com o diferente, no

terreno da negociação aberta e da escolha consciente. Esse direito problematizaria as avaliações subjacentes aos fatos, assumindo a sua função de nomeação, que somente pode ser entendida no ambiente interno das narrativas jurídicas que a sustentam. François Ost, no seu livro Contar a lei. As fontes do ima-

ginário jurídico, aponta no sentido de que o direito, como a obra de arte, poderia ser um desafio ao mundo herdado e ao poder, exercendo, desse modo, a função de crítica política à realidade. O êxito dessas funções, é claro, pressupõe condições sociais favoráveis, pois o direito é produto da sociedade.

Um direito transparente porque se assume como narrativa e se faz no espaço público do diálogo com o diferente, no terreno da negociação aberta e da escolha consciente


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O Direito como obra literária Bistra Stefanova Apostolova

O

que a ficção literária pode nos revelar sobre o direito e o que ganha o direito no confronto com o campo literário? Na segunda metade do século XX, a literatura emerge e se consolida como uma via de renovação da cultura jurídica ocidental e, entre outros fatores, articula algumas estratégias acadêmicas em condições de abrir novas possibilidades teóricas para a compreensão do direito. O hábito mental que marca o pensamento jurídico moderno diferencia o espaço jurídico do espaço literário com base na distinção intransponível entre fato e ficção, entre real e possível, entre ser e dever-ser. Acentuar a diferença entre os respectivos espaços e os seus discursos acaba obscurecendo o campo das suas trocas recíprocas, limitando, com isso, a compreensão do direito enquanto fenômeno histórico e cultural que desempenha funções instituintes na sociedade. Diante da supremacia dominadora do modelo clássico de cientificidade, a arte, com o seu caráter assumidamente ficcional, já inicia a sua jornada em desvantagem no que diz respeito às suas finalidades cognitivas. Sabe-se que, desde o pensamento de Aristóteles, a dimensão estética foi rebaixada em relação às atividades dedicadas à vida política, à filosofia e à contemplação. E, mesmo a partir desse lugar secundário, a literatura vem desempenhando relevantes papéis no Ocidente, que vão da sensibilidade à ciência, da formação da subjetividade, à educação pública. A matéria prima da literatura é o mundo possível, que se configura a partir do mundo real por meio da uma forma lingüística esculpida pelo estilo próprio do seu autor. A arte literária constrói os seus possíveis olhares sobre a vida na medida em que estranha aquilo que nos é familiar e coloca em perspectiva o real, focando, assim, o seu caráter acidental. A arte, como estranhamento e, justamente, por estar enraizada na ficção, revela as suas funções cognitivas, uma vez que se aproxima por

outra via à experiência humana, alcançando-a na extensão, profundidade e ambivalência do seu significado. Nessa perspectiva, sem estar limitada a uma mera descrição dos dados empíricos, a arte apresenta-se como uma concorrente da ciência ou, poderia ser, como uma aliada, já que está irmanada nos mesmos propósitos da ciência no campo do conhecimento. Em especial, a compreensão do direito como arte nos permite ir além do normativismo. A noção de imaginário jurídico, criador de novas práticas e discursos que emergem da reavaliação dos significados sociais e jurídicos dados, corrói a qualificação diferenciada que é atribuída ao direito oficial decorrente do seu status de norma vigente num determinado período histórico. Afastada a idéia da produção da realidade jurídica nos moldes de uma evidência analítica, os juristas se vêem na necessidade de responder como constroem as interpreta-

ções dos fatos e dos textos jurídicos, com que parâmetros fazem as suas escolhas entre as possibilidades imaginativas latentes no direito, de que estratégias se utilizam para tornar os seus discursos hegemônicos e como ocorrem as mudanças nas interpretações do direito, sem que haja mudança nos textos. O direito como narrativa Para a compreensão da passagem de uma possibilidade da existência ao status de realidade jurídica e, conseqüentemente, para o entendimento das trocas entre a literatura e o direito, o conceito de narrativa, parece-nos apropriado. A narrativa estabelece uma organização dos fatos no tempo, por meio da qual o diverso e o acidental entram em uma ordem que decorre do próprio ato da escrita e que é constitutiva do seu objeto. A nossa proposta compreende a aproximação do direito com a literatura por meio do estudo das narrativas jurídicas, constitutivas da pró-

