C&D Constituição & Democracia Nº 11 (Março de 2007) DIREITO E GÊNERO

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Nº 11 Março de 2007

R$ 2,00

C&D Constituição & Democracia

: a t s i e v r i e tr Fre n E céa Nil

Direito e Gênero

L e i M a r i a d a Pe n h a A b o r t o A s s é d i o s e x u a l


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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2007

EDITORIAL

Observatório da Constituição e da Democracia igualdade de gênero é uma das afirmações fundamentais de nossa constituição, ainda que sejam imensos os desafios na sua concretização. Não é possível observar passivamente a desigualdade que ainda persiste entre os gêneros em diversas relações sociais, razão pela qual o Observatório da Constituição e da Democracia destina seu décimo primeiro número a debatê-la. A sua relevância no contexto jurídico-político pode ser aferida já pela existência, no âmbito do Executivo Federal, de uma Secretaria Especial das Mulheres. Sua titular, Nilcéa Freire, é entrevistada neste número, traçando um panorama dos desafios mais imediatos na implementação de uma política de combate à discriminação de gênero. Um dos temas tratados na entrevista, o avanço presente na Lei Maria da Penha, também motiva o artigo de Jorge Medeiros, na esteira da revisão jurídica do próprio conceito de família. Já no artigo de Giovana Frisso é abordada uma forma específica de violência de gênero, que é a violência sexual praticada contra mulheres no curso de conflitos armados. Carla Bezerra narra a experiência de protagonismo das mulheres através da Marcha Mundial organizada por elas como um meio de aglutinar a sua luta por igualdade. Também possui destaque neste número a continuidade de um debate essencial ao ser abordada a igualdade de gênero: a liberdade do corpo e as questões que envolvem o aborto. Boaventura de Sousa Santos oferece uma análise lúcida que revela a incoerência do uso de argumentos de custos econômicos para tratar a questão. Ainda que escrito no contexto da recente discussão sobre o aborto em Portugal, o artigo extrapola, em sua perspectiva crítica, os limites de uma polêmica localizada, por tratar de uma questão ainda aberta. Dentre os artigos livres apresentados neste número, chama a atenção a divergência entre dois autores sobre o sentido constitucionalmente adequado dos direitos adquiridos. Tarso Genro e Guilherme Cintra Guimarães possuem pontos de vista distintos sobre o tema, particularmente sobre o papel dos direitos adquiridos quanto a nossas expectativas para o futuro. Ambos os pontos de vista são agora submetidas à reflexão do leitor. A análise feita neste número sobre o Direito e as questões de gênero é, em síntese, marcada pela compreensão de que a igualdade de gênero não é uma promessa, mas um imperativo da norma constitucional. Nenhuma política ou prática que a viole pode ser tolerada constitucionalmente no Estado Democrático de Direito.

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Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Faculdade de Direito – Universidade de Brasília

EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Comissão de redação Adriana Andrade Miranda Giovanna Maria Frisso Janaina Lima Penalva da Silva Leonardo Augusto Andrade Barbosa Marthius Sávio Cavalcante Lobato Paulo Henrique Blair de Oliveira Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Alexandre Araújo Costa Aline Lisboa Naves Guimarães Carolina Pinheiro Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniel Barcelos Vargas Daniela Diniz

Douglas Antônio Rocha Pinheiro Eduardo Rocha Fabio Costa Sá e Silva Francisco Schertel Ferreira Mendes Guilherme Cintra Guimarães Guilherme Scotti Henrique Smidt Simon Jan Yuri Amorim Jean Keiji Uema Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliano Zaiden Benvindo Laura Schertel Ferreira Mendes Lúcia Maria Brito de Oliveira Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Maurício Azevedo Araújo Paulo Rená da Silva Santarém Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´anna Renato Bigliazzi Sven Peterke Vitor Pinto Chaves

Contato observatorio@unb.br www.fd.unb.br

Sindicato dos Bancários de Brasília

Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS) Editor assistente Rozane Oliveira Diagramação Gustavo Di Angellis Ilustrações Flávio Macedo Fernandes

SindPD-DF

Criminalização ou educação: a questão da maioridade penal Cristiano Paixão – Professor da Faculdade de Direito da UnB, integrante dos grupos de pesquisa Direito Achado na Rua e Sociedade, Tempo e Direito e procurador do Ministério Público do Trabalho em Brasília. José Geraldo de Sousa Junior – Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos da UnB, integrante dos grupos de 03 pesquisa Direito Achado na Rua e Sociedade, Tempo e Direito. Qual família? Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, professor de Direito Civil no IESB, advogado e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito.

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A mulher desprotegida no conflito armado Giovanna Maria Frisso – Professora substituta da Faculdade de Direito da UnB, mestra em Direito Internacional Público pela Universidade de Uppsala (Suécia) e integrante 06 do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito. Sobre o direito adquirido Tarso Genro – Ministro da Justiça e advogado especialista em Direito do Trabalho.

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Uma garantia para (ou contra) o futuro Guilherme F. A. Cintra Guimarães – Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, integrante do grupo de pesquisa Sociedade Tempo e Direito.

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ENTREVISTA com a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e ex-reitora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Adriana Andrade Miranda – Advogada, mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade Tempo e Direito e Direito Achado na Rua. Mariana S. de Carvalho Oliveira – Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade Tempo e Direito e Direito Achado na Rua e gestora governamental (SNJ/MJ).

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Discriminação racial e desigualdade social na ordem do dia Luiz Fernando Martins da Silva – Chefe da Ouvidoria da Secretaria Especial de Políticas de 14 Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR – da Presidência da República. OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO Greve no serviço público: exercício legítimo de um direito constitucional Menelick de Carvalho Netto – Doutor em Direito Constitucional pela UFMG, professor de Filosofia do Direito e Teoria da Constituição dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UnB e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito. Ricardo Machado Lourenço Filho – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, assessor de Ministro do Tribunal Superior do Trabalho e integrante do 16 grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito. OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO Assédio sexual e discriminação de gênero nas relações de trabalho Marthius Sávio Cavalcante Lobo – Professor substituto da Faculdade de Direito da UnB, mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e advogado.

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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Foro privilegiado x República Mônica Nicida Garcia – Procuradora Regional da República da 3ª Região, mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Mulheres em movimentam mudam o mundo Carla Bezerra – Formanda em Direito na UnB, feminista e participa das ações da Marcha Mundial das Mulheres desde 2004.

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Contas viciadas do aborto Boaventura de Sousa Santos – Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

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Cr iminalização ou educação: a questão da maioridade penal Cristiano Paixão e José Geraldo de Sousa Junio

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crime cometido no Rio de Janeiro, que vitimou de forma absolutamente revoltante uma criança de seis anos, reabilitou a discussão em torno da maioridade penal. Na mídia e no Congresso Nacional, vozes contrárias e favoráveis à mudança foram ouvidas. Governantes e representantes da sociedade civil manifestaram suas opiniões. Como já ocorrido em outros eventos envolvendo crimes bárbaros, o debate concentrou-se exclusivamente em torno de um tema: punição. E as velhas perguntas voltam a repercutir. Quem deve ser punido? Quanto tempo deve durar a punição? Em que tipo de estabelecimento os culpados deverão cumprir a pena? Em comum, nessas reações, as medidas sugeridas: revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente e de seu sistema educacional, inserção dos infratores no modelo penitenciário, redução da maioridade penal. Essas propostas não conseguem esconder a incapacidade ética e política de mediar as tensões sociais que conformam a prática de atos de violência. Algumas delas, em sua tentação incriminadora, mal ocultam o fracasso administrativo da gestão de estabelecimentos e de medidas sócio-educativas ou de assistência. E, além disso, não enfrentam a questão crucial: o que devemos oferecer às nossas crianças e adolescentes? Os defensores da redução da maioridade enxergam apenas a figura do indivíduo. Limitam a responsabilidade à esfera de deliberação de uma pessoa. Postulam a aplicação de sanções condizentes com a gravidade do ato. Surge, então, uma proposta “alternativa”: a introdução de um suposto mecanismo de “exceção” na lei, que permitiria ao Judiciário aplicar penas mais severas em casos “graves”, em que o agente demonstre ter “discernimento” das conseqüências de seus atos. O raciocínio continua a ser o da responsabilização individual, agora

submetido a uma enorme discricionariedade do julgador, num processo penal em que apenas a intenção do infrator é apreciada e submetida a deliberação. Ambas as propostas – redução pura e simples da maioridade e inserção de um mecanismo que permita ao juiz aplicar penalidades mais rigorosas em casos concretos – partem do mesmo pressuposto: a punição existente aos adultos deve estender-se aos jovens. Ocorre que essas palavras tão banalizadas – criança, adolescente, indivíduo – são construções históricas e sociais. Não são dados naturais. A responsabilização individual pela prática de crimes é uma conquista relativamente recente. Ao invés de imputar a culpa à família do agente, seu grupo social ou étnico, o direito moderno reconhece a especialidade da esfera do indivíduo na escolha de

