C&D Constituição & Democracia Nº 10 (Janeiro-Fevereiro de 2007) EDUCAÇÃO

Page 1

Nº 10 Janeiro e Fevereiro de 2007

R$ 2,00

C&D Constituição & Democracia

Ed u c a ç ã o Direitos Humanos Universidade Nova Cidadania Tribunais e as ruas


02 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

EDITORIAL

Observatório da Constituição e da Democracia O Observatório da Constituição e da Democracia destina o primeiro número de 2007 ao debate sobre o direito à educação. Uma discussão que conecta “direito” e “educação” passa, necessariamente, pela superação de modelos pedagógicos incapazes de pensar a dimensão emancipatória da prática educacional. Tais modelos se fundam numa articulação rígida e institucionalizada dos tempos e espaços pedagógicos. Preconizam estratégias de avaliação estritamente classificatórias e currículos estáticos, povoados por uma vasta carga de conteúdos conceituais desconectados da realidade dos educandos. O educador é diminuído e instrumentalizado em favor do saber de “especialistas” que, fora do espaço de “mera execução”, planejam o “como”, o “quando” e o “quanto” da atividade pedagógica, sem jamais, entretanto, tematizar explicitamente “porquês” e “para quês”. Nesta edição procuramos confrontar tais modelos e celebrar as possibilidades de conceber a educação como processo que envolve a afirmação de sujeitos. Assim, a entrevista de Fábio Konder Comparato coloca em xeque os contornos exclusivamente formais da educação para articulá-la à afirmação da cidadania e da democracia por meio de uma reconstrução do princípio republicano. Nair Bicalho, Fábio Sá e Jean Uema enfrentam desafio semelhante, refletindo sobre o direito à educação a partir da experiência do movimento de direitos humanos, da população carcerária e dos trabalhadores sem-terra. Os artigos ressaltam o vínculo entre cotidiano, conhecimento e emancipação, convidando-nos a repensar tanto a educação enquanto acontecer pedagógico quanto o significado do direito à educação contrastado com esses diferentes panos de fundo. Cristiano Paixão apresenta os contornos gerais do projeto Universidade Nova e defende a necessidade de aprofundar mudanças na estrutura da formação em Direito a partir das premissas mais gerais desse projeto, ao passo que Mariana Veras e Paulo Blair pontuam avanços e denunciam silêncios, riscos e anacronismos do ensino jurídico ministrado na academia e nos cursos de formação profissional continuada. Vale destacar, por fim, que, desde dezembro passado, o grupo Sociedade, Tempo e Direito vem buscando se inserir de forma mais efetiva no debate sobre a educação. Abraçamos o desafio de produzir novas articulações entre tempos e espaços pedagógicos ao assumir, em parceria com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a organização de um Curso de Educação a Distância. O trabalho vem sendo realizado na Escola Nacional de Advocacia da OAB, em especial, no âmbito da Universidade Aberta, um projeto voltado para o público em geral. As diretrizes da Universidade Aberta coincidem, em grande medida, com os objetivos do Observatório, pois ambos se propõem a oferecer análises críticas a uma platéia ampla e não especializada, fomentando a participação reflexiva dos cidadãos em discussões sobre temas conjunturais e questões estruturais que envolvem a Constituição e a Democracia. O curso, que já contabilizou mais de 200 participantes de todo o Brasil, utiliza como material de trabalho uma série de artigos publicados neste periódico. Este número reforça uma sugestão que perpassa com freqüência os debates travados nas páginas do Observatório : a exploração dos potenciais de emancipação contidos em nossa experiência jurídica não está na dependência isolada de uma mudança das leis ou da Constituição. Mudanças muito mais amplas são necessárias e, entre elas, encontra-se a garantia de acesso à educação adequada em todos os níveis. Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Faculdade de Direito – Universidade de Brasília

EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Comissão de redação Adriana Andrade Miranda Giovanna Maria Frisso Janaina Lima Penalva da Silva Leonardo Augusto Andrade Barbosa Marthius Sávio Cavalcante Lobato Paulo Henrique Blair de Oliveira Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Alexandre Araújo Costa Aline Lisboa Naves Guimarães André Rufino do Vale Carolina Pinheiro Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniel Barcelos Vargas Fabio Costa Sá e Silva

Francisco Schertel Ferreira Mendes Guilherme Cintra Guimarães Guilherme Scotti Henrique Smidt Simon Jan Yuri Amorim Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliano Zaiden Benvindo Laura Schertel Ferreira Mendes Lúcia Maria Brito de Oliveira Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marcelo Casseb Continentino Maurício Azevedo Araújo Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´anna Renato Bigliazzi Rochelle Pastana Ribeiro Vitor Pinto Chaves

Contato observatorio@unb.br www.unb.br/fd

Sindicato dos Bancários de Brasília

Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS) Editor assistente Rozane Oliveira Diagramação Gustavo Di Angellis Ilustrações Flávio Macedo Fernandes

SindPD-DF

A Universidade Nova e o ensino jurídico Cristiano Paixão – Professor da Faculdade de Direito da UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, tempo e direito e Direito achado na rua. É procurador do Ministério Público do Trabalho em Brasília.

03

Educação em direitos humanos Nair Heloisa Bicalho de Sousa – Professora do Departamento de Serviço Social UnB e coordenadora o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP/Ceam). É doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente desenvolve pesquisas sobre movimentos sociais, democracia, trabalho e cidadania.

04

Ensino jurídico: questões silentes Mariana Veras – Mestranda em Direito na UnB, integrante dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua e Direito e Arte

06

Fome Zero: compreensão e crítica Eduardo Gonçalves Rocha – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB.

08

A Prática Pedagógica do MST Jean Keiji Uema – Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP; membro da RENAP Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares) e assessor jurídico na Câmara dos Deputados

10

ENTREVISTA – Fábio Konder Comparato Educação Política para o Exercício da Cidadania José Geraldo de Sousa Júnior – Professor da Faculdade de Direito da UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua. É membro da 12 Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB A Educação nas Prisões e a Remição da Pena Fábio Costa Morais de Sá e Silva – Bacharel em Direito pela USP, mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, ex-dirigente do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, professor do Iesb e consultor da Unesco no âmbito do Projeto Educando para a Liberdade

14

OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO A aposentadoria compulsória do magistrado Benedito Calheiros Bonfim – Ex-presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, ex-conselheiro da OAB/Federal. Da Academia Nacional de Direito do Trabalho

16

OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO Os tribunais, as universidades e as ruas Paulo Henrique Blair de Oliveira – Juiz do Trabalho, mestrando em Direito, Estado e Constituição na UnB e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito

18

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Hora extra – uma proposta para a alteração do artigo 59 da CLT Rosane da Silva – Membro da Direção Executiva da CUT e Secretária de Política Sindical Maria da Consolação Vegi da Conceição – Advogada do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC

20

OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Direito à educação, acesso ao ensino superior e ações afirmativas Luiza Cristina Fonseca Frischeisen – Procuradora Regional da República, membro do Ministério Público Federal, diretora da Associação Nacional dos Procuradores da República -ANPR, bacharel em Direito pela UERJ, mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e doutora em Direito pela USP

22

O futuro da democracia Boaventura de Sousa Santos – Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

24

Assine C&D www.constituicaoedemocracia.com.br


UnB – SindjusDF | 03

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

A Universidade Nova e o ensino jurídico Cristiano Paixão

F

oi lançado o projeto Universidade Nova. Sob a liderança da Universidade Federal da Bahia, com atuação destacada do reitor Naomar Monteiro de Almeida Filho, a proposta tem o objetivo de alterar radicalmente as bases da educação superior no Brasil. Seriam criados Bacharelados Interdisciplinares (BI), estruturados em cursos-tronco com módulos de formação diferenciada e pré-profissional, com duração de três anos. Após a conclusão desse ciclo, os alunos exercitariam suas opções, que poderiam abranger uma licenciatura curta, um bacharelado mais extenso para o exercício de alguma profissão ou mesmo o ingresso direto na pós-graduação. O impacto da Universidade Nova sobre o saber jurídico é positivo. Na verdade, a idéia radicaliza e aprofunda a tendência verificada na definição das diretrizes curriculares do curso de direito desde a edição da Portaria 1886/94. A ênfase na interdisciplinaridade e o alargamento do campo do conhecimento não são apenas novidades bem-vindas. São medidas cruciais para que se possa atingir um patamar mínimo de qualidade na formação do profissional do direito. Os cursos jurídicos no Brasil foram marcados, desde seu início (que coincidiu com a tardia institucionalização das universidades em nosso país), pela predominância do saber tradicional, a partir de pressupostos dogmáticos estabelecidos em manuais que serviam de referência para as várias disciplinas, e pela formação de profissionais com perfil técnico, aptos a figurar nos quadros da Administração Pública e da elite política nacional. Essa situação perdurou, com poucas modificações, na segunda metade do século XIX e durante quase todo o século XX. As características principais desse modelo tradicional

persistem até hoje: grade curricular rígida, acumulação do saber calcado no conhecimento de textos legislativos, ênfase no treinamento prático dos futuros juristas. As diretrizes da Universidade Nova partem de pressupostos inteiramente distintos. O impacto na formação do bacharel em direito será significativo desde o ingresso do aluno no curso superior, por duas razões: (1) estará afastado o drama da escolha precoce. Enquanto percorre uma grade curricular aberta e flexível, com enfoque nas humanidades e com freqüência obrigatória em cursos de outras grandes áreas, o aluno não necessita definir sua atuação profissional. Ele não terá a tendência de ver – e experimentar – os conteúdos ministrados de forma instrumental, como preparativos para uma “verdadeira” formação especializada;