pria realidade narrada, o que pode nos levar a algumas idéias sobre os modos de construção dos fatos e das normas em juízo e sobre as formas de produção dos conceitos utilizados pela doutrina jurídica. São vários os elementos que constroem a passagem da cientificidade clássica para o conhecimento como narrativa, entre as quais destacamos: a objetividade do fato é substituída pelo princípio da interpretação e seleção; no lugar da visão substancialista da verdade essa aparece como uma maneira interna da organização do relato e não como algo externo ao próprio discurso. Os relatos abrigam segundas intenções, enviam mensagens normativas cifradas e, em conseqüência, acabam integrando o processo de construção da realidade e da sua regulação. Ciente dessa categoria, a nossa atenção volta-se para a escuta das narrativas que perpassam o campo do direito, sendo estas um caminho seguro para se chegar à norma.

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Cabe ao MP suprir as omissões do Estado Nessa moldura fática, cabe ao Ministério Público papel ativo na verificação da regularidade de políticas públicas. Cabe, também, a adoção de medidas tendentes ao suprimento de omissões do Estado quanto à sua implementação. Nesse sentido, a ação civil pública é importante instrumento de afirmação de interesses transindividuais e, sendo a proteção do patrimônio cultural um interesse de matriz difusa, tem-se a atuação do Ministério Público com vistas à sua observância. No silêncio da administração diante da relevância de um bem ou conjunto de bens revestidos de valor cultural, é indeclinável o dever de promover medidas judiciais ou extrajudiciais voltadas ao seu reconhecimento e à sua proteção. Afirmam alguns que essa postura implica intromissão na administração, pois cabe a esta decidir, no exercício de sua discricionariedade, se e quando determinado bem deve ser detentor de especial proteção por meio de tombamento. Tal posicionamento encontra-se inteiramente dissociado da realidade contemporânea e despreza o papel político a ser desempenhado pelo Ministério Público e pelo Judiciário. O ordenamento jurídico, vale lembrar, encontra-se repleto de cláusulas gerais e de conceitos indeterminados veiculadores de aspirações de bem estar social. Noutras palavras, a construção de uma ordem social justa acha-se quase que plenamente traduzível em temas juridificáveis, trazendo para a esfera da atividade jurisdicional a difícil tarefa de proceder à sua materialização. O Ministério Público, então, deve ser protagonista desse papel político de realização de políticas públicas, atuando não no campo da formulação, mas sim no espaço de sua implementação, mediante a promoção de ações públicas nos casos em que a omissão estatal, configuradora de abuso de poder, frustrar a realização de metas sociais constitucionalmente estabelecidas. Voltando ao texto constitucional, sendo dever do Estado promover e proteger o patrimônio cultural brasi-

leiro, o não cumprimento dessa prestação positiva deve submeter-se ao controle judicial, por meio de ação civil pública ou de ação popular. Dito de outra forma, se o poder público não realizar o tombamento de um bem dotado de relevância cultural, oportuna será sua proteção pela via judicial, cabendo ao Ministério Públi-

co promover ação civil pública com o fim de declarar, no interesse da coletividade, a existência desse valor. E ao Judiciário caberá adotar a medida tendente à preservação desse bem, atento ao fato de que o tombamento é apenas uma das formas de tutela do patrimônio cultural, não excluindo outras modalidades de acautelamen-

to e preservação (CF, art. 216, §1°). Isso representa, sem dúvida, a assunção e o exercício de indiscutível função política, o que torna o Judiciário e o Ministério Público igualmente responsáveis pela operacionalização de políticas públicas necessárias à realização dos valores veiculados na Constituição.