seus atos. Outra aquisição evolutiva importante é a constatação de que indivíduos jovens não devem ser tratados da mesma forma que os adultos. A razão para isso é simples, porém pouco lembrada nos tempos atuais: a criança e o adolescente estão em processo de formação e não constituem individualidades isoladas. A conquista da autonomia pressupõe, antes de tudo, a prática da sociabilidade, a convivência em ambiente escolar livre, o contato com elementos da cultura e a participação em momentos e rituais de confraternização e encontro. Isso vale para qualquer jovem, de qualquer classe, credo, cor, origem e história de vida. Nos dias de hoje no Brasil, quantos jovens têm acesso a esse tipo de formação? Nossos indicadores sociais – e, principalmente, nossa observação – mostram que uma expressiva parte

de nossas crianças e adolescentes não dispõe das mínimas condições para uma formação escolar, social e cultural sólida. Para eles, a entrada na vida adulta é violenta, precoce e não é mediada por nenhuma instituição pública. A responsabilização criminal desses jovens significará a institucionalização – e a legalização – de um quadro perverso de exclusão. O que está em jogo não é a definição de um “modelo” de tratamento dos adolescentes infratores. As propostas de diminuição da maioridade penal ignoram a existência de um projeto político e social de inclusão da população jovem. Nesse contexto, é pouco esclarecedor buscar exemplos de medidas adotadas em outros países, com base em dados que denotariam diminuição da criminalidade com a redução da maioridade penal. Esses dados precisam ser apreciados à luz de uma perspectiva histórica, que envolve, no caso brasileiro, o compromisso – inscrito em nossa Constituição – de luta pela liberdade e igualdade, especialmente em relação à criança e ao adolescente. O direito penal não pode ser a solução para um problema muito mais profundo. A transgressão, em sociedades modernas e complexas, precisa ser apreciada sob várias perspectivas políticas e sociais, e não apenas sob a ótica de um aparato punitivo. Assim, a modificação da maioridade, caso implementada, terá um outro desdobramento: oficializará o abismo entre jovens que têm acesso a uma educação de qualidade e aqueles que não têm. Para os excluídos, as escolhas que se colocam numa determinada altura da vida, entre repressão e liberdade, cultura da violência e cultura da paz, alienação e emancipação, serão ainda mais estreitas e irreversíveis. O horizonte de expectativas, que já é reduzido, ficará apenas latente. E o direito perderá irremediavelmente sua conotação civilizatória e humanizante para assumir, de forma definitiva, a feição de uma máquina de vigiar, julgar e punir.


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Qu a l f a m í l i a ? Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros

Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Essa frase, que inicia a obra Anna Karenina, de Liev (Leon) Tolstoi, pode ser usada como um ponto de partida para a análise dos avanços produzidos pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340), promulgada em oito de agosto de 2006. A lei criou mecanismos para combater a violência doméstica e familiar contra a mulher e recebeu esse nome como homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, símbolo da luta contra a violência contra a mulher. Maria da Penha foi vítima de duas tentativas de homicídio por parte do ex-marido e ficou paraplé-

gica. A punição do agressor só veio 19 anos e 6 meses depois. Ao criar mecanismos de assistência às mulheres vítimas de agressões, definindo espécies de violência doméstica familiar e medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor familiar, a lei contribuiu para a superação de silêncios impostos pelos abusos cometidos contra mulheres. Contribuiu, também, para reforçar a idéia que emerge no direito de família contemporâneo, de que a família deve ser calcada no afeto e possuir como objetivo principal a promoção da realização individual de cada um de seus membros, realização essa que é bruscamente interrompida pela violação das integridades física, psicológica, sexual, patri-

monial e moral da mulher. Isso ocorre por meio de atos que fazem com que diversas famílias sejam infelizes à sua maneira, mas possuindo como uma das causas de sua infelicidade, semelhante origem: a violência. A família não pode ser encarada como um espaço fechado ao debate público e a formas de proteção governamental. Os avanços trazidos pela Lei Maria da Penha foram importantes e diversos debates têm sido promovidos acerca das alterações que foram introduzidas. Todavia, ainda possui pouca visibilidade uma “nova velha novidade” implementada pela legislação: o reconhecimento da existência de diferentes formas de família para que, todas elas, ao menos quanto à pro-

teção jurídica, possam se parecer na felicidade. Casa de Família Como já foi trabalhado em números anteriores do C&D, a abertura para o reconhecimento de diferentes entidades familiares, a partir dos pontos em comum de afeto, publicidade da relação como entidade familiar e estabilidade da relação, possui fundamento na Constituição da República. A Constituição cita, mas não de maneira exclusiva, a possibilidade de proteção de entidades familiares compostas a partir do casamento, da união estável e da relação entre qualquer um dos pais e seus descendentes.

A família não pode ser encarada como um espaço fechado ao debate público e a formas de proteção governamental.


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Família não é instituto fechado Essa enumeração não é fechada, não exclui possibilidades diversas de entidade familiar, tanto que a literatura jurídica e as decisões judiciais vêm reconhecendo outras formas de organização da família, a exemplo daquelas constituídas pela união de parentes e pessoas que convivam em interdependência afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de irmãos, após o falecimento dos pais. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela aplicação de proteções tipicamente relacionadas a entidades familiares (bens de família) a essa forma de entidade familiar. Todavia, o preconceito continua a fazer com que parte considerável dos autores jurídicos exclua a possibilidade de reconhecimento de entidades familiares homossexuais, em que pese a presença dos típicos elementos que a caracterizam (afeto, publicidade e estabilidade). Esse entendimento, antes da promulgação da Lei Maria da Penha, era, no mínimo, equivocado, pois ignorava o papel do princípio constitucional da igualdade como mandamento para o reconhecimento das diferentes formas de entidade familiar, inclusive a homossexual. Essa interpretação ainda sustentava, de maneira incoerente frente à Constituição, que, mesmo que não fosse expressamente proibida a família homossexual, ela só poderia ser reconhecida com uma expressa regulação legal. A Lei Maria da Penha ressaltou que o entendimento de que a família é um instituto fechado, não é apenas um equívoco, mas uma compreensão falsa. Após sua promulgação, nem mesmo as interpretações constitucionalmente inadequadas e que pretendem inverter o papel da interpretação, submetendo princípios constitucionais a disposições legais, podem se sustentar. Isso porque a Lei Maria da Penha, de maneira expressa e consagrando a igualdade no respeito às diferentes maneiras de estruturação familiar e a liberdade de igualmente estruturar projetos de compartilhamento de vidas baseados

no afeto, dispôs que a família é uma comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; independentemente de orientação sexual (art. 5º, inciso II, e parágrafo único). A preponderância da pluralidade sobre formas rígidas de leituras acerca das famílias, o alargamento do conceito de família, essas “novas velhas novidades” que já eram garantidas pela Constituição, são agora reiteradas pela legislação, resultando em uma grande (concepção de) família. Não se pode reescrever Tolstoi, mas se pode reescrever os entendimentos acerca do direito de família. Afinal, como (re)assegura a Lei Maria da Penha, todas as famílias, perante o direito, se parecem, mas cada uma é constituída à sua maneira, buscando, sempre, a felicidade.

A Lei Maria da Penha dispôs que a família é uma comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa, independentemente de orientação sexual.


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A m u l h e r d e s p ro t e g i d a no conflito armado Giovanna Maria Frisso

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o momento em que escrevo várias mulheres têm sua integridade física e moral violada nos conflitos em Darfur e no Iraque. Somente no século passado houve seis casos de abuso sexual massivo de mulheres em vários conflitos armados: as violações de Nanking em 1937; as mulheres escravizadas nos campos japoneses durante a II Guerra Mundial; o estupro de alemãs no final da II Guerra; os estupros na guerra de Bangladesh – Paquistão no início dos anos 1970; os estupros massivos durante os conflitos étnicos da Bósnia e Ruanda nos anos 1990. Qual proteção

o direito internacional público oferece a essas mulheres? O estupro enquanto estratégia de guerra Na origem do direito internacional humanitário, pressupunha-se que apenas as forças armadas tomariam parte nos conflitos armados. A primeira proteção aos civis, na perspectiva de ocupação de um território pelo exército inimigo, é encontrada no anexo da IV Convenção de Haia de 1907. O regulamento se limita a enunciar algumas normas elementares em apoio ao princípio segundo o qual o ocupante tem a obrigação de respeitar “o homem e os direitos da família, a vida dos indivíduos e a pro-

priedade privada, assim como as convicções religiosas e o exercício de culturas”. Vigente ainda hoje, este dispositivo estabelece como regra a não interferência do Estado ocupante na esfera privada dos indivíduos. A família é protegida em documentos mais recentes de direito internacional humanitário. Na IV Convenção de Genebra de 1949, instrumento voltado para a proteção de civis após a traumática experiência da II Guerra Mundial, lemos: “as mulheres serão especialmente protegidas contra qualquer atentado a sua honra e, em particular, contra a violação sexual, prostituição forçada ou qualquer atentado a seu pudor”. Muito embora acusa-

ções de estupros cometidos por alemães durante a guerra tenham sido registradas, não há menção alguma ao estupro na Convenção de 1949. Vale lembrar que esta Convenção, ratificada por 194 Estados, goza de aceitação universal. Os Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra, de 1977, trazem dispositivos similares. O foco da proteção conferida à mulher nestes instrumentos está dirigido à proibição da violação da honra da mulher, no sentido de qualidade moral associada à dignidade. A categoria de direitos, objeto de garantia na qual a proibição ao estupro foi incluída, relaciona-se com conceitos como castidade, pudor, decência, pureza e virgindade.