(2) o BI significará a definitiva inserção da interdisciplinaridade nos cursos jurídicos. Não apenas uma diversificação interna, com os diálogos focalizados do saber jurídico com outros campos do conhecimento, mas também a capacidade de enfrentar novos problemas e horizontes a partir de uma formação humanista, que visualize os riscos e desafios que as sociedades complexas apresentam ao profissional e ao pesquisador do direito. Uma advertência, porém, deve ser feita: a modificação do curso tem que atingir o estágio posterior ao BI. Não é suficiente reestruturar apenas a formação prévia do profissional do direito, se os conteúdos das disciplinas do eixo profissionalizante não forem também repensados. A feição crítica e problematizante do saber jurídico tem que estar presente em todo o curso. Caso isso não ocorra, o bacha-

rel em direito no Brasil encontrará uma situação paradoxal: a primeira parte de seu percurso na educação superior será interdisciplinar, variada e inovadora e a segunda parte será tradicional, unidirecional e ortodoxa. Para que as premissas da Universidade Nova sejam de fato implementadas, a formação em Direito terá que se transformar integralmente, como parte de um processo mais amplo de redefinição, que envolve a complexidade do conhecimento do fenômeno jurídico em nosso tempo. Para um novo conceito de universidade, são necessárias, antes de tudo, novas práticas acadêmicas. A proposta da UFBA representa um alento no cenário de discussão do futuro das universidades. É especialmente gratificante perceber que as idéias-mestras do projeto – saber interdisciplinar, liberdade de escolha de conteúdos, flexibilidade de grades, possibilidade de desenvolvimento de perfis distintos dos vários alunos – têm suas raízes na história da educação superior no Brasil. Sob a inspiração de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, a Universidade de Brasília, quando iniciou sua trajetória, estabeleceu cursos-tronco, institutos de pesquisa interdisciplinares, intercâmbio entre várias áreas do saber e, acima de tudo, liberdade para conhecer e pesquisar. A Universidade Nova resgata esses postulados, a tal ponto que o reitor da UFBA, em vários pronunciamentos, faz expressa menção à experiência pioneira da UnB. Assim, a chama daqueles fundadores permanece acesa. Suas propostas continuam atuais. Incumbe às gerações presentes e futuras a construção dessa nova idéia de universidade. Como alertado por Hannah Arendt, é na nossa postura perante a educação “que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”.


04 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Ed u c a ç ã o em Direitos Humanos Nair Heloisa Bicalho de Sousa

N

o Brasil, a proposta de educação em direitos humanos surgiu nos anos 1980, período de redemocratização do país, ocasião em que um grupo de profissionais brasileiros vinculados à área , retornou do III Curso Interdisciplinar de Direitos Humanos promovido pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), sediado na Costa Rica. Garantindo apoio deste instituto para suas atividades até 1990, este grupo definiu

um núcleo coordenador na PUC do Rio de Janeiro, com parcerias no Nordeste (Universidade Federal da Paraíba e Gabinete de Assessoria às Organizações Populares) e Sudeste (Comissão de Justiça e Paz de São Paulo), a partir das quais realizou seminários em diferentes estados, oportunidade para elaborar metodologias e materiais pedagógicos que passaram a circular nestas esferas educativas. A década de 1990, já sem apoio do IIDH, foi o momento de formação de organizações não governamentais (Novaméri-

ca no RJ e Rede Brasileira de Educação em DH em SP) que sustentaram as iniciativas de educação em direitos humanos no espaço da sociedade civil. Em 2003, o governo Lula, por meio de portaria da Secretaria Especial de Direitos Humanos, criou o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH), com a missão de contribuir para a formulação e monitoramento de uma política pública de educação em direitos humanos, dando início à elaboração de um plano nacional, o qual foi lançado em de-

zembro do mesmo ano em versão preliminar. Tendo como objetivos o fortalecimento do Estado de Direito, o desenvolvimento nacional, a efetivação de instrumentos e programas nacionais e internacionais, a orientação das políticas educacionais, a cooperação entre poder público e sociedade civil, a criação e fortalecimento de organizações nacionais, estaduais e municipais , dentre outros, estabeleceu concepções, princípios , diretrizes e linhas de ação para a elaboração de programas e projetos nesta área.

Em 2004 foram consolidadas as parcerias com o MEC, secretarias de educação e universidades


UnB – SindjusDF | 05

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

O PNEDH difunde valores e práticas O PNEDH foi estruturado em cinco áreas temáticas (Educação Básica, Educação Superior, Educação NãoFormal, Profissionais de Segurança e Justiça e Mídia), definiu princípios e ações programáticas específicas para cada uma, direcionando a política nacional, de modo a priorizar o desenvolvimento normativo e institucional, a produção de informação e conhecimento, as parcerias e intercâmbios, a produção e divulgação de materiais, a formação e capacitação de profissionais, a gestão de programas e projetos, além da avaliação e monitoramento como eixos de suas linhas de ação. Considerando a educação como um instrumento fundamental da cidadania, o PNEDH tem se proposto a difundir valores, discursos e práticas embasadas no respeito aos direitos e liberdades fundamentais, na justiça, na tolerância e na paz. Reconhecendo os principais fatores presentes na realidade contemporânea pautada na fome, miséria, desigualdades sociais, banalização da violência, guerras e terrorismo, afirma o direito à vida com dignidade como um propósito a ser alcançado pela ação do governo e da sociedade civil e dá, assim, um passo importante para a constituição de uma cultura da cidadania. Em 2004 foram consolidadas as parcerias com o MEC, as secretarias estaduais e municipais de educação, as universidades e centros de educação tecnológica federais, considerados instrumentos – chave para a difusão da proposta. No ensino básico, a criação dos Fóruns Escolares de Ética e Cidadania foi um passo importante, além do projeto de cooperação SEDH-UNESCO, responsável por ações voltadas para a articulação com a sociedade civil e organismos e instituições nacionais e internacionais públicas e privadas, formação e capacitação de promotores de direitos humanos, estudos, pesquisas e produção de materiais didáticos. Outra parceria importante foi a articulação com o Poder Legislativo (Comissão de Direitos Humanos e Minorias), o qual deu apoio à realização de videoconferência e teleconferência sobre o PNEDH, mobilizando as Assembléias Legislativas Estaduais a este respeito.

A grande difusão do PNEDH ocorreu em 2005, durante os 26 Encontros Estaduais de Educação em Direitos Humanos, promovidos principalmente pelos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos e as Comissões de Direitos Humanos das Assembléias Legislativas Estaduais, com participação de aproximadamente 5000 pessoas, ocasião em que representantes do poder público (secretarias estaduais e municipais de educação, segurança , justiça e cidadania) e da sociedade civil (ONGs, entidades civis e organizações da mídia) debateram criticamente a versão preliminar do plano, oferecendo sugestões e aprimoramentos para suas linhas de ação.. O resultado mais expressivo desses eventos foi a formação de 15 Comitês Estaduais de Educação em Direitos Humanos, cujos membros estão sendo capacitados de modo a habilitarem-se para a elaboração dos Planos Estaduais de

Educação em Direitos Humanos. Em 2006 foi também realizado o I Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos, promovido pela SEDH (CNEDH), Secretaria Nacional de Segurança Pública (MJ) e UNESCO com apoio do PNUD e da Radiobrás, contando com a partici-

Para ter êxito, o sistema precisa de mais respaldo técnico, político e institucional

pação de especialistas nacionais e internacionais interessados em contribuir para a implementação da política de educação em direitos humanos no país. Centrado nas cinco áreas temáticas do PNEDH, este seminário teve o papel de delinear os horizontes das ações em andamento, à medida em que permitiu um amplo diálogo entre os principais atores nacionais vinculados a essas áreas e os responsáveis pelas experiências internacionais exitosas, inclusive os representantes governamentais de direitos humanos do MERCOSUL e demais países associados. Neste evento foi lançada a nova versão do PNEDH incorporando as recomendações dos encontros estaduais, a qual foi submetida a audiência pública até seu lançamento em versão final em dezembro de 2006. Há, ainda, importantes desafios a serem enfrentados. O primeiro diz respeito à transversalidade dos direitos humanos nas políticas públicas do país. Para ter êxito, a SEDH carece de maior respaldo políticoinstitucional e técnico, de modo a tornar-se o agente principal da articulação interministerial necessária para garantir a efetividade dos diferentes programas e ações vinculados a esta temática. Um segundo obstáculo, diz respeito aos recursos humanos necessários para assessorar o processo de elaboração, implementação, acompanhamento e avaliação dos Planos Estaduais de Educação em Direitos Humanos, os quais deverão posteriormente ser desdobrados em Planos Municipais de Educação em Direitos Humanos. Além disso, a ampliação de recursos para esta área é outro fator significativo, à medida em que a elaboração de pesquisas e publicações, especialmente materiais didático-pedagógicos, junto com maior presença na mídia são pontos fundamentais do êxito desta política. Finalmente, um amplo compromisso da sociedade civil no processo de construção de uma cultura da cidadania no país é indispensável para que estes novos valores, conhecimentos e práticas possam se contrapor àqueles que sustentam a estrutura hierárquica, autoritária e discriminatória da sociedade brasileira hoje.


06 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

E n s i n o Ju r í d i c o

Questões silentes Mariana Veras

A

formação do bacharel em Direito está inscrita no interior de um conjunto de mudanças e transformações próprias do mundo contemporâneo, o que impulsiona reformas no ensino, e, como conseqüência, no campo do ensino jurídico. Frente à nova conjuntura, os debates sobre a reforma deste campo, promovidos a partir do período de redemocratização do país, traçaram o perfil do bacharel para lidar com as demandas emergentes no cenário. Estes debates encontram-se expressos nas Diretrizes Curriculares Nacionais propostas pelo Ministério da Educação. As mudanças previstas nas Diretrizes redimensionam o perfil do bacharel dos cursos de Direito e o seu projeto pedagógico, o que vem exigindo o redirecionamento da praxis formativa, em especial, no que se re-

fere ao forte acento humanístico e à perspectiva interdisciplinar dos saberes ministrados. Pensar sobre as orientações curriculares, e, sobretudo, o perfil do bacharel, significa pensar na superação do período interminável de crise do ensino jurídico. Ensino em crise, pois incapaz de formar um bacharel em direito que corresponda às demandas e expectativas sociais. Exigese uma formação que permita o desenvolvimento de um bacharel capaz de corresponder às exigências técnicas, tendo, ao mesmo tempo, uma postura ética e sensível. Para além das conquistas alcançadas, é preciso pôr em causa os obstáculos que persistem para se alcançar uma formação do jurista sensível, que abra possibilidades para o desenvolvimento das múltiplas habilidades e competências requeridas. Um bacharel capaz de compreender, na interpretação e aplicação do direito, os fenômenos políticos,

sociais, econômicos e subjetivos presentes no cenário em que atua. Embora seja hoje reconhecido o peso que têm essas recomendações oficiais, não são poucos os desafios enfrentados pelos agentes educativos no esforço de alcançar os objetivos propostos. Se, no plano formal, verifica-se um consenso referente à necessidade de implementação dessas mudanças, no campo de formação, as promessas entram em descompasso com as práticas de ensino. Refletindo sobre o ensino jurídico, Roberto Lyra Filho esclarece que qualquer debate sobre o tema deve partir da fonte dos problemas e não dos seus reflexos. Afastandose por um momento das conseqüências, o ensino jurídico é repensando a partir de sua base, a partir de uma questão: o que é direito para que se possa ensiná-lo? Esta questão, do início da década de 80, guarda atualidade com a pre-

sente conjuntura. A mesma resposta pode ser dada hoje, não é possível ensinar bem um “direito errado”, ou seja, pautado em uma visão incorreta dos conteúdos ministrados, sendo também inviável apreender um direito que é ensinado mal, a partir de um ensino atravessado por uma atitude pedagógica equivocada.