O Ministério Público deve ser protagonista da realização de políticas públicas, atuando não no campo da formulação, mas sim no espaço de implementação, mediante a promoção de ações públicas


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Uma vida sem direitos Paulo Henrique Blair de Oliveira

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Tem saída! Louco infrator: soluções da reforma psiquiátrica Virgílio de Mattos

Sob o nome de “A Reforma Psiquiátrica que queremos: Por uma Clínica Antimanicomial”, no campus da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, nos dias 13 a 16 de julho último, vivemos alucinantes 36 horas de produção de saídas para um problema onde só encontrávamos mais incógnitas: o portador de sofrimento mental. Se a atenção e o cuidado ao portador de sofrimento ou transtorno mental parecem uma tarefa grandiosa, o trato com o louco infrator fica ainda carente de espaço de discussão ampliada na sociedade. Este é um bom momento para anotarmos algumas impressões aqui no Constituição & Democracia. É que, numa das mesas temáticas, juntamente com José Geraldo de Souza Junior e Fernanda Otoni de

Barros, tivemos oportunidade de discutir a questão do louco infrator e as saídas construídas pela reforma psiquiátrica. Os portadores de sofrimento mental infratores, conforme preferimos chamá-los, ou loucos infratores, como são mais conhecidos, são sempre os mesmos alvos: os pobres de todo o gênero. Os sem pai, os sem nome, os sem pátria, os sem lei e os sem rei, os sem religião, os sem freios à sexualidade, os sem nada; seja teto ou terra, seja pão ou trabalho. Bem verdade que alguns poderosos, sejam aprendizes ou filhotes, desviam e deslizam para o controle especial do controle total que é a segregação imposta pela medida de segurança penal. Mas são raros. A entrada cobra-lhes o preço da razão. No final do século XIX, Karl Stoos irá descobrir a pólvora do “tratamento” - leiam contenção - daquele que,

além de louco, infringe a norma. Infringir é também violar. O pacto, o trato, o contrato social de bem viver em coletividade que o louco não pode perceber e, se não pode perceber, não pode respeitar. Se não pode respeitar, deve ser “contido” de outra forma. Não tem ação pelo livre-arbítrio indispensável pela Escola Clássica. Se não tem escolha, não pratica algo possível de vir a ser apenado. Deve haver uma medida de segurança, entretanto, para e por ele mesmo. Com ele. Contra ele. Para proteção dos que estão próximos e também para acautelar que seja mantido o pacto, o trato, o contrato, mesmo entre os que dele não podem participar por terem alguma perturbação na sua capacidade de querer e de entender. Embuste ou burla das etiquetas: sob o pretexto de resguardar, a verdadeira insânia do duplo trilho, ou doppio binario: pena + medida de segu-

rança por um mesmo fato que o legislador penal vai dizer que é crime. Continua a ilegalidade da lei: ao fingir que trata, na verdade pune. Segregando, pensa estar imune. Pobre lei que nem sequer consegue fazer nascer lírios... Pune de forma pior do que a punição reservada ao não portador de sofrimento mental. Não há possibilidade de “cumprir” a medida de segurança, com um limite definido ou definível entre mínimo e máximo. Com possibilidade de acessos legais à liberdade condicional, ou progressão de regime de cumprimento, para dizermos o mínimo. Aliás, é ponto pacífico que as medidas de segurança não foram recepcionadas pela Constituição da República de 1988. Para o louco, embora se diga que lhe foram ofertadas “garantias”, na prática elas garantem o quê? Só conseguimos enxergar exclusão. Para sempre.

ill Eisner foi o mais importante nome da arte dos quadrinhos. Foi criador de um personagem que marcou época entre os anos de 1930 e 1950, o Spirit. Mas sua importância é descrita melhor pelo fato de que, após a sua obra, as “histórias em quadrinhos” foram reconhecidas como forma de arte, a arte seqüencial ou “nona arte”. Na maturidade artística, ao final da década de 1970, Eisner foi o primeiro a conceber um álbum tão profundo e tão próximo da literatura que a expressão “romance gráfico” foi criada para definir, daí em diante, obras daquele porte. Estes exemplos já explicam por que o mais prestigioso prêmio mundial nesta forma de arte seja chamado “Prêmio Eisner”. Como freqüentemente ocorre, a maturidade artística de Eisner iniciou-se quando ele fez de sua arte a crítica às experiências mais dolorosas de sua vida. Tendo servido no exército norte-americano entre 1942 e 1945 (como repórter de uma publicação oficial do exército), Eisner continuou a colaborar com as forças armadas norte-americanas até 1972, em publicações utilizadas para fins oficiais. Nesta condição, esteve em inúmeras bases militares e cidades, travando contato pessoal com os envolvidos diretamente no conflito do Vietnam. Este conflito o marcou tão fortemente que, na segunda metade da década de 1970, Eisner produziu cinco histórias pequenas, porém muito impactantes sobre ele. Eisner convidou seus leitores a passarem um dia no conflito do Vietnam, e o fez com uma sobriedade e um poder crítico realmente poéticos. Em seus textos e imagens, somos inseridos nos fatos como observadores e participantes. Eisner sabia que não é possível observar sem intervir. Sua crítica ao conflito armado nunca foi feita por obviedades ou apelos a cenas banhadas de sangue. Eisner tornou o horror da guerra muito mais presente ao abrir janelas para vidas encarceradas no conflito. Em uma história descreveu a embriaguez silenciosa de um homem