Vigente ainda hoje, a IV Convenção de Haia de 1907 estabelece como regra a não interferência do Estado ocupante na esfera privada dos indivíduos.


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Respeitar a mulher em seus múltiplos papéis Pensado enquanto atentado violento ao pudor, o estupro é discutido em termos de castidade em oposição a violações contra a integridade física e moral da mulher. Sendo a honra o interesse protegido, a violação é definida a partir do ponto de vista da sociedade. A mulher vítima de estupro pode ser considerada indigna e impura por sua comunidade, devendo ser afastada do convívio social. Ao conduzi-las ao ostracismo, o estupro torna-se um meio eficaz de impedir a reprodução do grupo inimigo. A redução da mulher ao papel social de reprodutora é, portanto, essencial para a compreensão do estupro enquanto estratégia de guerra. O caso de Ruanda oferece-nos um bom exemplo. O jornal hutu Kangura (Acorde!) publicou em 1994 os “Dez Mandamentos do Hutu”, onde se lia: “1. Todo hutu deve saber que uma mulher tutsi, seja ela quem for, serve aos interesses do grupo étnico tutsi. Assim sendo, consideraremos traidor qualquer hutu que: – desposar uma mulher tutsi; – ajudar uma mulher tutsi, – empregar uma mulher tutsi como secretária ou concubina”. O estupro, quando cometido como parte de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, por motivos nacionais, políticos, étnicos, raciais ou religiosos, permite seu enquadramento como crime contra humanidade nos termos do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda. No caso Akayesu, o estupro foi tipificado como genocídio devido a suas conseqüências para o grupo. O Tribunal entendeu que o acusado tinha a intenção de cometer o genocídio por meio do estupro sistemático das mulheres tutsi. Como parte da campanha de mobilização dos hutus contra os tutsi, as mulheres tutsi eram apresentadas como objetos sexuais a serem sujeitadas à violência sexual devido à sua etinia. Esta violência sexual era um passo em relação à destruição da etnia tutsi, já que destruía seu espírito, sua vontade de viver, ou vontade de procriar. Para além de uma estratégia Muitas associações de proteção às mulheres, advogados, ativistas e investigadores afirmam que deci-

sões neste sentido serviram para que o estupro saísse do âmbito privado, pessoal, para passar a ser público ou político. Todavia, na condição de crime contra a humanidade ou genocídio, o estupro toma dimensão pública/política por estar relacionado a figuras jurídicas do delito contra determinados grupos. O que se pune, nos termos do Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, não é um crime contra a mulher, mas um crime contra as mulheres enquanto integrantes de um grupo. Tendo em mente o desenvolvimento do direito penal internacional, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional afirma a competência do Tribunal para julgar o crime de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. O crime de genocídio é definido tal como no Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, seguindo os termos da Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948. Neste sentido, a ca-

racterização do estupro como estratégia voltada para a destruição de um grupo pelo Tribunal Penal Internacional é permitida nos termos de seu Estatuto. Violações da liberdade sexual da mulher quando cometidas no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil podem ser enquadradas como crimes contra a humanidade. A ausência de requisito discriminatório para a caracterização do crime contra humanidade pode ser entendida como um primeiro passo para se proteger a integridade física e moral da mulher independentemente do grupo a que

ela pertença. Outro avanço neste sentido é encontrado na tipificação do estupro como crime de guerra, quando cometido durante ou associado a um conflito armado, seja ele internacional ou não-internacional. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional oferece-nos instrumentos para que a mulher seja respeitada em seus múltiplos papéis sociais. Neste sentido, o Estatuto evita que o discurso jurídico repita a redução do papel da mulher à reprodução do grupo “inimigo”, sem impedir o reconhecimento do estupro como estratégia de guerra em determinados contextos.

O Estatuto do Tribunal Penal Internacional oferece-nos instrumentos para que a mulher seja respeitada em seus múltiplos papéis sociais.


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S o b re o D i re i t o Ad q u i r i d o Tarso Genro

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lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (Constituição Federal). Este texto, no seu conjunto, é uma “norma”. É um comando do Estado, sobre princípios inscritos na Constituição. Seu alcance, classificação e conteúdo, são determinados pela doutrina jurídica, pela filosofia do direito e também pelo próprio sistema de normas produzido pelo Estado. O comando (a “norma”) determina, assim, o respeito a determinados “princípios” dos quais derivam de-

terminados conceitos. Assim, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido, como princípios – verdadeiras instituições do Direito moderno – podem ser “classificados”, analisados no seu conteúdo concreto, que pode variar historicamente. Esta variação pode ocorrer, não só pelas modificações da lei, mas também pelo enriquecimento doutrinário ou filosófico. Direito adquirido não é, assim, uma norma em si mesma. O direito adquirido está referido por uma norma, que o arrola como princípio. A forma viva que este princípio adquire nas relações sociais e jurí-

dicas reais (ou positivas) pode variar. A sua variação está inscrita na própria evolução do direito iluminista. Se eu disser só a expressão “direito adquirido”, não estou constituindo um “comando”, uma norma, pois a expressão carece de imperatividade. O direito “absoluto” à propriedade privada cedeu aos fins sociais da propriedade, logo, o “direito adquirido” propriedade também. O direito “adquirido” à propriedade de uma pessoa sobre a outra se extinguiu com o fim da escravidão. Quando a empresa passa a ter também finalidades sociais, no sistema normativo moderno, o “direi-

to adquirido” ao uso dos bens privados também modificou-se. O Direito é, assim, mais do que uma norma ou um conjunto de normas: é isso mais os princípios, mais a experiência jurídica. É isso mais a conexão entre legitimidade e legalidade, cuja complementaridade recíproca é essencial no Direito moderno. A interpretação de um determinado princípio pode envelhecer com a evolução da sociedade, com a evolução dos seus conflitos e isto pode retratar-se, tanto nas retificações legislativas – de natureza constitucional ou não – como na evolução jurisprudencial.

Se eu disser só a expressão "direito adquirido", não estou constituindo um “comando”, uma norma, pois a expressão carece de imperatividade.


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Evolução pode envelhecer princípios A jurisprudência pode dizer num determinado período histórico, por exemplo, que tal situação jurídica configura um direito adquirido e mais tarde dizer que não configura. E o faz sem revogar o princípio do “direito adquirido”. Um debate que está sendo feito atualmente, por exemplo, é e as leis que acabam com o nepotismo têm vigência para apanhar os nepotismos já realizados ou só proibirão os nepotismos ora em diante: aquele exercício de nepotismo abraçado sem leis que o reprimiam configurou um “direito adquirido” para as pessoas beneficiadas? Sem entrar no mérito, é um bom debate, pois as pessoas foram contratadas obviamente sem má fé. Quando se fala, pois, em “arcaísmo” a respeito do direito adquirido, o que está se dizendo é que ele pode, em determinadas situações, estar se convertendo em não-Direito. Ou seja, confrontando-se com outros princípios, como o da igualdade formal – alicerce do “direito novo” no curso das grandes revoluções democráticas da modernidade – cuja tradução prática, nos dias de hoje, é um mínimo de tratamento equivalente a cada cidadão, coletiva ou individualmente considerado. Seja ele servidor público ou não. A redução das diferenças salariais no Estado, drenando recursos para as camadas de baixos padrões salariais, pode ser um dos avanços importantes na redução das desigualdades sociais. O que sustentei, como opinião pessoal, e que poderia ser objeto de uma norma constitucional autoaplicável e de eficácia imediata, é que a diferença de 1 para 30, nos salários pagos pelo poder público, não seria nenhum exagero. Ao contrário do que temos hoje, com diferenças de 1 para 60, o que transforma o Estado em instrumento de desigualdades sociais, de concentração de renda e de poder.

O Direito é mais do que uma norma ou um conjunto de normas: é isso mais os princípios, mais a experiência jurídica.


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Um a g a ra n t i a p a ra ( o u c o n t r a ) o f u t u ro Guilherme F. A. Cintra Guimarães

“O futuro não pode começar”. Essa afirmação do sociólogo alemão Niklas Luhmann causa, à primeira vista, uma certa perplexidade. Como assim o futuro não pode começar? Por que ele não pode começar? Quem ou o que impede que ele tenha início? O futuro não pode começar por uma razão bem simples: vivemos sempre no presente. Cada momento que passa é percebido como momento atual, como momento presente, embora esse mesmo momento possa ser descrito como o futuro de um determinado momento passado – momento que, exatamente por já ter “passado”, não é mais referência “pre-

sente” para a avaliação do futuro. O futuro, em si, nunca começa. Não temos acesso ao futuro porque não podemos observá-lo. Ou melhor, só podemos observá-lo como possibilidade, como projeção, como interpretação (ou previsão) sobre aquilo que pode ou não acontecer. Em relação ao futuro, projetamos nossas expectativas. Porém, em um eventual momento “presente” no futuro, em um “futuro presente”, essas possibilidades, projeções e expectativas poderão não se realizar. Diante das incertezas do futuro, somos obrigados a assimilar o risco. O risco de que, no futuro (ou em um “presente futuro”), as coisas poderão ser diferentes daquilo que esperamos.