Que tipo de relações seriam estabelecidas por profissionais que tiveram suas sensibilidades roubadas?


UnB – SindjusDF | 07

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

Discussões fora do centro hegemônico Apesar de relevantes às contribuições que este tipo de reflexão pode gerar, esta questão, “o que é direito?”, conserva-se nos bastidores do debate sobre ensino jurídico, questões que permanecem à margem do centro hegemônico. No bloco central das discussões, encontra-se o grupo de questões e temáticas sobre: o conteúdo das matrizes curriculares dos cursos; o disposto nas Diretrizes Curriculares; os projetos pedagógicos das faculdades e seus mecanismos de avaliação; a atual composição dos quadros docentes e discentes; o exame da Ordem dos Advogados ao qual é submetido o egresso deste campo de formação; o processo acelerado de proliferação dos cursos e, mais recentemente, a discussão do rol de habilidades e competências a serem desenvolvidas pelo futuro bacharel durante a sua formação. Embora o debate seja guiado por essas temáticas mencionadas, persiste silente um conjunto de questões referentes a dimensões que constituem a possibilidade de existência do campo do ensino jurídico. Por serem silentes, mas atuantes, muitas dessas questões já foram trabalhadas por alguns juristas. Mas, na atualidade, quais seriam as questões silentes do campo do ensino jurídico? Uma primeira questão, que embora central teima em permanecer nos bastidores, relaciona-se com a concepção do Direito ensinado, o enlace imprescindível entre a discussão sobre ensino jurídico e a concepção do direito que se ensina. Sobre que direito estamos falando ao se falar do campo do ensino jurídico? Um direito com potencial libertário, capaz de abraçar a resistência aos múltiplos tipos de opressão ou um outro “direito”? Quem tem direito de dizer o que é direito? Qual concepção do direito norteia a formação do bacharel? Uma outra questão, que aparece nos bastidores, trabalhada pelo jurista Luis Alberto Warat diz respeito ao senso comum teórico dos juristas. Um senso comum compartilhado no campo jurídico que começa a ser incorporado pelo futuro bacharel durante o processo de sua formação; premissas implícitas que direcionam

e inspiram o seu modo de pensar e conceber o direito. Um senso comum teórico que pode torna-se matriz para lugares comuns e prisões da liberdade de uma forma de pensar. Este mesmo campo de formação ao transformar-se em um produtor de lugares comuns pode fomentar um processo de pingüinização. Processo este, desencadeado por um modelo tradicional de formação, que rouba por completo a sensibilidade do bacharel, sua capacidade de escuta e sentimento de alteridade. Que tipo de relações seriam estabelecidas por profissionais que tiveram suas sensibilidades roubadas? Se a ausência destas questões, no debate central sobre ensino jurídico, causa estranheza, também causa estranheza a ausência de reflexão sobre o processo pedagógico e os elementos que emergem dessa relação. Quais vozes neste processo são (in)audíveis?

Há que se questionar também sobre as relações entre o campo de formação e os outros campos sociais. Qual a relação entre o campo de atuação profissional e o campo de formação? Pois é neste processo de formação que, gradativamente, o bacharel constrói suas crenças, disposições, representações, que orientam suas práticas futuras no campo profissional e social, e que podem resignificar suas ações a partir dos reclames e demandas apresentadas pela sociedade. Pensar em todas essas questões significa pensar na possibilidade de renovação do modelo de ensino jurídico, pois são estes bastidores que ajudam a compreender também as ações dos agentes neste campo. A desconsideração destes elementos pode servir como mais um obstáculo para a realização das promessas e propostas construídas até agora. Pensar sobre o ensino jurídico

significa pensar sobre questões silentes, mas atuantes. Somente através da compreensão deste campo do ensino, em suas múltiplas dimensões, será possível a abertura de um espaço para a formação de um bacharel crítico e autônomo. Nesta perspectiva, dialogando com o silente, pensar sobre ensino jurídico é pensar sobre o mundo jurídico e o próprio direito, que pode ser retratado, representado, sentido, percebido de diversas formas.

Qual concepção do direito norteia a formação do bacharel?


08 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

Fo m e Z e r o :

compreensão e crítica Eduardo Gonçalves Rocha

U

ma frase já se tornou sensocomum neste país: “O Brasil é o país das desigualdades sociais”. Alguns dados, que a princípio chocavam a nação, servindo como um “tapa na cara” de governantes e governados, já não causam tanta estranheza assim. Quantas vezes não se escutou que o Brasil possui 54 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza (dados de 2002)? Que 60% da população brasileira consomem água sem tratamento ou com qualidade duvidosa (dados de 2003)? Ou, que 47% das famílias no Brasil consideram insuficientes, habitualmente ou eventualmente, a quantidade de alimentos consumidos (dados 2002-2003)? Em 2002, algo de novo ocorreu no cenário político nacional. O então candidato à Presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva, teve como mote de campanha o resgate da perplexidade da população brasileira frente a esses números cruéis. A originalidade da campanha de 2002 foi a recuperação da capacidade de indignação de todo um povo. Eleito presidente, Lula propôs um “pacto nacional” para enfrentar a realidade desigual que marca o Brasil. O combate à fome tornou-se “carro-chefe” de sua política social. Neste sentido, apresentou o programa “Fome Zero”, que condensa as principais políticas públicas a serem desenvolvidas rumo à redução da pobreza e ao combate à fome. O Programa Fome Zero O programa governamental “Fome Zero” foi apresentado por Lula, ainda como projeto, em 2001, em nome da organização não-governamental “Instituto da Cidadania”. O projeto foi fruto de um ano de pesquisas e debates, que envolveu di-

versos institutos de pesquisas, movimentos sociais, especialistas e organizações não-governamentais. Depois de Lula eleito, foi formado um grupo de trabalho composto por representantes da FAO, BID e BIRD, tendo como propósito a revisão do projeto original. Ao longo do governo, após críticas, o programa teve algumas propostas revisadas e adaptadas. O programa “Fome Zero” não tem uma visão simplista sobre a insegurança alimentar no Brasil. O problema da fome não é abordado de forma isolada, tem-se clareza acerca da dimensão interdependente, indivisível e inter-relacional dos direitos humanos. Comer é visto como um direito fundamental,

que se realiza somente por meio da garantia da dignidade. Assim, Segurança Alimentar é entendida, pelo programa “Fome Zero”, como a garantia do direito de todos ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidades suficientes e de modo permanente, devendo promover a saúde, sem comprometer outras necessidades fundamentais. O direito a se alimentar deve respeitar a diversidade cultural, sendo o Estado, em articulação com a sociedade civil, o principal responsável por sua realização. Para efetivar este direito, foram propostas duas formas de ação: 1) políticas estruturais e 2) políticas emergenciais. As políticas estruturais se dão em longo prazo, poden-

do demorar anos ou décadas para serem efetivadas. Elas têm como finalidade reduzir a vulnerabilidade à fome e à desnutrição, por meio do aumento da renda, da redução de desigualdades sociais, da universalização de direitos sociais e do acesso à alimentação com dignidade.

Segurança Alimentar é garantia de alimentação de qualidade de modo permanente, promovendo saúde sem comprometer outras necessidades


UnB – SindjusDF | 09

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

Segundo mandato: momento ideal para reflexão As políticas emergenciais -específicas ou locais- são de efetivação imediata, tendo por fim prover a segurança alimentar dos mais necessitados. Assim, foi proposto o combate à desnutrição infantil; os programas de educação para o consumo; a criação de restaurantes populares; o apoio à produção para o autoconsumo; a doação de alimentos (aspecto mais enfatizado pela mídia); entre outras. Políticas estruturais e emergenciais não podem ser entendidas separadamente, sendo fundamental para a eliminação da fome a aplicação conjunta de ambas diretrizes do programa “Fome Zero”. Quatro anos depois... Em 2006, o Governo Lula chega ao final, momento ideal para se discutir os avanços e as deficiências do principal programa governamental. Por certo, o direito de todo brasileiro se alimentar três vezes ao dia não se realizou, porém, alguns avanços foram obtidos. Entre eles, destacam-se: a internação infantil ocasionada pela desnutrição reduziu em todas as regiões do país, média de 37, 8%; 30% dos produtos que compõe a cesta básica distribuída pelo Governo provêm de pequenos agricultores, o que beneficia 201,2 mil famílias; os investimentos na agricultura familiar, por meio do Pronaf, cresceram 80,5% de 2003 a 2005; os valores per capita destinados à alimentação escolar, após dez anos, voltaram a aumentar. Por outro lado, os especialistas são enfáticos ao afirmarem que a política econômica desenvolvida pelo Governo impossibilitou investimentos massivos no campo social e na infra-estrutura. Segundo o relator nacional para o direito à alimentação, a política econômica brasileira não pensa, nem prioriza a segurança alimentar.