comum que, em um bar, escuta o relato casual e distante de repórteres sobre um episódio da guerra no dia anterior - incidente no qual seu filho foi despedaçado por uma bomba. Em outra, olhou a face de um soldado raso que teve sua mão amputada por uma granada posta sob sua cama por uma guerrilheira vietnamita que o atraiu com promessas de sexo. Viu o paralelo na vida de dois soldados: um transferido para uma unidade administrativa após atos de matança indiscriminada (e, que, nas horas vagas, trabalhava voluntariamente em um orfanato vietnamita); e outro que sempre trabalhou em uma unidade administrativa e, embriagado, preencheu uma requisição de transferência para a unidade completamente exposta ao combate (onde acaba sendo morto e condecorado postumamente). O que estas vidas possuem em comum? Para Eisner, a guerra não lhes retira a sua humanidade, mas as despe das garantias e limites mínimos para o efetivo exercício desta humanidade. É neste momento que as reflexões de Eisner tocam frontalmente o direito. Nas situações extremas, em que a vida e a dignidade humanas são subordinadas às conveniências da política ou da economia, vê-se melhor a importância dos direitos, em particular dos direitos fundamentais. Criados em uma era em que, por definição, não é mais possível o apelo a uma moral ou a uma religiosidade universais, eles são chamados de fundamentais porque se fundamentam a si mesmos. Tal como a arte, são uma criação nossa. Isto pode parecer pouco, mas não. Neles repousam nossas esperanças de liberdade e de igualdade. Embora uma carta de direitos não possa fisicamente deter um ato de violência, ela pode por a violência a nu. Pode demonstrar que o apelo à violência já começa negando o que afirmamos sobre nós mesmos: que somos dotados de uma dignidade intrínseca e que não pode ser alienada. Compreendido o papel do Direito, e não se abdicando dele, é impossível subordiná-lo a imperativos ex-

ternos sem negá-lo. Se a lógica da economia ou da política é vinculada à escassez de meios ou à força de uma maioria, o Direito cumpre seu papel quando pode ser reivindicado por minorias, ainda que em oposição aos argumentos de necessidade. Soluções de conveniência ou compromissos conciliatórios sobre nossa liberdade ou nossa igualdade podem parecer pragmaticamente sensatas em momentos críticos. Porém, uma carta de direitos fundamentais traz uma questão ainda mais básica: de que valem direitos se não como garantias que podemos invocar precisamente nestes momentos de crise? Se a resposta a esta pergunta for construída de modo “absolutamente

pragmático”, alguém poderá dizer que de fato direitos de nada valem nestes momentos. Mas, se nada valem naqueles instantes, também não valerão nada mais em qualquer outro. Isto nos remete então novamente às situações descritas por Eisner: as de vidas nuas porque despidas de seus direitos. Vidas aprisionadas pela violência, violência que praticam e violência da qual são também vítimas, em um ciclo de autodestruição que alimenta a si próprio. Eisner concordaria com a afirmação de que há algo de fundamentalmente errado com estas vidas. A arte revela que é possível pensar nossa condição humana para além dos direitos. Porém, não se deve pensá-la para aquém deles.