O direito nos previne contra o futuro Para lidar com as incertezas e riscos do futuro, o direito nos fornece algumas garantias. O próprio direito como um todo pode ser interpretado como uma garantia contra o futuro. Com base na constituição, nas leis e nos contratos e acordos que firmamos, projetamos expectativas para o futuro. Expectativas de que seremos todos tratados de maneira igual, de que teremos liberdade de ir e vir, de que receberemos nossos salários nos primeiros dias do mês, de que a polícia e as demais “autoridades públicas” nos tratarão com dignidade. Contudo, por se tratar de uma expectativa, e não de uma certeza, estamos sempre sujeitos a frustrações – frustrações que chegam a adquirir,

em alguns casos, um grau relativamente alto de certeza. O direito, contudo, nos dá, em certa medida, o “direito” de sermos “burros”, isto é, de não assimilarmos as frustrações, de nos irresignarmos diante dos fatos, de mantermos nossas expectativas ainda que elas sejam cotidianamente frustradas – em suma, de aprendermos a não aprender. Diante do risco de um eventual “calote”, dispomos da possibilidade de ajuizar uma ação de cobrança. Frente a uma prisão arbitrária, podemos recorrer a um juiz por meio de um habeas corpus. Contra a inércia e o descaso governamental, os movimentos sociais podem organizar protestos para a reivindicação de direitos.

Como proteção contra o risco de mudanças futuras, a nossa constituição prevê que “a lei não prejudicará o direito adquirido”


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Mudança futura é risco de frustração O direito também é arriscado. Mudanças jurídicas futuras podem eventualmente frustrar nossas expectativas presentes. Na sociedade atual, esse é um risco constante. Para acompanhar a acelerada dinâmica da sociedade moderna, o direito é continuamente modificado, seja por meio de novas interpretações das práticas jurídicas do passado, seja por alterações legislativas no direito já positivado. Como proteção contra o risco de mudanças futuras, a nossa constituição prevê que “a lei não prejudicará o direito adquirido”. Ou seja, direitos adquiridos no presente não podem (ou não devem) ser suprimidos por leis que venham a ser editadas no futuro. Um exemplo clássico é o da aposentadoria. Ao nos aposentarmos, adquirimos o direito de receber uma determinada renda vitalícia. Mais ainda, adquirimos o direito de que essa renda não seja suprimida ou reduzida no futuro. Contudo, diante de cálculos econômicos e argumentos tecnocráticos, os juristas podem ser bastante “criativos” (ou “destrutivos”) quando se trata de “amenizar” o significado da proteção constitucional dos direitos adquiridos, como ocorreu recentemente em relação à reforma da previdência aprovada no primeiro mandato do Presidente Lula. No caso, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a taxação dos servidores inativos, admitindo a possibilidade de diminuição dos seus proventos sob a justificativa de que a contribuição previdenciária possui caráter tributário. Contra os tributos, de acordo com o STF, não há direito adquirido, assim como não há direito adquirido a “regime jurídico”, isto é, à manutenção das regras previdenciárias anteriores. Os aposentados tinham, então, apenas uma “expectativa de direito”, e não um direito adquirido propriamente dito. Todavia, todos os direitos, especialmente aqueles que se costuma designar como direitos adquiridos, não representam sempre uma expectativa? Uma expectativa para e contra o futuro? O futuro, no entanto, nunca começa. E no presente, sempre há o risco de que, “em nome do direito”, como demonstraram o governo e o STF em relação à última reforma da previdência, sejam violados os nossos direitos adquiridos.

(...) no presente, sempre há o risco de que, “em nome do direito”, (...) sejam violados os nossos direitos adquiridos


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ENTREVISTA COM MIN. NILCÉA FREIRE

As políticas para as mulheres A

s pesquisadoras Adriana Miranda (Direito Achado na Rua e STD) e Mariana Carvalho (STD), da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, entrevistam a Ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e ex-reitora da Universidade Estadual do RJ. Qual é a importância hoje de ter uma Secretaria Especial para proteger e promover os direitos da mulher? A Secretaria tem o papel de formular, no âmbito do governo federal, políticas públicas que promovam, do ponto de vista do Estado, a distribuição eqüitativa dos benefícios na sociedade. Portanto, quando trabalhamos gênero, estamos de certa maneira trabalhando em prol da diminuição de todas as desigualdades, na medida em que promovemos um novo olhar sobre as políticas públicas no país. Está mais claro para o governo federal que as políticas não têm a neutralidade que se supõe ter, que todas as políticas gerais atingem igualmente homens e mulheres. Cada política tem impacto diferenciado e, para que elas sejam políticas mais efetivas, precisam que, na sua formulação, esses impactos sejam avaliados. Essa é uma vertente importante do trabalho da Secretaria. Achamos que o Governo Lula obteve uma vitória importante do ponto de vista do caminhar para redução das desigualdades a partir do momento em que reconheceu que as desigualdades de gênero e de raça estruturam o processo de exclusão na sociedade brasileira. E nós

temos avançado nesse sentido, pois temos um Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, implementado desde janeiro de 2005, construído de maneira participativa. A partir dele, nós podemos contabilizar inúmeros avanços, mas eu queria enfatizar o inicio de uma mudança de cultura dentro da própria gestão governamental, no sentido de se apropriar do tema gênero e da igualdade entre homens e mulheres como um tema importante para construção de uma sociedade mais justa e democrática. Quais os avanços que a lei Maria da Penha trouxe para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher? O principal avanço é a extinção do sentimento de impunidade que havia no caso da violência doméstica e familiar contra a mulher. Com a nova lei, as penalidades que eram impostas pela lei 9.099 aos agressores de mulheres – a história da cesta básica, as penas pecuniárias transformadas em piadas machistas em qualquer rodinha de bar nas comunidades – foram absolutamente afastadas. É importante mencionar outras questões. A lei traz em seu bojo a complexidade da violência doméstica e familiar contra a mulher. Ela tem aspectos de prevenção, proteção e evidentemente aspectos punitivos. É, sobretudo, um instrumento de cidadania das mulheres. Com essa lei, as mulheres podem cobrar do setor público, dos seus governos municipais, estaduais e do Poder Judiciário o cumprimento de uma pauta já

O principal avanço da Lei Maria da Penha é a extinção do sentimento de impunidade que havia no caso da violência doméstica e familiar contra a mulher.

existente na sociedade e que não estava inscrita em nenhum documento, isto é, elas podem demandar a ampliação do número de serviços especializados de atendimento à mulher em situação de violência, cobrar um acesso maior à justiça, pois a justiça no Brasil ainda é para poucos. A Lei Maria da Penha desnuda as dificuldades de acesso à justiça dos cidadãos e cidadãs brasileiras, e eu considero, inclusive, que esse é o grande foco que provoca as críticas à lei. O que é preciso fazer para coibir o tráfico de mulheres, especialmente o tráfico internacional para fins de exploração sexual? Como atuar sem violar direitos como a liberdade profissional e o direito de ir e vir? No caso do tráfico, temos que pensar em três dimensões. A primeira é pensar no que leva as pessoas a estarem vulneráveis ao aliciamento pelo tráfico. Temos que analisar a falta de perspectivas das vítimas em seu próprio país, as dificuldades de estarem empregadas, a pobreza e o desejo de superar o mais rápido possível essa falta de perspectiva. Pensando nessa dimensão, é preciso atuar criando condições para que a nossa juventude, em especial as mulheres jovens e dos segmentos mais pobres da população, possa ter perspectivas, direito a pensar no futuro, porque hoje ela pode no máximo tentar resolver o seu presente. A segunda questão é pensar no processo de repressão às redes criminosas. Não podemos confundir o direito à opção profissional por uma atividade, que uma mulher adulta ou um homem adulto deve fazer, com o fato dela ou dele cair na malha de uma rede criminosa em que essa opção será explorada. Há que haver repressão sim, temos que usar todo o nosso saber, toda tecnologia social disponível para coibir e reprimir essas redes criminosas. E a terceira dimensão é o que fazer com as pessoas que já se tornaram vítimas das

Cada vez mais não é a aceitação ou a tolerância da diferença, e sim a incorporação da diferença e da diversidade.