Política econômica dificulta investimentos

Neste sentido, cabe destacar que o Governo não deu a mesma atenção às políticas emergenciais e estruturais. Foi dada uma grande ênfase à primeira, o que não ocorreu em relação à segunda, a ponto de representantes da sociedade civil de todo o país, no grupo de trabalho “Mobilização Social”, do Encontro Nacional de Segurança Alimentar, de 2006, alertarem sobre o “perigoso” caráter clientelista e não emancipatório que marca grande parte das ações governamentais. Outro ponto crítico é a ausência de um efetivo sistema de monitoramento das políticas de combate à fome. Não há um “Sistema Nacional de Informações em Segurança Alimentar”, o que dificulta, ou até mesmo impede, que organizações governamentais e não-governamentais verifiquem os avanços e retrocessos das políticas públicas desenvolvidas.

Diretamente associado a isso, está o problema da participação social. Uma queixa constante é a falta de verbas para os CONSEAS – Conselho de Segurança Alimentar estaduais e municipais, o que dificulta o monitoramento e a formulação de políticas públicas. Esta é apenas uma dimensão do problema da mobilização social. Os destinatários finais das políticas públicas emergenciais, em regra, não participam ativamente da formulação e/ou fiscalização das mesmas. Conseqüência disto é o agravamento do caráter clientelista de tais políticas, uma vez que seus beneficiários não se reconhecem como sujeito de seus próprios direitos. Outra face do problema é a persistência da corrupção, que envolve, em especial, o programa “Bolsa Família”. A não participação dificulta a fiscalização, permitindo que prefeitos listem seus apadrinhados como beneficiários

Falta um sistema de monitoramento alimentar do programa, mesmo que esses não atendam aos critérios exigidos. Embora estas sejam as deficiências centrais e mais visíveis para a efetivação de uma verdadeira política de segurança alimentar, diversas outras poderiam ser listadas. Apesar dos avanços conquistados ao longo de quatro anos, as políticas governamentais deixaram a desejar. Como bem enfatiza o relator nacional para o direito à alimentação, a promoção deste direito tem amplo respaldo nos discursos políticos, não tendo a mesma força na prática governamental.


10 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

A prática pedagógica no MST Jean Keiji Uema

O

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Arquidiocese de Ribeirão Preto assinaram, em 2002, convênio histórico que vem permitindo ao movimento a utilização do chamado Sítio Pau D’Alho para formação técnica de agricultores. Além disso, o espaço abriga um centro da preservação da cultura sertaneja. Em outra iniciativa, em 2005, o MST inaugurou a Escola Nacional Florestan Fernandes, local destinado a estimular o conhecimento científico e o pensamento crítico. Mais de duas mil pessoas já passaram por seus cursos e seminários, alguns reconhecidos oficialmente. Na área da educação básica, a luta é para que não haja assentamento do Movimento sem escola, mas todos estão sendo alfabetizados. Nos últimos três anos foram mais de 150 mil pessoas. No campo do ensino superior, mais de 50 convênios já foram estabelecidos com universida-

des para cursos de graduação e pósgraduação. Cite-se, a propósito, a Universidade de Brasília que, entre outras ações, promove, por meio da sua Faculdade de Direito em conjunto com a RENAP – Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares, cursos de extensão para aprimoramento profissional de advogadas e advogados que atuam na defesa jurídica de movimentos sociais e de seus militantes. Esses são alguns dados e exemplos do processo de educação promovido pelos movimentos sociais do campo, notadamente o MST. Não há Sem Terra que não esteja estudando, que não esteja se capacitando. É que a educação possibilita a emancipação do sujeito, pois lhe confere o poder efetivo de compreensão e reflexão sobre o significado de sua existência e do modo como está inserido no processo social. Assim, permitelhe eleger, com o máximo de consciência crítica, os rumos e destinos que tomará em sua vida e, funda-

mentalmente, impulsiona-o para a ação transformadora. As mulheres, homens e crianças integrantes do MST, em conjunto com outros atores sociais envolvidos, são agentes de uma experiência educacional própria. Forjada na práxis social, ou seja, na atividade concreta de sujeitos históricos em sua realidade de conflito e opressão – lutadores sociais coletivamente organizados –, a pedagogia do movimento não prescinde da teoria para sua prática, mas de uma teoria que vai fundamentando a ação ao mesmo tempo em que se reelabora criticamente a partir de seus acertos e equívocos. Um novo personagem em cena Herdeira direta da pedagogia teorizada por Paulo Freire e de suas reflexões sobre o potencial educacional da irresignação do oprimido, a pedagogia do movimento parte dessa orientação e amplia o seu sentido para a luta em sua dimensão coletiva; desloca o eixo da educação para

um sujeito coletivo organizado capaz de mobilizar para a luta social. Assim, cada indivíduo em formação – capaz de refletir, eleger seu futuro e agir – sustenta e faz parte de um movimento que é a origem e local da luta social e do seu processo de educação. Se a educação acontece no indivíduo isoladamente, é coletivamente que ela se processa a partir de uma circunstância privilegiada em sentidos e significações. Pode-se afirmar que o sujeito principal do processo pedagógico é o próprio movimento social. O movimento social, sujeito da ação coletiva, acelera e enriquece o conteúdo do aprendizado do indivíduo ao fornecer o sentido humanístico e identitário necessário para o projeto de vida emancipador que pretende. Nesses termos, pode-se dizer que o traço distintivo do projeto pedagógico do movimento dos Trabalhadores Sem Terra é o fato dele se dar sempre a partir da luta social coletivamente organizada.

Em três anos o programa atingiu mais de 150 mil pessoas


UnB – SindjusDF | 11

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

Educação não é só educação E o próprio movimento, como conseqüência direta de ser sujeito desse processo, abre-se e educa-se para novas formas e dimensões da luta social e da vida humana, com a rejeição da posição conservadora que quer limitar o horizonte das aspirações dos trabalhadores em geral e especificamente dos trabalhadores Sem Terra. Parafraseando a música dos Titãs, aquele que luta principalmente por terra e trabalho passa, em seu processo de educação, a não querer só comida, mas comida, diversão e arte; quer também participação política, saúde, afeto e o fim da violência contra a mulher; luta, entre outros direitos e bens, por paz e um meio ambiente equilibrado; luta por justiça, direitos humanos e educação pública e de qualidade, para si e para todos. Forma-se, enfim, uma pessoa que revela a dimensão humanista essencial para a realização de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática. A realidade como base do processo educacional Para a consecução desse objetivo, um dos princípios do projeto pedagógico indica a necessidade do processo educacional não estar dissociado das questões e problemas centrais da realidade das pessoas. Ainda que esteja deslocado em uma universidade na cidade, por exemplo, cumprindo o tempo necessário na escola, o Sem Terra deve continuar seu processo de educação junto ao seu local de origem em um “tempocomunidade”, oportunidade para disseminar os saberes aprendidos e a ajudar na luta do dia-a-dia, aprofundando o seu compromisso com a sua realidade, com o trabalho e a cooperação. Essa presença, do mesmo modo, remete à indissociabilidade entre teoria e prática, outro princípio fundamental do projeto pedagógico, pois a prática social é a base do processo de formação, origem e destino da educação. O objetivo é formar pessoas mais capazes de compreender os problemas reais do seu povo e de agir na direção da sua resolução. Isso implica, forço-

samente, uma educação com currículos, práticas e conteúdos adequados e direcionados para a construção de determinadas capacidades, ao lado da necessária incorporação de conhecimentos teóricos. São essas capacidades adquiridas que os tornarão hábeis para interferir e conduzir o processo de transformação da realidade. Cabe ainda ressaltar um outro princípio do projeto pedagógico do movimento: educar é educar para a democracia, cuja prática deve se dar em todos os espaços e tempos da vida. Assim, a gestão e execução do processo pedagógico também devem ser democráticas, com a participação conjunta e efetiva de educadores, educandos e comunidade em todos os momentos das atividades, desde a tomada das decisões mais estratégicas até na execução das tarefas mais sim-

ples. Com isso, todos ficam imbuídos do espírito de responsabilidade e também aprendem a tomar e respeitar as decisões e a executar as tarefas definidas. Finalmente, é importante ressaltar que a ação educacional do MST realiza socialmente a Constituição. Ao garantir educação, com igualdade de condições e segundo suas intencionalidades e princípios aventados, efetiva-se, em ação constitucionalmente garantida (CF, art. 205), o aprofundamento e a concretização da democracia e da cidadania. Condição básica para a liberdade e desenvolvimento, a educação interfere diretamente no processo de afirmação social dos excluídos. Trata-se, sem dúvida, no projeto pedagógico do MST, de re-politizar o espaço social da educação, de transformá-lo em elemento essencial da luta por direitos.

A ação educacional do MST realiza socialmente a Constituição ao garantir educação com igualdade de condições


12 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

ENTREVISTA COM FÁBIO KONDER COMPARATO

Educação política para o José Geraldo de Souza Júnior

A

crise política ainda em curso no País, não superada de todo pela eleição presidencial, ao interpelar a condição republicana de funcionamento das instituições e a qualificação democrática do exercício dos poderes, pode abrir oportunidade para resgatar a formidável reserva de potencial participativo que a Constituição brasileira de 1988 criou, ao atribuir reconhecimento à titularidade do povo para o exercício de autêntica soberania ativa. Em posicionamento crítico ao açodamento de propostas sugerindo uma nova Constituinte ou indicando processos constitucionais revisionais, as melhores vozes trataram de mostrar que uma legítima preocupação “com o estado de agudo desprestígio do sistema político em vigor”, para não abrir caminho “para o enfraquecimento ou mesmo a supressão de direitos e garantias fundamentais, sem nenhum controle, quer do povo, quer do Poder Judiciário”. Entre estas vozes, eleva-se, propositivamente, a de Fábio Konder Comparato, que preside atualmente a Comissão de Defesa da Constituição e da Democracia, do Conselho Federal da OAB. Para Comparato, cabe à soberania popular, diante de uma situação de relativa impotên-