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EDITORIAL

UMA VIDA SEM DIREITOS Paulo Henrique Blair de Oliveira – Juiz do Trabalho, mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito

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Observatório da Constituição e da Democracia

O DIREITO COMO OBRA LITERÁRIA Bistra Stefanova Apostolova – Professora da UnB e do UniCEUB

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Surrealismo Jurídico, Arte e Direito: novos caminhos Marta Gama – Mestranda em Direito e Sociedade pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Direito e Arte, do programa de pós-graduação em Direito da UnB

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CIÊNCIA DO DIREITO OU MITOLOGIA JURÍDICA? Alexandre Araújo Costa – Mestre e doutorando em Direito pela UnB, advogado e pesquisador do Instituto Pensamento Social – IPS

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ROBERTO LYRA FILHO: O JURISTA E O ARTISTA Adriana Miranda – Mestranda em Direito pela UnB, integrante dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua e Sociedade, Tempo e Direito Mariana Veras – Mestranda em Direito pela UnB, integrante dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua e Direito e Arte

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as diretrizes estabelecidas para o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), para a área de Direito, contidas na Portaria INEP nº 125, de 2006, que será aplicado no final deste ano, manteve-se o objetivo já experimentado no modelo anterior do chamado “Provão” de avaliar, para além dos conteúdos de qualificação técnica, também as habilidades e competências que os alunos devem desenvolver, no seu processo de formação, necessárias para uma boa educação jurídica. Dentre as habilidades e competências descritas nessas diretrizes, ganham relevo as que se referem à utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica e sensível, bem como capacidade metafórica e analógica (letra f, art. 6º). Está claro que este modelo indutor de avaliação não se volta apenas para forjar um perfil artístico para o jurista, nem somente de o investir de uma disposição sensível para que saiba se colocar no lugar do outro quando tenha que exercer a condição de julgamento. Ele denota igualmente uma orientação de base epistemológica, apta a descortinar possibilidades cognitivas decorrentes da integração de diferentes modos de conhecer constituídos na experiência artística, científica, filosófica ou mística. Dessas experiências trata esta edição de Constituição & Democracia. A entrevista do Professor Luis Alberto Warat mostra como Direito e Arte podem amplificar as formas de interpelação do novo e de apreensão do real. Seguindo a orientação do notável pensador, o texto de Marta Gama trabalha a conexão entre Direito e Arte pela mediação do Surrealismo para indicar perspectivas emancipatórias para o jurídico. Guardando também relação com esta influência, o Professor Alexandre Araújo Costa, entretanto com um viés de questionamento paradigmático, põe em confronto as abordagens da Ciência e da Arte no texto Ciência do Direito ou Mitologia Jurídica. Por sua vez, a Professora Bistra Stefanova, dando continuidade a estudos anteriores, aborda o direito como obra literária para sugerir o caráter criador do imaginário jurídico. Algo, diga-se, que já foi trabalhado na própria UnB, por um dos fundadores da sua Faculdade de Direito, firme no entendimento de que a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de um outro discurso. Isso fica assinalado no texto de Adriana Miranda e de Mariana Veras (Roberto Lyra Filho: o jurista e o artista), com o qual as autoras homenageiam o notável professor da UnB como registro de 20 anos de sua morte. Ainda no conjunto temático que forma a edição, os textos de Paulo Blair (Uma Vida sem Direitos) e de Henrique Smidt Simon (Rock’n roll, direito e modernidade). Completam a edição os textos dos Observatórios do Ministério Público, do Legislativo, do Judiciário e dos Movimentos Sociais, o artigo livre do Prof. Virgílio de Mattos (Tem saída! – Louco infrator: a reforma psiquiátrica construindo saídas) e a coluna mensal do Professor Boaventura de Sousa Santos, com um instigante artigo A Amazônia. O que está em causa, portanto, com os temas desta edição de Constituição & Democracia, é armar a disposição ativa do jurista para abrir-se a outros modos de compreender o Direito e as normas jurídicas.

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EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB - Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Comissão de redação Adriana Miranda Giovanna Maria Frisso Janaina Lima Penalva da Silva Leonardo Augusto Andrade Barbosa Marthius Sávio Cavalcante Lobato Paulo Henrique Blair de Oliveira Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Alexandre Araújo Costa Aline Lisboa Naves Guimarães André Rufino do Vale Carolina Pinheiro Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniel Barcelos Vargas Fabio Costa Sá e Silva