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s no Brasil: avanços e desafios

redes criminosas. E talvez aí seja um nó importantíssimo que nós temos que desatar. Como recompor a auto-estima dessas mulheres, como recompor suas relações com seu ambiente social, como acolhêlas de volta ao seu país, ao seu município, às suas famílias, sem que elas se sintam humilhadas, envergonhadas, despossuídas de tudo? É preciso montar sistemas de acolhimento, porque não basta reprimir o trafico, estourar as redes, libertar as mulheres. É preciso mostrar que elas podem retornar ao seu país e que serão acolhidas, que nós temos

o que oferecer para elas. É nessa perspectiva que a Secretaria se integra a esse grupo, na perspectiva de assegurar e garantir a segurança e os direitos humanos das mulheres. Em relação ao acesso desigual ao trabalho e remuneração entre homens e mulheres, quais são os desafios que estão colocados? São muitos. O primeiro deles é desconstruir a cultura machista e patriarcal que existe na sociedade. Mas isso não é tarefa de governo, isso é um desafio para a sociedade. Eu costumo dizer que nenhum go-

verno acaba por decreto com machismo, racismo ou homofobia. O que os governos têm obrigação de fazer é assegurar os direitos a todos os segmentos da sociedade e, assegurando os direitos, dar-lhes poder para que possam disputar na sociedade o seu lugar. No campo da desigualdade no mundo do trabalho, nós temos que pensar hoje que essa questão é absolutamente crucial, na medida em que as mulheres são uma parcela significativa da população economicamente ativa. Nós devemos pensar na redistribuição na sociedade das tarefas que tradicionalmente são delegadas de maneira exclusiva às mulheres e que são um obstáculo para que elas tenham as mesmas oportunidades que os homens. Eu estou falando da clássica dupla jornada e, enquanto a sociedade não entender que hoje não é mais possível pensar que a conciliação entre a vida no lar e a vida laboral é resolvida entre quatro paredes e que toda sociedade tem que se envolver na redistribuição dessas tarefas, nós não avançaremos. Há que discutir discriminação e preconceito, mas também a criação de um novo paradigma nas relações sociais e de trabalho onde entram equipamentos sociais, como as creches, para que as mulheres possam disputar os postos de trabalho em igualdades de condição. As empresas e as instituições têm que trabalhar com a possibilidade de flexibilização dos horários não só para as mulheres, mas para homens e mulheres, para que eles possam redistribuir tarefas como cuidar da casa, dos filhos, idosos e doentes. De certa maneira, a própria legislação trabalhista coloca só sobre os ombros das mulheres essa responsabilidade, pois ela tem as chamadas medidas de proteção da maternidade. Para a Secretaria, nos próximos quatros anos, uma das questões fundamentais será enfrentar uma agenda de trabalho decente no nosso país, a agenda da igualdade de

As desigualdades de gênero e de raça estruturam o processo de exclusão na sociedade brasileira. oportunidade, com a rediscussão de papéis de homens e mulheres na sociedade brasileira. Sabe-se que as questões de gênero hoje no Brasil integram a agenda de diferentes setores organizados da sociedade. Quais as dificuldades enfrentadas pela SPM na construção de políticas para as mulheres? Como compatibilizar as diferentes agendas? Apesar de serem muitos setores, com perspectivas próprias, existe um denominador comum, que é a igualdade. É isso que une todo mundo: o principio da igualdade e o respeito à diferença. Cada vez mais não é a aceitação ou a tolerância da diferença, e sim a incorporação da diferença e da diversidade como um elemento constitutivo do próprio desenvolvimento, do próprio progresso das relações sociais. Nós somos melhores na medida em que somos diversos, em que somos capazes de fazer com que as diferenças entre nós sejam fatores de complementação e de construção de novas perspectivas. É isso que une todos esses movimentos. E por isso a nossa agenda, por ter isso como linha de base, é uma agenda, em certa medida, incorporada por todos esses segmentos. A gente vê um pouco da nossa agenda em cada um desses movimentos e cada um desses movimentos está, de certa forma, representado na nossa agenda governamental.


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Discriminação racial e desigualdade

social na ordem do dia Luiz Fernando Martins da Silva

O

intenso debate em curso no espaço público em torno do binômio, raça e classe, colocou na centralidade da discussão a questão da discriminação racial e das desigualdades sociais, principalmente após a mídia expor a guerra de posições travada entre os lados contra e a favor das políticas de ação afirmativa e seus mecanismos (como as cotas), para afrodescendentes na educação pública superior e pela aprovação do Estatuto da Igualdade Racial no Congresso Nacional. A discriminação racial existente em nosso país exclui os membros da

comunidade negra da sociedade geral, relegando-os a uma cidadania de segunda classe, conforme evidenciam as diversas análises de natureza sociológica e antropológica, bem como os indicadores sociais produzidos por pesquisas realizadas pelas diversas instituições que têm se debruçado sobre o problema, entre outras: o IPEA, o IBGE, e o PNUD (ONU), que apontam a marginalização desse grupo social na educação, no mercado de trabalho, na expectativa de vida etc., demonstrando o abismo quanto à qualidade de vida e poder econômico que separam a população branca da negra. Assim, o tratamento mais favorável dado pelo Estado a esse grupo so-

cial vulnerável justifica e autoriza a criação de políticas públicas particularistas de redistribuição de renda e equalização de posições excessivamente desvantajosas, dentre as quais as políticas de ação afirmativa (também conhecida pelos termos: discriminação positiva, ação positiva, ou discriminação inversa), objetivando alcançar a igualdade real. Entende-se ser dever de um Estado Democrático de Direito Social promover o equilíbrio das clivagens sociais, propondo estímulos regulativos e materiais a favor da Justiça Social, reajustando as condições reais prévias à aquisição de bens materiais e imateriais indispensáveis ao próprio exercício de direitos, liberda-

des e garantias pessoais. Ressalte-se que o princípio da igualdade e a noção de acesso igualitário aos procedimentos (a concepção dworkiana “do direito de igual respeito e consideração”: direito a “ser tratado como um igual” distinguindo-se do direito a “igual tratamento”, que se trata de “falta de reconhecimento”) estão para além da proposta de integração igualitária no sistema, devendo ser lidos como “neutralização de desigualdades fáticas na consideração jurídico-política de pessoas e grupos”, bem como o desenvolvimento numa esfera pública pluralista da “idéia que as diferenças sejam recíproca e simetricamente respeitadas”.

A discriminação racial exclui os membros da comunidade negra da sociedade geral, relegando-os a uma cidadania de segunda classe


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Políticas públicas para afro-descendentes No campo jurídico, o debate entre os operadores do Direito, professores e pesquisadores tem se centrado na oportunidade, conveniência e constitucionalidade das políticas editadas pelo Estado brasileiro, sob diversos argumentos, dentre os quais: violação do princípio da igualdade formal, do mérito, da proporcionalidade e da razoabilidade, da Federação, da autonomia universitária, e até mesmo a inexistência de critérios seguros ou científicos para se identificar os beneficiários das medidas destinadas aos pardos e às pessoas com deficiência. Outras críticas são dirigidas aos critérios adotados por algumas universidades para selecionar e identificar os beneficiários das políticas afirmativas, como ocorre no processo de seleção da Universidade de Brasília e na Universidade Federal do Paraná. Mas, a questão sobre a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa também passa, especialmente, pelo paradigma jurídico com o qual o intérprete opera. Por exemplo, do ponto de vista do positivismo jurídico, a ausência do termo “ação afirmativa” no Texto Constitucional vedaria a criação dessa política pelo Estado, porque essa perspectiva do pensamento jurídico opera exclusivamente com o método lógico-dedutivo, a qual assumindo os princípios da coerência e da completude do ordenamento jurídico, procura a melhor norma jurídica dentre as normas positivas válidas, descartando assim considerações interpretativas sobre as demandas e necessidades humanas em uma sociedade. Contudo, esse debate não evidencia a ampla base normativa e principiológica da legislação internacional e nacional em vigor, que lastreia a implantação das medidas afirmativas pelo Estado, a saber: a) na ordem jurídica internacional, as diversas convenções, tratados, pactos e programas, que além de proibirem toda forma de discriminação, também prevêem a adoção de políticas de promoção da igualdade, apesar de não utilizarem a expressão “ação afirmativa” e sim “medidas especiais”. Destacamos, dentre outras: A Convenção sobre a Discriminação em Emprego e Profissão nº 111 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, artigo 5º,

item 1; a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo 1º, item 4; a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), artigo 4o, item 1; e a Declaração e o Plano de Ação de Durban, de 2001, artigos 99 e 100; b) Na ordem jurídica doméstica: b.1) NO ÂMBITO CONSTITUCIONAL, na Carta da República em vigor, destacamos dentre outros: artigo 1o, inciso III; artigo 3º, incisos I, III e IV; artigo 4º, incisos II e VIII; artigo 5º, incisos XLI e XLII e parágrafo 2º; artigo 7º, caput, e inciso XXX; artigo 23, inciso X; artigo 37, inciso VIII; artigo 145, § 1º; b.2) NO ÂMBITO DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL, destacamos: o Decreto-Lei no 5.452/43 (CLT), que prevê, em seu art. 354, cota de dois terços de brasileiros para empregado de empresas individuais ou coletivas e o art. 373-a, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres; a Lei no 8.112/90, que determina, em art. 5º, § 2º, reserva de

até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da união; a Lei no 8.213/91, que fixou, em seu art. 93, reserva para as pessoas portadoras de deficiência no setor privado; a Lei no 8.666/93, que preceitua, em art. 24, inc. XX, a inexigibilidade de licitação para contratação de associações filantrópicas de pessoas portadoras de deficiência; a Lei nº 9.029, de 13/04/95, que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais, ou de permanência da relação jurídica de trabalho; a Lei no 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10, § 3º, cria “reserva de vagas” para mulheres nas candidaturas partidárias, e a Lei no 10.639/93, que altera a Lei no 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura AfroBrasileira”. Por fim, pode-se dizer que, não obstante a ocorrência de divergências como as acima expostas, hoje em dia está se criando um alto grau

de consenso no Brasil em favor das ações afirmativas, notadamente a respeito dos argumentos a favor da constitucionalidade das mesmas. Contudo, não podemos olvidar que a política de ação afirmativa – em que pese sua relevância – é apenas um dos meios que pode ser utilizado como instrumento capaz de propiciar mobilidade social à comunidade negra, sem olvidar outras formas mais fecundas de obter justiça social.