Um regime político vigora também na mentalidade do povo

cia das instituições vocacionadas para o exercício representativo das funções de legislar e de governar, intervir no processo político para manifestar diretamente a sua vontade democrática. Em entrevista concedida ao Professor José Geraldo de Sousa Junior, integrante dos Grupos de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, membro da Coordenação de Constituição & Democracia, o respeitado jurista trata destas questões e também da necessidade de educação política para bem exercer a cidadania. O Senhor acaba de publicar uma obra monumental sobre a Ética, o Direito, a Moral e a Religião no mundo moderno (Companhia das Letras), em cujo centro coloca a exigência de resgatar a essência do regime político republicano que se encontra na distinção entre o interesse próprio de cada um em particular e o bem comum de todos. Quais as possibilidades desse resgate no Brasil, hoje, quando são constatados, em todos os níveis, profundos desvios éticos, tanto na conduta pública, quanto na ação privada? Um regime político não vigora apenas no plano jurídico-formal, mas também na mentalidade do povo, que anima os costumes políticos. Ora, ouso dizer que o traço mais profundo e constante da mentalidade brasileira é a ausência de espírito público. Frei Vicente do Salvador, primeiro historiador do Brasil, já advertia no início do século XVII: “Nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. Essa mentalidade antirepublicana tem sido até agora um obstáculo à vigência efetiva (e não meramente formal) do regime republicano entre nós. Isto, sem falar do fato de que, para a generalidade dos juristas e cientistas políticos a república é entendida, simplesmente, como o regime em que a chefia do

“Nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela pelo bem comum, senão cada um do bem particular”

Estado não pertence dinasticamente a uma família, mas é um cargo eletivo. Veja-se, por exemplo, a formulação da consulta plebiscitária, determinada pelo art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988. Ignora-se, com isso, que há monarquias incomparavelmente mais republicanas do que a nossa República Federativa do Brasil. Montesquieu sustentou que os costumes não se mudam por leis e sim pela educação. O personagem principal do conto Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, ao acon-


UnB – SindjusDF | 13

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

o exercício da cidadania que estabelece os princípios a que devem obedecer os programas de rádio e televisão. Até hoje o Congresso Nacional não votou a lei regulamentadora. Espero que na Comissão de Defesa da República e da Democracia, da Ordem dos Advogados do Brasil, consigamos elaborar um anteprojeto a esse respeito. Qual o papel que a cidadania, no seu exercício individual e organizado, pode desempenhar para o aperfeiçoamento da vida democrática? Penso que este é também um tema muito central abordado em seu livro. No campo político, os cidadãos devem agir de modo organizado. A função própria dos partidos políticos deveria consistir exatamente em organizar a ação coletiva dos cidadãos, e não em disputar o poder no Estado, como desde sempre ocorreu, tanto aqui, quanto alhures. A verdadeira regeneração democrática poderia começar por aí: a criação de partidos políticos que atuassem como organizadores da ação política do povo soberano.

selhar o filho a ter um comportamento absolutamente conformista no meio social, propunha como solução verbal para todas as mazelas sociais antes das leis, mudem-se os costumes. De minha parte, reconheço que na reforma dos costumes sociais, de qualquer natureza, o papel principal cabe, sem dúvida, à educação; e hoje, numa sociedade de massas, à educação por meio do rádio e da televisão. Mas as normas jurídicas podem também ajudar e muito nesse sentido; a começar, justamente, pela regulamentação do art. 221 da Constituição Federal,

A verdadeira regeneração democrática começa com partidos políticos que atuem como organizadores da ação do povo soberano

Quais as ameaças que se armam contra o exercício da soberania popular e para os instrumentos de sua participação política constitucionalizados em 1988, diante das inúmeras ameaças de reformar, revisar e até instalar uma nova Constituinte no País, hoje? A “Constituição Cidadã” corre perigo? Entre nós, os grupos oligárquicos são capazes de se adaptar a qualquer forma de governo e a qualquer sistema eleitoral. Eles têm larga experiência para tanto. São até capazes de se travestirem em defensores impertérritos da vontade popular, organizando assembléias constituintes ad hoc, que decidiriam sobre tudo, menos sobre as formas de exercício da democracia direta... O risco de termos proximamente uma mini-constituinte para resolver questões de conjuntura, ou para reforçar o poder oligárquico,

O inimigo principal do gênero humano nos dias de hoje é o capitalismo continua latente. A sua ação política é, reconhecidamente, um verdadeiro apostolado pela extensão da prática da cidadania, no sentido de realizar condições para participação popular, especialmente no controle social das políticas públicas. Qual a direção dessa, digamos, extensão de práticas democráticas e como é possível desenvolver uma educação política para o exercício legítimo dessas práticas? Sei que na sua posição de Presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB vem propondo um programa para essa educação política. Pode falar um pouco sobre isso? Em nossa modesta atuação na Comissão de Defesa da República e da Democracia, na OAB, reconheço que temos cedido, mediocremente, à tendência natural dos homens do Direito de tentar tudo resolver por meio de mudanças no ordenamento jurídico. A indagação vem a calhar: é hora de a OAB se unir a outras entidades de âmbito nacional, para pensar na elaboração de um programa de educação política. Estamos aí diante de um enorme vazio em nosso país: a formação da cidadania ativa. Mas essa educação deveria enfrentar, sem tergiversações ou edulcoramentos, o inimigo principal do gênero humano, nos dias de hoje: o capitalismo, que é, pela sua própria natureza, fundamentalmente anti-republicano e antidemocrático. Teremos coragem para isso?


14 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

A educação nas prisões e a remição da pena Fábio Costa Morais de Sá e Silva

A

o longo de 2006, os Ministérios da Justiça e da Educação e a Representação da UNESCO no Brasil elaboraram um Projeto de Lei que busca instituir expressamente na Lei de Execução Penal a possibilidade de remição da pena pelo estudo. Na sua redação atual, a lei prevê apenas a possibilidade de remição da pena pelo trabalho, na razão de um dia remido para cada três trabalhados. Ou seja, a cada três dias de trabalho, o preso pode ter descontado um dia de pena a cumprir.

Há muito tempo, advogados e defensores públicos vêm ingressando com pedidos para tornar o estudo uma atividade equivalente para a obtenção desse direito (ou benefício, como consta da linguagem adotada pelo texto legal). Os argumentos são bastante simples. O estudo é uma forma de trabalho (trabalho intelectual) e a participação do preso numa atividade educativa cumpre o mesmo objetivo da participação numa atividade produtiva: a chamada ressocialização. A questão, é bom que se diga, encontra-se consolidada na cúpula do

Judiciário. O Superior Tribunal de Justiça já proferiu diversos julgados manifestando concordância com esse entendimento. Ainda assim, dois problemas freqüentemente aparecem no dia a dia das prisões. Em primeiro lugar, existem alguns juízes que não adotam essa opinião e continuam negando os pedidos para que o tempo estudado seja reconhecido para fins de remição. Além disso, existe um problema de regulamentação: mesmo quando entendem que o estudo deve equivaler ao trabalho, os juízes não têm segurança sobre que proporção utilizar para

conceder a remição correspondente. O Projeto de Lei, portanto, tem o objetivo de solucionar essas questões e fazer da Justiça da Execução Penal uma instituição mais confiável e comprometida com a realização de direitos. Para isso, ele propõe a contagem do tempo na razão de um dia de pena por dezoito horas de estudo. E, ainda, permite que o tempo acumulado em função da educação some-se ao tempo acumulado em função do trabalho e vice-versa, estimulando uma integração saudável entre elevação de escolaridade, formação profissional e geração de renda.

Apesar das Constituições e de seus eventuais ideários de inclusão, a longa duração do Estado Moderno sempre deixou entrever este formidável poder de negação do outro, o crime


UnB – SindjusDF | 15

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

Congresso arquivou inúmeras propostas Por outro lado, o Projeto inova ao valorizar a conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena, premiando-a com o acréscimo da metade do tempo a remir acumulado em função das horas de estudo, desde que certificada pelo órgão competente do sistema de educação. Essa medida revela a preocupação com a qualidade, favorecendo a implementação de sistemas regulares de ensino nas prisões e prezando por promover, estimular e reconhecer os avanços e progressões dos educandos, o que tende a contribuir significativamente para a restauração de sua auto-estima e reintegração harmônica à vida em sociedade. Os sistemas de informação do Congresso Nacional demonstram, entretanto, que esta não é a primeira vez que proposições desse tipo são concebidas e encaminhadas às suas casas. A última delas, o PL 6390-2002, tinha apensado consigo inúmeros outros, todos arquivados após parecer negativo proferido pelo Deputado Ibrahim Abi-Ackel. Tendo em vista que a apresentação do novo Projeto de Lei ao Congresso provocará a retomada das discussões, torna-se oportuno fixar uma compreensão específica sobre o assunto, do ponto de vista da sua constitucionalidade. Isso implica, todavia, em indagar: o que é uma Constituição e como ela pode se relacionar com a idéia de pena? As teorias elaboradas na modernidade para dar conta do fenômeno constitucional sempre tiveram como pano de fundo a metáfora jurídico-política do “contrato social”, ainda que tenha sido diversa a maneira pela qual ela foi apropriada. Enquanto os liberais invocaram-na para reivindicar uma sociedade organizada com base na primazia do indivíduo, nazismo e fascismos utilizaram-na para formar o seu conceito muito próprio de cidadania: um atributo de poucos. Em todo caso, porém, o crime e a pena foram os conceitos utilizados sempre que se quis fundamentar procedimentos de exclusão do dito “contrato”. Por não haver respeitado alguém, ou por haver se revelado como um inimigo de todos, o crimi-

noso deixa de merecer estar entre nós e, quando muito, tem à sua disposição as garantias do processo. Pode provar que não fez ou que não é, mas se não conseguir, será varrido para baixo do tapete do sistema penal. Ou seja: apesar das Constituições e de seus eventuais ideários de inclusão, a longa duração do Estado Moderno sempre deixou entrever este formidável poder de negação do outro, o crime. Num tal contexto, talvez seja oportuno propor uma reconstrução da Constituição e de sua relação com a pena, tomando por base uma outra idéia que também se faz latente no “contrato social”: a solidariedade. Dizer que estamos unidos por um contrato, com efeito, é assumir o outro como contraparte, com quem mesmo nas situações mais limítrofes devemos buscar negociar os termos jurídicos e políticos do modo de vida em comum que pretendemos instituir. Alteridade e afeto, afinal, podem ser os elementos de uma nova tópica constitucional, mais capaz de lidar com as contradições entre punição e democracia. E a remição pelo estudo pode ser um dos elementos dessa virada, alinhavando um jeito novo e menos

cínico de lidar com o delito, no qual a resposta penal venha a ser substituída gradativamente por outras formas de diálogo com os sujeitos em questão, como é o caso das políticas públicas. De fato, a remição pelo estudo representa nada menos que um incentivo para que as milhares de pessoas que se acham nas prisões firmem com o sistema de educação o engajamento que não puderam firmar no tempo convencional (segundo dados do Ministério da Justiça, mais de 70% dos jovens e adultos que cumprem pena privativa de liberdade não têm o ensino fundamental completo e cerca de 10,5% são completamente analfabetos). Ela sugere adotar a linguagem dos direitos mesmo quando tudo e todos pedem mais e mais violência. E assim, abre as portas para que, sob o enfoque de uma pedagogia crítica, de libertação, seja dado aos presos e presas pensar no futuro e não no passado; naquilo de bom que ainda pode acontecer em sua relação com a sociedade, não mais no histórico de conflitos de que ambos têm sido protagonistas. Para resumir, enfim, a remição da pena pelo estudo deve ser presti-

giada pelo Congresso e pela Sociedade, porque institui as condições jurídicas necessárias para a reconstrução dos nossos laços de civilidade em relação aos inúmeros homens e mulheres que se encontram encarcerados. Talvez não exista esse tipo de sensibilidade na opinião pública e nas instituições, num momento em que os processos estruturais de exclusão cada vez mais predominam em relação aos processo estruturais de inclusão social. Mas isso é uma outra história, que fica para uma outra vez.