Francisco Schertel Ferreira Mendes Guilherme Cintra Guimarães Guilherme Scotti Henrique Smidt Simon Jan Yuri Amorim Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliano Zaiden Benvindo Laura Schertel Ferreira Mendes Lúcia Maria Brito de Oliveira Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marcelo Casseb Continentino Maurício Azevedo Araújo Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´anna Renato Bigliazzi Rochelle Pastana Ribeiro Vitor Pinto Chaves

Contato observatorio@unb.br www.unb.br/fd

Sindicato dos Bancários de Brasília

Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS) Editor assistente Rozane Oliveira Diagramação Gustavo Di Angellis Ilustrações Flávio Macedo Fernandes

SindPD-DF

ENTREVISTA com o professor Luís Alberto Warat ARTE E DIREITO COMEÇAM A VIRAR A PÁGINA Marta Gama – Mestranda em Direito e Sociedade pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Direito e Arte, do programa de pós-graduação em Direito da UnB

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ROCK, O DIREITO E O MODERNO Henrique Smidt Simon – Mestre em Direito e Estado pela UnB, professor do IESB e do UniCEUB, advogado

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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO STRIPTEASE NO JUDICIÁRIO Pedro Teixeira Diamantino – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB e advogado

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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO O DIREITO AUTORAL E A LIVRE INFORMAÇÃO Paulo Rená da Silva Santarém – Bacharel em Direito pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Rodrigo Lobo Canalli – Bacharel em Direito pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Pensamento Social

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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS LOUCOS ARTISTAS OU ARTISTAS LOUCOS Janaína L. Penalva da Silva – Mestranda em Direito e Estado na Universidade de Brasília-UnB

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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E OMISSÃO DO ESTADO Nicolao Dino C.Costa Neto – Procurador Regional da República, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; professor na UnB

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TEM SAÍDA! - LOUCO INFRATOR: SOLUÇÕES DA REFORMA PSIQUIÁTRICA Virgílio de Mattos – Professor de Criminologia na Escola Superior Dom Helder Câmara (BH), onde coordena o Grupo de Estudos sobre Violência, Criminalidade e Direitos Humanos. Editor da revista Veredas do Direito, do Programa Pólos de Cidadania, da UFMG. Mestre pela UFMG e doutor em Direito pela Universidade de Lecce, IT

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A AMAZÓNIA Boaventura de Sousa Santos – Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | OUTUBRO DE 2006

Loucura e direito: ação sem saída ? Louco por quê? Quem irá dizer a loucura, a imantar exclusão e “tratamento”, até que venha a cura, sabidamente impossível a priori? “Loucura é ausência de obra”, dizia Foucault. A obra do louco é o estorvo. O saber desses dizeres passa pela idéia de controle total. Os loucos que eram mantidos sob o cuidado familiar, são notados apenas quando passam a estorvar a precária produção doméstica de sobrevivência. Milhares os Pierre Rivière que não foram, obviamente, retirados da poeira do esquecimento dos arquivos. Mas o aparecimento de seu enigmático caso pela equipe de Foucault faz pensar numa coisa: desde então a junção da loucura com o direito é uma ação sem saída. Onde só saem mortos, o que não deixa de ser uma ausência de saída. Paradoxalmente é curiosa a última perícia realizada por L. Vastel em Pierre Rivière, em 25/10/1835: “se ele não é culpado, é no mínimo perigoso, e deve ser isolado em seu próprio interesse e sobretudo no da sociedade”. Mas era preciso dar conta dessa criminalidade, era preciso prever, classificar, contar e conter o perigo. Re-formar? Aqui, em Minas, há exemplo claro de que, mesmo saindo, não saem. Se a saída é a existência do exame de cessação de periculosidade, se o poderoso laissez-passer é conseguido, nem assim existe garantia de que o portador de sofrimento mental, que cometeu fato definido como crime e é internado, poderá sair. Para o portador de sofrimento mental que comete algum ato que a lei considera como crime, muita vez uma violência praticada contra familiares próximos, já semeia o medo pânico nos demais de que viessem os loucos infratores, quando soltos, a cometer qualquer outro ato violento; perpassando, esse medo, pela vizinhança e pela localidade onde cometido o crime. Haveria uma espécie de “sem controle” por perto, acendem-se todos os sinais de “alarme social”. Re-formar pode ser apenas reconstituir a antiga forma de alguma coisa. Pode ser, no entanto, dar forma nova, corrigir, emendar. A corre-