A questão sobre a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa também passa pelo paradigma jurídico com o qual o intérprete opera


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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

Greve no serviço público: exercício legítimo de um direito constitucional Menelick de Carvalho Netto e Ricardo Machado Lourenço Filho

O

s Ministros do Supremo Tribunal Federal Eros Grau e Gilmar Ferreira Mendes defenderam, recentemente, que o direito de greve no serviço público pode ser exercido de imediato, aplicando-se a regulamentação prevista na lei geral de greve. Mais do que simplesmente reconhecer o direito aos servidores públicos, essa nova orientação abre a possibilidade de debate acerca da efetividade da Constituição de 1988, revendo a tradição do próprio Tribunal de subvertê-la. No julgamento do Mandado de Injunção nº 20-4/DF, o STF manteve a perspectiva autoritária, mediante a forçada consideração isolada do inciso VII do art. 37, como se esse dispositivo não tivesse que ser lido à luz do § 1º do art. 9º da Constituição. De fato, a Corte considerou que o preceito que “asseguraria” o direito de greve aos servidores públicos configuraria uma norma de eficácia meramente limitada, concluindo que o direito poderia ser exercido tão somente após a edição de lei complementar (hoje, lei específica) que o disciplinasse. Ocorre que a subversiva continuidade da ordem autocrática anterior só pode ter curso ignorando-se totalmente o novo tratamento dado ao direito de greve na ordem constitucional democrática, claramente expresso no art. 9º da Constituição. A elevada complexidade dos serviços públicos impede hoje a manutenção de uma visão que divida radicalmente o público e o privado. A intensificação das atividades do “terceiro setor” e a crescente difusão das tarefas públicas no setor privado evidenciam a complementaridade entre público e privado. E isso reforça a

centralidade do § 1º do art. 9º da Constituição no que toca à greve dos servidores públicos. O rompimento com o autoritarismo A Constituição de 1988 tem um desafio: superar a ordem autoritária anterior e inaugurar uma nova ordem democrática. O fato de os direitos fundamentais estarem previstos logo no início do texto é um reflexo do seu caráter progressista e libertário. Outro sinal dessa transição é a própria garantia do

direito de greve inclusive no serviço público. A decisão do Supremo Tribunal Federal que rejeitou a possibilidade de exercício imediato do direito de greve pelos servidores públicos subverte a Constituição, reforçando o continuísmo e criando anomia. O STF desconsiderou a mudança constitucional ocorrida com a Carta de 1988 e negou seu sentido originário. Nessa perspectiva, o recente posicionamento dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau possibilita o resgate do caráter de-

mocrático da Constituição e de sua própria efetividade. O art. 9º assegura o direito de greve, afirmando competir aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam ser assim defendidos. Já o § 1º determina que “a lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”. Esses dispositivos rompem com a ordem anterior que inviabilizava o direito de greve ao prever inúmeras condições para seu exercício, sendo que a Carta de 1967 expressamente o proibia nos serviços públicos e nas atividades essenciais. Agora, qualquer limitação não pode ser diferente da prevista na Constituição. A justificativa da imposição de limites é encontrada na necessidade de que determinadas atividades sejam preservadas. É nesse sentido que deve ser interpretado o art. 37, VII. A exigência de lei específica tem por fim exatamente resguardar aquelas atividades tidas por essenciais. E o art. 37, VII, está vinculado ao art. 9º da Constituição. Não há como considerar que o direito de greve dos servidores públicos tem fundamento apenas naquele preceito, e não neste. É incompatível com uma ordem democrática negar aos servidores públicos a condição de “trabalhador”. Afinal, o que os vincula à Administração Pública senão uma relação de trabalho? Não há sentido em isolar os servidores públicos dos demais trabalhadores, o que nada mais é do que um resquício de uma tradição autoritária. Aliás, será esta tradição que impediu até agora o legislador ordinário de editar a lei específica prevista no art. 37, VII, da Constituição?

A elevada complexidade dos serviços públicos impede a divisão radical entre o público e o privado.


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“Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem” A norma constitucional que garante o direito de greve no serviço público é de eficácia contida, e não limitada. O direito pode ser restringido mediante lei específica. Mas até que essa lei seja editada, a norma tem eficácia plena. Somente nessa perspectiva é que será dada efetividade à Constituição, em cumprimento inclusive do art. 5º, § 2º, que estipula a aplicação imediata dos dispositivos que asseguram os direitos fundamentais, a serem encarados, numa ordem democrática, como princípios plenamente aplicáveis nos planos individual e coletivo. Exercício legítimo de um direito constitucional Desde que o Supremo Tribunal Federal se manifestou, em 1996, acerca do direito de greve no serviço público – decidindo que seu exercício estava condicionado à edição de uma lei específica que o regulamentasse –, inúmeras greves “ilegais” eclodiram no âmbito da administração pública. Ilustrativa foi a greve de 2001 dos professores universitários, que atingiu instituições públicas de ensino superior de todo o país. O STF manteve decisão do Superior Tribunal de Justiça que deferira liminar para determinar o repasse das verbas destinadas ao pagamento dos salários dos docentes. Dentre os fundamentos lançados, dois chamaram a atenção: (i) o exercício de um direito constitucional não pode resultar em prejuízo justamente ao seu beneficiário; e (ii) o não-pagamento dos salários implicaria negar o próprio direito de greve, consubstanciando ato de força descomunal e desproporcional por parte, no caso, do próprio Estado. Infelizmente, trata-se de precedente isolado, pois em oportunidades posteriores, o mesmo STF invocou a decisão do Mandado de Injunção nº 204/DF e entendeu serem lícitos os descontos pelos dias parados, por considerar inconstitucional o exercício do direito de greve no âmbito da administração pública, até que a lei que o discipline seja editada. Diante disso, indaga-se: o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, ao declarar inconstitucional o exercício do direito de greve pelos servidores públicos, porque previsto em norma de eficácia limitada e ain-

da não regulamentada, impede a fruição legítima do direito? Os tribunais, ao construir o direito, reconhecendo-o, devem voltar-se à realidade social. É no processo histórico de lutas sociais e no conflito entre dominantes e dominados que o direito será encontrado. No Brasil, desde há muito, a greve vem sendo um instrumento de luta, inclusive no serviço público, contra a exploração da mão-de-obra. É possível mencionar as greves gerais no início do século XX – como a de São Paulo, em 1917 –, caracterizadas pelo violento conflito entre trabalhadores e autoridades governamentais, que, aliás, encaravam o problema social como uma “questão de polícia”. O reconhecimento do direito de greve passou por momentos de avan-

ços e retrocessos ao longo do século. A garantia expressa do direito na Constituição de 1988 representa um desses avanços, mais evidente ainda no serviço público. O exercício imediato do direito nada mais representa do que a efetivação do texto constitucional, que marca uma ruptura com a ordem autoritária anterior. O direito de greve insere-se no processo histórico de construção dos direitos fundamentais. Este processo deve ser observado pelo intérprete do direito. A decisão do Supremo Tribunal Federal, no sentido de

que o art. 37, VII, da Constituição encerra norma de eficácia limitada, não impede o exercício legítimo e imediato do direito de greve pelos servidores públicos, que é garantido pela própria Constituição. Além do texto, a construção do direito, em especial pelos Tribunais, deve voltar-se à dinâmica social e à consolidação histórica dos direitos fundamentais. Do contrário, corremos o risco de ficarmos como os personagens de José Saramago, em O Ensaio sobre a cegueira: “Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem”.

Os tribunais, ao construir o direito, reconhecendo-o, devem voltar-se à realidade social.


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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

Assédio sexual e discriminação de gênero nas relações de trabalho Marthius Sávio Cavalcante Lobato

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ssediar: perseguir com propostas; sugerir com insistência; cercar; rodear; enfadar, em suma, sugestão ou pretensão constante em relação a alguém. Estes são alguns dos significados que encontramos em vários dicionários. Gênero pode significar um conjunto de espécies que apresentam certo número de caracteres comuns convencionalmente estabelecidos. Ao gênero humano, convencionouse apontar, às sua espécie masculina

e feminina, papéis diferenciados na sociedade que acabariam por desencadear a discriminação entre homens e mulheres. Portanto, trata-se de uma construção sociocultural na qual feminino e masculino passam por transformações ao longo do tempo. Isto porque a discriminação cultural entre homens e mulheres, afirmada tanto por Aristóteles – que entendia que a mulher não poderia participar da vida pública uma vez que sua conduta era pautada pela emoção –, como por Rousseau, que entendia que a educação da mulher

deveria ser relativa ao homem, tem sido objeto de (re)construção face ao princípio da igualdade firmado nas constituições contemporâneas. Assediar sexualmente significa a abordagem de um em relação ao outro com intenção ou mesmo a insistência inoportuna de alguém com superioridade hierárquica para obter favores sexuais de seus subordinados. Atinge diretamente os direitos de personalidade ao violar sua liberdade sexual. De fato, o assédio pode ocorrer de qualquer forma, entre homem e mu-

lher, mulher e homem ou entre pessoas do mesmo sexo. Fato é que o mais comum é o assédio sexual do homem sobre a mulher, tendo em vista a discriminação cultural ocorrida quando da inserção ao mercado de trabalho pela mulher. Esta discriminação começou com a imposição à mulher de extenuante jornada de trabalho e tarefas com salário abaixo dos recebidos pelos homens, sob o fundamento de que, além de produzirem menos, seu produto tinha valor de mercado inferior ao produzido pelo homem.