O estudo é uma forma reconhecida de trabalho e, portanto, pode reduzir a pena


16 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

A aposentadoria compulsória do magistrado Benedito Calheiros Bomfim

A

proposta de elevação da idade para a aposentadoria compulsória dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores e Tribunal de Contas da União de 70 para 75 anos (e conseqüente exigência de que tenham menos de 70 anos como condição para nomeação), objeto das PECs 42/2003 e 457/2005, oriundas, respectivamente, da Câmara e do Senado, agita e mobiliza associações de juízes, meios forenses, parlamentares, tribunais, entidades representativas do Ministério Público e de advogados. A Comissão Especial criada para examinar a matéria, acolhendo Substitutivo recém apresentado pelo Relator, estendeu o aumento da idade-limite para a aposentadoria forçada a todos os servidores públicos, medida da qual parece que estes ainda não se aperceberam. A deliberação final da proposição pende agora de votação no plenário da Câmara dos Deputados. Como o objetivo deste breve estudo é focalizar a repercussão e os efeitos da medida no âmbito da magistratura, a este ponto restringiremos nossas observações e comentários. Ao contrário da quase totalidade dos países, inclusive os Estados Unidos, onde não existe limite de idade para a aposentadoria obrigatória dos ministros da Suprema Corte, nosso ordenamento jurídico sempre delimitou a idade para a aposentação compulsória do servidor público, embora não o tenha feito em relação aos servidores do Legislativo,

membros do Poder Executivo e aos trabalhadores da iniciativa privada. Vejamos como a matéria tem sido tratada em nosso direito constitucional, no tocante ao Judiciário. O limite de idade foi previsto pela primeira vez na Constituição de 1934 (art. 64, “a”), que estabeleceu a compulsória aos 75 anos, idade reduzida para 68 anos na Carta de 1937 (art. 91, “a”) e elevada, novamente, pela Constituição de 1946 ( art. 94, § 1º) para 70 anos. A Lei Maior de 1988 (arts. 40, II. e 93, VI, em sua redação original) fixou a mesma faixa etária para a expulsória. A Lei Orgânica da Magistratura, por sua vez, dispôs da mesma forma (Lei Complementar nº 35/79, art. 75). Nos sessenta anos decorridos desde a Constituição de 1946, a expectativa de vida no Brasil aumentou. Entre os profissionais liberais e intelectuais, a média de vida excede de 75 anos. O país e o mundo se transformaram, a sociedade e a economia passaram por alteração substancial, a tecnologia avançou velozmente. O perfil, a imagem, os costumes e a mentalidade do juiz, da mesma forma, sofreram sensível metamorfose, a ponto de registrar na sua composição forte presença de contingentes de jovens e acentuada tendência à feminilização. Até a década de 40, a magistratura, na prática e por preconceito e tradição, era considerada profissão exclusivamente masculina, de homens maduros, austeros, distanciados da vida social. Há que indagar, pois, se é razoável ignorar todas essas transformações e manter um modelo que, talvez adequado à época, não mais atende á mentalidade moderna, à atual realidade social, cultural e econômica.

Muitos países, inclusive os EUA, não fixam limite de idade para a aposentadoria compulsória


UnB – SindjusDF | 17

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

Ato anti-social, desserviço à Justiça Com efeito, impedir que um magistrado ainda hígido, lúcido, profissionalmente experiente, vocacionado, dotado de espírito público, no auge de sua capacidade laborativa e intelectual, desejando continuar a prestar serviços à Justiça e à população e sentindo-se em condições físicas e mentais de faze-lo, seja privado de exercer a função, constrangido a uma inatividade indesejada, – e só isto justificaria a alteração proposta na PEC em exame, – afigura-se um ato anti-social, contrário ao bom senso, um desserviço à justiça e à sociedade. Além dos adeptos da manutenção da atual faixa etária para aposentadoria forçada do magistrado, existem outras vertentes de pensamento. Uma delas – que se afigura a mais razoável, socialmente correta, equânime, com a qual o autor destas notas se identifica – faculta a aposentadoria com 70 anos, com as mesmas vantagens da compulsória aos 75 anos, o que atenderia aos que, naquela idade, sentem-se fatigados, incapazes de permanecerem em serviço, bem como àqueles que, desvocacionados, desestimulados, destituídos de espírito público, só aguardam a chegada da compulsória. Nesta categoria incluem-se também aqueles que optaram pela magistratura, particularmente em cargos nos Tribunais Superiores – e não são poucos – exclusivamente em busca de status econômico, social e visando aos atraentes proventos da aposentadoria, bem como os que almejam a compulsória para acrescer seus ganhos, migrando para a iniciativa privada, como consultores, advogados, pareceristas etc., na iniciativa privada. Outra corrente, defendida pelo Presidente da seção de Dissídios Individuais do Tribunal do Trabalho da 1ª Região, preconiza que, uma vez atingida a idade-limite de 70 anos, a permanência na judicatura, dependeria de exame médico comprobatório da saúde física e mental do magistrado. Seja como for, a nosso ver, já é tempo de aumentar o limite máximo de idade da aposentadoria forçada para 75 anos, com o que se estaria atendendo também à cole-

tividade, solução que melhor se adequaria aos interesses da Justiça e da sociedade. Insurgem-se os juízes de instâncias inferiores contra a elevação da idade-limite para 75 anos sob o argumento de que a medida retardaria as promoções e a ascensão na carreira hierárquica, dificultaria a oxigenação e a renovação dos Tribunais. Posto que tal possa ser parcialmente verdadeiro, isso, por si só, não impedirá que os Tribunais continuem sendo renovados, inclusive pela influência do quinto constitucional, bem como pelos muitos que optariam por aderir à aposentadoria facultativa aos 70 anos. Ainda que assim não fosse, o risco aponta-

do seria contrabalançado pelo proveito que teriam a Justiça e os jurisdicionados com a permanência voluntária por mais cinco anos na função de magistrados mais antigos, com maior tirocínio na judicatura, mais identificados com as matérias jurídicas que lhes são diuturnamente submetidas à apreciação, para não falar no que tal fato representaria em termos de economia para a Previdência Social. A verdade é que não somos um

país com um estagio civiizatório tão avançado, uma economia tão prospera, um Judiciário tão eficiente, um sistema previdenciário de tal forma equilibrado, que se possa dar ao luxo de condenar um juiz à inatividade, só porque alcançou 70 anos de idade. A experiência mostra que, afastado de sua função, o magistrado tende a colocar seus conhecimentos jurídicos, experiência e o prestígio do titulo a serviço de empreendimentos na iniciativa privada.

Não podemos nos dar ao luxo de condenar um juiz à inatividade só porque alcançou 70 anos de idade


18 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

Os tribunais,

as universidades e as ruas Paulo Henrique Blair de Oliveira

A

s togas judiciais não concedem a quem as usa todo o saber do Direito. Este idéia – correta, por sinal – está presente na Emenda Constitucional de número 45, de dezembro de 2004, denominada de “reforma do judiciário”. Dela decorrem duas outras determinações contidas na mesma emenda constitucional: a de que o candidato aprovado para o cargo de juiz substituto deverá ser submetido obrigatoriamente a um curso de formação e a de que as promoções por mérito dos juízes deverão levar em conta cursos de aperfeiçoamento ou cursos “oficiais”. Em si, estas novidades são avanços na busca de um Poder Ju-

diciário mais democrático. Elas têm a virtude de romper com a noção de que, após aprovação em concurso público, nada mais seria necessário para um exercício adequado da judicatura, e abraçam o conceito de uma formação permanente dos julgadores. Mas, as melhores idéias com freqüência são acompanhadas dos maiores riscos. E um destes riscos, que pode comprometer o potencial democrático destas mudanças, é não fazer distinção entre formação acadêmica e formação profissional. A leitura que deve ser dada à Emenda Constitucional 45 é a de que a novas normas fazem referência à segunda, e não à primeira. Com esta distinção quero afirmar que os cursos que deverão ser organizados pelos tribunais para a

formação permanente dos juízes não devem reclamar o status equivalente aos cursos de mestrado ou de doutorado. Semelhantemente, cursos de mestrado ou de doutorado, realizados pelas instituições acadêmicas devidamente credenciadas, não devem servir como critérios para aferição de mérito profissional dos magistrados. Por que deve haver diferença entre a formação para a judicatura e a formação para a academia? Há um motivo forte para que a distinção entre formação acadêmica e profissional seja mantida. É que, em uma democracia constitucional, a academia e os tribunais devem cumprir papéis diferentes. O sistema educacional de pós-graduação em sentido estrito tem co-

mo missão formar professores e pesquisadores capacitados a atuar no ensino superior. Ao executarem estas atividades, tais profissionais não fazem uma simples reprodução de conceitos jurídicos, fazem na verdade uma reconstrução crítica destes conceitos e da forma como eles são operados por todos os que atuam no Direito, particularmente os tribunais. Isto é, a academia tem a (importantíssima) função de dialogar criticamente com os tribunais. Os cursos de Direito não são uma extensão funcional dos tribunais precisamente porque acadêmicos devem tematizar as críticas aos modos como as normas jurídicas são aplicadas pelos tribunais, questionando a legitimidade das práticas adotadas pelas cortes judiciais.