ção, no sentido duplo que enxergo na “Reforma psiquiátrica”, não é só de rumo e modelo, é também a de enterrar o modelo hospitalocêntrico de controle; é substituir a segregação pela atenção, o descaso pela atenção continuada, é dar enfim, a transformação de raiz - e a raiz do homem é o próprio homem! - que os séculos de modelo hospitalocêntrico não conseguiram. Veja-se a organização da contra-reforma. Têm recursos e espaços amplos, agentes políticos, assessorias. A saída é pela porta É fundamental que tenhamos sempre viva a advertência de Basaglia, sobre a impossibilidade de convivência do modelo substitutivo com a atuação do modelo manicomial, ao mesmo tempo. Temos em Belo Horizonte, funcionando desde 2001, a porta de saída do sistema prisional/hospitalocêntrico que é o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário, idealizado, construído e gerido por Fernanda Otoni de Barros. Formalmente criado por Portaria Conjunta da Presidência e Corregedoria do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com apoio de centro universitário privado e suporte de várias entidades, o programa conseguiu tornar possível a “responsabilização” do próprio “paciente” que cometeu conduta definida como crime. Não vale dizer que não há lei. Porque temos leis demais, genéricas, específicas, “boas”, “más” - como se as leis nesse país sempre sem rei, fossem personagens de novelas, que o caldo de cultura de classe-média e o lumpem acham “uma gracinha”. Temos lei específica, exatamente a 10.216/01, sobre o tema e que vem sendo reiteradamente ignorada pelos próprios operadores do direito. Mas mesmo que não tivéssemos lei alguma, temos a Constituição Federal, que em seu artigo 1º, estabelece que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (inciso III). Entre o manicômio e a atenção especializada, em equipamento criado pelo próprio Judiciário, entendemos que além de inconstitucional, a internação em chamado hospital de

custódia e tratamento psiquiátrico, hoje, em Minas Gerais, viola a própria Portaria Conjunta n. 25/2001, da Corregedoria e Presidência do Tribunal de Justiça do Estado. Não só norma constitucional, como lei federal, lei estadual (a chamada Lei Carlão - Lei Estadual/MG n. 11.802, de 18/01/1995) e Portaria que tem força de “lei” internamente - , já existem. Se não falta lei, falta vontade política. Vontade política se constrói com organização e luta. Isso nós temos de sobra, falta o quê? Conclusão A “periculosidade”, que vai lastrear a imposição de medida de segurança para o inimputável por sofrimento mental, é conceito do final de século XIX. A sciencia que encarcera o louco infrator é baseada no preconceito, na intolerância, no biologismo ultrapassado. A periculosidade é conceito indefinível, quase oracular, impregnado de condições a priori,sem possibilidade de mensuração. Produz resposta padronizada a comportamento padronizado de crise, fato definido como crime e reclusão para sempre no espaço manicomial/prisional. Impossível entender como “natural”, quer seja direito, quer seja delito, toda e qualquer ação de segregação em uma sociedade de alta complexidade. A segregação do portador de sofrimento mental, via medida de segurança, não tem mais qualquer possibilidade de ser aplicada, pelos motivos anteriormente expostos, em Minas, mas não só. Também no DF, no Espírito Santo, Ceará, Paraná,

Pernambuco, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul e nos estados onde não exista ainda legislação específica, a aplicação imediata da lei, com a acolhida do louco infrator nos moldes do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário PAI-PJ. Ao encaminharmos a extinção das medidas de segurança e dos manicômios judiciários, propomos uma responsabilização que possa levar o portador de sofrimento ou transtorno mental que comete crime ao julgamento de seus atos, significando que deverão ser-lhe garantidos todos os direitos, previstos nas normas penais e processuais penais, até então sonegados. Todos os cidadãos devem ser considerados imputáveis, com todas as garantias atinentes. Direito ao processo como reconstrução dos eventos que nele culminaram. Direito ao contraditório e à ampla defesa. Em havendo condenação, imposição de pena com limites fixos - dentro dos intervalos de mínimo e máximo previstos, possibilitando-se a detração, a progressão de regime, o livramento condicional, e, em sendo o caso, a transação penal, a suspensão condicional do processo e a extinção da punibilidade, pela prescrição. É preciso ampliar as possibilidades de atenção e cuidado substitutivos ao modelo manicomial. Porque quando possuem laudo de cessação de periculosidade, mas não amparo familiar ou de serviços substitutivos, os portadores são remanejados e permanecem inseridos na mesma lógica. Sempre para sempre.