O mais comum é o assédio sexual entre homem sobre a mulher, tendo em vista a discriminação cultural ocorrida quando da inserção ao mercado de trabalho pela mulher.


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O ônus da prova e o assédio sexual O aumento da participação da mulher no mercado de trabalho, demonstrando claramente a inexistência de diferença dos serviços prestados, trouxe culturalmente ao homem a ameaça do desemprego e a perda da capacidade de gerir e prover o sustento familiar. Dentro de um processo político multidimensional, com a perspectiva de retirar a centralidade do espaçotempo local, em uma concepção ideológica de gestão da desigualdade, surge a Convenção Internacional para Eliminação da Discriminação contra mulher exigindo a adoção de medidas adequadas para proibir toda e qualquer forma de discriminação contra a mulher, quer em razão do estado civil, gravidez ou licença-maternidade. No mesmo sentido, a Organização Internacional do Trabalho elaborou a Convenção nº 100 (igualdade de remuneração de homens e mulheres trabalhadores) e a Convenção nº 111 (proíbe qualquer forma de discriminação de emprego ou profissão). A Constituição de 1988 inseriu em seu preâmbulo os valores sociais do trabalho (art.1º, IV), e como objetivos fundamentais a não discriminação sob qualquer forma (art. 3º, IV). Com este bloco de princípios e normas, chegamos à conclusão de que o índice de assédio sexual nas relações de trabalho no Brasil é baixíssimo, certo? Errado. Por incrível que possa parecer, o bloco de princípios e normas acima elencados não era suficiente para que houvesse de forma contundente a penalização destes atos de discriminação. O Judiciário conferiu interpretação restritiva a estes princípios e normas, exigindo uma regulação social da modernidade capitalista, ou seja, a necessidade de uma tipicidade penal para a punição, numa clara demonstração de exclusão social da mulher do mercado de trabalho já que, como diz Foucault, a exclusão é, sobretudo, um fenômeno cultural e social, de civilização. Em nossa cultura ainda há resquícios de imputar à mulher a culpa por violações cometidas pelos homens. Em 2001, foi promulgada a Lei nº 10.224, inserindo o artigo 216-A do Código Penal a tipificação da discriminação sexual consignando que

“Constranger alguém com o intuito de obter vantagens ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de empregado, cargo ou função. Pena: detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos”. Mas a discriminação contra a mulher não diminuiu. O fenômeno cultural e social de exclusão da mulher mantém-se vivo não somente na desigualdade marxista entre o capital e o trabalho baseado na exploração, mas principalmente na desigualdade processual quando se busca e efetividade dos direitos consagrados de proteção e não discriminação. Desigualdade processual na medida em que, enquanto se obtêm princípios constitucionais e normas infraconstitucionais de proteção ao assédio sexual, nas relações processuais impõese ao ofendido o ônus da prova. Para

se obter a proteção da jurisdição, na esfera penal (por meio de ação penal privada, art. 225 do CP, dependendo da iniciativa da vítima através de queixa), na esfera trabalhista (no caso de rescisão indireta, nos termos do artigo 483, ‘e’, da CLT, e ainda responsabilizar o empregador por danos morais) caberá ao ofendido provar a ofensa. Não é por outro motivo que o número de casos no judiciário de assédio sexual tem sido abaixo das pes-

quisas que apontam a quantidade de trabalhadoras assediadas. A liberdade, cidadania e a igualdade são reconhecidas como princípios emancipatórios da vida social. Enquanto não se conferir ao ofendido a igualdade processual, invertendo-se o ônus da prova quando ocorrido o assédio sexual, de nada adiantará a existência de um bloco de princípios e normas, já que os mesmos não serão efetivados.

Em nossa cultura ainda há resquícios de imputar à mulher a culpa por violações cometidas pelos homens.


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Fo ro privilegiado Mônica Nicida Garcia

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previsão de foro privilegiado (ou foro especial por prerrogativa de função, como preferem os técnicos) para o processo e julgamento de determinados agentes públicos (em geral, agentes políticos) ocorreu inicialmente, entre nós, na Constituição de 1824. Seu fundamento é o de que “presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele” (RCL 473, Rel. Min. Victor Nunes Leal). Portanto, isenção do juiz e capacidade de resistir às influências que sobre ele se fizerem são as qualidades que se quer garantir, quando se estabelece um foro especial. Mas não são estas qualidades exigíveis, indispensáveis, impostergáveis para qualquer juiz, independentemente da jurisdição que exerça? É possível admitir-se, nesta quadra da história, que um juiz de uma comarca possa ser menos isento, imparcial e independente que um Desembargador ou um Ministro? Isenção, imparcialidade e independência não são atributos de todo e qualquer juiz, que dispõe de um estatuto constitucional a lhe garantir o exercício isento, imparcial e independente de suas elevadas e graves funções? É claro que sim! De fato, todos os juízes gozam igualmente das mesmas garantias de vitaliciedade, de inamovibilidade e de irredutibilidade de subsídio, ingressando na carreira, em sua quase

totalidade, pela árdua via do concurso público de provas e títulos, não se verificando, mais, a precariedade das nomeações que recaíam sobre pessoas escolhidas a dedo pelos governantes e detentores do poder, característica do Brasil-Colônia e do Brasil-Império, quando o foro privilegiado foi instituído. Quase dois séculos depois da independência e mais de um século depois da proclamação da república, já conseguimos distinguir o público do privado, já conseguimos entender que o que é público é de todos, já conseguimos exigir que o agente público paute sua conduta pela busca do interesse público e não do seu interesse pessoal. Somos, hoje, uma República, que tem como princípio fundamental o princípio da igualdade e que, por isso mesmo, não se compatibiliza com privilégios de qualquer espécie, inclusive os privilégios de foro. O foro privilegiado, portanto, não mais se justifica. Ressalte-se, ainda, que estabelecer foro privilegiado num Tribunal significa suprimir instâncias de julgamento. Aquele que é julgado por um juiz de primeiro grau pode recorrer ao Tribunal de Justiça, para o Superior Tribunal de Justiça e, eventualmente, até para o Supremo Tribunal Federal. Mas se o foro estabelecido para uma autoridade for o Supremo Tribunal Federal, realizado o julgamento nessa única instância, nenhum outro recurso poderá ser interposto, ficando, assim, frustrada qualquer expectativa, que é inerente à natureza do homem, de manifestar um eventual inconformismo com a decisão tomada.

REPÚBLICA


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Prerrogativa suprime instâncias Outro fator não pode ser desconsiderado neste debate: os tribunais são órgãos colegiados, vocacionados para o julgamento de recursos, para a revisão de decisões proferidas por um juiz. Não são, os tribunais, vocacionados para a instrução e julgamento de processos. Estes exigem uma agilidade que os tribunais não têm. No transcorrer dos processos, ninguém o ignora, há inúmeras manifestações das partes, juntadas de documentos, produção de perícias, oitiva de testemunhas, interrogatórios, audiências, que os tribunais, pela sua própria estrutura, não estão preparados para realizar com a rapidez desejável e sem prejuízo de sua função precípua, que é a de apreciar recursos. Houvesse uma justificativa teórica, técnico-jurídica, em que estivesse fundado o foro por prerrogativa de função, essas questões práticas poderiam e deveriam ser resolvidas e superadas. Mas, na medida em que essa justificativa não existe, como já colocado, as conseqüências práticas que podem advir de sua instituição adquire cores dramáticas e deve ser definitiva no momento da opção política. Foro especial por prerrogativa de função é privilégio. É foro privilegiado. Não se coaduna com a República que estamos tentando construir. Não se compatibiliza com o princípio de igualdade, que tanto precisamos enaltecer e respeitar. Não pode o foro privilegiado prevalecer e, muito menos, ser ampliado. Por isso que não se há de admitir a extensão do foro privilegiado para os casos de improbidade administrativa. Tal extensão significaria chancelar um tratamento anti-isonômico e anti-republicano, um verdadeiro atentado à Constituição. Não é disso que precisamos. Precisamos, isto sim, ser mais República, e, para tanto, precisamos ter a coragem de não perpetuar, por inércia ou por comodidade instituições que mal se justificavam na realidade do Brasil-Império.

O foro privilegiado não se coaduna com a República que estamos tentando construir. Não se compatibiliza com o princípio de igualdade, que tanto precisamos enaltecer e respeitar.