UnB – SindjusDF | 19

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

Educação do juiz deve ter caráter plural Com isto não afirmo que o processo de formação profissional dos juízes deve ser divorciado de toda reflexão feita pela produção que vem das academias. Ao contrário, esta formação, para servir realmente à construção de um Poder Judiciário democrático, não pode se fechar em si mesma, como se teoria e prática fossem distintas. A educação permanente dos juízes, se pretende ser uma educação na democracia e para a democracia, deve acima de tudo assumir um caráter plural. Deve abrir os horizontes de reflexão dos julgadores quanto a outros saberes que não os estritamente jurídicos, e insistir que o Direito seja permeado por estes outros saberes, ainda que permanecendo Direito. Mas, até mesmo para que ocorra este diálogo entre a academia e os tribunais, deve permanecer uma distinção entre eles. Em razão desta diferença, cursos de pós-graduação em sentido estrito não podem ser tomados como parâmetros para o mérito profissional dos juízes. A leitura correta à referência a “cursos oficiais de aperfeiçoamento” na Emenda Constitucional 45 deve respeitar e reafirmar a distinção entre formação para a judicatura e formação para academia. Do contrário, é previsível que vários magistrados serão estimulados a buscar cursos de pós-graduação em sentido estrito apenas como um requisito para as suas carreiras profissionais. Isto geraria uma demanda artificial por cursos de pós-graduação em sentido estrito (mestrado e doutorado), e esta demanda não poderia ser atendida com a qualidade necessária e nem estaria verdadeiramente vinculada à pre-

paração de professores para o ensino superior. Não pretendo desprezar o fato de que a constituição permite aos magistrados o exercício do magistério – aliás, a única atividade que pode ser acumulada com a judicatura. Mas, nem isto invalida a diferença institucional de papéis nestas carreiras, tanto assim que são distintos os processos seletivos para o magistério superior público e para a magistratura.

Cursos organizados para a formação permanente dos juízes não devem reclamar o status de cursos de mestrado ou de doutorado. Cursos de mestrado ou de doutorado não devem servir como critério do mérito profissional dos magistrados

Uma vez que a diferença de papéis entre a academia e os tribunais preserva uma instância voltada à reflexão crítica sobre a aplicação do Direito, é necessário entender que esta distinção democrática de funções tem como destinatário as ruas, isto é, ela serve como instrumento à disposição da sociedade para que o exercício da cidadania seja crítico quanto ao Direito e quanto às instituições, submetendo ambos a um debate público constante, a um processo permanentemente aberto de mudança e de reconstrução. Em uma democracia, quem deve ao final exercer o controle legítimo do poder de julgar é o exercício da cidadania, na riqueza das divergências e das ações ocorridas nas ruas. São as ruas que cobram de seus julgadores, a todo o instante, o cumprimento da afirmação constitucional de que somos livres e iguais.

A distinção entre a academia e os tribunais tem como destinatário as ruas. Nelas, o exercício da cidadania cobra de seus julgadores o cumprimento da afirmação de que somos livres e iguais


20 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Ho r a e x t r a

Uma proposta para a alteração do artigo 59 da CLT freqüentemente. Um outro dado interessante da pesquisa indica que 59,4% defendem que haja limite para a prática das horas extras.3 A atual legislação sobre horas suplementares, expressa no artigo 59 da CLT, permite a realização de até 2 horas extras diárias, mediante acordo com o empregado ou com o sindicato profissional. A proibição restringese ao trabalho em tempo parcial, bem como, a realização de horas extras em atividades insalubres, que também está condicionada à autorização do Ministério do Trabalho. A exceção às regras acima descritas ocorre apenas quando há uma necessidade imperiosa, compreendendo as seguintes situações: por motivo de força maior ou causas acidentais; realização ou conclusão de serviços inadiáveis; realização ou conclusão de serviços cuja inexecução possa causar prejuízo manifesto. Nestas hipóteses, basta apenas a comunicação dos fatos ao Ministério do Trabalho. Todavia, a jornada suplementar, por motivo de força maior ou causas acidentais, está limitada a duas horas diárias, e desde que a jornada diária não exceda a 10 horas. Nos demais casos, a jornada diária poderá ser de até 12 horas diárias.

Rosane da Silva e Maria da Consolação Vegi da Conceição

A

conquista da redução de jornada de trabalho sem redução de salário é uma bandeira de luta sempre presente nas campanhas realizadas pela CUT, como forma de gerar mais empregos e melhorar as condições de vida da classe trabalhadora. Mas a vitória desta luta deve vir acompanhada da redução das horas extras. Do contrário, corre-se o sério risco da redução da jornada ser seguida do incremento do trabalho extraordinário. Com este propósito a CUT lançou uma publicação intitulada “Hora extra: o que a CUT tem a dizer sobre isto”.1 A obra, resultado do trabalho de diversas mãos, realiza uma ampla abordagem, explorando diversos aspectos, isto é, a questão da saúde, de gênero, do assédio moral, do lazer, da educação, da remuneração, do emprego, do tempo de trabalho, do ritmo de trabalho, dos acordos e convenções coletivas, a experiência internacional, dentre outros. O estudo traz ainda uma pesquisa nacional realizada com trabalhadores de diversas categorias profissionais. Além disso, sugere uma alteração no artigo 59 da CLT para que a realização de jornada suplementar seja limitada quantitativamente. A proposta incentiva a negociação coletiva, na medida em que permite um controle mais eficaz da utilização das horas extras. Em 1988, quando se aprovou a diminuição da jornada semanal de 48 para 44 horas, observou-se um aumento do número de trabalhadores que trabalhavam em regime de horas extras. Segundo dados do DIEESE, entre 1985 e 1988, a média de assalariado que trabalhavam acima da jornada constitucional na Grande São Paulo

era de 20%. No ano de 2003, no entanto, este contingente passou para o alarmante índice de 44%. É evidente que em conseqüência disto, não se obteve o impacto esperado na geração de novos postos de trabalho. Na recente pesquisa realizada pela CUT, sob a coordenação do DIEESE, abrangendo diversos ramos de atividade,2 77,8% dos pesquisados afirmaram que fazem horas extras, ou seja, de cada 10 trabalhadores 8 realizam horas extras. Deste total, 25% fazem jornadas extraordinárias

1. Secretaria de Política Sindical da CUT. Hora extra: o que a CUT tem a dizer sobre isto. São Paulo: CUT Brasil, 2006. 2. Ramos: comércio e serviços, metalúrgicos, químicos, transporte e vestuário. 3. Deste percentual, 26,8% desejam que seja mantida a legislação atual e 22,6% gostariam que a jornada extraordinário fosse mais limitada. Saliente-se que 13,7% dos trabalhadores pesquisados querem a proibição das horas extras e um percentual significativo, 13,1%, não responderam a questão da proposta.


UnB – SindjusDF | 21

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

Lei autoriza exagero de horas extras Cabe notar, no entanto, que a lei autoriza um exagerado número de horas extras. A permissão de 2 horas extras por dia significa, potencialmente, um volume de até 50 horas extras por mês, ou 552 horas extras por ano. Em outras palavras, pode-se realizar 27% a mais do volume da jornada normal de trabalho. Ressalte-se que na prática esse limite de 2 horas diárias nem sempre é respeitado, o que acarreta uma quantidade ainda maior de jornada suplementar. O pagamento de adicional de 50% sobre o valor da hora normal, instituído pela Constituição Federal (art. 7º, XVI), também não tem sido eficaz ao combate do trabalho extraordinário. O mero incremento no adicional das horas extras também pode ter um efeito inverso ao pretendido: em virtude dos baixos salários, os empregados tenderiam a buscar a realização de horas extras. Assim, se por um lado os empresários continuam realizando horas extras e repassando o seu custo para o produto, por outro, os trabalhadores, por causa dos baixos salários, consideram a hora extra uma oportunidade de aumentar o rendimento mensal. O inevitável acontece: aumentam-se as horas extras. Há ainda aqueles que temem perder o emprego como represália da empresa caso se neguem a trabalhar além da jornada. Diante deste quadro e, considerando que tramitam atualmente no Congresso Nacional vários projetos de emenda constitucional (PEC) dispondo sobre a redução de jornada que, espera-se, sejam levados à votação brevemente, a CUT defende que a nova legislação fixe os seguintes totais máximos de horas extras: 2 horas extras por dia; 30 horas extras por mês; 110 horas extras por semestre. Destarte, por dia a jornada suplementar estaria limitada a 27% sobre a jornada normal de trabalho; por mês, a 16% e; por semestre, a 10%. Com efeito, a limitação nos parâmetros acima significa uma queda dos atuais 27% para 10% sobre o volume de horas extras anual. Assim, quanto

mais tempo a empresa utilizar-se do regime de jornada suplementar, menor quantidade de horas extras terá à sua disposição. Essas horas extras deverão ser remuneradas com adicional de no mínimo 75% superior à hora normal. Ainda assim, as horas extras nos domingos, feriados e dias já compensados somente seriam admitidas mediante acordo coletivo, com remuneração superior em no mínimo 100%. A legislação também deve prever que somente nos casos de incremento de produção não habituais e inadiáveis, e mediante negociação coletiva com a entidade sindical, o limite acima estabelecido poderá ser ultrapassado. Com isto, as entidades sindicais passam a ter um controle na realização de horas extras, sempre que a empresa pretendesse aumentar o volume de jornada para além dos patamares descritos. O acordo, nestes casos, deverá prever adicional sobre a jornada suplementar de no mínimo 100%, como também, a nego-

ciação coletiva estará obrigada a estabelecer cláusula de contratação de novos empregados, caso a situação perdura por mais de três meses sucessivos. Por fim, a lei deve proibir a realização de horas extras de empregados contratados sob regime de tempo parcial; aposentados; trabalhadores que apresentem restrições físicas ou psíquicas comprovadas; mulheres gestantes e lactantes. A proposta sugere que todas as alterações sejam realizadas no artigo 59 da CLT, com supressão de alguns dispositivos e acréscimos de outros. Um projeto como este, contudo, deve ser amplamente debatido com outros segmentos da sociedade, como o Legislativo, o Ministério do Trabalho, Ministério da Justiça, TST, ANAMATRA, OAB, outras centrais sindicais e representações patronais. Somente com um diálogo franco e aberto com a sociedade é que teremos condições de construir um projeto de lei a ser levado para o Congresso Nacional.