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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | OUTUBRO DE 2006

A Amazônia

Nº 8 OUTUBRO DE 2006

R$ 2,00

C&D Constituição & Democracia

Boaventura de Sousa Santos

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screvo à beira do rio Negro, no coração da Amazónia, não muito longe do “encontro das águas”, onde os rios Negro e Solimões se juntam para formarem o Rio Amazonas. Perante a grandeza do que vejo e sinto, concentro-me na mais minúscula versão de mim para escrever à beira do esmagamento pessoal. São, de facto, muitas as Amazónias a pesar em mim e todas elas esmagadoras. Intrigantemente algumas delas são tão esmagadoras quanto frágeis. A Amazónia física: a maior reserva de água doce, de biodiversidade, de riqueza mineral e de madeira do mundo. É uma Amazónia ameaçada pela extracção desordenada dos minérios e da madeira e pelo desmatamento e queimadas ao serviço da expansão da fronteira agrícola, nos últimos anos centrada na monocultura da soja. Os danos ambientais causados pela soja – desertificação, assoreamento dos rios e poluição das águas pelos agrotóxicos e resíduos de adubos químicos – são incalculáveis para a humanidade no seu todo. A fiscalização ambiental é deficientíssima e a punição dos infractores da legislação só em 2005 ganhou alguma credibilidade. A Amazónia mítica é a Amazónia do imaginário das populações ribeirinhas, das cidades encantadas por serpentes - como Abaetetuba, tão brilhantemente descrita pelo grande poeta João de Paes Loureiro - e das mulheres engravidadas pelo bôto, espécie de golfinho que percorre os rios loucamente atraído por mulheres menstruadas. Há também a Amazónia histórica do Museu do Seringal da Vila Paraíso assente numa reconstrução fidelíssima baseada na Selva de Ferreira de Castro. Aí se detalha a engrenagem da escravidão por dívida dos seringueiros, hoje reproduzida sob outras formas igualmente infames, nomea-

damente no Estado do Pará. A Amazónia epistemológica é a Amazónia dos conhecimentos ancestrais, da medicina à alimentação, da astronomia à construção naval, das floras e das faunas das realidades chãs e das encantarias. É uma sabedoria tão profunda e corrente quanto a correnteza dos rios. E há finalmente a Amazónia social, económica e política. É a Amazónia dos conflitos agrários e da violência, envolvendo comunidades ribeirinhas e indígenas, latifundiários, grileiros (invasores de terras públicas), políticos conservadores, empresários do sector pesqueiro, madeireiros, empresas de mineração, etc. Como assinala o sociólogo

Luís António de Sousa, trata-se de conflitos decorrentes do modelo clássico de ocupação do solo rural brasileiro: grilagem violência assassinatos concentração fundiária pauperização impunidade grilagem. Foi às mãos desse modelo que morreu Gedeão Silva, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Sul da Lábrea, emboscado e assassinado em 26 de Fevereiro de 2006. Teve a mesma sorte que os 1399 trabalhadores rurais assassinados entre 1985 e 2004 segundo os cálculos da Comissão Pastoral da Terra. A medida da impunidades está em que apenas 7% desses crimes foram levados a julgamento. Um dos mais hediondos foi o mas-

sacre de Eldorado dos Carajás, há precisamente 10 anos, quando três mil trabalhadores rurais sem terra protestavam pela desapropriação da Fazenda Macaxeira. É possível que o governador do Pará que ordenou o massacre volte a ganhar as eleições para governador no próximo mês de Outubro. A mais sombria de todas as Amazónias é a Amazónia militar. Trata-se de um plano norte-americano com a serviçal lealdade das Forças Armadas da Colômbia (Plano Colômbia), Equador, Perú e Brasil para proteger (de quem?) as riquezas da Amazónia. Não me surpreenderia se dentro de algumas décadas o Médio Oriente se mudasse para aqui.

OS NOVOS CAMINHOS DA ARTE E DO DIREITO


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