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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Mulheres em movimento mudam o mundo! Carla Bezerra

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atuação organizada das mulheres, que passou a ser denominada movimento feminista, inicia-se no século XX, quando mulheres de pensamento socialista e anarquista levantavam a bandeira do feminismo e da luta por uma sociedade com igualdade entre os sexos. Neste momento, as principais reivindicações passavam por salários melhores e equiparados aos dos homens, creches e luta por igualdade na distribuição do trabalho. As mobili-

zações na busca pelo direito ao voto também foram um momento de visibilidade do movimento feminista na primeira metade daquele século e mobilizaram principalmente mulheres de classe média, tendo no Brasil como principal líder Bertha Lutz. Na década de 1970, na confluência de movimentos libertários, o feminismo ganha destaque com o questionamento da estrutura da família e a luta pelo direito ao divórcio, tendo como pano de fundo a bandeira da liberdade sexual. A questão do “amor livre”, que já era reivindica-

da desde o início do século pelas anarquistas, toma novo fôlego. No Brasil, após a abertura democrática, houve um período de ascensão dos movimentos sociais e também do movimento feminista. Este, a partir de uma articulação com outros setores sociais, foi capaz de obter inúmeras vitórias no processo Constituinte, especialmente na área de direitos sociais e direito de família. Outras questões, especialmente as relacionadas à sexualidade, como o direito ao aborto, infelizmente não foram aprovadas.

Durante a década de 1990, porém, com o avanço do neoliberalismo, há um recuo da mobilização popular e o movimento feminista se desarticula como movimento mais amplo. Surgem diversas ONGs com ações focadas, muitas das quais priorizam em sua atuação o lobby no Congresso para a aprovação de legislação favorável à mulher. Em 1994 e 1995 a ONU realiza, respectivamente, as Conferências sobre População (Cairo) e da Mulher (Pequim). Pela primeira vez, são tratados em acordos internacionais os direitos reprodutivos e sexuais.

As conquistas e mudanças ocorridas durante todo o século XX foram extremamente significativas porém nossa sociedade continua estruturada de forma patriarcal.


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Violência presente em todas as classes As conquistas e mudanças ocorridas durante todo o século XX foram extremamente significativas e a mulher passou a ocupar um novo espaço na sociedade. Há uma entrada massiva no mercado de trabalho formal de mão de obra feminina, ocorrem mudanças na estrutura familiar, e a mulher conquista direito à participação na vida pública e política. Ao menos formalmente, a mulher foi equiparada em direitos civis e sociais ao homem. Porém, essas vitórias legislativas não necessariamente foram acompanhadas de processos de mobilização que fossem capazes de gerar uma mudança na sociedade de “baixo para cima”, limitando, em muito, a real eficácia da legislação aprovada. Nossa sociedade continua estruturada de forma patriarcal. Há inúmeras pesquisas que mostram como as desigualdades de gênero são contundentes. A pobreza é cada vez mais feminina e as mulheres continuam recebendo salários menores por funções semelhantes ou idênticas. O padrão estético gerou uma enorme e lucrativa indústria que tem efeitos bastante negativos sobre a saúde da mulher, sem mencionar a exploração excessiva da sexualidade feminina para fins comerciais. Por fim, como reflexo último da desigualdade de poder, a violência contra a mulher se mostra presente em todas as classes sociais. Ainda há muito a ser feito e a luta feminista se faz cada vez mais necessária. Mulheres em Marcha O início do século XXI foi marcado pela presença de um movimento internacional a favor de outra globalização (altermundialista) e da emergência de uma nova geração política. A Marcha Mundial das Mulheres (MMM) é parte integrante desse movimento. Surgida em 2000, inicialmente como uma campanha contra a pobreza e a violência sexista, a articulação gerada teve continuidade e passou a ser um movimento internacional, congregando a experiência de diversas organizações feministas e de movimentos sociais. Apoiada em mobilizações de rua, educação popular, construção de coordenações nacionais, a MMM está

Conseguir vincular os debates sobre o papel das instituições internacionais e as causas da pobreza e da violência com a vida cotidiana das mulheres é o principal desafio da Marcha. sintonizada com essa nova referência do movimento internacional fortemente enraizada na realidade local. Conseguir vincular os debates sobre o papel das instituições internacionais e as causas da pobreza e da violência (patriarcado, capitalismo, racismo) com a vida cotidiana das mulheres é o seu principal desafio. Isto significa privilegiar espaços de mobilização e liderança junto a mulheres de movimentos populares com vistas a transformações sociais profundas, tendo uma postura crítica à institucionalização do movimento. A Marcha trabalha em aliança com outros movimentos, sendo que, no Brasil, participam: o setorial de mulheres da CUT, a Central de Movimentos Populares (CMP), Movimentos de Moradia, a Via Campesina, organizações de estudantes e diversas ONGs feministas. A diversidade de sua composição tem como reflexo a pluralidade de pautas, que trabalham desde a questão da sexualidade e direito ao aborto, passando por trabalho e desigualdade salarial até soberania alimentar e reforma agrária. A intenção é pautar tanto as temáticas tradicionalmente tidas como “femininas” até temas tidos como debates mais gerais, mas a partir de uma outra perspectiva: a das mulheres. As análises e ações da Marcha levam em conta um compromisso internacional com o movimento contra a guerra, as campanhas contra os

tratados de livre comércio e as negociações da OMC, o processo do Fórum Social Mundial e a criação da Rede Mundial dos Movimentos Sociais. Tudo isso a coloca bem no centro do movimento altermundialista. Esta nova estratégia surge da necessidade de se pensar um feminis-

mo capaz de dar resposta à complexidade e pluralidade de nossa sociedade. É sem dúvida um enorme desafio, mas também uma abertura para novas formas e possibilidades de alianças entre as mulheres, de modo a superar as fronteiras e as diferenças.

Para saber mais: Marcha no Brasil: www.marchamundialdasmulheres.org Sítio Internacional: www.marchemondiale.org *Para elaborar este texto foram adaptados trechos do Documento de Preparação para o VI Encontro Internacional da Marcha Mundial de Mulheres, disponível em : www.marchamundialdasmulheres.org


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Contas viciadas do aborto Boaventura de Sousa Santos

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m causa no referendo à despenalização do aborto devem estar os direitos e a dignidade das mulheres e o valor de uma maternidade responsável, e não considerações de ordem financeira. Não é aceitável que se reduza uma importante questão de saúde pública e de direitos a uma cifra, e muito menos que cálculos tão tendenciosos quanto errados acabem por ser usados como argumento. A verdade é que, incapazes de convencer os portugueses do mérito da sua causa, os partidários do NÃO decidiram recorrer ao cálculo financeiro para aterrorizar os seus concidadãos com ameaças num domínio para estes muito sensível: o serviço nacional de saúde. Aproveitando o economicismo miserabilista do actual governo, saíram a terreiro para afirmar que a despenalização acarretará um custo de cerca de 20 a 30 milhões de euros, dinheiro que seria retirado de fins médicos mais meritórios. O Ministro da Saúde corrigiu este custo, baixando-o para um terço, o que, por si, revela a relativa arbitrariedade dos cálculos. Mesmo do ponto de vista economicista, que todos concordaremos não pode estar em causa numa decisão destas, os custos da despenalização do aborto só podem ter significado na medida em que forem comparados com os custos da manutenção da situação actual. Vejamos os custos decorrentes do aborto clandestino no serviço nacional de saúde e no sistema judicial. Segundo a Associação para o Planeamento Familiar, 20% das mulheres que recorrem ao aborto clandestino têm problemas de saúde, com 27% a exigir internamento. Muitas ficam com problemas crónicos de saúde que também se traduzem em custos. No que respeita à criminalização actual, se a proibição for para cumprir – o que só por hipocrisia sistémica não ocorrerá – a investigação, acusação e julgamento dos autores do "crime contra a vida intra-uterina" envolve 3 fases com custos muito elevados

para o sistema judicial. Façamos o exercício. Na fase de inquérito temos os seguintes actos: participação criminal; deslocação de agentes policiais; inquirição de testemunhas (em regra, 6 a 8 pessoas: médicos, parteiras, companheiro, familiares, etc.) e da mulher arguida, exames periciais, relatório policial, acusação por parte do Ministério Público. Esta fase envolve agentes policiais (estimativa de 3 a 4 dias), magistrado do MP (1 dia); funcionários do MP e um perito médico (1 dia). A fase da instrução (não obrigatória mas habitual nestes casos) envolve audição de testemunhas, interrogação da arguida, novo exame

pericial, debate instrutório e despacho de pronúncia. A estimativa é de 3 dias para o juiz de instrução, 2 dias para o magistrado do MP e 2 a 3 dias para o funcionário judicial e perito médico. Finalmente, a fase do julgamento envolve a audiência do julgamento, sentença e leitura da sentença, cerca de 3 dias de trabalho de 3 juízes (tribunal colectivo), do magistrado do MP e dos funcionários. Se contabilizarmos apenas o trabalho dos magistrados e apenas na primeira instância, a estimativa é de 15 dias de trabalho por processo, o que, ao custo de 100 por dia – salário médio dos magistrados que acompanham estes casos – custará

ao Estado 1500. Ou seja, basta considerar uma fracção dos custos da criminalização do aborto para se concluir que, mesmo só sendo incriminada uma parcela das "criminosas", os custos da penalização são superiores aos da despenalização. Isto sem contar com os custos para o país decorrentes do tempo que as polícias, para se dedicarem à investigação do aborto, deixam de dedicar à investigação da corrupção e da evasão fiscal. Este exercício mostra que, se o bom senso imperar, o argumento moralmente repugnante dos custos deixará de ser utilizado nos debates sobre o referendo.


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