Não se deve olvidar da importância da fiscalização do Ministério do Trabalho para que a disposição legal seja aplicada. É notório que muitas empresas realizam jornadas suplementares obrigando os trabalhadores ao controle à parte destas jornadas, os conhecidos “cartão por fora”. Um projeto como este estaria fadado ao insucesso se estas mazelas não forem combatidas. Não menos importante é o acompanhamento das entidades sindicais para que a empresa respeite a disposição legal. Pelo projeto, os sindicatos poderão ingressar com ações na qualidade de substituto processual, se for o caso, para obrigar o cumprimento da lei. Essas ações poderiam, inclusive, consistir em uma obrigação de fazer, qual seja, a negociação prévia das horas extras. A elaboração de um projeto consensual poderá beneficiar tanto os trabalhadores quanto os empresários e a sociedade em geral. A extenuante jornada prejudica diretamente a saúde e a qualidade de vida dos trabalhadores e aumenta o custo da atividade empresarial, com o aumento de adicionais, queda da produtividade, aumento de acidentes de trabalho e processos trabalhistas. A sociedade no final é quem paga a conta, com a queda no nível de emprego, concessões de benefícios previdenciários e aumento do custo da saúde pública. A proposta acima é apenas um ponta pé para a iniciarmos a discussão sobre o grave problema das horas extras e a CUT não irá furtar-se ao debate e aos desafios produzidos pelo tema.

Um projeto como este deve ser amplamente debatido com todos os segmentos da sociedade


22 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

Direito à educação, acesso ao ensino

superior e ações afirmativas Luiza Cristina Fonseca Frischeisen

H

oje no Brasil parece haver um consenso sobre o déficit educacional que existe em nosso país quando comparamos a nossa população com aquelas de países que se encontram no mesmo grupo dos chamados países emergentes, que os economistas gostam de chamar de BRIC, ou seja, Brasil, Rússia, Índia e China. Se praticamente alcançamos a universalidade do acesso no ensino fundamental, o mesmo não se pode dizer quanto ao ensino médio. E há ainda a questão da qualidade do ensino fundamental, hoje, um dos grandes nós do sistema. Mas neste artigo, o ponto principal será a questão do acesso ao ensino superior e uma das políticas que está sendo implementada por diver-

sas universidades, atualmente no Brasil, com tal finalidade – as ações afirmativas. No Brasil, como sabemos, o índice de acesso ao ensino superior é bastante baixo mesmo quando comparado com outros países de América Latina. Há muitos anos se discute o maior acesso às universidades, em especial, às públicas e as soluções apontadas são muitas, como o aumento gradual de vagas, criação de novos cursos voltados para as novas necessidades do mercado de trabalho como os cursos tecnológicos, aumento dos cursos noturnos, novas unidades e até mesmo expansão dos campi. Por outro lado, sabe-se que os alunos oriundos de escolas do ensino público têm maior dificuldade para ter sucesso nos exames de ad-

missão das universidades públicas e que em muitos dos seus cursos acaba existindo grande concentração de alunos oriundos de escolas privadas (em especial naqueles em que a relação candidato/vaga é mais alta ou nos quais o curso é em horário integral). Quando o debate sobre o acesso ao ensino superior se encontrou com o debate sobre o racismo no nosso país e com as estatísticas demonstrando que a população afrodescendente (majoritariamente oriundos das escolas públicas) não ti-

nha acesso adequado às universidades, em especial, as públicas, as ações afirmativas passaram a fazer parte do vocabulário daqueles que se dedicam ao tema. Como sabemos, as ações afirmativas são políticas públicas que têm como objetivo criar para grupos historicamente discriminados ou vulneráveis em uma determinada sociedade, condições específicas para que tenham acesso a bens, serviços e direitos, em igualdade de condições dos grupos predominantes desta mesma sociedade.

No Brasil, o índice de acesso ao ensino superior é ainda muito baixo


CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

UnB – SindjusDF | 23

As cotas não contrariam a lei Para que não se diga que as ações afirmativas são estranhas ao ordenamento jurídico brasileiro, é importante deixar explicitado que a nossa Constituição previu uma ação afirmativa específica para as pessoas com deficiência ao estabelecer percentual mínimo de vagas nos concursos públicos. Em regra, o percentual é de 5%. E aqui, logo se vê que quando tratamos de uma das modalidades de ação afirmativa, a cota, o percentual desta não corresponderá necessariamente ao percentual na sociedade do grupo ao qual se quer atingir. A nossa Constituição garante o princípio da autonomia das universidades, por isso, as regras de acesso (dos vestibulares) são estabelecidas pelas próprias universidades, e, portanto, é plenamente possível que entre as regras adotadas estejam ações afirmativas. Embora as ações afirmativas para acesso às universidades não estejam explicitadas na Constituição da mesma forma que aquelas estabelecidas para as pessoas com deficiência, a adoção das mesmas não fere qualquer regra da Constituição, e, em especial, a chamada isonomia, ou seja, a igualdade de todos perante a lei. É importante ressalvar que a Constituição Federal estabelece ao lado da igualdade de todos perante a lei, o direito à própria igualdade e se considerarmos que as universidades podem estabelecer suas próprias regras de acesso em razão do princípio da autonomia universitária, parece certo que possa fazer constar em seus editais de concursos de ingresso regras que estabeleçam padrões que permitam cumular mérito com o acesso por pessoas que se encontram em grupos discriminados ou vulneráveis da sociedade como brasileiros afrodescendentes, pessoas com deficiência, alunos que cursaram ensino fundamental e/ou médio em escolas públicas, membros dos povos indígenas brasileiros. E isso acabará permitindo que alunos e professores compartilhem conhecimento com pessoas oriundas de diversos grupos da sociedade brasileira. Entretanto, não devemos nos enganar que somente a adoção de ações afirmativas tornará o ensino

superior acessível para pessoas integrantes de grupo discriminados no Brasil, pois sem uma política que ajude esses alunos a se manter na universidade, o acesso não terá sido eficaz, pois é preciso entrar, permanecer no curso e se graduar, pois, somente assim os alunos beneficiados pelas ações afirmativas poderão após o ingresso, com seu mérito e apoio das universidades, partir para o mercado de trabalho.

Somente a adoção de ações afirmativas não torna o ensino superior acessível aos grupos discriminados no Brasil


24 | UnB – SindjusDF

CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2007

O futuro da democracia Boaventura de Sousa Santos

A

nalisada globalmente, a democracia oferece-nos duas imagens muito contrastantes. Por um lado, na forma de democracia representativa, ela é hoje considerada internacionalmente o único regime político legítimo. Investem-se milhões de euros e dólares em programas de promoção da democracia, em missões de fiscalização de processos eleitorais, e, quando algum país do chamado Terceiro Mundo manifesta renitência em adotar o regime democrático, as agências financeiras internacionais têm meios de o pressionar através das condições de concessão de empréstimos. Por outro lado, começam a proliferar os sinais de que os regimes democráticos instaurados nos últimos trinta ou vinte anos traíram as expectativas dos grupos sociais excluídos, dos trabalhadores cada vez mais ameaçados nos seus direitos e das classes médias empobrecidas. Sondagens recentes feitas na América Latina revelam que em alguns países a maioria da população preferiria uma ditadura desde que lhe garantisse algum bem-estar social. Acrescente-se que as revelações, cada vez mais freqüentes, de corrupção levam à conclusão que os governantes legitimamente eleitos usam o seu mandato para enriquecer à custa do povo e dos contribuintes. Por sua vez, o desrespeito dos partidos, uma vez eleitos, pelos seus programas eleitorais parece nunca ter sido tão grande. De modo que os cidadãos se sentem cada vez menos representados pelos seus representantes e acham que as decisões mais importantes dos seus governos escapam à sua participação democrática. O contraste entre estas duas imagens oculta um outro, entre as democracias reais e o ideal democrático. Rousseau foi quem melhor definiu este ideal: uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém. Segundo este

critério, estamos ainda longe da democracia. Os desafios que são postos à democracia no nosso tempo são os seguintes. Primeiro, se continuarem a aumentar as desigualdades sociais entre ricos e pobres ao ritmo das três últimas décadas, em breve, a igualdade jurídico-política entre os cidadãos deixará de ser um ideal republicano para se tornar uma hipocrisia social constitucionalizada. Segundo, a democracia atual não está preparada para reconhecer a diversidade cultural, para lutar eficazmente contra o racismo, o colonialismo e o sexismo e as discriminações em que eles se traduzem. Isto é tanto mais grave quanto é certo que as so-

ciedades nacionais são cada vez mais multiculturais e multiétnicas. Terceiro, as imposições econômicas e militares dos países dominantes são cada vez mais drásticas e menos democráticas. Assim sucede, em particular, quando vitórias eleitorais legítimas são transformadas pelo chefe da diplomacia norte-americana em ameaças à democracia, sejam elas as vitórias do Hamas, de Hugo Chávez ou de Evo Morales. Finalmente, o quarto desafio diz respeito às condições da participação democrática dos cidadãos. São três as principais condições: ser garantida a sobrevivência: quem não tem com que se alimentar e alimen-

tar a sua família tem prioridades mais altas que votar; não estar ameaçado: quem vive ameaçado pela violência no espaço público, na empresa ou em casa, não é livre, qualquer que seja o regime político em que vive; estar informado: quem não dispõe da informação necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer quando não participa. Pode dizer-se com segurança que a promoção da democracia não ocorreu de par com a promoção das condições de participação democrática. Se esta tendência continuar, o futuro da democracia, tal como a conhecemos, é problemático.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.